ÍNDICE
PREFÁCIO, por Luis Alberto Romero
Apresentação, por Jacques Le Goff}
Estudo PRELIMINAR, por Carlos Astarita
PRIMEIRA PARTE: A Sociedade Feudoburguesa e a Economia de Mercado
CAPÍTULO I: A Nova Sociedade e a Preeminência do Patriciado Urbano
I. A Sociedade Feudoburguesa
II. Antiga e Nova Nobreza
III. O Patriciado e as Classes Urbanas Dependentes
CAPÍTULO II: A Nova Sociedade e a Consolidação da Economia de Mercado
I. A Sociedade Feudoburguesa
II. Antiga e Nova Nobreza
III. O Patriciado e as Classes Urbanas Dependentes
CAPÍTULO III: Os Conflitos Internos da Vida Socioeconômica
I. A Sociedade Feudoburguesa
II. Antiga e Nova Nobreza
III. O Patriciado e as Classes Urbanas Dependentes
Segunda PARTE: A Política do Realismo.
CAPÍTULO IV: A Crise da Ordem Ecumênica e a Nova Política
I. A Sociedade Feudoburguesa
II. Antiga e Nova Nobreza
III. O Patriciado e as Classes Urbanas Dependentes
CAPÍTULO V: A Política das Cidades de Desenvolvimento Autônomo
I. O Fortalecimento das Oligarquias
II. A Radicalização das Democracias
III. O Desenvolvimento do Autoritarismo Urbano
CAPÍTULO VI: A Política nos Estados Territoriais
I. A Sociedade Feudoburguesa
II. Antiga e Nova Nobreza
III. O Patriciado e as Classes Urbanas Dependentes
TERCEIRA PARTE: As Formas Conflitantes de Vida
CAPÍTULO VII: A Vida Rural
I. A Sociedade Feudoburguesa
II. Antiga e Nova Nobreza
III. O Patriciado e as Classes Urbanas Dependentes
CAPÍTULO VIII: A Vida Cortesã
I. A Sociedade Feudoburguesa
II. Antiga e Nova Nobreza
III. O Patriciado e as Classes Urbanas Dependentes
PREFÁCIO
Luis Alberto Romero
Tal como meu pai indicava em seu prefácio, La revolución burguesa en el mundo feudal foi concebida como a primeira etapa de uma ampla indagação sobre o desenvolvimento da burguesia no mundo urbano, primeiro na Europa e depois nas áreas europeizadas. Essa indagação, que se iniciava com as origens remotas da burguesia européia, devia responder de forma definitiva às veementes questões propostas por um presente no qual – segundo ele supunha – talvez tivesse chegado a seu fim “o secular desdobramento das possibilidades que a revolução burguesa abriu há dez séculos”.
Aquele livro foi concluído em 1966. Antes de empreender a redação desta sua continuação, escreveu outra de suas grandes obras, Latinoamérica, las ciudades y las ideas [1], em 1976. Não se tratava apenas da tentativa de aplicar, fora do âmbito europeu, os critérios acerca do mundo urbano elaborados a partir de sua experiência de medievalista; era também uma demonstração de como as formas sociais e culturais elaboradas na Europa ocidental se expandiram por um mundo que foi se ajustando à sua imagem e semelhança. Simultaneamente, foi trabalhando no que era seu grande projeto de historiador: uma obra em quatro volumes que devia chamar-se Proceso histórico del mundo Occidental. Após o primeiro deles, La revolución burguesa en el mundo feudal, viriam Crisis y orden en el mundo feudoburgués (séculos XIV a XVI), Apogeo y ruptura del mundo feudoburgués (séculos XVI a XVIII) e El mundo burgués y las revoluciones antiburguesas (séculos XVIII a XX), com o qual devia encerrar-se um ciclo cujas diretrizes principais haviam sido traçadas em 1948, no ensaio El ciclo de la revolución contemporánea.
Do terceiro e quarto volumes só restaram esquemas e notas abundantes, e também algumas aulas e conferências através das quais ele costumava dar forma a suas ideias. Este segundo volume, cujas linhas gerais foram antecipadas no prólogo de La revolución burguesa en el mundo feudal, também não foi totalmente concluído. A primeira e a segunda partes previstas estão completas, assim como toda a terceira parte, que devia encerrar-se com um capítulo intitulado “El mundo urbano”. A quarta parte, da qual nada restou, devia intitular-se “La prefiguración del mundo feudoburgués” e incluía os seguintes capítulos: “El cambio y la imagem de la realidad”, “La mentalidad popular”, “La mentalidad renovadora”, “Las proyecciones de la mentalidad renovadora” e “El conflicto de mentalidades”. As linhas gerais de sua interpretação foram traçadas em seus Ensayos sobre la burguesía medieval, em Maquiavelo historiador e também em seu Estudio sobre la mentalidad burguesa, versão póstuma de um curso em que ele traça todo o arco da história da mentalidade burguesa até sua crise atual. De qualquer modo, o caráter sistemático e solidamente estruturado de seus trabalhos faz com que esta obra, embora inconclusa, tenha unidade e coerência.
A primeira edição deste livro foi realizada por Siglo Veintiuno Editores, no México, em 1980, um ano depois da reedição de La revolución burguesa en el mundo feudal. Ambos os casos se deveram ao empenho pessoal de Arnaldo Orfila Reynal e de Laurette Séjourné. Nesta reedição se acrescentou um “Estudo preliminar”, do medievalista Carlos Astarita, e uma “Apresentação”, do eminente medievalista francês Jacques Le Goff, os quais contribuem para situar a obra de José Luis Romero no contexto da historiografia contemporânea.
[1] José Luis Romero. America Latina. As cidades e as ideias. Tr Bella Joisef. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004.
APRESENTAÇÃO
Jacques Le Goff
Crise e ordem no mundo feudoburguês é um componente essencial do grande projeto histórico que uma morte prematura, em 1977, impediu que José Luis Romero concluísse. Em 1948, o autor já havia concebido claramente seu empreendimento, como explicou em seu ensaio El ciclo de la revolución contemporánea. Ele concebia essa longa história como uma sucessão de crises e de recuperações, de rupturas e de novos equilíbrios – um ciclo – e expressava o sentido de todo seu projeto com duas palavras: revolução e contemporânea. Para Romero, a ordem, o equilíbrio, não perduravam na evolução histórica e era no próprio centro dos sistemas históricos que nasciam as crises que, por sua vez, causavam as revoluções. O trabalho do historiador devia explicar esse ciclo. Essa exigência de longa duração permite entender o interesse pela obra de José Luis Romero manifestado por Fernand Braudel, que aceitou o pedido do historiador argentino de escrever um texto sobre L ‘Europe et l’Amérique 1531-1700 que, analogamente ao texto encomendado a Lucien Febvre, permaneceu como um rascunho inédito. Não obstante, essa exigência é muito diferente do conceito de uma história prolongada até a extenuação, de uma história imóvel idealizada por certos etno-historiadores do século XX sob a influência da Antropologia estruturalista.
José Luis Romero concebe uma história em constante movimento e sua ambição é a de analisar e explicar essa história cambiante. O próprio título do livro expressa isso: crise e ordem. Mas a outra palavra essencial é contemporânea. O caráter inconcluso da obra de José Luis Romero e a importância do período medieval entendido como o momento crucial da formação e do começo da crise do sistema histórico essencial da modernidade – a burguesia – tiveram o efeito de circunscrever a imagem do autor à de um medievalista. Certamente, ele foi um grande medievalista, um dos que revolucionaram e renovaram profundamente a imagem da Idade Media. Ele criou o termo que, sem dúvida, ficará durante muito tempo ligado a essa época: o de feudoburguês, uma das grandes inovações do vocabulário historiográfico. No entanto, quis ser um historiador do mundo contemporâneo e explicá-lo por meio de um longo passado no qual o período medieval foi decisivo. Compreenderíamos mal este livro se não o colocássemos nessa perspectiva contemporânea.
O conjunto dos quatro volumes que comporiam a ambiciosa obra de José Luis Romero devia intitular-se Proceso histórico del mundo Occidental. Ele se limitava – se se pode falar em limitação – à Europa e, após a Idade Média, ao Ocidente. Mas, a partir do século XVI, Romero incorpora o Novo Mundo extra-europeu descoberto, conquistado e colonizado pelos europeus. Observa ali a dilatação do modelo burguês e urbano europeu, como explicou no prefácio de La revolución burguesa en el mundo feudal: “Esta Europa dividida foi a que – exatamente quando se dividia, no início do século XVI – assumiu a tarefa de incorporar a seu âmbito as vastas regiões de distintos continentes além-mar. Assim, surgiu uma segunda periferia, montada sobre um conjunto-satélite de cidades colonizadoras e de estabelecimentos comerciais que logo se integraram ao sistema do ‘mundo urbano’ europeu.” A criação dessa periferia européia foi então o objeto de estudo do historiador em uma de suas maiores obras, que deve ser integrada a sua grande obra global: Latinoamérica, las ciudades y las ideas, de 1976.
A obra completa devia constituir-se de quatro volumes que explicariam cronologicamente os quatro momentos sucessivos do ciclo revolucionário: La revolución burguesa en el mundo feudal (séculos III a XIII) (1967), este livro – Crise e ordem no mundo feudoburguês (séculos XIV a XVI), publicado incompleto postumamente em 1980 – e os que não foram escritos: Apogeo y ruptura del mundo feudoburgués (séculos XVI a XVIII) e, finalmente, El mundo burgués y las revoluciones antiburguesas (séculos XVIII a XX).
O espírito da obra havia sido traçado em três artigos que foram reunidos e publicados em 1961, com o título Ensayos sobre la burguesía medieval. No primeiro desses ensaios, “El espíritu burgués y la crisis bajomedieval”, José Luis Romero tornou a encontrar nos textos medievais a concepção de Georges Dumézil – que nessa época Romero não havia lido – de uma ideia indo-européia do esquema da sociedade tripartida (oratores, bellatores, laboratores), quase ao mesmo tempo em que Jean Batany, Georges Duby e eu mesmo a descobríamos.
Da diferença do grupo dos lavradores, núcleo central que iria impulsionar a revolução, Romero fazia nascer a burguesia, cujos passos se propunha a seguir até nossos dias. Dessa maneira, explicava como a burguesia se desenvolveu através dos conflitos que a opunham estrutural e historicamente às outras duas ordens, os oradores e os guerreiros (bellatores) – que chama defensores –, sendo para ele esse o motor da história da oposição e das lutas entre essas categorias sociais que não chama de classes, mas sim de poderes. São esses conflitos internos, essas tensões, que explicam a transformação e o desenvolvimento da História sempre em movimento. Também no interior da burguesia, os que a animaram foram os subgrupos; e, em particular, “frente à agricultura, artificium e pecuniária”. Finalmente, no interior da burguesia se impôs a alta burguesia, o patriciado.
A concepção histórica de José Luis Romero abrange todos os campos de atividade das sociedades históricas. Sua obra é o mais belo exemplo que conheço dessa História global preconizada e jamais realizada em sua totalidade pelos historiadores franceses dos Annales. Em Crise e ordem no mundo feudoburguês, ele pesquisa sucessivamente três perspectivas desse mundo. Em primeiro lugar, a perspectiva econômica, em que a inovação da nova sociedade é a economia de mercado, que faz nascer, no seio da sociedade feudoburguesa, as contradições da vida econômica e as tensões da vida social. Depois, a perspectiva política, que ele define, diante do desvanecimento da ordem ecumênica do Império e do Papado, como a política do realismo em vigência nas cidades de desenvolvimento autônomo e nos estados territoriais (o autor não fala em nações) onde se integram a política das classes nobres e a das burguesias. Finalmente, a perspectiva das formas de vida (sempre conflitante), que evoca o célebre capítulo de A sociedade feudal, de Marc Bloch (1939-1940), sobre “as maneiras de sentir e de pensar”; ali Romero analisa a vida rural – com seu prolongamento de grupos marginais: mendigos, rebeldes e bandidos – e a vida cortesã. Deveria ter concluído com um capítulo intitulado “El mundo urbano”. Tampouco teve tempo de escrever uma quarta parte sobre “La prefiguración del mundo feudoburguês”, em que a transformação da “imagem da realidade” e as renovações da mentalidade teriam ocupado o lugar principal.
Na História global de José Luis Romero, a perspectiva religiosa e a perspectiva cultural também ocupam um lugar de importância, sempre integradas em uma visão ao mesmo tempo sintética e dinâmico-conflitante. Em La revolución burguesa en el mundo feudal, Romero, que fazia seu ciclo revolucionário começar na crise do Império Romano no século III, mostra primeiro a formação, na Antigüidade tardia e na Alta Idade Média, de uma ordem cristã feudal que logo desembocaria no mundo feudoburguês, sublinhando assim o caráter religioso das origens da Idade Média e dedicando um capítulo importante às formas da mentalidade religiosa. Essa ordem feudal cristã confere à nova sociedade uma ecumenicidade que a Idade Média irá fragmentar.
A arte e a literatura são expressões e testemunhos privilegiados das sociedades históricas. José Luis Romero foi um dos historiadores mais cultos de sua época e deu aos testemunhos artísticos e literários um lugar de particular impacto, em contraste com o relativo silêncio dos medievalistas monopolizados pelas fontes jurídicas (de que ele não desdenha). Um dos melhores exemplos é o belo ensaio (o terceiro do compêndio de 1961): “Dante Alighieri y el orden del mundo”.
Nessa visão global da sociedade e da História, José Luis Romero atribui uma importância particular aos fatores psicológicos e ideológicos como resultado e causa das mudanças. Ele começou a chamá-los espírito para, então – segundo um conceito em voga que começava a difundir-se entre os historiadores europeus –, dar-lhes o nome de mentalidades. O termo invadiu La revolución burguesa en el mundo feudal e seria inteiramente o objeto da quarta parte escrita de Crise e ordem no mundo feudoburguês. Mas, para ele, a mentalidade incorpora a sensibilidade (as últimas páginas de La revolución burguesa intitulam-se “Los cambios generacionales de la sensibilidad” e o comportamento. O capítulo: “Nuevas actitudes y nuevas mentalidades” abre a quarta e última parte de La revolución burguesa. E nos ensaios de 1961, Romero descreve as “novas formas de convivência”. O que José Luis Romero abarca e revela através do conceito de mentalidade é claramente todo o cotidiano do homem em sociedade.
No ensaio de 1961, no qual o termo espírito anuncia o de mentalidade, o espírito burguês é definido como a colocação de um jus mercatorum em vigência, o desejo de enriquecimento, a aspiração à liberdade individual, a acentuação do individualismo, a preocupação com a segurança, o gosto do luxo, a comunhão com a arte e a natureza, a tendência ao hedonismo, o gozo de viver. De acordo com o conservador Dante, laudator temporis acti, os florentinos do final do século XIII e início do século XIV ilustram essa nova mentalidade.
Surpreende-me que, em sua admirável síntese, José Luis Romero não tenha dado mais presença à Igreja e aos intelectuais, exceção feita aos juristas e retóricos da Economia. Nesse livro, Tomás de Aquino não é citado a não ser uma vez por sua teoria do “preço justo”, tão importante para a atividade econômica dos burgueses. Certamente, há belas páginas (514 e 515) em La revolución burguesa sobre a Igreja “vigorosamente integrada à sociedade, da qual é quase a armação ou o esqueleto”, mas rapidamente o autor passa a falar sobre o que Deus representa para os medievais. Mais que a instituição religiosa, é a religiosidade dos fiéis o que concentra sua atenção; mais que os intelectuais, são as ideias arraigadas e inspiradoras o que o cativa. O que o atrai é a sociedade concreta e aqui, outra vez, não são as instituições escolares e universitárias tão importantes para as cidades autônomas como o são para os estados territoriais. Pode-se pensar que essa ausência se deva ao fato de que sua visão era antes de tudo a de uma mudança das sensibilidades e dos comportamentos sociais concretos. Ele trata o tema dos intelectuais em um capítulo em que descreve as formas da mentalidade religiosa e o faz através das manifestações da cupiditas scientiae. Dos Pais da Igreja a Abelardo, São Bernardo ou Raimundo Lúlio (homens sentimentais e apaixonados), seus intelectuais da Idade Média não são pensadores mas sim homens de desejo em busca dos prazeres intelectuais. De forma análoga, quando Romero fala do conhecimento, trata-se essencialmente de um saber empírico e não filosófico ou teológico. Os grandes nomes da escolástica do século XIII estão ausentes nesse livro, mas figuram o agrônomo Pierre de Crescens e seu Livre des Prouffitz champêtres e o manual do mercador: a Pratica della mercatura, de Francesco Balducei Pegolotti.
A obra inconclusa de José Luis Romero, da qual este livro é um componente central pelos temas e pela cronologia, permanece como um dos monumentos mais impressionantes e mais notáveis da historiografia da segunda metade do século XX. Ao que eu disse sobre seu caráter global de síntese integrada quero acrescentar três observações.
A primeira é que, pioneiro de uma concepção imposta hoje entre todos os historiadores, José Luis Romero considera o ofício de historiador como o de alguém que entalha uma face realista e uma face imaginária da História. Em La revolución burguesa, ele apresentou de maneira extensa, ao lado das mudanças sociais e políticas, as novas imagens que vão abrir em conjunto a passagem para a crise e a ordem no mundo feudoburguês, que este livro estuda. Romero é o pioneiro de uma história das representações e do imaginário (sem empregar esses termos, que surgiram na historiografia pouco depois de sua morte). A segunda é que a concepção fundamental da evolução histórica de José Luis Romero é a de uma perpétua mudança, palavra onipresente em sua obra, completada pela aparição de novidades, o desenvolvimento de crises e, finalmente, de revolução. Ali aparece uma visão otimista da História, mais acabada, mais rica que a da ideia do progresso, em crise na época em que ele escrevia e que não o atraiu.
Permitam-me terminar fazendo menção ao parentesco de suas ideias com as de seus contemporâneos dos Annales. Já destaquei sua paixão por uma história que fosse fundamentalmente uma história social, porém há mais. A imagem, a nova imagem que lhe surgiu coração do fenômeno burguês, e conseqüentemente decorreu da reflexão e da paixão do historiador, é a do homem. José Luis Romero foi um grande pioneiro da Antropologia histórica.
ESTUDO PRELIMINAR
Carlos Astarita
A história profissional, como qualquer outra atividade, tem suas normas, seus rituais e suas convenções. Uma delas é conhecer cada estudo da “especialidade”, um pressuposto do homo academicus que é também o requisito de seu nascimento. Em cada tese, o capo lavoro da iniciação, o aspirante a historiador deve demonstrar, como um humanista, que nada do que foi publicado lhe é desconhecido. Essa é uma noção estranha de totalidade bibliográfica que não significa verdadeiramente o todo, mas sim um horizonte cronológico. Para comprová-lo, basta tomar um autor de 1930 e veremos que os livros ou artigos citados são praticamente desconhecidos pelos especialistas do presente. Esse critério de captação da herança intelectual acentua-se cada vez mais com a extrema importância que hoje se dá à moda científica e, com ela, sobrevive uma rotineira desvalorização de determinados temas, problemas e autores. A conseqüência é que, com cada tese, se sanciona uma série de historiadores, nós os separamos da criação do conhecimento, transformamo os em objeto de curiosidade historiográfica; na melhor das hipóteses, eles são transformados em “antecedentes” distantes e inócuos.
Com essa prática, cada geração de historiadores abandona uma geração de obras duradouras1. A diferença entre estas últimas e as que não custa omitir relaciona-se com a distância que separa os dois tipos de textos: os que simplesmente se lêem e os que se estudam. Esta é a categoria dos clássicos. Com eles, ler é reler e escrever, é expor-se às perguntas do autor, interiorizar sua forma de resolução, apreender inclusive sua problemática, corrigir erros. Com eles, em suma, podemos inquietar-nos até a obsessão, inclusive com as perguntas que não responderam, mas souberam fazer. Quando se reconhece isso, não só se descobre uma surpreendente atualidade em um texto antigo; encontra-se também um sistema de formação.
Se é necessário voltar várias vezes aos clássicos, é necessário voltar a estudar Romero. É verdade que nos últimos anos assistimos em nosso país a uma renovada atenção a seus trabalhos, possivelmente motivada pelo interesse que hoje despertam os estudos culturais, e, nesse sentido, seus livros fogem ao esquecimento que afetou outros pesquisadores. Porém, esse interesse não deveria estar sujeito à perigosa oscilação da conjuntura. Na natureza desse tipo de obra, na riqueza de um conteúdo que não admite uma leitura única, está uma vigência que supera as fronteiras de uma momentânea atmosfera intelectual. Um clássico não se confunde com o uso temporário de um objeto cultural; seus bens situam-se em um plano diferente.
Os Aspectos Hoje Controversos na Obra de Romero
A obra de Romero é orientada por uma questão fundamental: explicar a origem da civilização burguesa, o que constitui, por outro lado, um tema clássico das ciências sociais. Esse objeto de estudo inclina-o naturalmente para a análise da gênese dessa civilização urbana e burguesa na época medieval, período ao qual dedicará sua mais esmerada atenção. Os resultados desses estudos condensam-se em duas obras, La revolución burguesa en el mundo feudal, publicada pela primeira vez em Buenos Aires em 1967, e o presente livro, que esta iniciativa editorial permite que o leitor tenha outra vez em suas mãos.
Nessa preocupação podem ser detectadas duas influências convergentes. Por um lado, a concepção que boa parte da intelectualidade posterior à Primeira Guerra tinha de “crise burguesa”, cujo pessimismo parece haver deixado uma profunda impressão no espírito de Romero, que então concebe que é necessário ter uma consciência histórica da marcha da humanidade2. Por outro lado, a situação da historiografia medieval da primeira metade do século, quando brilhavam autores como Sombart, Luzzato, Pirenne ou Sapori, que haviam dedicado interessantes estudos à cidade medieval3. Nessa perspectiva, compreende-se que os camponeses não ocuparam um lugar de destaque nas elaborações de Romero, visto que o âmbito rural só lhe importava enquanto segundo plano em que se desenvolveriam os grupos de cidadãos em conflitante antagonismo com o contexto feudal. Essa perspectiva lhe permitiu obter uma representação unitária e coerente da dinâmica social.
Estabelecidos esses elementos primários, podemos crer que a obra de um historiador encontra um juiz no veredicto da investigação subseqüente. Analisemos as objeções.
O aspecto hoje talvez mais questionado na obra de Romero (e na historiografia do momento de sua formação) refere-se ao esquema dual, difundido por Pirenne, fundamentado no surgimento de uma economia de mercado a partir dos séculos XI e XII, que haveria atuado em oposição revolucionária ao sistema feudal4. Essa objeção origina-se no início dos anos cinqüenta, quando se produz uma alteração nos parâmetros analíticos. E então que se conhece a tese de George Duby sobre o Mâcon, que marcava o início de uma série de monografias sobre estruturas rurais e, como conseqüência da publicação dos Estudos de Maurice Dobb, acontece o primeiro grande debate internacional sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, em que estava em incômoda minoria o modelo baseado em Pirenne5. A reorientação temática e interpretativa trouxe, como conseqüência indesejável, o abandono do substancial problema acerca do papel das cidades no processo social. Um maçante enunciado de elementos estáticos foi o denominador comum dos escassos historiadores que se aventuraram nesse terreno, abandonado pela investigação. Esse vazio só foi preenchido por umas quantas exceções, como a análise do mercado na evolução da “economia do mundo” ou o funcionalismo sistêmico aplicado por Yves Barel ao estudo da cidade medieval6. Essas contribuições, numericamente inferiores mas qualitativamente significativas, indicam-nos que a preocupação de Romero em resolver o papel representado pelas cidades e o mercado nas transformações da estrutura social mantém sua vigência. Levando em conta essas circunstâncias, pode-se postular uma volta aos temas do mundo urbano, de maneira nenhuma esgotados. Na obra de Romero, encontram-se criativas direções de pensamento sobre o particular.
Um segundo problema, que a historiografia posterior recusou, é a concepção de Romero, compartilhada por outros pesquisadores de sua época, da monarquia centralizada que, a partir do século XII (ou do século XIII conforme o caso), se havia afirmado como árbitro entre as classes, apoiando-se nos recursos que lhe dava a burguesia para concretizar essa autonomia. Isso se relaciona com o fator mercado na medida em que o aparecimento do estado o vincula aos processos de circulação. Embora os fenômenos chamados econômicos não fossem uma preocupação central para Romero, a evolução das estruturas de dominação constituiu sim uma das matérias que ele destaca em seus escritos. E por isso que esse problema merece ser analisado com uma certa detenção.
Os medievalistas que trabalhavam sob esse parâmetro estabeleciam um profundo nexo conceituai no estado fático – isto é, que não esteve necessariamente presente no nível de sua consciência crítica – com o sistema filosófico descritivo de Hegel nas duas questões relacionadas. A primeira é uma derivação da crítica hegeliana às escolas jusnaturalistas em um plano lógico-sistemático e a concomitante modificação da tradição anticontratualista7. Quando Hegel estabeleceu que o contrato social não tem uma mera existência especulativa mas sim real e que ela se encontra no feudalismo, o estudo do pacto pessoal entre senhor e vassalo adquiriu uma centralidade que orientou os historiadores alemães de formação jurídica. Deles partiu uma irradiação universal do problema. Esse tratado de obrigações mútuas entre as partes foi a armação legal que interessou ao formalismo institucional como o pressuposto da reprodução que preocupava os historiadores influenciados pela sociologia de Durkheim e que nos laços de dependência descobriram o mecanismo de integração social8. Em sua diversidade, os enfoques confluíam em uma determinação compartilhada: o feudalismo, como reinado do direito privado, em que cada esfera social tinha um caráter político, constituía a negação do estado propriamente dito.
Em segundo lugar, é também Hegel o primeiro filósofo político que aponta, com aguda percepção, que o rompimento entre a sociedade política e civil (a esfera do interesse econômico) é uma qualidade específica do mundo moderno9. Marx, por sua vez, embora altere profundamente as concepções de Hegel sobre o Estado, por outro lado aceita que a identidade entre sociedade política e sociedade civil, específica da Idade Média, desaparece no mundo moderno10. Há uma correspondência entre o Estado e a produção mercantil e, por conseguinte, sua origem está em um fato determinado, a revolução burguesa. Em seu aspecto substancial, essa proposição incidiu na herança dos estudos históricos e sistemáticos, dos planos que se alimentaram em interdependência, configurando um marco de entendimento no qual se situa o caso que consideramos aqui.
Por um lado, a proposição hegeliana sobre o Estado como entidade que concretiza o universal e impede a autodissolução social por primazia do interesse privado eternizou-se na influente analítica weberiana, que estabelece sua razão de ser na necessidade que a burguesia tem de se conduzir segundo as previsíveis normas do jurista, definido como um autômato da aplicação de parágrafos11. Aqui reaparece, sob outra forma, um necessário princípio de coesão social. Por outro lado, se existe um nexo causal entre a produção mercantil e a sociedade política moderna, o antecedente histórico imediato desta última, a monarquia absolutista, devia necessariamente ser conceituado como um regime favorável à burguesia. E nesse contexto que Romero descobre que o ato determinado como chave, a revolução burguesa que gerava um duplo nascimento do Estado e da circulação mercantil, havia tido a sua primeira forma no século XII, quando a economia natural de auto-subsistência, concomitante com a divisão política, era afetada em sua passividade pela atividade comercial que se impunha como suporte da monarquia, a qual, por sua vez, encontrava apoio na burguesia para subjugar a independência aristocrática. Essa revolução burguesa no mundo feudal, que estrutura a obra de medievalista do autor, projeta-se neste livro com o conflituoso desdobramento do patriciado em interação com as monarquias.
Sobre esse nível de análise, derivado de uma concepção geral do movimento histórico, atuava por sua vez a impossibilidade lógica de autotransformação do feudalismo, o bloqueio estabelecido para sua própria superação em uma entidade distinta. Nesse contexto de vínculos privados entre os atores, em que cada tentativa do rei para conquistar a fidelidade se cristalizava em uma nova autonomia política que dissolvia qualquer princípio unitário material em mera representação, o momento em que essa monarquia se encarnava como força real orientada para a uniformidade jurídica, a organização burocrática e a fiscalização devia ser excluído da lógica centrífuga do benefício feudal. Observemos, pois, a representação discursiva do movimento histórico que, desde Romero, tem suas raízes em uma trama de densidade insuspeitada por muitos censores do modelo “tradicional”, que intuem ser motivado em uma causalidade puramente “econômica”.
Esse esquema esteve submetido a tensões próprias da investigação. O primeiro aspecto crítico surgiu da mencionada reconsideração do capital mercantil, que deixou de ser entendido como uma força de ruptura da organização sociopolítica feudal e passou a ser tratado como parte de seus mecanismos de reprodução, como uma de suas determinações, e estabeleceu-se, então, uma efetiva pressão para abandonar o dualismo da economia natural e da economia monetária. O declínio do feudalismo, evidenciado na queda demográfica do século XIV, não seria causado por um fator externo, o comércio, mas sim por contradições inerentes às relações sociais de produção estabelecidas entre os nobres e os camponeses. Essa nova cosmovisão foi se difundindo progressivamente em segmentos muito ativos da investigação12. Com essa percepção do feudalismo como totalidade orgânica, em cujo núcleo se situavam os mecanismos de reprodução social e não a organização formal da classe de poder, a concepção jurídico-contratualista foi praticamente abandonada. Se o senhorio era a organização que outorgava sua verdadeira natureza a um conjunto social que se manifestava em uma variedade de expressões materiais e mentais (e não só no plano jurídico institucional), o feudalismo, embora em declínio prolongado, sobreviveu então até o século XVIII e, como uma conseqüência, esse curso da reflexão comprometia a caracterização protoburguesa do absolutismo13.
A inversão concretizou-se na Sociologia histórica de Perry Anderson14. O Estado absolutista era agora um “aparato reorganizado e potencial de domínio feudal”, só secundariamente “sobredeterminado” pela burguesia comercial urbana e surgido como uma necessidade dos senhores diante da crise do século XIV. Essa imagem instrumental e reprodutora do Estado encontrou reconhecimento geral na Argentina e em âmbitos como a Sociologia foi admitida sem reservas. Também foi adotada por muitos especialistas do exterior15. A herança historiográfica desempenhou seu papel nessa análise: se a prática benéfica não permite mais do que acumulações fracionadas e, por sua vez, desestima-se a incidência burguesa, impõe-se como alternativa um ato dos mesmos senhores feudais que criaram um Estado para assegurar sua existência social. Nesse poder centralizado, objetivava-se assim a vontade da classe16.
Sem negar a caracterização feudal do Estado medieval tardio – questão que já deve ser admitida –, à mencionada tese sobre sua gênese opõem-se, não obstante, sérias dúvidas sobre a cronologia (é anterior ao século XIV), os procedimentos (em determinadas áreas a nobreza só concebe um programa político em fins do século XV) e a causalidade (tampouco se pode assegurar que a queda das vendas afetou uniformemente a aristocracia de todos os lados). Essas incongruências do modelo, que facilmente podem ser multiplicadas apenas se concentrarmos a atenção em um caso particular, advertem sobre a necessidade de voltar de alguma maneira ao antigo caminho percorrido por historiadores que foram desautorizados de modo muito precipitado17.
Isso não significa aderir a uma lógica capitalista do Estado proto-absolutista. Na realidade, este se afirmava como um extrator sistemático de excedentes que assumiam a forma de renda fiscal e permitia, ao mesmo tempo, a subsistência de senhores particulares consolidados com o morgadio. O mundo europeu continuava sendo feudal além do século XV. Mas o ponto crítico que revaloriza a tese tradicional é o de que o apoio da Coroa para a percepção da “renda feudal centralizada” estava nos patriciados que, como Romero descreve em suas obras, apresentavam traços qualitativamente distintos dos do senhor feudal. Enquanto este último dispunha de um poder de mando como propriedade privada, as aristocracias urbanas só gozavam de um poder jurisdicional como coletivo, fato explicável porque sua reprodução social era garantida por novas formas econômicas (exploração do trabalho assalariado ou percepção de valor no processo de circulação) e só secundariamente por senhorios territoriais, surgidos de uma inversão marginal de seus benefícios comerciais18. O vértice político empreende então sua marcha para o mal chamado regime absolutista como conseqüência de um automovimento da mesma sociedade e suas expressões organizadoras, os quatro estados corporativos.
Em definitivo, a concepção exposta por Romero não está equivocada nos aspectos de importância: por um lado, a aliança entre a Coroa e as comunidades e, por outro, a caracterização que propõe da sociedade feudoburguesa têm seu lugar na historiografia contemporânea19. Efetivamente, desde o século XII, Romero vê surgir uma crescente interpenetração da burguesia com a antiga nobreza, um complexo entrelaçamento entre mercadores, senhores e monarquias, junto com a promoção de juristas e burocratas. Descreve uma sociedade em transição, seu verdadeiro interesse de estudo, em que o patriciado se torna o protagonista. Isso se traduz em um tratamento concreto, pelo qual, embora a burguesia tenha buscado a tutela do poder político, as monarquias desprenderam-se lentamente, durante os séculos XIV e XV, da íntima solidariedade que anteriormente haviam estabelecido como a classe feudal. Romero reconhece, pois, da mesma maneira que o reconhecem os historiadores, o peso dos quadros tradicionais na nova ordem de coisas que formava a sociedade transacional. Também é atual sua análise das cidades mercantis em que os patriciados burgueses resguardaram uma orgulhosa independência em defesa de seus monopólios e contrária à centralização do príncipe20.
No entanto, o alcance do estudo de Romero sobre as novas entidades sociopolíticas não se limita ao interesse circunscrito do historiador. Seu significado interessa ao conjunto das ciências sociais. Porque, dessa coexistência de uma nobreza proprietária de poder político, de uma classe estamental burguesa com faculdades de governo e de um vértice político em que o funcionário público que se subordina à lei começava sua verdadeira existência histórica, derivam os fundamentos da sociedade moderna. Com essas premissas medievais, sua constituição não pressupõe somente a usurpação dos produtores diretos de seus meios de produção (Marx), mas também a expropriação dos proprietários dos meios administrativos e de constrangimento político (Weber); esta é a ação que a burguesia executará em seu ciclo revolucionário, ação que somente se compreende sob a premissa de ela haver se constituído como sujeito político com capacidade para transformar as condições que encontra; isso, no Estado moderno, se traduz em um estado burocrático diferenciado dos proprietários dos meios de produção21. Sem essa dimensão histórica, o mundo ocidental contemporâneo é um hieróglifo. As revoluções burguesas significam, ao mesmo tempo, a transformação das classes estamentais em classes sociais modernas não políticas, a estabilização do funcionário e a reformulação das organizações sociais. Foram essas as condições políticas que permitiram o desenvolvimento das novas formas de produção. Essa ação revolucionária – é necessário insistir – não significou uma criação ex nihilo do Estado moderno, mas uma metamorfose das condições herdadas da Idade Média. Na “democratização” do poder de mando que se opera com o patriciado urbano, enraízam-se tanto a potencialidade do sujeito social como o remoto antecedente do que Gramsci chamou de sociedade civil, isto é, o conjunto de instituições corporativas e organizações de classe modernas que se adjudicam um direito de fiscalização e questionamento do Estado e que, por seu próprio peso, anulam em princípio toda possibilidade de uma concentração autocrática do poder no vértice burocrático22. Estamos, portanto, diante da seqüência do sistema feudal-constituição estamental (ou a fase medieval tardia em que o patriciado adquire existência como ator político) – constituição representativa moderna, que, a partir de outra doutrina teórica, Otto Hintze viu como momentos opostos de um ciclo coerente de desenvolvimento e que permite explicar que a reciprocidade do vínculo obrigatório entre governante e súdito, ou seja, a primitiva ideia do estado de direito, pôde evoluir no Ocidente23. Esse é o contexto que outorga sentido ao exame de Romero sobre a participação de uma porção dos habitantes da cidade na gestão pública através de associações corporativas.
Afirmou-se antes que compreender um autor como Romero é reconstruir o sentido derradeiro de suas elaborações. E apreender o que pode ser denominado sua problemática, desde que seja restituído o verdadeiro sentido filosófico desse termo, tão desgastado por um uso inadequado e abusivo, como um nó de problemas concatenados, que provêm da interdependência conceituai entre passado e presente. Trata-se de uma reconstrução gnosiológica que, por outro lado, não é passiva. Ela implica um diálogo que engendra pensamentos e reconstrói permanentemente o pensamento objetivado. Aqui, ler é um movimento criativo.
Uma História Social da Cultura
Embora a teoria do fator mercado tenha constituído o aspecto mais fraco das elaborações de Romero, o ambiente da circulação mercantil só constituiu um contexto para ele, que iria desenvolver uma exposição que importa menos por esse enquadramento geral que pela riqueza de seu desenvolvimento particular. A partir dessa perspectiva de tratamento, sua tarefa foi antecipada e confirmada ou desenvolvida em muitos aspectos pelas investigações posteriores. Sua caracterização dos reinos romano-germânicos como época de equilíbrio instável entre as forças sociais, a descrição que faz das formas de vida e das mentalidades, a importância que atribui às linhagens ou facções sociais, a formação das relações feudais e burguesas urbanas com o conjunto de valores contrapostos que lhes correspondem, o sistema de convenções e a utilização da riqueza como valor semiótico, a análise das múltiplas direções dos conflitos sociais da Baixa Idade Média são apenas alguns dos problemas cujos enfoques foram confirmados na obra de Romero e ampliados pela investigação subseqüente.
Porém, devemos deter-nos especialmente em como ele captava a vida histórico-cultural, levando em conta que usava o termo cultura em sua acepção mais ampla. Essa é sua contribuição mais significativa, que lhe reservou um lugar de destaque entre os medievalistas.
Para o estudo da vida sociocultural histórica, embora Romero tenha sido influenciado por outros autores como Jaeger, Huizinga, Bataillon ou Marc Bloch, na realidade, sua obra permanece genuinamente autônoma.
Sabemos que cada país tem uma disposição intelectual própria. A francesa é racionalista e retoricamente tende a produzir um efeito momentâneo no público, a inglesa é empírica, a tradição alemã se define como teórica e até especulativa e a espanhola é esmagadoramente documental. E notável constatar que, havendo Romero cultivado a história européia, não seja possível enquadrá-lo em nenhuma dessas tradições. Ele também permaneceu indiferente às modas que supostamente regiam o trabalho historiográfico, mesmo quando se mantinha informado sobre as produções internacionais assimilando criticamente seus resultados. A fisionomia de sua obra constitui uma manifestação de independência de critério que lhe permitiu apresentar-se como o fundador de uma modalidade muito particular de exercício da História. Sua obra, que recusa qualquer enquadramento redutor, define-se pela sutil modelação das interpretações em um amplo quadro histórico cujo núcleo é a complexidade. Não seria ousadia dizer que em Romero se manifesta um perfil particular da cultura do país. A recepção plural das fontes e das heranças interpretativas por si levam ao distanciamento em relação ao esquema, à confluência de análises diferenciadas (procurando captar lógicas de comportamento social não redutíveis a uma modalidade) e, finalmente, a incorrer em retóricas variadas que se amoldam a objetos particulares de estudo, caminhos que Romero nos ensinou, muito distantes das técnicas precipitadas e dos enfoques de unicidade. Na conjunção que exibe entre rigor de análise e plasticidade de tratamento, esconde-se o segredo do prazer que a leitura de seus livros desperta.
Suas elaborações, regidas pela resposta a uma interrogação substancial, tornam-se presentes mediante uma arquitetura expositiva que, sem excluir a análise das particularidades, oferece uma imagem global e compreensiva. De nenhum modo ele se deixa apanhar por uma visão estática da realidade. Romero é antes de tudo um historiador, porque procura o estudo de uma totalidade em movimento, faceta de sua obra que chamou a atenção de analistas como Ruggiero Romano e Alain Guerreau24. Ele modela o relato descrevendo as forças sociais e culturais que se erigem em uma situação de crise, em que o criativo convive com a preservação de elementos tradicionais; encontro conflituoso de crenças e interesses de grupos que resulta em um equilíbrio instável, do qual emerge a força social renovadora. É aqui onde talvez se mostre mais diáfana sua maestria. Ele capta o ritmo da vida sociocultural e seus fatores (subjetivos e objetivos) em seus processos de mudança, para o que apela à modalidade particular de aproximação com o objeto do historiador, que faz seu trabalho no terreno de convergências múltiplas de cada plano da vida histórica.
No aspecto indicado há pontos de encontro, mas também diferenças relativas aos parâmetros que predominaram desde os anos cinqüenta. Em princípio, Romero utiliza um sistema de antinomias conceituais absolutamente inovadoras para elucidar os mecanismos sociais: equilíbrio/instável, coerente/em desintegração, fechado/aberto25; trata-se de uma criação pessoal que se plasma em seu discurso sem mais justificativas além de sua eficiência intelectual, evitando toda ortodoxia definida de escolas. Se no uso de categorias ele se separa de toda convenção, coincide por outro lado com a analítica de tipo braudeliana, preocupada com a percepção da totalidade. Mas, enquanto boa parte dos estudos desliza para uma visão morfológica, Romero nunca renuncia a perceber o movimento das estruturas, os ritmos diferenciados de seus níveis de conformação e suas interligações na totalidade. Concebe o estudo da anatomia social somente como um momento da investigação, integrável à análise processual que, por sua vez, afirma e corrige enriquecendo os caracteres analisados. Nesse trajeto muito pessoal que o aproxima ou distancia dos modelos vigentes, nega-se a seguir os passos dos historiadores dos Annales, que anularam do seu campo de observação o feito político (procedimento cujas conseqüências negativas começa a ser percebido agora). Tampouco o acontecimento é encontrado em sua exposição como movimento curto com autonomia própria. Romero propõe uma operação mais sofisticada: encontrar seu sentido no processo social. Em determinadas etapas de sua apresentação, quando é necessário evidenciar a formação de um novo quadro histórico, ele observa mais atentamente o relato dos fatos políticos, não circunscritos a espaços limitados, porém procurando captar a incorporação de áreas de civilização tipologicamente unitárias (cristã feudal ou feudoburguesa). Descreve como a assimilação cultural de um povo ou o fluxo comercial entre duas cidades foram muitas vezes resultados de uma batalha, de um tratado, de um acontecimento. No estudo da totalidade, não expõe então a história política como relato seqüencial monótono, já que ela adquire uma importância diferenciada de acordo com o significado que ele descobre nas distintas etapas do processo evolutivo.
Essa concepção de totalidade leva a uma disposição arquitetônica da estrutura real e da estrutura ideológica, denominadas por Romero ordem fática e ordem potencial, instâncias que no desenvolvimento histórico não adquirem uma supremacia definida. O antagonismo entre sujeito e objeto, em vez de ser eliminado mediante um deslocamento que reduz o peso da análise para um pólo de contradição, é desenvolvido na representação processual. Essa flexibilidade de tratamento não impede o autor de considerar um âmbito condicionante (sua funcionalidade no discurso é apenas referencial), que no caso concreto do desenvolvimento burguês é o mercado.
Mas Romero se interessa mais especialmente pela relação que se dá no processo social entre as circunstâncias do fato e as concepções intelectualmente elaboradas para orientá-las. Esse perfil vincula-se com o uso de um tipo definido de fontes (sua base bibliográfica sempre é exibida como secundária): crônicas, textos literários ou de doutrina, que explicam a movimentação dos grupos sociais no conjunto do espaço europeu. Esta última característica é notável, visto que Romero apresenta um conhecimento assombrosamente amplo das fontes medievais de um extremo ao outro da civilização ocidental. Assim, no estudo da totalidade, ele chega a apresentar o entrelaçamento de situações, revelando a complexidade não modelar da dialética entre estrutura material e estrutura ideológica. Conhece os fatos como momentos do desenvolvimento de uma totalidade social que se reconstrói no pensamento por meio de uma trabalhosa investigação. Ao mesmo tempo, sem renunciar à descrição de situações específicas, determinadas ideias são submetidas a um seguimento particular ao longo do processo, como, por exemplo, a evolução das concepções de autoridade da tradição romana e germânica ou a interpenetração entre realidade e irrealidade, esquema que será transformado pelo progressivo discernimento que a burguesia consegue estabelecer entre uma e outra.
O problema das classes tem uma importância-chave em sua obra. Em sua avaliação da ordem potencial, muito especialmente no surgimento de novos quadros históricos, uma preocupação rigorosa impulsiona a indagação de Romero: identificar o sujeito histórico, qual é a classe social que vai imprimir sua marca peculiar em uma determinada época, explicar seu processo constitutivo. Essa inquietação, que se inscreve na tradição cultural socialista, revela-se fundamentalmente na análise da burguesia.
Quando estuda as classes, Romero evita as definições taxativas; além disso, vai conseguindo fazer aproximações cautelosas, circulando o fenômeno estudado com a descrição de suas determinações, vinculando o grupo social ao conjunto de relações histórico-culturais que o ajustam a um processo cambiante e até inacabado, evitando permanentemente sua codificação. Na imagem de Romero, a burguesia surge como um grupo social imaturo, vacilante, que procura encontrar seu lugar entre as classes sociais definindo suas formas de vida e de mentalidade. A diferença que se estabelece nesse aspecto com a rigidez de definição das escolas institucionalistas é abismal.
Ao colocar a ênfase no estudo da burguesia, Romero concentra sua atenção nas formas de vida que se desenvolvem nas cidades. Compreendendo as relações que aconteciam nesse espaço, pôde ver a tendência de evolução rumo ao mundo moderno. E nesse espaço urbano que ele descobre, a partir do século XI, o nascimento de uma nova experiência psicológica que se contrapõe de imediato à que se havia configurado no espaço rural. Nesse contexto, o autor reconstrói as peculiaridades dos comportamentos do novo ator no cenário citadino, seus modos, seus costumes, suas formas de gozo e de erotismo, que incluem desde o tratamento dos micromeios populares como a taberna, o mercado ou a feira até as expressões artísticas primorosas da arquitetura, da pintura ou da literatura. E no conjunto dessas atitudes que ele descobre a dissidência da burguesia, sua ação revolucionária em uma dimensão que supera o simples âmbito da ação política, para transcender em uma manifestação de ruptura mais compreensiva da vida social26.
Como parte das qualidades dos grupos sociais, Romero analisa suas dimensões subjetivas, sejam da nobreza ou do patriciado, captando a complexidade de elementos (situação socioeconômica, crenças, formas de vida, experiências, desafios impostos por circunstâncias anteriores) que formaram a consciência de classe. Mas esse sentimento de grupo também se define na oposição entre os contratos sociais; é por isso que o autor descobre os perfis socioculturais das classes com maior nitidez nas situações conflituosas. No jogo de oposição entre grupos dominantes e subalternos, ele desmascara suas relações antagônicas, descobrindo na própria ação processos espontâneos surgidos de cada grupo social, que reage de acordo com as exigências das circunstâncias imediatas.
Sua averiguação sobre a consciência de classe reconhece duas perspectivas. Em determinadas passagens, a observação situa-se a partir do ponto de vista do historiador, que registra as experiências dos grupos sociais com suas respostas práticas, as sistematizações ideológicas que posteriormente amadurecem para projetar-se sobre a realidade e seus resultados operativos. Em outros momentos, Romero cede a palavra aos sujeitos para surpreender sua auto-re-presentação social. O mundo subjetivo das classes arma-se na confluência desses pontos de vista combinados. É como se a dimensão subjetiva das classes não se extinguisse em si mesma. Ao contrário, ela tem assinalada uma função ativa na formação das novas realidades históricas, que surgem, então, das resistências e concessões dos grupos e que, paradigmaticamente, se refletem na ordem que ele chama de feudoburguesa.
Esses deslocamentos contínuos da análise, que outorgam ao relato uma dinâmica absorvente, são por sua vez atravessados por outra bipolaridade complementar. E a que se deu entre a cultura madura da elite que elabora linhas de pensamento teórico e as imprecisas crenças atávicas, as normas consuetudinárias dos grupos sociais plebeus. Essas duas tradições confluem por caminhos distintos na configuração de uma realidade múltipla e de difícil apreensão. Essas tradições impõem também a circulação de fluxos culturais que não só atuam na forma horizontal, dentro de uma mesma classe, mas por interligações verticais que passam de uma classe para outra, de cima para baixo e vice-versa. Essa forma de estudo mostra sua riqueza na talentosa descrição da mentalidade cristã feudal, que foi fundada na transcendência, em que a causalidade natural não existe sem o sobrenatural. Essa inter-relação dos mundos, essa força social da irrealidade sobre a realidade constrói-se sobre a base da confluência de tradições de origem e nível distintos (romanas, celtas, germanas, hebraico-cristãs, muçulmanas; eruditas e populares).
Na atualidade, em que uma parte dos historiadores se inclinou por desmembrar a totalidade em micropartículas fora do contexto, essa concepção de Romero adquire um valor programático. As objeções à possibilidade de realizar uma síntese das relações múltiplas da vida social que se formulam agora não são novidades. Romero já havia tornado relativos os argumentos de Schäfer, que, em seu livro Geschichte und Kulturgeschichte, publicado em 1891, havia julgado esse esforço irrealizável27. A mesma obra que aqui é examinada desmente a pretensa impossibilidade da história total: seu abandono como projeto responde melhor a vocações empíricas, para não falar agora de preconceitos políticos. Essa última indicação não é banal. A totalidade como critério de intelecção histórica também é um método crítico social.
Um balanço geral da situação historiográfica, à luz dos bens entregues por Romero, inclina-nos a manter duas conclusões temporárias. Em princípio, as potencialidades de interpretação são contempladas em boa medida pela possibilidade de retornar ao estudo da totalidade, por não renunciar aos grandes esquemas nem às orientações mais gerais que dão sentido ao estudo concreto. Em segundo lugar, e à medida que constatamos pensamentos antecipados na obra de Romero, parece pertinente perguntar se as renovações e os métodos de interpretação na história cultural não nasceram em um âmbito geográfico muito mais amplo que aquele que habitualmente é admitido.
A Ruptura com o Positivismo Acadêmico
Desde suas primeiras manifestações, essa modalidade de fazer história traçou uma ruptura com a historiografia acadêmica argentina dos anos cinqüenta, que sofria o duplo efeito da prolongada imobilidade de seu corpo docente e das conseqüências culturais negativas do primeiro período do governo peronista. A chegada de Romero à Faculdade de Filosofia e Letras, no final dos anos cinqüenta, impôs uma verdadeira mudança intelectual com referência às duas famílias de historiadores, aparentadas porém diferentes.
A primeira é a do Neopositivismo. Pertencem a essa categoria os que se negam obstinadamente a incorrer no campo da teoria, limitando-se a uma descrição anódina e sem pretensões. Esses historiadores constituíam a subespécie dominante nos anos em que Romero trabalhava em seus grandes projetos e, de maneira inevitável, essa prática os comoveu. A partir do momento em que a objetividade passou a depender da perspicácia do historiador para estabelecer os nexos causais entre diversos planos de realidade (e quanto mais conexões fossem descobertas, maiores eram as possibilidades da objetividade, na medida em que a representação se tomava mais complexa, mais próxima do movimento real), em conseqüência, o critério de objetividade passou a ser uma função do investigador. É então compreensível que aqueles que se refugiavam na segurança do mero conhecimento dos fatos, na crença de que o documento informava a um observador passivo e não contaminado por preocupações epistemológicas, observassem com decidida inimizade essa proposta, que deviam achar extremamente paradoxal. Os ecos desses desgostosos professores chegaram aos que transitaram pela faculdade nos anos setenta. A exclusiva análise interna do documento era a justificativa acadêmica para negar o exercício da inteligência. Esse estudo positivista guiava-se pelo detalhe monográfico pormenorizado, a única forma que se acreditava válida para alcançar um conhecimento digno de confiança. Essa objeção técnica que era oferecida como resistência gnosiológica à história total (ainda que na verdade encobrisse divergências mais sérias) é levada em conta por Romero, que sugere uma retroalimentação equilibrada entre a investigação erudita e a exposição da totalidade. A medida que vão sendo descobertos novos aspectos de conhecimento particular, é possível alcançar sucessivas sínteses compreensivas nas quais se articulam relações cada vez mais complexas e níveis superiores de conceituação, vez por outra reajustados à percepção das novas qualidades do fenômeno social. A riqueza desse tipo de trabalho deve ser conservada: sem negar a análise particularizada, ele descarta a ilusão positivista de que se consegue o conhecimento da totalidade pelo simples acúmulo de monografias. Essa sistematização, que Romero declara como uma aproximação peculiar da parte do historiador com relação ao objeto social, é exemplificada por sua própria trajetória pessoal, na medida em que suas obras de fôlego foram precedidas por estudos monográficos28.
Devemos observar que, durante muito tempo, excessivos recursos intelectuais não eram necessários para ser historiador29. Ao longo de muitos anos (anos demais), boa parte dos historiadores acadêmicos do país comprovaram essa tese (e não são poucos os que persistem em tão tediosa demonstração). E previsível que Romero tenha constituído uma incômoda anomalia do intelecto nesse contexto de exasperante pobreza30, embora houvesse outras exceções. Se fizermos a abstração de uma geração de jovens renovadores que trabalhosamente abriam caminho desse modo, houve uma segunda família minoritária de historiadores positivistas que, por trás de uma fundamentação descritiva, buscaram a interpretação de longo alcance. O nome aqui é Cláudio Sánchez Albornoz, a outra grande figura da escola dos medievalistas de Buenos Aires. Com Sánchez Albornoz, a linhagem positiva exibe-se em sua pureza prática e doutrinária. Com esse historiador, erudito e inteligente, mede-se a profunda transformação que a obra aqui mencionada supõe.
A metodologia positivista manifesta-se em Sánchez Albornoz nas referências documentais, que concebia como imprescindíveis elementos que zelavam pela objetividade e sobre os quais edificava uma causalidade progressivamente pautada. Junto a esse aspecto, o leitor será surpreendido com as incursões que se afastam da fundamentação sobre a base das fontes. Dessa natureza é sua tese da formação do homo hispanicus como um conjunto de traços psicológicos (“a herança temperamental do espanhol”) desde períodos muito antigos. Muitas vezes, contrariou-se a impossível comprovação empírica desse tipo de formulação. Indicou-se que as perguntas sobre o ser hispânico nasciam da necessidade de explicar uma comunidade que havia perdido o rumo das nações modernas européias desde o século XVI31. Observou-se também que, junto ao método crítico erudito, convivem em Sánchez Albornoz enunciados do idealismo filosófico, atribuindo-os a uma “razão vital” que implica uma recusa dos esquemas regulados e mecanicistas32. Na busca do esclarecimento desse traço, também se assinalou que Sánchez Albornoz, na medida em que considera insuficiente a explicação social, econômica, política ou institucional para dar conta da uniformidade dos comportamentos (o dinamismo reprovador livre da Alta Idade Média), recorre à concepção abstrata do homo hispanicus33.
Sem desconhecer essas explicações, uma razão muito convincente dessas intromissões especulativas é apontada por Pierre Vilar com respeito ao método positivista, encarnado na escola histórica do direito alemão. Trata-se de que, ao converter a constatação histórica em justificação, a erudição “…deixa-se rodear, no seio da escola, pelos vapores do misticismo e da especulação”34. Esse enunciado é confirmado na obra de Sánchez Albornoz. A des-historização absoluta reflete o abismo que se abre entre o registro dos fatos e a formalização da interpretação, com o que o zelo crítico do documento se transforma em exercício acrítico. Nos historiadores positivistas, o plano mais abrangente do estudo não é alcançado por meio de sucessivas aproximações, por abstrações empiricamente controladas, mas através de saltos perigosamente especulativos.
José Luis Romero e Cláudio Sánchez Albornoz resumem a diferença entre uma teoria especulativa – defendida pelo segundo, que busca nos caracteres psicológicos distantes e imprecisos a origem do presente –, um caminho que não estabelece nenhuma conexão com o cientificismo de seus edifícios documentais, e a teoria que emerge de Romero, com base ontológica, constituída pela gênese e o movimento no amplo prazo da sociedade burguesa. Um grande historiador positivista revela-nos a profunda ruptura metodológica implícita na obra de Romero35. Sua teoria não se apresenta como uma desconexão entre as origens e os fatos míticos, que era o procedimento habitual do positivismo doutrinariamente puro do momento, mas está contida na descrição complexa de determinações modais em distintas situações históricas concretas. A teoria está definitivamente de todos os lados, entremeada com a indagação profunda da realidade. Romero não é um filósofo da história, como às vezes se diz enganosamente. Ele era um historiador por ofício, um historiador que elevou a reflexão sobre as fontes à categoria de atividade sistemática.
Esse antipositivismo radical, esse posicionamento antikantiano de recusa à divisão irredutível entre objetividade e subjetividade, permite compreender o procedimento original com que ele encarou o trabalho formativo dos novos historiadores. Não o concebeu como uma reprodução de discípulos à sua imagem e semelhança, que repetissem seus ensinamentos, nem como um acoplamento de escribas para o projeto de um diretor de estudos, mas como o delicado encargo de criar uma atmosfera intelectual que alentaria reflexões pessoais. Construiu novos sujeitos cognoscíveis criando esse clima inquieto que surge da formulação de novas perguntas para antigas questões, de acreditar que nenhum assunto está definitivamente esgotado, de questionar o que já está formalmente resolvido, de assimilar de modo constante as novidades que chegavam do exterior construindo uma ilha de cultura cosmopolita36. O objetivo então não era um simples autoconsumo intelectual, mas prover um contexto para que cada um dos historiadores que o acompanhavam pudesse propor um problema particular. Nas conversas que manteve com Félix Luna, Romero questiona quando se começa a ser um historiador37. A resposta sintetiza o critério que guiava seu ensinamento: “Como em todas as disciplinas, no dia em que se adquire autonomia intelectual, no dia em que se descobre o próprio tema.” Prova evidente desse magistério frutífero é que, na variedade de manifestações teóricas e metodológicas que cresceram amparadas por sua cátedra de História Social Geral (seus membros só se uniam na vocação pelo pensamento como um exercício cotidiano), houve discípulos que decididamente se defrontaram com os conceitos que Romero defendia. É nesse aspecto que se manifesta seu sucesso como gerador de novas autonomias intelectuais; desse modo, nele se consolidou o segredo da renovação da história acadêmica argentina nos anos sessenta. Nessa cátedra imprimiu seu estilo de trabalho “obstinadamente rigoroso” e ilimitadamente aberto a novas fronteiras do conhecimento, inaugurando uma tradição que, apesar de todos os ciclos de intolerância e perseguição política, hoje continua vigente.
Uma Ética de Trabalho
Nesse percurso surge uma obra singular. E possível que, atendo-nos a um conhecedor de sua obra, devamos recorrer a razões biográficas para explicar essa originalidade, assinalando um contexto extremamente inóspito que condenava esse historiador à marginalidade em seus anos de formação, situação que se prolongou quando ele já estava em condições de assumir uma cátedra universitária38. Esse incômodo traduziu-se, paradoxalmente, no benefício de uma cultura peculiar, alimentada por leituras diversas e reflexões pessoais. No isolamento (que foi tanto institucional como de recusa à prática consagrada), Romero constrói sua cosmovisão da História com muitíssimas leituras que abrangem desde autores da Antigüidade clássica até uma ampla gama de filósofos e cientistas sociais mais atuais (Vico, Voltaire, Rousseau, Spengler, Dilthey ou Marx, para mencionar apenas alguns), todos eles recebidos com um critério de unidade conceituai que permite incorporar escolas divergentes em um sistema de conhecimento (atitude muito diferente do ecletismo). Sobre essa base, ele descobre passo a passo sua própria metodologia.
Romero não fica preso às costumeiras exigências de uma carreira acadêmica. Aproveita sua vida intelectual sem o sentido utilitário e peremptório de um “homem prático” que tivesse assistido aos decadentes seminários oficiais para preparar sua tese com urgência. Podemos repetir com Spinoza, omnis determinatio est negatio; essa negação da regra vigente determina a autonomia de um projeto. Se aí encontramos as razões da sua originalidade, conclui-se que o tempo necessário para a formação de um historiador autêntico não costuma ser o tempo de uma carreira acadêmica convencional; tampouco as preocupações de um espírito inquieto costumam coincidir com as ofertas da cultura oficial39. O descomedimento do projeto, a história da civilização burguesa, revela que essa relativa indiferença para com uma carreira universitária balizada por papers “bem publicados” sobre “temas concretos” continuou acompanhando-o. Como era previsível, o projeto não foi concluído e nisso ele se une a nomes como Weber ou Marx.
No entanto, por outro lado, essa marginalidade expressa uma posição existencial. Nesse caso, o suposto isolamento é uma ética que orienta a conduta. Aqui não rege o relativismo, mas sim a intransigência. Trata-se de um plano de vida de acordo com uma filosofia moral que implica recusar o tráfico de favores. Ele continua fiel aos delineamentos que traçou sem cair nas tentações do mercado acadêmico de lucros com pouco trabalho. Trata-se de saber que não é possível ceder quando se profanam convicções íntimas. É realizar uma navegação solitária contra a corrente, se isso for inevitável. É opor uma socrática introspecção à hostilidade do meio. Observado durante muito tempo com receio pela academia, o reconhecimento chegou muito tarde para Romero e, ainda assim, quando já era um historiador famoso, seu livro La revolución burguesa en el mundo feudal surgiu em uma conjuntura intelectual desfavorável para recepcionar esse amplo quadro da história social através das manifestações culturais. Se devemos aprender algo mais sobre Romero é que ele exerceu uma ética da prática intelectual muito diferente da forma calculada com que habitualmente se executam esses empreendimentos. Sua marginalidade surgiu de um claro desinteresse pela praticidade imediata e de uma grande preocupação com questões essenciais. Também nisso, ele é um clássico.
Notas
1. Para dar somente um exemplo, o trabalho de Sombart W., Der moderne Kapitalismus, Munique/Leipzig, 1919, é desconhecido pela maioria dos medievalistas que, não obstante, encontrariam nele observações penetrantes sobre o domínio feudal no regime corporativo artesanal.
2. Romero, J. L., “La formación histórica”, em: La vida histórica, Buenos Aires, 1988.
3. Romero, J. L., “El espíritu burgués y la crisis bajomedieval”, em: ¿Quién es el burgués? Y otros estudios de historia medieval, Buenos Aires, 1984, p. 19.
4. A tese de Pirenne, enunciada pela primeira vez em 1922 na Revue Belge de Philologie et d’Histoire e publicada em sua forma definitiva em 1935, agora pode ser lida em: Pirenne, H., Historia de Europa: desde las invasiones al siglo XVI, tradução espanhola, México, 1981. Sobre sua importância, Kula, W., Problemas y métodos de la história económica, tradução espanhola, Barcelona, 1973, pp. 26 e ss., diz que entre as duas guerras mundiais houve um fabuloso aumento da mera compilação dos fatos; nesse contexto, Pirenne apresentou, junto com algumas poucas exceções, uma visão sistemática do processo histórico. Efetivamente, se observarmos à distância as incríveis polêmicas “científicas” do período, por exemplo, o nascimento do feudalismo a partir do uso do cavalo, compreenderemos a atração pelo esquema de mercado entre os historiadores com vocação renovadora. Também teve influência em Marc Bloch: ver Fink, C., Marc Bloch: A Life in History, Cambridge, 1989, pp. 105 e ss.
5. Duby, G., La société aux XF et XIIe siècles dans la région mâconnai-se, Paris, 1988, 1a edição, 1953. Para a História socioeconômica, essa tese teve um valor modelar só comparável ao da que vinte anos depois publicou Toubert, P. Les structures du Latium – le Latium méridional et la Sabine du IXe siècle, Roma/Paris, 1973, investigação que reforçou o interesse pelas estruturas agrárias da Alta Idade Média. Com uma valorização semelhante à das estruturas agrárias, Dobb, M., havia publicado os Estudios sobre el desarrollo del capitalismo, tradução espanhola, Buenos Aires, 1975, 1a edição, 1946, trabalho de síntese e teórico que defronta as posições de mercado. A polêmica foi iniciada por Sweezy, em Science and Society (Nova York), no início dos anos cinqüenta, e internacionalizou-se rapidamente com a participação de historiadores da França, da Itália e do Japão. Pode-se consultar Hilton, R. (ed.), La transición del feudalismo al capitalismo, tradução espanhola, Barcelona, 1982. Uma síntese das críticas que hoje suscita a interpretação de Pirenne, em Reynolds, S., Kingdoms and Communities in Western Europe. 900-1300, Oxford, 1984, em especial pp. 155 e ss.
6. Wallerstein, I., El moderno sistema mundial. La agricultura capitalista y los orígenes de la economía-mundo en el siglo XVI, tradução espanhola, México, 1979. Barel, Y., La ciudad medieval. Sistema social-sistema urbano, tradução espanhola, Madrid, 1981. Braudel, F., Civilización material, economia y capitalismo. Siglos XV-XVIII, vol. 2. Los juegos del intercambio, tradução espanhola, Madri, 1984. Deixo de lado a linha muito recente de estudo do fator de mercado a partir da aplicação da teoria neoclássica às sociedades pré-modernas, um verdadeiro despropósito empenhado em temas como o marketing na Idade Média. Não é essa a teoria que se espera.
7. Bobbio, N., La teoría de las formas de gobierno en la historia del pensamiento político. Año académico 1975-1976, tradução espanhola, México, 1994, pp. 220 e ss.
8. No primeiro caso, o exemplo arquetípico é Ganshof, F. L., El feudalismo, tradução espanhola, Barcelona, 1963, 1a edição, 1944. Para o segundo, Bloch, M., La sociedad feudal, 2 vols., tradução espanhola, México, 1979, 1a edição, 1939-40. Trata-se de duas obras que tiveram uma grande influência entre os medievalistas.
9. Hegel, G. W. F., Lecciones sobre la filosofia de la historia universal, tradução espanhola, Madri, 1953. Hegel, G. W. F., Principios de la filosofía del derecho o derecho natural y ciencia política, tradução espanhola, Barcelona, 1999. Ver os comentários de Bobbio, N., Estudios de historia de la filosofia: de Hobbes a Gramsci, tradução espanhola, Madri, 1985; Cohen, J. e Arato, A., Sociedad civil y teoria política, tradução espanhola, México, 2000.
10. Uma seleção de textos em Tarcus, H. (comp.), Marx y el estado. Cuaderno de Cátedra, Sociologia, Facultad de Ciencias Sociales, Buenos Aires, 2000. Comentários em Bartra, R., El poder despótico burgués, México, 1978; Cornu, A., Carlos Marx. Federico Engels. Del idealismo al materialismo histórico, tradução espanhola, Buenos Aires, 1965.
11. Weber, M., Economía y sociedad, tradução espanhola, México, 1987. Essa concepção teve influência nos filósofos marxistas interessados no Estado e na burocracia, como George Lukács e Herbert Marcuse. Também nos notáveis historiadores com preocupações sociológicas, como Norbert Elias, Alfred von Martin e Otto Hintze.
12. Nessa reorganização, foi fundamental o estudo de Dobb, M., op. cit. O ponto álgido que põe em evidência é duplo: ele entende a crise do feudalismo como uma crise estrutural ou de não reprodução das relações sociais dominantes (aspecto retomado por Romero de forma limitada) e, com isso, reformula o critério que via na causa da decadência do sistema no capital comercial. Sucederam-se, sob sua inspiração, estudos sobre a crise do feudalismo ou sobre as origens da burguesia: Hilton, em Annales: Economies, Sociétés, CiviUsations, em 1951; Hibbert, em Past & Present, em 1953 (o mesmo ano em que Grauss publica seus estudos em alemão); e Kominski, em Past & Present, em 1955. O debate citado entre Dobb e Sweezy foi um canal para a difusão das novas concepções. Em 1956 foi reproduzido em La Pensée e tornou-se acessível ao público francês.
13. Um estudo que teve seu impacto para esse novo entendimento da monarquia foi o de Porchnev, B., Los levantamientos populares en Francia en el siglo XVII, tradução espanhola, Madri, 1978, (1a edição, 1963). A longa duração de um feudalismo profundo hoje é admitida por historiadores como Hobsbawn, Le Goff ou Guerreau.
14. Anderson, P., El Estado Absolutista, tradução espanhola, Madri, 1979, 1a edição, 1974.
15. Brenner, R., “Las raíces agrarias del capitalismo europeo”, em Aston, T. H. e Philpin, C. H. E. (eds.), El debate Brenner. Estructura de clases agraria y desarrollo económico de la Europa preindustrial, tradução espanhola, Barcelona, 1986. Valdeón Baruque, J., Los conflictos sociales en el reino de Castilla en los siglos XIV y XV, Madri, 1975. Dios, S., “La evolución de las Cortes de Castilla durante el siglo XV”, em Rucquoi, A. (coord.), Realidad e imágenes del poder. Espana a fines de la Edad Media, Valladolid, 1988. Monsalvo Antón, J. M., “Poder político y aparatos de dominación de estado en la Castilla bajomedieval. Consideraciones sobre su problemática”, Studia Histórica. Historia Medieval, IV, 2, 1986.
16. O critério teórico sobre a vontade de classe em Poulantzas, N., Hegemonia y dominación en el Estado Moderno, tradução espanhola, México, 1985.
17. Fundamento essas afirmações em um estudo que fiz sobre o problema: “El estado feudal centralizado. Una revisión de la tesis de Perry Anderson a la luz del caso castellano”, Anales de Historia Antigua y Medieval, 30, 1997.
18. Esse é um ponto crítico de muitas concepções que hoje universalizam os componentes feudais do tempo medieval tardio. Quando os historiadores afirmam que os patriciados urbanos eram segmentos do feudalismo sem determinar seus matizes diferenciais, estão criando uma uniformidade que impede que compreendamos o mecanismo de apoio do príncipe.
19. Em sua última grande obra, Le Goff, J., Saint Louis, Paris, 1996, afirma que: “A evolução que passa do feudalismo ao estado moderno passa no séc. XIII por uma fase essencial de ‘monarquia feudal’ intermediária na qual Saint Louis ocupa um lugar central” (p. 676). Contudo, levando em conta a importância da economia urbana e mercantil, ele adota a caracterização de Romero de sociedade feudoburguesa (p. 690). Em outro plano, um notório representante da Sociologia histórica, Tilly, C., Coerción, capital y los estados europeos. 990-1990, tradução espanhola, Madrid, 1992, persistiu em um esquema do estado absolutista no qual convivem doses de coerção e de incidência do capital.
20. Ver atualmente: Blockmans, W., “Princes conquérants et bourgeois calculateurs. Le poids des réseaux urbains dans la formation de états” e Heinig, P. J., “Städte und Königtum im Zeitalter der Reichsverdichtung”, ambos em Colloque International du Centre National de la Recherche Scientifique, La ville, la bourgeoisie et la genèse de l’État Moderne (XIIe – XVIIIe siècles), Paris, 1988.
21. A expropriação do produto direto, no capítulo 24, 1o tomo, de El Capital, de Marx. Expropriação dos meios políticos em Weber, M., op. cit., pp. 1.059 e ss. A importância disso se compreende em comparação com o mundo oriental. A esse respeito, entre muitos estudos, pode-se consultar Rodinson, M., Islam y capitalismo, tradução espanhola, Buenos Aires, 1973, em que o autor mostra que no Islã medieval se desenvolveu um setor capitalista que nunca gerou uma classe de poder político.
22. Ver, em especial Gramsci, A., Notas sobre Maquiavelo, sobre política y sobre el estado moderno, tradução espanhola, México, 1975, e os inumeráveis comentaristas, entre os quais se destacam Bobbio, Gallino, Macciochi e Buci-Glucksman.
23. Hintze, O., Historia de las formas políticas, tradução espanhola, Madri, 1968.
24. Romano, R., “Introducción”, em Romero, J. L., ¿Quién es el burgués? Y otros estudios de historia medieval, Buenos Aires, 1984. Guerreau, A., Le féodalisme. Un horizon théorique, Paris, 1980, dedica um parágrafo específico a sua obra.
25. Indicados por Guerreau, A., op. cit., p. 107.
26. É nesse plano profundo, magnificamente exposto na obra de Romero, que a ruptura da burguesia tem seu pleno significado. Ao contrário, as revoltas comuns, que nos momentos em que Romero escreveu pareciam acontecimentos-chave preparatórios para o grande percurso burguês até 1789, são considerados hoje de importância relativa, embora não se possa negar seu caráter de emancipação. Entre os anos de 1070 e 1150 somente vinte cidades entre o Loire e o Reno conheceram movimentos contra a autoridade eclesiástica na conjuntura especial da Querela das Investiduras. Ver o resumo de Monsalvo Antón, J. M., Las ciudades europeas del medioevo, Madri, 1997, pp. 135 e ss.
27. Romero, J. L., “Reflexiones sobre la Historia de la cultura”, La vida histórica, op. cit., p. 125.
28. Aqui é necessário mencionar Clemente Ricci, com quem Romero aprendeu a estudar meticulosamente os documentos. Hoje não conhecemos Ricci. Ele foi um sábio de espírito liberal que denunciava a manipulação da Igreja para impedir o estudo científico da religião. Afirmava que a origem do cristianismo devia ser considerada um fenômeno social integrado à fenomenologia geral da história e, em conseqüência, era preciso estudá-la com o mesmo método com que se devem estudar os demais problemas da evolução humana. Usava o método crítico na análise de textos de acordo com a premissa de que a Filologia é para as ciências históricas o que a Matemática é para as ciências naturais.
29. Hobsbawm, E., “¿Ha progresado la Historia?”, tradução espanhola de Sobre la historia, Barcelona, 1998.
30. Esse juízo pode parecer ríspido demais, mas corresponde a uma realidade que conheci pessoalmente. Para muitos professores, a única forma de inteligência era a memória, isto é, a inteligência dos estúpidos. Outros nem sequer retinham conteúdos elementares. São os casos que podem ser incorporados à antologia do disparate acadêmico e que exibiram sua preconceituosa ignorância nos anos sessenta e setenta na carreira de História da Universidade de Buenos Aires. Um estudo da história argentina “encontrou” (no Arquivo Histórico Nacional) os primeiros trotskistas do país em… 1876. Um famoso professor que ditava seminários de metodologia estava convencido de que a sexta tese de Marx sobre Feuerbach havia sido escrita por Lênin. Outro burro acadêmico traduziu o título de um artigo francês sobre a gauche argentina por “los gauchos argentinos”.
31. Pastor de Togneri, R. Del Islam al cristianismo. En el borde de dos formaciones económico sociales, Barcelona, 1975, p. 32.
32. Zuluaga, R., “La postura historiográfica de Claudio Sánchez Albornoz”, Cuadernos de Historia de Espana, XXXI-XXXII, 1960.
33. Lizoain Garrido, J. M., “Del Cantábrico al Duero, siglos VIII-X: propuestas historiográficas”, em II Jornadas Burgalesas de História, Burgos en la Alta Edad Media, Burgos, 1990.
34. Vilar, P., “Historia del derecho, historia total”, tradução espanhola, em Economia, derecho, historia, Barcelona, 1983, p. 109.
35. A contraposição que mede o grau de renovação de uma obra deve ser feita com referência ao máximo expoente que o precede ou convive com o autor examinado. Trata-se do caminho inverso ao que seguem muitos dos que escreveram a história da escola dos Annales. É um jogo excessivamente fácil avaliar a contribuição de Marc Bloch ou Lucien Febvre a Seignobos.
36. Na cátedra de História Social Geral, em que Romero era o professor titular, entre o fim dos anos cinqüenta e o início dos anos sessenta, publicaram-se traduções de artigos dos mais renovadores historiadores do momento. Na série Historia Social. Estudios Monográficos encontramos os nomes de Kula, Braudel, Romano, Bloch, Lombard, Labrousse e muitos outros que, lidos por gerações de estudantes, atualizavam os estudos. Enfatizemos a variedade de temas e de historiadores sociais: junto com “Las crisis de subsistencia y la demografia de Francia durante el Antiguo Régimen”, de J. Meuvret, temos G. Caster, “Tipos económicos y sociales del siglo XVI: el pastelero tolosano”.
37. Luna, F., Conversaciones com José Luis Romero sobre una Argentina com a historia, política y democracia, Buenos Aires, 1976, p. 20.
38. Halperin Donghi, T., “José Luis Romero y su lugar en la historiografia argentina”, Desarrollo Económico, 78, vol. 20, 1980. Romero afastou-se do ensino superior argentino em 1945; obteve, então, o posto de docente na Universidade de la República, Uruguai, viajando semanalmente para dar suas aulas até 1953, ano em que essas viagens foram proibidas pelo governo peronista. Incorporou-se à Universidade de Buenos Aires em 1955, onde inaugurou a mencionada cátedra e desempenhou diversas funções até sua renúncia e aposentadoria em 1965. Morreu em Tóquio, em março de 1977, durante uma reunião da Universidade das Nações Unidas.
39. A formação de Romero apresenta um paralelismo com a de outras figuras relevantes. Por exemplo, como Moses Finley, outro historiador cujo método não se enquadrava na tradição. Desde seus primeiros artigos, em 1934-35, até seu extenso trabalho seguinte, que veio a público em 1953, interpõem-se duas décadas que Finley dedicou ao marxismo da escola de Frankfurt e a diversas leituras, que o distanciaram dos enfoques tradicionais do estudante clássico; Ver Shaw, B. D. e Saller, R. P., “Introducción a la obra de M. I. Finley”, em Finley, M. I., La Grecia Antigua: economía y sociedad, tradução espanhola, 1984. Marc Bloch também se alimentou de leituras que não figuravam na agenda oficial: Weber, Sombart e, especialmente, Marx; ver: Braudel, F., “Lucien Febvre et l’histoire”, Cahiers Internationaux de Sociologie, XXII, 1957, p. 17. Ver também os estudos reunidos por Skocpol, T., Vision and Method in historical Sociology, Cambridge, 1984, as carreiras acadêmicas pouco regulares de E. P. Thompson, Anderson e Polanyi ou a ruptura universitária de Wallerstein.
Crise e ordem no mundo feudoburgués
José Luis Romero
A Laura Muriel, Mariana,
Soledad Inés, Nathalie,
Juan Luis, Ana Leonor
e José Luis Fernando
PRIMEIRA PARTE
A Sociedade Feudoburguesa e a Economia de Mercado
Introdução
Fruto da revolução burguesa que havia ocorrido no seio do mundo feudal, uma sociedade feudoburguesa começou a se formar imperceptivelmente a partir do século XII e a crescer do modo caótico peculiar aos grandes deslocamentos sociais. Enquanto durou o processo expansivo, desde aquela data até as primeiras décadas do século XIV, uma movimentação social incontrolável e impossível de conter foi sua principal característica, em virtude da qual a composição da nova sociedade e a relação recíproca entre os grupos variaram confusa e permanentemente. Contudo, no início do século XIV, percebeu-se em muitas regiões um princípio de estratificação muito marcante, sobretudo em algumas cidades. Mas, a partir do início da retração econômica que começava a manifestar-se então, as relações precariamente estabelecidas foram se deslocando e surgiram, principalmente nas sociedades urbanas, novas posições virtuais que constituíam outras tantas possibilidades para quem quisesse tentar a aventura da ascensão social. Uma forte tendência à mobilidade também foi percebida nas áreas rurais. Também se agitou a posição da antiga nobreza e viu-se aparecer uma nova, ao mesmo tempo em que os camponeses ascendiam e descendiam segundo sua sorte no jogo da nova economia.
Certamente, a mudança que houve no mundo feudoburguês do século XI aconteceu tanto no sistema das relações sociais como no das relações econômicas. Estas últimas adquiriram modalidades insólitas, rudimentares no início e que, sem mudar substancialmente suas formas tradicionais, começaram a alterá-las, introduzindo certos fatores inusitados. O que se começou a constituir, em reduzidíssima escala no início, foi o que pouco a pouco apareceria mais tarde com maior clareza: uma economia de mercado, na qual o papel da intermediação ganharia um destaque crescente. E foi no quadro da nova economia de mercado que apareceram as condições propícias para que aqueles que promoviam aquela economia organizassem uma nova sociedade por meio de ações limitadas e aparentemente intranscendentes, que logo se multiplicariam pelo movimento dos novos grupos sociais rumo à abertura promovida pela mudança econômica.
Sem dúvida, o tradicional sistema reprodutivo persistiu. A terra continuou sendo o principal meio de produção e os nobres seus principais donos, ao mesmo tempo em que os rustici – livres ou não – continuaram sendo os que trabalhavam; mas em algumas partes começaram a modificar-se os termos da relação de dependência e até se viu cair em desuso a proibição de abandonar o terreno. Em geral, subsistiram tanto os direitos e os privilégios da nobreza como as obrigações servis e foram muitos os nobres que procuraram manter os antigos costumes que pareciam imutáveis em seus domínios.
Mas eles não o eram. Correspondiam a uma certa estrutura e foi precisamente nessa estrutura que começaram a processar-se algumas alterações que modificariam seu sentido. O ciclo da produção encontrou um complemento cada vez mais importante no ciclo de distribuição e este último começou a se desenvolver desmedidamente não só ao calor das novas perspectivas econômicas que se abriam, mas também pelo impulso de motivações sociais. A economia de mercado cresceu e seu crescimento alterou o sistema reprodutivo tradicional, afastando sua antiga simplicidade e coerência. O consumo aumentou, surgindo a esperança – ardilosa – de um crescimento indefinido e, para satisfazê-lo, organizou-se um amplo mercado internacional e regional durante a época de expansão que se estendeu desde o século XI até as primeiras décadas do século XIV. Esse mercado abstrato funcionou de maneira real e concreta nos mercados urbanos, cujas operações pareciam concentrar-se nas pracinhas onde se compravam e vendiam os produtos, mas que se estendiam até os comércios das ruas vizinhas e até os escritórios dos que manejavam o dinheiro, instrumento insubstituível e de importância crescente nessa atividade. Com seus ocasionais parênteses, durou dois séculos essa euforia da nascente economia de mercado, que parecia oferecer uma fortuna fácil àqueles que entravam nela, até que começaram a manifestar-se no início do século XIV os sinais de uma retração econômica, na maioria incompreensíveis e inexplicáveis ou explicáveis para apenas alguns através das circunstâncias imediatas próprias de cada momento e de cada lugar.
Foi nesse período que ficaram visíveis as profundas contradições e os conflitos internos tanto da nova sociedade como da nova economia. Guerras e rebeliões, ensurdecedoras turbulências e explosivos confrontos encheram os dias da época de retração. Quando o processo se acalmou, foi possível aproveitar a experiência, e a nova sociedade – reajustada mais uma vez – reajustou também a nova economia de mercado, cujos mecanismos começaram a ser mais conhecidos. Até meados do século XV, começou lentamente uma nova etapa de expansão e nessa atmosfera reverdeceram as burguesias, mais experientes, mais prudentes e mais audazes ao mesmo tempo, com ânimo suficiente para ultrapassar os estreitos limites do mercado urbano, instalar-se na esfera dos novos e poderosos estados territoriais, colaborar no fortalecimento das monarquias e promover ou aproveitar a inusitada aventura da expansão oceânica.
CAPÍTULO I
A Nova Sociedade e a Preeminência do Patriciado Urbano
O fenômeno mais significativo da época da retração econômica e da crise social que começou no início do século XIV e durou até a primeira metade do século XV foi a intensa agitação que sacudiu as cidades, nas quais se enfrentaram com violência e quase com ira as camadas distintas de uma sociedade cada vez mais misturada. Turbadas por vastos processos que as arrastavam, também o foram por circunstâncias locais, que às vezes lhes acrescentaram uma quota complementar de crueldade. Em certas ocasiões, a luta foi pela sobrevivência. Mas foi também um obscuro conflito cotidiano pela ascensão social e econômica dos mais empreendedores ou dos mais audazes e, ao mesmo tempo, uma luta pelo poder entre os grupos e os indivíduos que procuravam alterar as relações recíprocas a seu favor e em seu benefício.
Com tenacidade, o patriciado que havia se constituído durante o primeiro florescimento da sociedade feudoburguesa respondeu ao desafio. Em certas ocasiões ele foi derrotado por movimentos populares que o desalojaram do poder; mas voltou, a curto ou a longo prazo. E, mais garantido, aumentou seu poder econômico, consolidou suas posições sociais e políticas e procurou conter a desaforada tendência à mobilidade que os grupos subordinados acusavam, menos orientada agora pela conjuntura e que, por isso, ultrapassava os canais da aventura individual e irrompia de maneira quase desesperada em dramáticos conflitos sociais. A favor da retração econômica, o patriciado pôs limites na mobilidade social e, finalmente, constituiu-se como legítima elite das sociedades urbanas, às quais impôs progressivamente sua concepção social e econômica, um sistema de normas e valores e uma concepção de vida. Aquilo em que se sobressaía o patriciado era exatamente o mesmo de que gostavam e o que as classes urbanas subordinadas perseguiam. Por isso, pela força que dava coerência ao processo, apesar de ocasionalmente vencido, o patriciado conseguiu introduzir e consolidar um princípio de estratificação na sociedade urbana, ao calor das duras contingências da retração econômica e apelando para a coação quando pôde e achou necessário.
Quando se iniciou uma nova etapa de expansão na segunda metade do século XV, o patriciado já havia consolidado sua posição e imposto limites precisos à tendência à mobilidade social. Progressivamente estratificada, a nova sociedade esteve em condições de aceitar a estrutura vertical que lhe impôs o tipo de estado que triunfava depois de grandes vicissitudes. E no momento da grande expansão colonial, quando o âmbito da economia de mercado modificou substancialmente sua escala, a sociedade feudoburguesa entrou em um novo avatar em que o antigo patriciado urbano propôs as modalidades de mudança, paralela e correspondente à que se havia operado em sua própria estrutura. O que nutriu o ordenamento do estado nacional, capitalista e burguês foi a experiência urbana.
I. A Sociedade Feudoburguesa
Testemunhas de mentalidade conservadora, como o poeta Charles d’Orléans ou o moralista Fernán Pérez de Guzmán1, observaram as mudanças que haviam ocorrido nas atitudes dos grupos sociais dominantes na primeira metade do século XV e traduziram sua nostalgia por meio de lugares-comuns sobre a perda da antiga virtude. Naquele tempo, o processo de transformação social iniciado no século XI e cujo ritmo se acelerou no século XIII – graças ao qual certos setores da nova burguesia haviam se aproximado da antiga nobreza criando uma primeira ponte para a intercomunicação entre grupos muito diferentes – havia avançado bastante. Essa intercomunicação multiplicou-se com o tempo e, especialmente nas áreas urbanas, a sociedade adquiriu um ar heterogêneo e mostrou essa “confusão de pessoas”2 que Dante Alighieri via na Florença do começo do século XIV. Para o observador de mentalidade conservadora era uma nova sociedade. Era a sociedade feudoburguesa.
Se a revolução desencadeada surdamente pelas novas burguesias urbanas havia conseguido constituir e consolidar certos estratos, foi exatamente porque os incorporou à antiga sociedade senhorial, articulando-os nela por meio de uma política tipicamente transacional não desmentida pelos ocasionais confrontos anti-senhoriais. Mas essa inclusão também era revolucionária. Nenhum dos velhos setores da sociedade tradicional deixou de acusar o golpe dos recém-chegados e todos tiveram de se adaptar à nova situação. O processo de interpenetração dos grupos sociais começou rapidamente; e não só entre os velhos e os novos, mas também entre os que se foram criando, com caracteres singulares, por causa da própria interpenetração e do calor dos novos fatores, que aceleraram a progressiva desagregação da ordem social tradicional, para abrir caminho para essa nova sociedade feudoburguesa.
A economia de mercado e o desenvolvimento da vida urbana foram os mais importantes daqueles novos fatores. Mas não tiveram menos importância o mantido crescimento demográfico e o efeito multiplicador da nova riqueza fundamentada no dinheiro. Os grupos constituíam-se, integravam-se ou desintegravam-se de acordo com a incidência desses fatores e as sociedades locais se modificavam em um ritmo inusitado, sugerindo, certamente, o sentimento de uma expansão indefinida. Contudo, já nas primeiras décadas do século XIV, esse sentimento teve de ceder às evidências. O crescimento demográfico deteve-se, a expansão comercial e financeira moderou-se e, em pouco tempo, os desastres causados pela epidemia que a tradição chamou de “peste negra”, junto com os que travaram as guerras, contiveram a expansão e produziram, inversamente, uma retração que em pouco tempo adquiriu um caráter dramático. A população européia, que havia aumentado de quase 40 milhões de habitantes, no século XI, para 75 milhões, até 1340, a partir dessa data caiu, até 1450, para 50 milhões e só desde então iniciou uma lenta ascensão3. A partir das primeiras décadas do século XIV, houve uma retração econômica com os inevitáveis fenômenos de escassez, carestia e fome; porém também houve uma retração social cujas conseqüências foram mais confusas porém não menos significativas. As sociedades não cresceram em número, mas, ao contrário, diminuíram; contudo, por outro lado, cresceu sua mobilidade e os processos de ascensão e queda social tornaram-se mais intensos e agudos. As mudanças nos sistemas de normas e valores se aceleraram, de modo que aqueles que observavam a situação das novas gerações e o conjunto de suas principais tendências no espelho das velhas gerações tinham a sensação de que assistiam a uma mutação diabólica e, sem dúvida, fundamental. E não se equivocavam. Em uma sociedade na qual, após uma expansão repentina, havia se seguido uma retração violenta, as mudanças não só foram muito intensas mas ainda pareceram muito mais, visto que a revolução burguesa havia desencadeado um processo inédito cujas regras e leis ainda estavam incógnitas. Daquela expansão não restava senão uma vaga lembrança, porém persistiam certas tendências que se erigiram em princípios de normalidade e em parâmetros para a mudança, e certas situações que as novas circunstâncias começaram a modificar, criando a sensação de que a ordem havia sido substituída pelo caos. Houve os que descenderam da nobreza e da fortuna para a miséria ou a mediocridade e houve quem ascendesse da mediocridade ou da pobreza para a fortuna e o poder, para eventualmente voltar a cair, de acordo com o inelutável giro da roda da fortuna. Tornou-se evidente para os contemporâneos que essa heterogênea sociedade feudoburguesa em que as pessoas se confundiam não só era móvel e diversificada, como também instável e propensa a acentuar as desigualdades. Já no século XIV, mais de um observador atento pôde perceber que a imagem tradicional da sociedade pouco tinha a ver como que cada um via a seu redor. Nada estava em seu lugar; mas isso não era somente conseqüência do fato de que muitos haviam mudado de lugar: também os lugares haviam mudado.
O destino previsto para seu filho por aquele personagem de Franco Sacchetti, que queria vê-lo juiz e doutor para que toda a família também se visse “elevada para sempre”4, foi aproximadamente o de seu contemporâneo Cola di Rienzo, “de baixa linhagem”5, segundo destaca seu biógrafo; e em uma etapa posterior havia, no entanto, a possibilidade de enobrecimento, à qual, em seu tempo, todos os mercadores aspiravam, como dizia Boccaccio.6 Certamente, na Itália sobrariam exemplos dessa mobilidade e diversificação da sociedade; mas não faltavam em Castela, onde, um século mais tarde, Hernando del Pulgar põe na boca do alcaide de Toledo, Gómez Manrique, algumas curiosas reflexões sobre a sociedade toledana que se agitava em 1478: “Penso eu que vós não podeis suportar de boa vontade que alguns que não julgais ser de linhagem tenham honras e ofícios de governo nesta cidade; porque entendeis que o defeito do sangue lhes tira a habilidade de governar. Dessa forma, vos pesa ver riquezas em homens que, segundo vosso pensamento, não as merecem, em especial aqueles que recentemente as ganharam”7; e segue, então, justificando essa nova situação, às vezes com argumentos e outras vezes com novos fatos: “Vemos por experiência, a alguns homens desses que julgamos nascidos de sangue inferior, forçá-los sua natural inclinação por deixar os ofícios baixos dos pais e aprender ciência e ser grandes advogados. Vemos outros que têm inclinação natural para as armas, outros para a agricultura, outros para falar bem e ordenadamente, outros para administrar e reger e para outras artes diversas e têm nelas a habilidade singular que sua inclinação natural lhes dá”; e observa também: “Muitos dos que descendem de sangue nobre, vemos pobres, os quais nem a nobreza de seus antecedentes pôde resgatar da pobreza nem dar autoridade.” Uma reflexão final recorda que, como as do céu, “assim as coisas da terra não podem estar em um estado: altera a todas aquele que nunca se altera”. Era o sentimento que a preocupação mundana de François Villon nutria pelo ubi sunt, a cuja pergunta, referida aos “graciosos galantes”, respondia: “E alguns chegaram a ser/ graças a Deus, grandes senhores e mestres;/ os outros mendigam inteiramente nus/ e não vêem o pão a não ser pelas janelas.”8 A mão de Deus ou à cega Fortuna se atribuíam estas mudanças na condição das pessoas, que se traduziam em constantes alterações das sociedades.
Sem dúvida persistia em muitas mentes e, em geral – como um esquema permanentemente válido –, a ideia de que as sociedades se ordenavam segundo princípios imutáveis. Vez por outra se repetia o quadro tripartido da sociedade: oradores, defensores e trabalhadores, como se dizia em Castela. E, se em geral eram espíritos conservadores e nostálgicos os que estavam presos a esse esquema considerado permanente, como em Castela o Infante Dom João Manuel, Diego de Valera ou Gutierre Díez de Games,9 ele era repetido por outros inquietos e mais alertas para perceber as variantes entre os antigos esquemas e as novas realidades. Em uma obra tão crítica como a Vox Clamantis, John Gower, imerso na dura experiência da época em que se gerava a insurreição camponesa de 1381 na Inglaterra, repetia a fórmula cunhada:10
Sunt Clerus, Miles, Cultor, tres trina gerentes;
Hic docet, hic pugnat, alter et arua colit.
E o próprio Arcipreste de Hita, incisivo testemunho da mudança, havia se voltado para o locus já tradicional:11
Outros entram na ordem para salvar suas almas,
Outros se esforçam por usar armas,
Outros servem aos senhores com as duas mãos.
Mas o Arcipreste advertia, além do esquema convencional, que seu território social superava os quadros preestabelecidos e manifestava-se como um conjunto variado e heterogêneo. Poucas, entre as novas situações sociais, escaparam a seu olhar, como escaparam a sua observação poucos tipos e arquétipos e poucos grupos incipientes e ainda imprecisos. Por isso, o Libro de Buen Amor apresentou o novo elenco social com tanto frescor e riqueza, como se nenhum preconceito limitasse sua capacidade de perceber o novo e o diferente. Toda a nova sociedade ficou inserida não no quadro tradicional, mas em um quadro impreciso, vago e movediço, como correspondia a sua composição peculiar. Intensamente delineados os caracteres individuais, os quadros sociais, ao contrário, mal foram esboçados. E essa imprecisão revelava a recepção indireta e fresca da imagem da nova sociedade, confusa e original, tumultuosa e variada.
E não foi o único caso. No mesmo país e no mesmo século, o chanceler Pero López de Ayala compilou, no Rimado de Palacio, inumeráveis sinais de uma sociedade distinta da que se inscrevia nos paradigmas tradicionais. O resultado também foi um elenco social rico e inovador. Porém, como o autor era nobre, colocou sua ênfase nos problemas das classes mais vinculadas a ele – velha e nova nobreza, cortesãos e clérigos – sem prejuízo de haver destacado a nova fisionomia dos mercadores e letrados. Ficou de fora todo esse conjunto heterogêneo das classes populares e dos setores vinculados à má vida, que constituem um inestimável testemunho para compreender-se o singular desenvolvimento das classes urbanas, e que na Espanha é oferecido por Arcipreste de Hita para o século XIV e por La Celestina para o século XV, como é oferecido por François Villon na Paris do século XV.
Não menos significativo é o elenco social apresentado por Geoffrey Chaucer nos Canterbury Tales, nos quais a atenção está voltada para os setores médios da sociedade, precisamente aqueles que mais intensamente acusavam a mudança no século XIV. Ele viu chegarem 29 peregrinos à pousada do Tabardo em Southwark, do outro lado do Tâmisa, e concebeu a ideia de explicar “a condição de cada um”, sublinhando-a logo no conto que fez cada um contar. E, surpreendendo a cada passo não só a singularidade do personagem como também sua “condição”, Chaucer completa uma ampla descrição dessa sociedade inglesa do século XIV, tão agitada pelos conflitos sociais e políticos. Talvez não fosse azarento esse desejo de exibir a variada condição das pessoas que o acaso da peregrinação havia reunido; sem dúvida respondia à surpresa que essa variedade e novidade produzia, como sem dúvida ocorreu ao Arcipreste, uma testemunha do mundo menos despreocupada do que se poderia supor. E essa perspicácia de ambos se incluía na surpresa geral diante da nova confusão que reinava nas sociedades antes tão organizadas.
A pessoa que se surpreendia e regozijava com a vida multiforme da nova sociedade esforçava-se por descobrir a nova condição de cada setor social insólito, especialmente nas cidades. Aprofundava-se um pouco menos na novidade quem compunha uma Danza de la muerte – como a espanhola anônima ou a francesa de Jehan Gerson, ambas do início do século XV – ou quem a pintava, como Andrea Orcagna, ou a esculpia, como Bernt Notke, apesar do que eles compunham também, à sua maneira, um singular elenco social. No entanto, outros tratavam de determinar, com toda a exatidão, as diferentes categorias, como são apresentadas em Das Ständebuch, de Hans Sachs. E, sem maiores exigências de exatidão, mas com uma aguda intuição das peculiaridades e diferenças, muitos escritores que, desejosos apenas de entreter, ofereceram ricos e variados elencos sociais, buscando na sátira um ingrediente a mais para sua obra.
Verdadeiros elencos sociais são as Cento Novelle de Franco Sacchetti e o Decameron de Giovanni Boccaccio, duas coleções de relatos do século XIV; também o são, no século XV, as Novelle de Gentile Sermini e as Facézie de Poggio Bracciolini; El Corbacho do Arcipreste de Talavera, Les Cent Nouvelles Nouvelles, Le Grand Testament de François Villon, Das Narrenschiff de Sebastian Brants e o relato anônimo das aventuras de Till Eulenspiegel; e, de certo ponto de vista, são elencos sociais, no início do século XVI, tanto o Elogio da Loucura, como os Colóquios de Erasmo. No desenvolvimento dos personagens, dos arquétipos e dos grupos, percebe-se o regozijo secreto do observador que se surpreende com as situações sociais inéditas e com os caracteres singulares que os protagonistas ostentam, ocasionalmente envolvidos nas turbulências da mudança pelos acasos da própria mudança. Foi, talvez, o que aconteceu com certos pintores deslumbrados com a variedade inatingível da nova realidade social: talvez com Ambrogio Lorenzetti quando decidiu pintar II Buon Governo e II Mal Governo; talvez com Jheronimus Bosch quando registrou tanta gente estranha em tantas situações estranhas; e, talvez com menos universalidade, com tantos outros que ficaram assombrados com o novo tipo humano ou os novos grupos sociais que se constituíam, especialmente, no tenso decurso da vida urbana.
Mas todo esse desenvolvimento de grupos e de tipos deslizava livremente pelo espírito daqueles que se divertiam observando-os – pintores e escritores –, sem que parecesse necessário narrar o conjunto em uma ordem fixa e esquemática. Alguns repetiam o antigo esquema – oradores, defensores e lavradores –, mas outros tantos mostravam um conjunto social cada vez mais complexo e variado, esquecendo-se do esquema tradicional e despreocupados com todo tipo de esquemas. Porque, certamente, a sociedade em processo de mudança havia superado aquele esquema e não havia conseguido – no decurso dos séculos XIV e XV – formular nenhum outro. A opção seria uma sociedade aberta, com limites prolixos entre os setores bem definidos. E, enquanto as sociedades estaduais se ajustavam, alguns recordaram que não faltavam tratadistas que haviam percebido a pluralidade da ordem social, entre eles Aristóteles. Fugindo do sistema tripartido, Marsilio de Padua contrapunha uma classificação de estirpe mais antiga: “Partes seu officia civitatis sunt sex generum: agricultura, artificium, militaris, pecuniativa, sacerdotium e iudicalis seu consiliativa.”12 E no Leal conselheiro, o rei Dom Duarte de Portugal, depois de afirmar o papel eminente dos defensores e dos oradores, esmiuçou o conjunto dos “lavradores” diferenciando os lavradores dos pescadores – com clara percepção dos problemas concretos de seu reino –, apontando depois a presença desses novos setores que iam constituindo, pouco a pouco, as novas classes médias: oficiais, juízes, regedores, conselheiros, inspetores, escrivães, físicos, cirurgiões, navegantes, músicos, armeiros, ourives e tantos mais.13 O que se impunha à observação dessa nova sociedade era um conjunto social. O catalão Pere March declarou no serventesio que intitulou Cest qui so fay d’on li deu seguir dan:14
Por louco pensamento prendem o lavrador, assim
como o burguês, tanto o ignorante como o que sabe,
o malandro como o cavaleiro honrado;
e o anão acredita ser gigante.
Clérigos, cavaleiros, lavradores, mercadores
e menestréis constituem o mundo ordenado.
Os clérigos rezam pela comunidade
e os cavaleiros guardam-na guerreando.
Os malandros fazem o pão, o vinho e o repartem;
e os menestréis se esforçam por prover os demais.
Os mercadores trazem e obtém
o que é necessário, por dinheiro e boas prendas.
Certamente, os novos estratos sociais diferenciavam-se e multiplicavam-se; mas não suprimiam os antigos, mas os apertavam e os modificavam. A antiga nobreza não sucumbiu, mas modificou-se por causa das pressões que sobre ela exerceu a outra, que foi se constituindo graças à ascensão de diversos setores que eram liberados de seus antigos laços pelas circunstâncias críticas. Formou-se, então, um nova nobreza, categoria à qual ascenderam, entre outros, os patrícios ricos. Foram precisamente eles os que mais impulsionariam a formação de novas sociedades urbanas que, em pouco tempo, transformariam a fisionomia do mundo feudoburguês.
II. Antiga e Nova Nobreza
As alterações sofridas pela antiga nobreza não tiveram a mesma intensidade em todas as partes. Ao longo dos séculos XIV e XV houve regiões onde ela não só conservou seu poder e prestígio, mas também os aumentou. Foi especialmente na Rússia e na Polônia, nas terras germânicas ao leste do Elba e na Boêmia, na Morávia e na Silésia, regiões em que o sistema feudal havia se instalado tardiamente. Nelas o impacto da economia de mercado foi escasso ou nulo e os nobres consolidaram as formas de servidão. Graças a essa circunstância, a antiga nobreza conservou ali sua posição social e econômica, e também sua posição política.
Em outras partes, como em Castela, sua força também aumentou. Um poder real fraco, longas guerras feudais e um desenvolvimento pobre das burguesias urbanas e da economia de mercado permitiram estreitar suas fileiras e concentrar a posse de vastíssimas extensões territoriais nas mãos de um número relativamente reduzido de linhagens. Mas, em muitas zonas da Europa central e ocidental, a antiga nobreza sofreu certo desprezo, especialmente nas regiões mais mercantilizadas. Nelas tanto o sistema de produção e de comercialização dos produtos agrícolas como o regime de posse da terra e a mudança das relações, como os rustici, enfraqueceram a posição dos antigos nobres, alguns dos quais caíram na miséria e foram chamados de “caballeros mendigos”. A medida que se desenvolvia a economia monetária, o uso do dinheiro introduziu mecanismos econômicos que a antiga nobreza foi incapaz de empregar. Mas não foram somente os fatores econômicos que desencadearam seu declínio. Onde a monarquia acentuou sua tendência ao exercício de uma autoridade forte e centralizada, a antiga nobreza viu-se constrangida por um poder que recorria cada vez mais a um realismo político capaz de virar a seu favor as novas forças econômicas e sociais. A antiga nobreza acusou os golpes contra seus direitos tradicionais impingidos tanto pela nova política fiscal como pela nova organização da justiça que foram introduzidas pelas monarquias em ascensão. E quando as circunstâncias se envolveram em grandes guerras feudais que consumiram seus membros e desbarataram a armação econômica e política na qual se sustentava, a antiga nobreza viu-se constrangida pelo crescente poder da Coroa, apoiada geralmente nas pujantes burguesias e nos novos setores sociais que ocupavam seu espaço e aceitavam a nova situação para aproveitá-la em seu benefício. Somente na Inglaterra, a antiga nobreza adequou-se rápida e eficientemente à nova situação, transformando-se em produtora de lã para abastecer a florescente indústria têxtil. Mas, mesmo ali, as vicissitudes da Guerra dos Cem Anos e da Guerra das Duas Rosas realizaram uma alteração social no seio da antiga nobreza que mudou sua fisionomia.
Essa transformação da antiga classe dos nobres foi, não obstante, muito lenta e sua posição no conjunto da sociedade alterou-se pouco a pouco. Demorou-se a perceber que novas pessoas usavam os mesmos títulos nobiliários e usufruíam os mesmos antigos domínios, embora fosse visível que a atitude daqueles que compunham sucessivamente a nobreza mudava. Mas não foi menos visível que a atitude de certos grupos que pertenciam à antiga nobreza e, por uma ou outra razão conservavam seu poder e seu prestígio, se conservou inalterada por muito tempo e que o conjunto se fechou em si mesmo em uma tentativa de defender-se das tendências exteriores e de resistir à mudança.
Mantiveram-se firmes as antigas linhagens da Rússia, da Polônia, da Hungria ou as da Ordem Teutônica. Na Europa Ocidental conservaram seu poder e prestígio sobretudo as grandes casas vinculadas à realeza por parentesco ou por sua presença mantida no cenário político. A elas pertenciam aqueles que os cronistas oficiais e oficiosos da Coroa lembravam de vez em quando. Christine de Pisan enumera os que cercavam Carlos V da França,15 como o cronista de Afonso XI menciona os que acompanhavam o rei castelhano ou os que receberiam dele “honra y caballería”.16 E o marquês de Santillana consolava-se, na Comedieta de Ponça, ao evocar as “progenies honradas” que estreitavam suas filas frente ao inimigo.17 As vezes eram linhagens regionais, feitas pelo poder e pela riqueza e acostumadas a uma supremacia que não se baseava unicamente nisso, mas também em um tradicional prestígio social ao qual ninguém podia se subtrair. E o contínuo exercício da autoridade herdada conferia a seus membros uma soberba despótica que os tornava incapazes de entender as mudanças sociais e econômicas que se produziam a seu redor. Estavam seguros de que um abismo os separava de todos os demais, especialmente dos rustici, que trabalhavam em suas terras e que ocasionalmente fomentavam esse leve protesto que mais tarde levaria à explosão na jacquerie francesa em 1358, na revolta dos camponeses ingleses em 1381, no movimento taborita da Boêmia em 1420 ou na rebelião dos camponeses alemães em 1525; mas também dessa nova burguesia que se formava nos núcleos urbanos e que trabalhava secretamente contra ela apenas pelo tipo de atividade que desenvolvia. Era um abismo que, devido às circunstâncias, começava a alcançar sua plenitude, mas que a antiga nobreza se empenhava em manter, fingindo que não via como se tornava profundo.
A resistência à mudança terminou sendo uma irremediável inadequação à mudança, que, apesar disso, seguia inexoravelmente seu curso. Houve, por certo, uma forma oblíqua de adequação quando escolheu, para resistir, o caminho de retrair-se e cerrar fileiras. Aumentou o abismo que separava a antiga nobreza do resto da nova sociedade, que, por sua vez, continuou a desenvolver o tumultuoso processo de sua transformação. Os círculos da antiga nobreza reafirmaram polemicamente suas convicções sociais diante dessa nova sociedade; porém, diante do avanço de uma economia monetária que estimulava ostentosas formas de vida em novos setores enriquecidos, a antiga nobreza também aprofundou sua tendência à ostentação e ao luxo dentro dos impossíveis limites da vida cortesã. Então, codificou escrupulosamente suas convicções e crenças fundamentais e igualmente o sistema de normas a que se deviam ater seus membros para diferenciar-se de outros setores da nova sociedade, nos quais um pragmatismo desembaraçado autorizava as mais inusitadas formas de comportamento. Tudo o que se referia à honra foi submetido a regras severíssimas; e as formas de convivência e de tratamento, a não menos severas prescrições. Se na nova sociedade predominavam os que acreditavam que tudo era lícito para ascender na escala da fortuna, da posição social ou do acesso ao poder, a antiga nobreza impôs a si mesma um modelo nostálgico de conduta que aperfeiçoava e embelezava a tradição nobiliária. Sem dúvida, muitos de seus membros romperam com esse modelo, dando exemplo de desmedida cobiça e ambição; mas o modelo referia-se sobretudo às formas e foi aplicado principalmente a elas. Por isso, a antiga nobreza adquiriu um ar cada vez mais anacrônico, mais solene e mais retórico; no entanto, esse ar, que Matteo Maria Boiardo mostrou em Orlando innamorato, logo suscitaria a zombaria de Luigi Pulei, de Girolamo Folengo, de Ludovico Ariosto e de Erasmo,18 assim como, mais tarde, de Rabelais e de Cervantes. As imagens funerárias dos túmulos nobres, hieráticas e suntuosas, constituíram o desesperado testemunho desse afã de impor à nova sociedade o sentimento da superioridade da antiga nobreza e da eternidade de sua glória.
No fundo, a retração da antiga nobreza ocultava uma tentativa de defender seus privilégios, solapados pelo desenvolvimento da nova economia de mercado e pela nova política dos reis e dos burgueses. Não obstante, esses privilégios subsistiam vigorosamente para o benefício do conjunto nobiliário como classe, sem prejuízo de que alguns de seus membros pudessem perdê-los nas vicissitudes da mudança que ocorria. Em última análise, os privilégios da antiga nobreza eram mantidos não só por seu verdadeiro poder, mas também por seu antigo prestígio, diante do qual em geral cediam aqueles que dependiam dele, até mesmo os mais rebeldes. No entanto, galvanizados pelo desespero e lançados na rebeldia, os grupos dependentes não só haviam denunciado os privilégios, como também haviam desconhecido o prestígio da antiga nobreza. Como antes, em Legnano e Courtrai, exércitos de nova fisionomia social haviam derrotado os cavaleiros em Crécy, em Poitiers e em Tannenberg, na Suíça e na Boêmia. Precipitou-se a glória dos guerreiros nos campos de batalha e, com a glória, cedia a autoridade de uma classe contra a qual rugiam os camponeses que por eles eram explorados.
Contra seu desprestígio e sua impotência, cerrou fileiras justamente a antiga nobreza. Ela buscou uma guerra que lhe fosse digna, mas desencadeavam-na os rustici revoltados e a encontrou em terras longínquas, como as que viram as façanhas de Pero Niño19 ou as que registrou o cavaleiro de Chaucer20: as que ocuparam no leste do Elba os cavaleiros da Ordem Teutônica ou as que registraram os cruzados que, com João sem Medo, lutaram contra os turcos de Bayaceto e sucumbiram em 1396 na batalha de Nicópolis.21 Foram principalmente as guerras contra os infiéis que despertaram o antigo espírito de cruzada, espírito cavalheiresco por excelência. Lutaram contra os mouros junto a Afonso XI de Castela cavaleiros franceses e alemães;22 e, quando os turcos voltaram a ameaçar o mundo cristão, os cavaleiros que acompanhavam o duque de Borgonha, Felipe o Bom, no suntuoso banquete que ofereceu na cidade de Lille em 1454 comprometeram-se, segundo o “voto do faisão”, a empreender uma cruzada para rechaçar o infiel.23
Foi precisamente o duque de Borgonha, Felipe o Bom, que criou em 1431 a Ordem do Toison d’Or. Como as outras novas ordens – a inglesa da Jarreteira, a francesa da Estrela, a prussiana do Cisne, a sueca da Espada –, essa quis ser um espelho da cavalaria no qual toda a nobreza podia e devia se olhar. Mantenedoras dos antigos ideais da época das Cruzadas, as ordens de cavalaria expressavam de forma consumada vocação guerreira e religiosa no tempo dos antigos cavaleiros, mas que agora aparecia marcada por um nobre estilo de vida ostensiva que sublinhava a condição suprema de seus membros. A coragem e a virtude eram inseparáveis da cortesia, das formas aristocráticas convencionais de tratamento, do gosto pelo luxo, da inclinação pelas mais refinadas formas do ócio manifestadas no amor delicado e sensual ao mesmo tempo, eventualmente na leitura ou na contemplação da arte, nas festas e nos festins suntuosos, na moderada aventura dos torneios e das caçadas. Eram os cavaleiros “gens à porter esperviers” como dizia Villon.24 O conde Gastão de Foix, o infante Dom João Manuel e o falconeiro Pero Menino ensinavam-nos a caçar;25 Henrique de Vilhena, a compor trovas e a brilhar nos “conselhos da alegre ciência”,26 sem descuidar por isso da “arte de cortar com o instrumento cortante”; Diego de San Pedro, a amar discreta e nobremente.27 Muitos outros tratados foram escritos para renovar no cavaleiro a fé nos antigos ideais, cada vez mais alheios à realidade: relatos de aventuras, livros de conselhos, tratados minuciosos sobre as formas que não deviam ser abandonadas, as normas que não deviam ser esquecidas, as regras pelas quais o comportamento cavalheiresco devia reger-se em todos os instantes.28 Ocasionalmente, essa obsessiva preocupação com que não se perdesse o estilo de vida nobre acusava, mais que outra coisa, o sentimento nostálgico da antiga nobreza, sensível a sua derrota diante do embate da nova sociedade.
Entre outros grupos sociais, a nova sociedade havia dado origem, precisamente, a uma nova nobreza. Nos ambientes mais fechados, seus membros foram reconhecidos como “novos homens”, de acordo com uma fórmula de tradição romana, e resistiu-se a eles com intensidade variada: umas vezes com força e outras não, talvez porque se tenham visto neles inovações que abriam novos caminhos para sair da estagnação ou do declínio que ameaçavam as antigas linhagens na turbulência da mudança social e econômica em que navegava a nova sociedade. Exemplo singular de rigidez, a antiga nobreza castelhana mostrou-se inflexível com os vitoriosos que procuravam incorporar-se em suas fileiras; em geral, eram homens de “baixa linhagem” que por sua capacidade, por sua astúcia ou pela intimidade com o rei alcançavam “grande dignidade”. Assim dizia Fernán Pérez de Guzmán, falando de vários personagens do reino, sem enganar com a frase depreciativa ou o juízo compreensivo, mas contraditório. E em nenhum caso tão severo e, ao mesmo tempo, tão compreensivo, como no que se referia a Álvaro de Luna, em quem o rei João II de Castela depositou sua confiança, tornando-o seu favorito. Dom Álvaro mostrou-se imprudentemente inflexível com a altiva nobreza tradicional, que se opunha à organização de uma monarquia fundamentada em uma nova concepção de Estado.29
A rigor, Álvaro de Luna era um bastardo; “orgulhava-se muito de sua linhagem, não se lembrando da parte humilde e baixa de sua mãe”, escrevia Pérez de Guzmán. Mas, bastardos como ele inundaram as cortes e, assim como muitos deles foram em busca de fortuna fora dos quadros sociais em que eram estigmatizados, outros desafiaram os preconceitos e esforçaram-se com seus pares para conservar ou aumentar seu patrimônio e poder. Seus esforços foram semelhantes aos daqueles que, pertencendo à pequena nobreza, lutavam para incorporar-se à nobreza tradicional por diversos meios, de acordo com o lugar e as circunstâncias. Segundos filhos de casas nobres e primogênitos de casas pobres buscaram nos novos exércitos um lugar para demonstrar suas qualidades e, finalmente, um apoio para as suas ambições. As guerras, como a dos Cem Anos ou as guerras civis que abundaram durante os séculos XIV e XV, proporcionaram a ocasião para todas essas aventuras pessoais de ascensão social em toda a Europa, que estenderiam e modificariam o horizonte da antiga nobreza, incorporando de várias maneiras os contingentes de uma nobreza nova em suas fileiras.
Bertrand du Guesclin, finalmente condestável da França, constituiu um caso, talvez paralelo ao de Miguel Lucas de Iranzo, que chegou a ser condestável de Castela. Homens de guerra, seus serviços eram recompensados com mercês; mas, entretanto, suas funções e responsabilidades aproximaram-nos da antiga nobreza, que não lhes perdoou facilmente sua ascensão nem sua riqueza. Du Guesclin já era um chefe de bandos que não hesitou em colocar-se à frente de um exército de vagabundos para levá-los à Espanha. Como ele, os condottieri italianos basearam seu prestígio e seu poder nessas tropas sem bandeira; porém, o triunfo estabeleceu e outorgou-lhes um papel tão destacado na sociedade que, inevitavelmente, os membros da antiga nobreza tornaram-se seus pares, embora freqüentemente menos poderosos e pouco a pouco mais distantes do poder. Houve, não obstante, alguns que foram capazes de adaptar-se às novas situações: abandonaram seus princípios – que já pareciam preconceitos – e submeteram-se às novas formas de atividade e de vida, com o que se identificaram com a nova nobreza e atuaram socialmente como ela. Muitos decidiram ingressar, aberta ou disfarçadamente, no mundo dos negócios, aproximando-se dos negociantes empreendedores que sabiam multiplicar o dinheiro. Porém, o que estava mais dentro de suas possibilidades era a conquista do poder. Como Álvaro de Luna em Castela, obtiveram influência exclusiva na Inglaterra Pierre de Gabaston e os Despencer na época de Eduardo II e Michael de la Pole, Robert de Vere e Nicolás Brember na época de Ricardo II,30 todos favoritos dos reis, dispostos a deitar por terra a supremacia dos barões e, ao mesmo tempo, aproveitar o calor do trono para acumular honras e riquezas. Talvez mais políticos, os príncipes alemães constituíram casas poderosas: os Würtemberg, os Wittelsbach, os Wettin, cada vez mais independentes e mais consubstanciados com as novas possibilidades oferecidas pela crise do Império, por um lado, e os novos apertos econômicos. João Hunyady e Jorge Podiebrad, homens de guerra acima de tudo, alcançaram o poder na Hungria e na Boêmia, respectivamente, dois países nos quais se agitavam intensos problemas sociais e religiosos no âmbito da ameaça otomana: a antiga nobreza, o Papa e o imperador denunciaram o golpe dessa revolução encabeçada pelos “homens novos” chegados ao trono.31 A massa dos recém-chegados, os “homens novos”, aumentou ao longo dos séculos XIV e XV. Também constituíram casas poderosas na Itália os Visconti e os Sforza, os Gonzaga, os Este ou os Medici, frente ao antigo e decadente reino de Nápoles. Quanto a condottiero, talvez o fundador da grandeza familiar, uma geração depois sua casa, já dinástica, brilhava com tal esplendor que a pergunta sobre a sua origem era inútil. Adulador, Vespasiano da Bisticci não conseguia, contudo, ocultar que o duque Federico de Urbino havia entrado no caminho da grandeza sob a tutela de um condottiero: “Muito jovem começou a militar, imitando Cipião Africano, sob a disciplina de Niccolo Piccinino, digníssimo capitão em sua época.”32 O engrandecimento era excessivamente recente para que pudesse encobrir a origem, ainda que a vaga alusão a um romano ilustre procurasse identificar a glória do soldado republicano com a do chefe de uma compagnia di ventura. Era inocultável que “os homens novos” eram filhos de suas obras e não deixaram de consigná-lo assim os cronistas da corte que receberam o encargo de escrever suas histórias: Crivelli, Simonetta, Platina, Cyrnaeus;33 e Maquiavel enunciou sobre isso uma espécie de regra geral.34 Mas nem tudo era adulação venal dos humanistas, na sua maioria tão sábios quanto ascéticos, por força de contemplar o triunfo do novo realismo político que mais tarde seria sistematizado por Maquiavel. Certamente, ao antigo prestígio da antiga nobreza havia sucedido o prestígio dos “homens novos”, filhos de suas obras e fundadores de novas linhagens. Na mente da nova nobreza – como na dos burgueses e dos camponeses rebelados – surgia a dúvida sobre quem haviam sido os que fundaram as antigas linhagens.
Geoffrey Chaucer – que foi, ele mesmo, um exemplo de aspirante para ingressar na nova nobreza – descreveu em poucas palavras o singular temperamento do frankeleyn que integrava o cortejo dos peregrinos de Southwerk. Sua vocação era o gozo. Outros, ao contrário, talharam seu futuro com um esforço denodado. Porém todos correspondiam à mesma nova sociedade. Expressaram seu espírito Donatello na estátua eqüestre de Gattamelata e Verrocchio na do Colleoni. Paolo Uccello, pintor de batalhas, fez o afresco do retrato eqüestre do condottiero inglês John Hawkwood, um personagem internacional representativo da nova sociedade, como pôde opinar du Guesclin em Castela ou Rodrigo de Villandrando na França. E o mesmo espírito refletiu Antonello de Messina pintando condottieri que já eram signori.35 Talvez mais ainda Andrea del Castagno, que alternou a apresentação dos condottieri e dos poetas. E talvez mais do que todos, Benozzo Gozzoli, que ousou conferir dignidade bíblica aos novos nobres, precisamente aos que não haviam surgido das armas mas sim alcançado grande altura graças ao dinheiro recebido por três gerações.36
Como a das armas, também a carreira eclesiástica costumava abrir caminho para pessoas de baixa origem até posições de alta categoria. De fato, os bispos, arcebispos e cardeais – “oradores”, de acordo com a divisão tradicional da sociedade – faziam parte das classes privilegiadas; e os que provinham de famílias que não pertenciam a elas viam-se em uma posição análoga à da nova nobreza. Pedro de Frias, “homem de baixa linhagem” foi cardeal da Espanha; e foram bispos Dom Afonso em Ávila e Dom Telo em Córdoba, ambos da “linhagem dos lavradores”. O mais curioso caso em Castela foi o dos Santa Maria – Dom Pablo e Dom Afonso, ambos bispos de Burgos, da “linhagem dos judeus” e convertidos –, como foi também o cardeal de São Xisto, Dom João de Torquemada – que de Castela passou a Roma e fundou ali o mosteiro de la Minerva –, e Dom Francisco, bispo de Coria.37 Menos cuidadoso com a qualidade das origens, Vespasiano da Bisticci ignorou a condição de judeu do cardeal Torquemada e dizia, simplesmente, que ele era um gentil uomo, como outros vários cardeais e bispos de que trata; e, se sinalizava que o cardeal Branda era antichissimo cortigiano ou que o arcebispo Bonarli era de uma famiglia antica di Firenze, também dizia que o cardeal Cesarini foi figliuolo d’uno povero uomo com a intenção de fazer um elogio a seus méritos, como repete sobre o cardeal Capranica, o bispo de Corone ou o bispo Sipontino.38
De resto, quase todo o repertório dos homens ilustres do século XV que Vespasiano da Bisticci deixou constituía uma amostra desses repetidos fenômenos de ascensão social no campo da política, no campo da Igreja e no campo das letras. Neste último, graças ao favor dispensado pelos nobres aos humanistas – poetas, historiadores, filósofos, narradores –, a condição de cortesão trouxe consigo a ascensão social e a riqueza para muitos de origem muito humilde. E aqueles que haviam estudado leis viram abertas as portas das chancelarias, obtendo, de sua proximidade com o poder, a consideração pública, honras e fortuna.
De qualquer maneira, o grupo mais numeroso entre os que subiram de classe e se aproximaram das categorias da nobreza, apesar de ser o último, foi o dos patrícios das cidades. Burgueses ricos que haviam reunido um grande capital buscaram consagrar sua posição econômica e seu real poder mediante uma ostensiva ascensão social. O casamento com mulher de casa nobre foi o mais acessível dos caminhos, já que a nobreza empobrecida procurava, por sua vez, alianças que a salvassem do desmoronamento. Mas a Coroa não foi renitente em outorgar senhorios e títulos de nobreza aos burgueses ricos, que, apesar disso, queria ver ao seu redor. E enobrecidos, mas excessivamente adstritos às mais delicadas funções financeiras, alternaram-se os novos nobres de origem burguesa com a antiga nobreza, desdenhosa, sem dúvida, mas obrigada a aceitar a crescente força desses setores sociais já consubstanciados com as formas vigentes da atividade mercantil e financeira.
Fosse qual fosse a origem dos que se incorporavam à nova nobreza, ou os meios de que se valiam para conseguir isso, todos procuraram transformar-se em proprietários rurais em alguma medida. Certamente, a terra era o sinal da condição nobiliária e, ainda que adquirida recentemente, outorgava bem depressa uma excelência social que nada podia substituir. Quanto ao mais, as circunstâncias iam tornando-se propícias para uma fácil aquisição. Angustiados com a inflação, os antigos senhores que haviam optado por substituir o pagamento em espécies das obrigações dos rustici pelo pagamento em dinheiro estavam cada vez mais dispostos a vender suas terras, tanto quanto os que tinham condições de tentar a exploração de acordo com as novas regras da produção para o mercado se mostravam decididos a comprá-las, não só como um bom investimento mas, além disso, por causa do prestígio que podiam acrescentar às posses que haviam conseguido por outros meios.
Pelo mesmo meio obtiveram terras os antigos colonos que souberam aproveitar a conjuntura favorável. De arrendatários, alguns passaram à condição de proprietários e, a partir desse momento, puderam iniciar a carreira que tão bem ilustra a sorte da família Paston na Inglaterra: Clement lavrava de maneira trabalhosa e com empenho suas terras no início do século XV e seu neto John – Esquire – não só havia estudado leis como possuía diversos senhorios, jogava cartas com o duque de York e o conde de Warwick e havia conseguido a confiança de Sir John Fastolf, que o designou como testamenteiro.39
Certamente, havia muitos rustici que conseguiram melhorar sua condição. Alguns emigrando para as cidades; outros entregando seus filhos para a Igreja ou deixando-os ingressar na carreira das armas; outros, enfim, como os Paston, convertendo-se em proprietários rurais e, se não chegaram logo a tanto, ascendendo como ministeriais à categoria de administradores – como o reve de Chaucer –, depois do que puderam, talvez “com os próprios bens de seu senhor”, chegar mais tarde à categoria de proprietários.
Mas, sem dúvida, houve outros mais que não conseguiram nada e chegaram a piorar sua sorte. Foram os que se sublevaram na jacquerie francesa ou na rebelião inglesa, ou os que engrossaram as fileiras dos taboritas boêmios, ou os camponeses alemães decepcionados com as palavras de Lutero. Foram, como Piers Plowman, na visão de William Langland, os deserdados que não esperavam nada deste mundo ou talvez, como o plowman de Chaucer, resignado e benevolente até o momento do desespero. “Pagava pontual e honradamente seus dízimos, tanto em dinheiro como em trabalho”,40 mas não pôde impedir um dia que seus sentimentos ultrapassassem sua resignação e que sua vontade se rendesse ao protesto que outros, mais sutis que ele, encabeçavam, tentando livrar-se entretanto de um jugo rigoroso para os que, individualmente, não haviam sido capazes de repeli-lo. A expansão econômica havia aprofundado o abismo entre os ricos c os pobres tanto no mundo rural como no mundo urbano.
III. O Patriciado e as Classes Urbanas Dependentes
Semelhantes nessa polarização dos grupos sociais de acordo com sua riqueza, o mundo rural e o mundo urbano separavam-se progressivamente e constituíam dois âmbitos cada vez mais distintos, sobretudo pela forma de vida que predominava neles. Depois da longa e densa experiência de vários séculos de desenvolvimento urbano, filósofos e moralistas falavam sobre as vantagens e desvantagens de uma e de outra forma de vida. O italiano Castiglione não duvidava de que a corte fosse o cenário mais digno de um homem refinado, mas o holandês Erasmo e o castelhano Guevara preferiam o encanto da vida rural: por volta de 1522, Erasmo falava das “cidades enfumaçadas e abafadas” e, em 1539, Guevara elogiava a vida da aldeia dizendo que nela, diferentemente do que acontecia nas cidades, “não há janelas que subjuguem tua casa, não há gente que te dê cotoveladas, não há cavalos que te atropelem, não há pajens que gritem contigo, não há velas que te manchem, não há justiça que te atemorize, não há nobres que te antecedam, não há ruídos que te assustem, não há funcionários públicos que te desarmem e, o que é melhor que tudo, não há trapaceiros que te corrompam nem damas que te tirem os bens”.41 Cada vez mais complexa, a vida urbana não só criava um ambiente físico fechado – suntuoso e sórdido, conforme os casos mas também um tipo peculiar de sociedade heterogênea na qual se percebiam à primeira vista as diferenças sociais.
Desde o início da época de expansão econômica, por volta do século XI, a diferenciação entre pobres e ricos acentuava-se. Porém, à diferença das áreas rurais, nas cidades a gama da sociedade era muito mais variada e continha, entre os extremos, uma parte intermédia muito diversificada. Não obstante, com a retração que se iniciou na primeira metade do século XIV, a diferença entre pobres e ricos acentuou-se progressivamente; mas nas cidades separou cada vez mais não só os pobres dos ricos, mas também os ricos de todos os de condição média, que ficaram unidos aos pobres em um só grupo diante dos poderosos.
Os poderosos constituíam o patriciado e, diante deles, o resto constituía o “comum”, um conjunto social algo estratificado, mas relativamente contínuo, diante do qual se via um abismo que o separava do patriciado. Em certas ocasiões, o abismo pôde ser transposto: um casamento vantajoso ou uma fortuna florescente permitia o acesso de alguém que ocupava a mais elevada categoria dentro do “comum” às fileiras patrícias. Mas, em muitas cidades e progressivamente, essas fileiras fecharam-se e o abismo aprofundou-se. Zelosos de sua posição social e econômica, os patrícios não eram menos zelosos de sua tradição familiar, elaborada através de gerações. Porém, o caráter fundamental do patriciado foi estabelecido pela combinação de diversos elementos: a riqueza, a influência preponderante naquelas atividades econômicas que eram fundamentais em cada cidade, a acumulada tradição da linhagem e a participação hegemônica no governo da cidade.
Houve, sem dúvida, muitas variantes na origem e na peculiaridade dos diversos grupos que constituíam o patriciado, unificados às vezes sob designações genéricas: grandes, magnati, viri hereditarii, poorters, ervachtighe lieden. Mas nem todos os membros do grupo que genericamente era conhecido desse modo – e que hoje chamamos convencionalmente de patriciado – tinham a mesma origem nem as mesmas tendências. Em algumas cidades, distinguia-se claramente o patriciado nobre do patriciado burguês.42 E ainda que em outras não estivesse tão claro e distinto, é evidente que em quase todas se reconhecia, entre os membros do patriciado, os que provinham de troncos nobres dos que tinham origem em famílias de mercadores ou ainda mais humildes. Antigos senhores ou, mais geralmente, fidalgos de recursos escassos haviam se integrado à vida urbana e participavam de atividades mercantis. Não faltou algum que pudesse resgatar um remoto antecessor cruzado – um Cacciaguida idealizado – e foram muitos os que apelaram para a tradição guerreira de suas famílias para constituir companhias mercenárias ou oferecer-se como oficiais ou chefes das milícias urbanas. Dessas funções podia-se passar logo a uma posição respeitável na sociedade civil, talvez a mais alta se a sociedade optasse pelo governo de um príncipe. Ao lado daqueles que podiam reivindicar uma origem elevada estavam os que não podiam ostentar isso. Alguns haviam aberto caminho pelas atividades econômicas, edificando uma fortuna, em algumas ocasiões avultada, com a qual haviam obtido prestígio ou influência; comerciantes ricos ou banqueiros não só desfrutavam do bem-estar que seu dinheiro lhes permitia, mas também podiam aproveitar a consideração de que gozavam para escalar posições públicas e impor suas opiniões e seus desejos a amplos setores que dependiam deles. Mas outros haviam feito carreira na guerra e na política sem outro título a não ser sua capacidade. Por isso de vez em quando se voltava ao problema das origens, porque a nova sociedade feudoburguesa vacilava quanto aos riscos ou as vantagens de aceitar o princípio de que era a Fortuna – e não a origem – que decidia sobre o papel do indivíduo na sociedade. Em 1514, Castiglione introduzia o tema através do il signor Gaspar Pallavicino em II Cortegiano43 e Maquiavel o desenvolveu a propósito da extraordinária aventura de Castruccio Castracani:44 “Parece coisa maravilhosa, para aqueles que a consideram que todos – ou a maior parte – dos que realizaram neste mundo grandes coisas e se sobressaíram entre os demais de sua época tiveram seu princípio e nascimento baixo e obscuro, ou tenham sido conduzidos de algum modo pela Fortuna: porque todos, ou foram jogados às feras, ou tiveram um pai tão vil que, envergonhados, se tornaram filhos de Javé ou de qualquer outro deus. Quem haviam sido esses – fato conhecido por todos – seria coisa desagradável de responder e pouco aceitável para os que lessem; por isso, nós a omitiremos como supérflua. Creio com segurança que isso provém de que, querendo a Fortuna mostrar ao mundo que é ela – e não a prudência – que toma os homens grandes, começa a mostrar sua força em um momento em que a prudência não possa participar, para que, sem dúvida, se tenha de reconhecer tudo a ela.”
A Fortuna também se podia atribuir a ascensão do rico comerciante cujo dinheiro fazia dele um personagem de prestígio e influência em sua cidade, ainda que se reconhecesse quanto cada um ajudava a Fortuna com sua prudência e capacidade. E, contudo, mais se podia atribuir à Fortuna que, entre muitos de grande capacidade, salvou um mestre artesão do abismo social, chegando a incorporar-se à alta classe que controlava a vida da cidade. Porém, ultrapassado o transe inicial, o importante era consolidar a ascensão e acentuá-la por meio dos filhos e netos. A família arraigada, cujos membros haviam gozado durante várias gerações de sólida fortuna e de posições destacadas, chegava a constituir em sua cidade uma linhagem de tanta influência e tanto prestígio como costumavam ter as casas nobres. De fato, um homem tão zeloso dos privilégios da antiga nobreza como o marquês de Santillana os equiparava quando enumerava as linhagens hispânicas e itálicas que se enfrentavam em uma batalha.45 E não se equivocava, porque as linhagens patrícias, talvez de poucas gerações, já eram a nova e indiscutível elite da sociedade que se renovava. Constituídas nas cidades, às quais infundiram esplendor e que transformaram em potências econômicas e políticas, elas formaram essa classe que posteriormente deixaria de ser urbana para converter-se no sustento econômico e político também dos novos estados territoriais.
Essas linhagens adquiriram tanta força e prestígio, que em algumas regiões se inclinaram a uma aliança com a pequena nobreza; e ainda que não a fizessem, procuraram que se atribuísse a elas uma dignidade equiparável e se confundissem com elas, adotando certa ostentação em suas formas de vida que mais parecia nobre que burguesa. Porém, um observador sagaz como Maquiavel, cujo pensamento político condensava a experiência de quatro séculos de desenvolvimento burguês, não se enganava nem com as aparências nem com as palavras. Falando sobre o que parecia uma república paradoxal de gentiluomini em Veneza, enfatizava que não havia contradição nisso, porque, em sua opinião, “os gentiluomini naquela república o são mais de nome que de fatos; porque não têm grandes rendas provenientes das posses mas suas grandes fortunas estão fundadas na mercadoria e nos bens móveis; além disso, nenhum deles tem castelo nem jurisdição sobre seus homens; de modo que o nome de gentiluomo neles é nome de dignidade ou de reputação, sem que esteja fundado em nenhuma daquelas coisas que em outras cidades fazem com que os chamemos de gentiluomini”,46 Era, certamente, a posição da mercadoria e dos bens móveis o que caracterizava o grupo mais representativo do patriciado nas cidades, o grupo burguês por excelência.
Lançados às atividades mercantis, os comerciantes descobriram depressa as vantagens de trabalhar com o próprio dinheiro. O uso da moeda logo revelou algumas de suas peculiaridades, embora não todas. Acreditou-se que quem a cunhava e garantia podia usá-la dolosamente sem maior perigo e foi isso o que os florentinos Biccio e Musciatto Franzesi, conselheiros financeiros do rei da França Felipe, o Belo, disseram-lhe que fizesse.47 Eles eram homens com experiência comercial que começavam a entrever os segredos do novo mundo do dinheiro; mas, embora fossem os que sabiam mais, mal entendiam os mais elementares de seus mecanismos, cujas engrenagens mais complicadas demorariam vários séculos para ser descobertas. Porém, sem dúvida, vinham de um dos centros mais experientes nessa nova matéria e, por isso, mereceram a confiança daqueles que exerciam, em países menos desenvolvidos, um poder político que queria ser um poder econômico. Das cidades italianas sairiam também Scaglia Tiffi, banqueiro enraizado em Borgonha, ou Berto Frescobaldi, conselheiro financeiro de Eduardo I, da Inglaterra.
Em suas próprias cidades, os ricos comerciantes cujas preferências estavam concentradas nas finanças pareciam ser os mais ricos de todos. Fundavam bancos que exerciam uma forte influência local e então criavam uma rede de sucursais que projetava essa influência sobre outras cidades e outros reinos, oferecendo às vezes a seus reis grandes empréstimos sem os quais muitos deles não teriam podido realizar as guerras que empreenderam. Talvez não desejassem de todo os negócios mercantis, mas o manejo de grandes capitais permitiulhes distanciar-se do contato com a mercadoria, confundindo um pouco mais os rastros de sua condição de origem, acentuando a ficção de que não trabalhavam com suas mãos, mas pertenciam à endividada classe ociosa dos gentiluomini.
Certamente, apenas se aproximavam dessa meta os que conseguiam dar uma grande amplitude a seus negócios. Os outros, os que trabalhavam em pequena escala, arrastavam o velho estigma da agiotagem. Contudo, todos impunham seu poder em uma sociedade baseada cada vez mais no dinheiro e, no século XV, só os moralistas tradicionais vituperavam o financier, como fazia Eustache Deschamps em sua composição poética satírica.48 O financista exercia uma influência decisiva nos fatos, mesmo quando a sorte pessoal de cada um acusava os riscos de um jogo pouco conhecido; e se ele conseguia conservar e aumentar sua fortuna e legá-la a seus herdeiros, o papel que a família desempenhava na cidade alcançava traços de uma verdadeira aristocracia.
Na realidade, o financista puro não é um tipo freqüente no seio do patriciado. Talvez seja uma vocação predominante em alguns: talvez em Joseph Hompys, fundador da Grosse Gesellschaft em Ravensburg, em 1380; em Godeman van Buren, que estabeleceu a primeira banca local em Lübeck; em Jakob Fugger, que aumentava seu poder em Augsburgo; em Cosimo Medici, que levou sua casa bancária em Florença ao mais alto nível; ou em Jacques Coeur, em quem a especulação adquiria as características de um jogo apaixonado. Mas, a rigor, o financista era uma das caras do mercador, e as ricas linhagens burguesas basearam sua fortuna no tráfico mercantil ao qual se haviam dedicado durante gerações. Em virtude dessa atividade e graças aos frutos que haviam obtido dela, seus membros faziam parte do patriciado, que a Crônica de Lübeck definia como um grupo composto por “comerciantes ricos e os ricos em bens” ou “os comerciantes mais ricos da cidade”.49
Grupos mercantis que desenvolviam uma intensa atividade econômica, que gozavam de suficiente bem-estar para levar uma vida agradável e em ocasiões luxuosa e que exerciam considerável influência nas cidades constituíram-se em numerosos centros urbanos, ali onde se havia produzido essa ativação comercial que desencadeou a revolução burguesa. Froissart os surpreendeu em Flandres: eram “as boas gentes de Gent, os homens ricos e notáveis que tinham na cidade suas mulheres, seus filhos, suas mercadorias, suas propriedades dentro e fora dela e que haviam aprendido a viver honradamente e sem perigo”.50 Eram, talvez, os que habitavam as ricas casas do Quai aux herbes, talvez os herdeiros de Gilbert uten Hove ou de Walter van der Meire; e sem dúvida também outros com fortunas menores embora influentes no seio do patriciado e unidos a sua variada sorte. Em numerosas cidades flamengas, brabanzonas ou do país de Liège, observava-se a presença dessa camada social, da qual Van Eyck, Memling ou David retrataram alguns membros. Ela era encontrada nas cidades hanseáticas – Lübeck, Hamburgo, Danzig –, nas cidades romanas – Colônia, Maguncia –, nas cidades do sul da Alemanha – Augsburgo, Munique, Nuremberg –, nas cidades suíças – Basiléia, Genebra –, no noroeste e no sul da França, nas cidades da Inglaterra, Catalunha, Portugal; nas cidades do Báltico, Polônia e Rússia e, sobretudo, nas cidades italianas, onde o processo econômico e social havia começado antes que em outras partes e havia alcançado grande intensidade.
Até princípios do século XIV havia prevalecido a imagem do mercador itinerante e aventureiro, aquele que ia e vinha com sua mercadoria e que conseguiu estabelecer pessoalmente e por seu próprio risco o contato entre as diversas áreas em que o tráfico aumentava. Foram eles que deram estrutura ao mundo urbano internacional e os que criaram um sentimento de homogeneidade e reciprocidade entre as novas burguesias. Eles romperam o etnocentrismo elementar e dispuseram-se a entender o diferente, dentro de uma relação que um plano de coincidências oferecia. Foi assim que Chaucer os viu, alegres e otimistas, mas sobretudo abertos à percepção de um mundo variado: “Ah, opulentos comerciantes; a gente nobre e principal!” – escrevia –.51
Muito felizes nesse ponto sois. Vossos alforjes não contêm ases duplos, mas boas jogadas de cincos e seis, para vossa ventura. E na Páscoa podeis bailar alegremente. Vós, mercadores, revolveis terra e mar buscando proveitos; vós, gente informada, conheceis o estado dos reinos; e sois pais de notícias e contos de paz e de guerra.” Boccaccio ofereceu várias vezes essa imagem do mercador conhecedor do mundo e, talvez, tivesse podido, como Chaucer, dizer sobre o mercador “que, por ser homem rico, passava por sábio”.52 Mas, sem dúvida, o era o mercador itinerante, embora não fosse estudioso. Sua sabedoria consistia no conhecimento da nova realidade social, homogênea em alguns de seus aspectos e profundamente diversa em outros. O seu era um saber vivo e espontâneo, filho da experiência, que aumentava sua autoridade quando ele voltava a sua cidade natal e relatava as diferentes maneiras de viver das gentes com que havia se encontrado durante o exercício de suas operações mercantis. Contudo, justamente porque os mercadores itinerantes haviam atado os laços do novo mundo urbano internacional, seus descendentes puderam prescindir da viagem pessoal e periódica para fazer seus negócios. O mapa da Europa adquiriu precisão e apresentou-se como um universo de cidades, cada uma das quais com as características específicas que sua atividade econômica lhe proporcionava: Lübeck, “uma casa de comércio”; Colônia, “uma adega de vinhos”; Danzig, “um celeiro de trigo”; e assim sucessivamente, de acordo com um velho ditado alemão da época.53 Antes do século XIV, um catálogo de cidades havia sido redigido por Francesco Balducci Pegolotti – membro da casa bancária dos Bardi em Florença – no qual ele pontuava as características comerciais de cada uma.54 Quando a organização internacional se fixou, na primeira metade do século XIV, os mercadores se estabeleceram nas cidades e os mais prósperos formaram nelas a mais alta classe urbana. Os escritórios, as oficinas de trabalho manual e os depósitos constituíam seu centro de operações, que se projetava até os portos, quando os havia. A compra e a venda eram as operações básicas, mas a recepção e o envio de notícias, a análise de preços e das contingências próprias da produção, dos transportes e dos mercados constituía a preocupação fundamental do chefe da casa, ao qual cabia orientar sua atividade. Para consolidar sua posição, os mercadores procuraram e conseguiram exercer o poder em sua cidade, porque o próprio governo também orientava as atividades econômicas das grandes casas comerciais e financeiras. E, para desfrutar da riqueza e do poder, mudaram ou transformaram suas moradias, dotando-as das comodidades e do luxo que suas fortunas permitiam.
Quando essas fortunas alcançaram um nível superior às exigências do próprio negócio e as necessidades de fazer novos investimentos que assegurassem seu ritmo crescente e progressivo estavam cobertas, seus proprietários puderam pensar em adquirir propriedades rurais. Era uma maneira de diversificar os investimentos e, em alguns casos, de integrar um circuito econômico; porém, de modo mais geral, esse procedimento fez parte de uma estratégia para consolidar a ascensão social. A propriedade raiz ajudava a configurar uma posição respeitável, própria não só dos patrícios, mas principalmente dos nobres. E, em muitos lugares, a preocupação excessiva dos patrícios foi alcançar uma posição nobiliária, que só em determinadas ocasiões foi outorgada gratuitamente e que, de modo geral, foi comprada.
Nas cidades começaram a aparecer escudos de armas sobre as portas de algumas casas burguesas, denotando o novo salto que os proprietários haviam dado. O enobrecimento foi um novo elemento de diferenciação introduzido em uma sociedade que continuava sendo muito instável. Também as classes hierárquicas do patriciado burguês conservavam sua instabilidade. Junto às linhagens que perduravam ao longo de muitas gerações, cada cidade viu o declínio de algumas famílias poderosas e viu outras subirem, às vezes pelo vaivém de seus negócios particulares, outras vezes pelo acaso de circunstâncias graves que alteravam a vida econômica e política da cidade e abalavam sua estrutura social. Novos nomes começavam a aparecer nas listas dos mais ricos e, naturalmente, dos que exerciam as magistraturas urbanas, substituindo os que caíam. Justamente para aconselhar um comportamento prudente às famílias de alta hierarquia burguesa, Leão Battista Alberti escreveu I libri della famiglia, perguntando-se se a Fortuna tinha tanto poder sobre os homens a ponto de “a famílias bem providas de homens virtuosíssimos, abundantes de coisas caras e preciosas e desejadas pelos mortais, adornadas de muita dignidade, fama, elogios, autoridade e respeito público, privá-las de toda felicidade, fazê-las desaparecer na pobreza, solidão e miséria, reduzi-las de grande número de pais a pouquíssimos descendentes, passá-las de uma riqueza desmesurada à extrema necessidade, de muito ilustre esplendor de glória submergi-las em tanta calamidade, mantê-las abatidas e imersas nas trevas e em uma tempestuosa adversidade. Ah, quantas famílias hoje estão caídas e arruinadas!”55 Escritas essas palavras em Florença, pouco antes de o século XV chegar a sua metade, elas revelavam que só então o patriciado burguês começava a tomar consciência do tipo de sociedade que encabeçava e do tipo de estrutura econômica em que se movimentava. Mas tanto uma como a outra conservavam ainda ocultos os mecanismos de seus processos internos e a instabilidade derivada da necessidade de transitar por caminhos que ele mesmo estava traçando. O que o patriciado havia aceitado empreender era a construção de uma nova sociedade e uma nova economia, e não simplesmente seu uso. Cabia ao patriciado construir a sociedade burguesa e a economia capitalista e, nessa tarefa, os sucessos e os fracassos individuais eram o preço que tinha de pagar quem se comprometesse com ela. Foi preciso aguardar vários séculos para que se tornassem totalmente evidentes os mecanismos da sociedade burguesa e da economia capitalista, para os quais não havia então um modelo ao qual a ação pudesse aludir.
Em cada etapa, o patriciado urbano contribuiu para traçar a nova realidade socioeconômica e, no entanto, procurou gozar da riqueza e do poder que as circunstâncias lhe ofereciam. Comprometido com o destino de sua cidade, o patriciado buscava a riqueza e o poder convencido de que a sua sorte – a de cada um de seus membros e a de todos como classe – estava unida ao destino da cidade: era o sentimento que expressava, cheio de orgulho, Giovanni Villani quando atribuía o esplendor que Florença havia alcançado aos florentinos – isto é, aos filhos da cidade e somente a eles –, por cuja obra “começou a multiplicar-se e estender-se a fama de Florença pelo universo mundial, mais do que nunca havia sido”.56 O embelezamento das cidades, o estímulo das atividades intelectuais e estéticas, a promoção de festas públicas foram formas secundárias, porém eloqüentes, desse comportamento social do patriciado.
A seu lado, grupos estrangeiros costumavam participar de sua forma de vida, ocupados principalmente com atividades lucrativas. Próximos dos homens mais importantes e presentes nos círculos mais representativos de cada cidade, pareciam mergulhados nela e integrados em sua vida. Mas, na verdade, a cidade lhes era estranha. Eram indivíduos desenraizados que não faziam conta do destino coletivo, porque tinham os olhos voltados para seus interesses ou talvez para sua própria cidade. Do tronco patrício florentino, Tommaso Portinari vivia em Bruges como agente da casa dos Medici. Memling fez seu retrato e o de sua esposa, como corresponde a um cidadão rico e influente. Mas ele pensava, além de se preocupar com seus interesses, em sua Florença natal. E, assim como seu antecessor Angelo de Jacopo Tani havia encomendado àquele artista um retrato para sua capela mortuária em Florença – que por obra dos piratas foi parar em Danzig –, Tommasso Portinari encomendou outro retrato a Hugo van der Goes, este para o hospital Santa Maria Nuova de Florença, que seu antepassado Folco Portinari, pai de Beatrice, havia fundado em 1285. Patrícios em Florença e em Bruges, somente em uma cidade podia viver-se a obcecante contingência cotidiana que compunha o curso do destino local, edificado de janela em janela, na pracinha ou no átrio. No final, Advena, o patrício de outros lares, observava o patriciado da cidade em que morava como a um grupo social cujo destino não era o seu.
Em algumas regiões em que o processo de mercantilização havia sido forçado – como na Boêmia e na Hungria ou em algumas regiões de influência hanseática – as cidades receberam grupos estrangeiros privilegiados e protegidos que, de fato, constituíram o mais alto nível da sociedade urbana: essa era a situação dos alemães em Praga. Sem dúvida constituíram um tipo de patriciado, mas atento somente a seus interesses e desligado do destino da cidade ou talvez impotente para conduzi-lo. A política lhes foi proibida e apenas tiveram do patriciado os riscos corridos pela atividade mercantil e financeira, um modo de vida burguês e, sem dúvida, a influência que exerciam devido a sua alta posição.
Entre os mercadores e financistas costumavam introduzir-se nas fileiras do patriciado homens de outros grupos que gravitavam pela cidade. A medida que crescia e se formalizava a organização da vida urbana – que era em muitas cidades a de um estado independente –, ganhavam maior importância local as pessoas que representavam certo poder. Os bispos e o alto clero foram inseparáveis do patriciado, como o foram os chefes das milícias urbanas, algumas vezes verdadeiros exércitos, e os mais altos funcionários da burocracia comunal. Todos eles participavam do gênero de vida do patriciado e às vezes o superavam; porém, participavam também da tomada de decisões importantes – políticas, sociais e econômicas –, sobretudo em circunstâncias críticas que fugiam à rotina cotidiana.
Entre os burocratas, os legistas de formação romana que, passo a passo, determinavam com exatidão as peculiaridades do direito burguês e definiam as linhas jurídicas e administrativas que marcavam a vida pública das cidades conseguiam uma forte gravitação. A eles cabia ir criando os moldes da nova sociedade, que se desprendia paulatina e trabalhosamente dos esquemas da sociedade feudal. Juizes, advogados e notários adquiriam, pelas mesmas razões, uma crescente importância social, visto que trabalhavam cotidianamente na elaboração de um novo direito de extrema importância para a consolidação do pujante sistema de relações em que cada vez mais se assentava a sociedade urbana, burguesa e mercantil. A seu lado, outros que também exerciam profissões liberais costumavam incorporar-se nas fileiras do patriciado: médicos ou farmacêuticos, se sua fortuna ou os seus vínculos familiares lhes permitissem o acesso. As mesmas razões, ou a influência que puderam obter ao lado de figuras ilustres da cidade, empurraram ocasionalmente até os mais altos estratos sociais os intelectuais e escritores que trabalhavam na elaboração, na afinação conceituai e no ajuste de novas formas de mentalidade que acompanhavam a mudança social. E não ficaram à margem dessa ascensão alguns arquitetos e artistas que procuravam expressar as variações da sensibilidade que se insinuava no seio da nova sociedade. O patriciado, elite de uma sociedade que estava criando a si mesma, emprestava seu calor a todos os que contribuíam para definir e tornar exata sua fisionomia.
Foi sua eficácia para promover a mudança social e econômica o que primeiro lhe conferiu a condição de elite. Logo, em sucessivas gerações, foi sua capacidade para aceitá-la e adequar-se a ela como classe constituída, procurando cada um de seus membros tirar o maior proveito possível, em atividades que, além disso, abriam possibilidades para outros setores mais modestos que cresciam nas cidades. Foi, finalmente, o aproveitamento dessa última circunstância o que consolidou sua posição, porque o patriciado pôde organizar em seu benefício o conjunto da sociedade urbana, sem o prejuízo de que tivesse de enfrentar ocasionalmente os setores médios que lhe disputaram o poder. Sem demora, o patriciado, que nunca perdeu o poder econômico, recuperou o poder político ali onde o havia perdido e voltou a consolidar suas posições, modificando, quando foi necessário, a estrutura institucional.
Essa tendência de canalizar o processo de mudança em um sentido favorável a seus interesses manifestou-se no patriciado. Foi corroborada com os esforços que ele fez, uma e outra vez, para deter o processo de mobilidade social e, sobretudo, para tornar independente a área de poder desse processo. E, se em determinados lugares e ocasiões esse esforço não teve êxito, sem demora os resultados foram felizes para o patriciado. Sua força consistia na solidez que tinha na estrutura econômica que ele mesmo estava elaborando – pré-capitalista ou talvez capitalista em algumas partes – mas, além disso, no sistema de alianças econômicas, sociais e políticas que soube construir na sociedade que, precisamente por causa dessas coincidências de grupos, adquiriu características de uma sociedade em transição, a sociedade feudoburguesa. O patriciado acercou-se da nobreza o quanto pôde e em condições vantajosas. Aproximou-se da pequena nobreza; ou da nova nobreza; ou da antiga nobreza, que, pelo simples fato de aceitar essa aliança, renovou-se e passou a ser nobreza nova.
Para consolidar sua situação e assegurá-la, o patriciado aplicou a si mesmo o princípio de contenção da mobilidade social. Não quis crescer, mas, ao contrário, contrair-se e fechar-se como grupo. As tendências capitalistas levaram-no a fechar-se como classe, reduzindo os privilégios a um número restrito de famílias. Aceitando a tradição da sociedade feudal, o patriciado institucionalizou seus privilégios na medida e nas ocasiões em que foi possível, demonstrando que tendia a formar coligação com a nobreza e, inversamente, a separar-se das outras classes urbanas que se haviam constituído junto com ele e haviam permanecido em níveis econômicos e sociais mais baixos. Assim, começou a desvanecer-se o vago princípio igualitário que parecia mover a primitiva sociedade burguesa, condenado desde o primeiro momento, visto que aquela estava baseada em uma economia monetária. Sinais inequívocos exteriores da posição social de cada um logo apareceram nas cidades.
Mais além do poder, da riqueza ou da fama, o patriciado buscou o sinal de sua diferenciação naquilo que colocou sua dignidade em evidência. Acreditou, por certo, na dignidade do poder e da riqueza; mas também na de um modo de vida que apontava para valores que queria levar em consideração – talvez contra suas convicções espontâneas –, mais altos que os vigentes na vida prática. Adotou a dignidade do porte e do tratamento, da linguagem, do sentimento e da sensibilidade; a dignidade, finalmente, dos pensamentos elevados. Uma casa que queria ser palácio, e que finalmente chegou a ser, constituiu o cenário apropriado para essa concepção de vida que começou sendo burguesa e deslizou, pouco a pouco, para o esquema da vida cortesã.
O importante, em primeiro lugar, era não trabalhar com as mãos e, além disso, desligar-se do trato direto com as mercadorias. Uma hierarquia de intermediários assegurava aos ricos comerciantes ou industriais uma certa distância dos objetos que constituíam sua riqueza e, com isso, a possibilidade de alcançar ou de manter essa dignidade patrícia que os aproximava da nobreza. Abaixo deles estavam os que trabalhavam com suas mãos e os que compravam e vendiam as mercadorias: eram as classes urbanas subordinadas, cujos membros enchiam as lojas e oficinas, os mercados, as ruas e pracinhas, em cujas fileiras estavam incluídas, além disso, as pessoas sem ofício que buscavam o pão de cada dia em circunstanciais tarefas humildes e honestas e aqueles que o buscavam em atividades desonestas ou francamente criminosas. Era um amplo espectro social o que se ia constituindo nas cidades que presidiam com estudada dignidade as linhagens patrícias.
De todo esse conjunto, só os ofícios organizados chegaram a adquirir uma consistência social comparável à do patriciado e, especialmente, os que correspondiam às atividades fundamentais da cidade. Atuando solidariamente, podiam desafiar a autoridade do patriciado e, em muitos casos – como em Gent, Colônia ou em Florença —, derrubá-la e chegar a controlar o poder político da cidade. Tecelões, ourives, açougueiros, construtores navais, tintureiros e tantos outros – dos quais restou um catálogo ilustrativo de Jost Amman e as rimas de Hans Sachs –57 puderam acariciar a ilusão de impor sua força numérica e sua organização. Grêmios, corporações, gilds, arti, Aemter, Gewerke eram organizações de ofícios que não tinham o sentido profundo de classe que caracterizava o patriciado. Eram organizações profissionais, talvez solidárias na oposição ao patriciado, mas faltava-lhes coesão interna. Mestres, companheiros e aprendizes de fato pertenciam a estratos sociais diferentes – embora originalmente houvessem pertencido ao mesmo – e seus interesses eram diversos. Os mestres, principalmente, conseguiram constituir uma oligarquia em muitas cidades. Eram poucos e conseguiram que as regulamentações de muitas cidades mantivessem restrito o número e acrescentassem as exigências para adquirir maestria. Foi necessário que pagassem uma grande soma para adquirir o direito de burguesia e que cumprissem o requisito de presentear uma “obra de arte”. Os que conseguiram satisfazer esses requisitos chegaram a constituir a nata superior dessa classe média artesanal, em cujos membros Chaucer pensava quando descrevia seus caracteres:58 “Um lojista e um carpinteiro, um tecelão, um tintureiro e um tapeceiro também cavalgavam na companhia. Todos eles usavam as librés de seus grêmios, solenes e importantes. Vestiam roupas novas e bem adornadas; seus punhais não eram guarnecidos com bronze mas com prata lavrada e polida; e de igual maneira estavam decorados seus cinturões e bolsas. Na verdade, pela aparência e discrição que mostravam, pareciam muito dignos de ser regentes e se sentarem nos tronos do salão de seu conselho. Além do mais, possuíam para isso bens e lucros suficientes e, por certo, suas mulheres veriam-nos como regentes com satisfação. Porque é muito agradável ouvir-se chamar de “senhora” e ir a vésperas diante de todos e possuir um manto regiamente conduzido.”
A esse mesmo nível social pertenciam os médios e pequenos comerciantes, donos de um capital discreto que lhes permitia movimentar seus negócios. Talvez não tivessem a força social dos mestres artesãos, que, ocasionalmente, podiam apoiar-se em seus grêmios. Mas tinham essa ligeira superioridade dada pela profissão mercantil, na qual sempre era possível escapar à mediocridade e alcançar uma fortuna estimável. As profissões liberais outorgavam o gozo de certa consideração àqueles que não conseguiam sobressair-se. Médicos e farmacêuticos, notários e advogados – personagens prediletos de Boccaccio e de Sacchetti, do autor de Maistre Pierre Pathelin e do das Cent Nouvelles Nouvelles, de Chaucer, de Poggio e de Erasmo – pertenciam a ele em princípio e, embora alguns passassem a formas menos respeitáveis de vida cedendo às tentações da picardia urbana, outros mantiveram ou aumentaram sua dignidade até fazer de suas profissões um título honrado. Também costumava ser honrada a condição dos párocos e dos monges mendicantes, envolvidos todos nos enredos da vida cotidiana e oscilando entre a malícia e a virtude. E era honrada, às vezes, a qualidade dos funcionários públicos, em quem se devia depositar confiança e cujo número aumentava à medida que se complicava a administração até constituir uma nutrida burocracia.
Costumavam-se movimentar nesse mesmo nível os estudantes, que animavam as cidades onde houvesse importantes centros de estudo. Se não pertenciam totalmente a ele, foi porque muitos participavam simultaneamente de uma condição dupla. Por um lado, eram filhos de famílias capazes de sustentar seu ócio em alguma medida, embora muitos deles recorressem à esmola, tanto para viver o cotidiano, como para satisfazer o desejo de “acumular em sua cabeceira uma vintena de livros, encadernados de vermelho ou preto, contendo a filosofia de Aristóteles; e, assim como não guardava, embora filósofo, a não ser muito pouco ouro em seu baú, o quanto pudesse conseguir de seus amigos era gasto nos livros e para instruir-se e rezava com muito empenho pelas almas que lhe davam algo com que aprender”.59 Este era o estudante de Chaucer. Mas, mesmo em Oxford, como em Bolonha ou Praga, como em Coimbra ou Paris, abundavam os “escolares noctívagos”, como dizia o Arcipreste de Hita.60 Qualquer que fosse sua origem social, a vida de estudante os empurrava para os limites da má vida, enredando-os com mulherzinhas e jogadores no ambiente desenfreado das tabernas e das pousadas. As vezes não passavam dos limites do escândalo, dignificado pela música ou pela poesia, mas enquadrado em uma resoluta ação para obter prazer que se realizava no amor e no vinho. Mas muitos ultrapassavam o limite e introduziam-se nessa má vida que Villon descrevia – a seu modo, um estudante também – e cujo fim podia ser a forca. Assim, o estudante costumava cair em uma situação de marginalidade derivada de sua libertinagem, o que podia não corresponder a sua origem social.
Em um nível inferior estavam os que trabalhavam como empregados. Nos ofícios eram muitos os companheiros e aprendizes, em posição social e econômica muito mais baixa que os mestres e submetidos, além disso, a sua autoridade. As vezes com trabalho e outras vezes desempregados, só dispunham do amparo da organização gremial, que controlava seus salários e oferecia algumas ajudas. Empregados de casas de comércio e pequenos burocratas, compartilhavam essa situação, na qual também se encontravam todos os que prosperavam com serviços pequenos e variados criados pela vida das cidades. Desses últimos, alguns lidavam com a vida aventureira da periferia social das cidades; e dela entravam e saíam os que apenas tinham a força de seus braços para os trabalhos mais humildes, convertidos em pobres quando esse trabalho faltava.
Nas cidades havia abundância de pobres. A vida urbana era aprazível para os ricos, porém dura para os miseráveis. Dentre eles saíam as primeiras e mais numerosas vítimas da grande fome e das epidemias, os que saqueavam os conventos e terminavam nos hospitais e os que constituíam a massa que comparecia às festas públicas ou se metiam nos tumultos populares – que outros comandavam – sem saber o que esperavam ou o que queriam. As vezes, os soldados sem bandeira, aventureiros acostumados ao uso do punhal, integravam-se nessa massa indefinida, com o que às vezes acabavam sendo assassinos e ladrões. Então, entravam em cheio na última camada da sociedade urbana.
Decididamente marginais, ladrões e assassinos compartilhavam o mundo da má vida com um conjunto variado de personagens, muitos deles menos perigosos e instalados na ponte em que diversas classes comunicavam-se. Confrarias de mendigos – como a que Sacchetti descreve – 61 estendiam-se por todas as cidades, alternando-se seus membros entre os lugares seletos onde mendigavam e os subúrbios em que viviam. Mas a esmola abundava quando a situação era próspera e faltava quando a escassez assomava. Então, um mendigo podia transformar-se em ladrão ou bandoleiro. Porém, o mundo da má vida era muito mais amplo. Assim o viu François Villon na Paris de sua época:62
Porque, que sejas embusteiro,
trapaceiro ou jogador de dados,
falso moedeiro e que te queimes
como os que se abrasam,
traidores, perjuros e vazios de fé;
que sejas ladrão, que roubes ou saqueies,
para onde vai o obtido, de que tanto cuidas?
Tudo às tabernas e às moças do trato.
Recita, zomba, toca o címbalo e o alaúde
como louco, mascarado e desavergonhado;
graceja, engana, dispara;
representa, nas cidades e nos povoados,
farsas, jogos e moralidades;
ganha nas cartas, nos jogos de azar, nas cartas.
Pois escutai-me bem:
tudo vai para as tabernas e para as moças do trato.
As imundícies te repugnam?
Ara, ceifa os campos e prados,
cuida e almofaça cavalos e mulas.
Terás o necessário se te resignares.
Mas, se amassares ou espadelares o cânhamo,
todo o trabalho que fizeste tu não o levas
às tabernas e às moças do trato?
Calças, gibões com cordões,
togas e todas as tuas roupas;
antes de fazer algo pior, levai
tudo às tabernas e às moças do trato.
Tabernas e garotas constituíam pólos de atração não só para os marginais como para muitos membros de grupos integrados que, desse modo, entravam em contato com os outros. Das prostitutas, Villon guardou a lembrança terna e baixa em uma época que deixaram em sua memória a Belle heaulmière e a Grosse Margot.63 De tabernas, de bêbados, pícaros, jogadores e parasitas, sua experiência foi memorável, talvez tanto como a do Arcipreste de Hita ou a de Poggio Bracciolini, especialistas em devolver essa experiência em recordações literárias porém repletas de desembaraço e alheias a toda retórica. Mais circunspecto, Chaucer traduziu não tanto uma experiência como uma observação em uma passagem evocadora do cinturão marginal da Londres de sua época, quando falou de Perkin Revelour, um aprendiz seduzido pela má vida: “Sempre que havia alguma festa ou cavalgada em Chepe, o aprendiz fugia da oficina e não voltava enquanto não houvesse visto todos os festejos e dançado neles muito à sua vontade. Pertencia a um grupo de garotos de sua condição, que sempre andavam juntos, bailando ou cantando, e também se reuniam em certos lugares para jogar dados. Não havia aprendiz em Londres que não soubesse atirar melhor os dados que Pedrinho. De resto, ele gostava muito de dilapidar dinheiro em casas secretas; e tudo isso redundava em detrimento de seu patrão, que amiúde encontrava sua caixa vazia. Porque haveis de saber que, se um aprendiz tem inclinação para o jogo, a orgia ou as mulheres, cabe ao amo pagá-lo, arcando com os gastos da música sem tocar nela; pois, em um aprendiz, diversão e roubo são palavras sinônimas. Sempre se viu que nas pessoas de condição humilde a recreação e a honradez são coisas que não podem coexistir.”64
Sobre o vasto espectro da sociedade urbana projetava-se a autoridade das linhagens patrícias. Em muitas cidades gravitavam antigas casas nobres ou setores ativos da nova nobreza. Porém, o patriciado possuía a chave para influir mais diretamente sobre a nova sociedade, feudoburguesa em seu conjunto, porém acentuadamente burguesa e capitalista em muitas cidades. Por isso, o período que transcorre desde a segunda metade do século XIV até as primeiras décadas do século XVI constitui o de maior esplendor das burguesias urbanas. Puderam algumas vezes perder o poder político sob a pressão dos ofícios; puderam perdê-lo progressiva e totalmente como conseqüência do centralismo crescente que inspirou as monarquias nacionais. Porém, o patriciado sobreviveu como elite social, econômica e cultural e seguiu impondo, pouco a pouco, as tendências fundamentais. A imagem do ensaio que realizou nas cidades impôs suas concepções da sociedade, do estado e da economia, além de suas próprias e inquestionáveis formas de vida e de mentalidade. Sem dúvida, o patriciado deu passos decisivos para integrar-se em uma unidade com a nobreza; porém conseguiu que esta se aburguesasse mais do que o patriciado cedeu à tradição nobiliária, apenas recebida como uma cobertura de suas próprias tendências. A sociedade feudoburguesa duraria vários séculos, porém a crescente pressão dos integrantes burgueses modificaria essa equação no sentido imposto por suas tendências. Somente redutos cada vez menos influentes preservariam a tradição nobiliária.
Notas
1. Charles d’Orléans, Complaintes, I; Fernán Pérez de Guzmán, Generaciones y semblanzas, ed. Clásicos Castellanos, pp. 51, 107, 115 et alibi.
2. Dante Alighieri, Commedia, Parad, XVI, 67 e ss.
3. Cf. J. C. Russell, “Population in Europ 500-1500”, em The Fontana Economic History of Europe, I, p. 36.
4. Franco Sacchetti, Novelle, CXXIII.
5. Anónimo Romano, Vita di Cola di Rienzo, I , i
6. Boccaccio, Decamerone, VII, viii.
7. Hernando del Pulgar, Crónica, II, 1xxix; cf. Letras, XIV.
8. François Villon, Le grand testament, XXIX-XXX
9. Infante Dom Juan Manuel, Libro de los estados, I, xcii; Diego de Valera, Memorial de Diversas Hazanas, XX; Id. Crónica de los Reyes Católicos, III; Gutierre Díez de Games, El victorial, Intr.
10. John Gower, Vox clamantis, III, i.
11. Arcipreste de Hita, Libro de buen amor, 126.
12. Marsilio de Padova, Defensor pacis, I, 5.
13. Duarte de Portugal, Leal conselheiro.
14. Cf. A. Pagés, Auziàs March et ses prédecesseurs, p. 161.
15. Christine de Pisan, Le livre des fais et bonnes moeurs du sage roy Charles, cap. XXXVI.
16. Crónica del muy alto et muy católico rey Don Alfonso el Onceno , caps. CCXLIII, LXXVIII e CL
17. Marquês de Santillana, Comedieta de Ponça.
18. Luigi Pulei, Il morgante; Gerolamo Folengo, Orlandino; Ludovico Ariosto, Orlando furioso; Erasmo, Elogio da loucura.
19. Gutierre Diéz de Games, El victorial.
20. Geoffrey Chaucer, The Canterbury tales, The prologue.
21. Philippe de Mézières, Epître lamentable.
22. Crónica de Alfonso el Onceno, caps. CCLXX e CCLXXXVIII.
23. Olivier de la Marche, Mémoires, livro I, caps. XXIX e ss.
24. Villon, Le grand testament, XCII.
25. Gaston Phoebus (conde) de Foix, Traité de la chasse; Infante Dom João Manuel, Libro de la caza; Pero Menino, Livro de Falcoaria.
26. Henrique de Vilhena, Arte de trovar e Arte accisoria o Tractado del arte de cortar del cuchillo.
27. Diego de San Pedro, Tractado de amores de Arnalte e Lucenda e Cárcel de amor.
28. A exaltação dos ideais e das formas da vida cavalheiresca, às vezes com intenção polêmica, aparece em numerosas obras dos séculos XIV e XV. Ver a Historia del Cavallero de Dios que avia por nombre Cifar, da primeira metade do século XIV, do qual derivam todos os “livros de cavalarias” espanhóis ou ibéricos como o Amadís de Gaula, muito difundido antes da primeira edição conhecida de 1508, ou o Tirant lo Blanc, do valenciano Joanot Martorell, publicado em 1490. Igualmente o anônimo francês intitulado Le livre du chevalier de la Tuor Landry, muito difundido na Inglaterra e na Alemanha e composto em 1372; Le songe du vergier escrito até 1376 e de duvidosa paternidade; Melusine, de Jehan d’Arras, publicado pela primeira vez em 1478; as duas obras de René d’Anjou, o Traicté de la forme et devis comme on fait les tournois, de aproximadamente 1452, e Le livre du cueur d’amour espris (1457). Em Castela vieram à luz o Libro del cabaiiero y del escudero, o Tractado sobre las armas, ambos do Infante Dom João Manuel, da primeira metade do século XIV; o Libro del passo honrosso de Pero Rodríguez de Lena (c. 1450); El victorial de Gutierre Diéz de Games (c. 1448). À mesma tendência corresponde, na Inglaterra, King Arthur (le morte d’Arthur), de Sir Thomas Malory, concluído em 1469 mas publicado pela primeira vez em 1485, bem como os relatos anônimos do século XIV sobre o mesmo assunto, Morte Arthur e Le Morte Arthur. E constitui um testemunho singular no mesmo sentido o Enchiridon que Erasmo publicou em 1503/4. Na Alemanha, Guilherme da Baviera compôs o Libro de los torneos; suas miniaturas são ilustrativas, mas não têm uma importância comparável à das tapeçarias de la Licorne (Paris, Musée de Cluny; Nova York, Cloisters) ou das Heures do rei René. São numerosas as tapeçarias e as miniaturas do século XV ou princípio do século XVI que expressam a tendência à exaltação cavalheiresca.
29. Fernán Pérez de Guzmán, Generaciones y semblanzas; ver Fernán Alfonso de Robles, Dom Pedro de Frias, Dom Álvaro de Luna, Dom Juan II de Castilla.
30. Jean de Beau, Chronique de Richard II; Th. Walsingham, Hist. anglicana, ed. Riley, I, p. 122; The Kirkstall chronicle.
31. Aeneas Silvius, Commentarii Pii Secundi ,XII; Historia Bohemiae
32. Vespasiano da Risticci, Vite di uomini illustri del secolo XV; ver Federico duca d’Urbino.
33. Lodrisio Grivelli, De vita et gestis Francisci Sfortiae Vicecomitis, ducis Mediolani; Giovanni Simonetta, Rerum gestarum Francisci Sfortiae, libri XXXI; Bartolomeo Sacchi (Platina), Historia urbis Mântua; Petrus Cyrnaeus, Commentaríus de bello Ferrariensi.
34. Nicolau Maquiavel, La vita di Castruccio Castiracani da Lucca.
35. Piero della Francesca, Retrato de Federico de Montefeltro, duque de Urbino y de la duquesa Battista Sforza; Andrea Mantegna, afrescos da Camera degli Sposi no castelo dos Gonzaga em Mântua.
36. Benozzo Gozzooli, Adoração dos Reis Magos na capela do Palácio Medici-Riccardi em Florença.
37. Fernán Pérez de Guzmán, op, cit.; ver Dom Pedro de Frias, Dom Pablo de Santa Maria. Hernando del Pulgar, Libro de los claros varones de Castilla; ver Del obispo de Ávila, Del obispo de Códoba, Del obispo de Burgos, Del cardenal de San Sixto, Del obispo de Coria.
38. Vespasiano da Bisticci, op. cit.; ver Cardinale di Santo Sisto, Cardinale Branda, Orlando Bonarli, Arcivescovo di Fiorenza, Giuiino Cesarini, Domenico Capranica, Vescovo di Corone, Vescopo Spontino.
39. The Paston letters, 84, 85, 90, 93, 111.
40. Chaucer, The Canterbury tales. The prologue. Ver infra terceira parte, primeiro capítulo e as notas correspondentes; Ch. Verlinden, L’esclavage dans TEurope Médiévale.
41. Baldessar Castiglione, Il cortegiano; Erasmo, Colóquios, VI; Antonio de Guevara, Menosprecio de corte y alabanza de aldea.
42. Cf. Ph. Dollinger, “Patriciat noble et patriciat bourgeois a Strasbourg au XIVe siècle”, em Revue d’Alsace, t. 90, 1950-51.
43. Castiglione, op. cit., I, xiv.
44. Maquiavel, loc. cit.
45. Marquês de Santillana, loc. cit.
46. Maquiavel, Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, I, iv. Ver Leon Battista Alberti, I libri della famiglia, III, ed. Einaudi, pp. 209-210.
47. Giovanni Villani, Crônica, VIII, 1vi.
48. Eustache Deschamps, Balade sur les financiers.
49. Cf. Dollinger, La Hanse, Paris, 1964, p. 165.
50. Jean Froissart, Chroniques, II, 1v.
51. Chaucer, The Canterbury tales, The tale of the man of lawe.
52. Chaucer, The Canterbury tales, The shipmannes tale.
53. Cf. Dollinger, op. cit., p. 160.
54. Francesco Balducci Pegolotti, La pratica della mercatura.
55. Leon Battista Alberti, I libri della famiglia, Prólogo.
56. Villani, op. cit. IV, xviii.
57. Ver Das Stãndebuch, 114 Holzschnitte von Jost Amman mit Reimen von Hans Sachs, Insel-Verlag zu Leipzig.
58. Chaucer, The Canterbury tales, The prologue.
59. Chaucer, The Canterbury tales, The Prologue.
60. Arcipreste de Hita, Libro de buen amor, 1514.
61. Sacchetti, Novelle, CXL.
62. Villon, Le grand testament, Ballade de bonne doctrine a ceux de mauvaise vie.
63. Villon, Le grand testament.
64. Chaucer, The Canterbury tales, The cokes tale.
CAPÍTULO II
A Nova Sociedade e a Consolidação da Economia de Mercado
Se a nova sociedade havia se constituído de maneira espontânea e desorganizada na euforia do primeiro esplendor da economia de mercado, no período de retração econômica que se seguiu – desde o início do século XIV até a segunda metade do século XV –, ela se viu submetida a tremendas tensões através das quais começou a definir sua fisionomia assim que seus diversos componentes se viram obrigados a ajustar-se às possibilidades reais que lhes eram oferecidas. A nova sociedade, estabelecida em um princípio de mobilidade social, tratou de regularizar esse princípio sem negá-lo e sem que fosse possível suprimi-lo. Em meio a furiosas convulsões, a nova sociedade conseguiu, não obstante, traçar o quadro de sua estratificação e impor limites à mobilidade. Classes altas, médias e populares ficaram claramente situadas nesse quadro, no qual havia limites cada vez mais definidos, sem que por isso faltassem certas margens para a ascensão e queda de classe.
Quando começou novamente a expansão da economia de mercado, na segunda metade do século XV, a nova sociedade estava bastante estratificada e havia sofrido, além disso, uma decisiva transmutação. As mais altas camadas das burguesias urbanas, convertidas em um patriciado local, começavam a ultrapassar os estreitos limites de suas cidades e, à medida que o mercado crescia, o patriciado ampliava sua influência e suas ambições econômicas e políticas. Da transmutação do patriciado urbano nasceram as burguesias das florescentes monarquias territoriais, exatamente quando, graças a estas, começavam a constituir-se mercados fluidos no amplo âmbito de sua jurisdição. Porém, nem sequer os mercados territoriais foram suficientes para a capacidade expansiva das novas burguesias, que era a capacidade expansiva da economia de mercado. Então começou, dentro do processo de expansão, a grande expansão oceânica da qual surgiriam os impérios coloniais. Uma nova transformação ocorreria a partir desse momento, precisamente quando os impérios coloniais se constituíram, quando irrompeu a crise religiosa, quando morriam Leonardo, Maquiavel, Durero e Erasmo.
I. O Desenvolvimento da Economia Urbana
No quadro da economia de mercado, a economia urbana desempenhou um papel primordial. As cidades foram os núcleos da rede que ia abraçando uma superfície cada vez maior e nelas se centralizavam as diversas e complexas operações do tráfico de mercadorias e de dinheiro. Tudo o que acontecia nas diversas partes dos distintos circuitos econômicos repercutia sobre as economias urbanas, mas da mesma maneira, e talvez de modo mais intenso, tudo o que ocorria nas economias urbanas incidia sobre todos os segmentos dos circuitos econômicos que se relacionavam com elas. As cidades foram os cenários visíveis nos quais se desenvolveram as possibilidades da economia de mercado, cujo próprio nome derivava da experiência originária de um mercado concreto, situado na pequena praça de uma cidade em que se confrontavam compradores e vendedores através de um trato do qual resultava o estabelecimento de um preço.
A partir das primeiras décadas do século XIV, as economias urbanas acusaram os primeiros sinais de um processo de retração. Como sempre, os fatores que contribuíram para desencadeá-lo não eram exclusivamente as situações ou os fatos econômicos. Sem dúvida, o mais importante foi que o processo prévio de expansão – entre o século XI e o século XIII – havia chegado a certo limite impossível de transpor, estabelecido por uma relação indefinida entre a produção, a distribuição e o consumo, fases cujas relações recíprocas e cuja mecânica eram praticamente ignoradas e, em conseqüência, incontroláveis. Grupos sociais que buscaram sua emancipação e sua ascensão em atividades mercantis ou artesanais desencadearam a oferta levados pela motivação do lucro e encontraram um mercado consumidor de uma dimensão impossível de avaliar, nem sequer aproximadamente. A partir desse momento, a produção, a distribuição e o consumo se aventuraram loucamente, sem que ninguém notasse que suas relações se auto-regulavam de alguma maneira, sem prejuízo de que se tentasse regulá-las coercitivamente. O que tornou patente o fato de que essas relações existiam e de que seus termos começavam a entrar em conflito foi a experiência. Houve crises de produção, de distribuição e de consumo porque os grupos adstritos a cada setor procederam livremente de uma certa maneira até que suas conveniências ou suas possibilidades os aconselharam a adotar um comportamento diferente. O deslocamento do sistema era inevitável e foi o final necessário da primeira experiência espontânea e livre de um novo tipo de relações econômicas.
A retração percebida a partir do início do século XIV foi, portanto, uma nova metamorfose – a segunda – do processo de organização da economia de mercado. Porém, não foi somente a própria mecânica do processo econômico o que contribuiu para desencadeá-la. Por motivos distintos, os grupos adstritos a cada setor do processo econômico adotaram as novas e diversas formas de comportamento. E todas essas motivações contribuíram para provocar essa retração, que alterou a fisionomia da nova sociedade.
Uma razão fundamental foi o enfraquecimento da onda de crescimento demográfico que havia tonificado o processo de mudança social e econômica desde o século XI. O aumento de população, interrompido até fins do século XIII, cessou nesse momento e as cidades, que haviam tido que alargar o perímetro de suas muralhas, em certos casos várias vezes, ficaram fixas em seus limites físicos ao mesmo tempo em que sua população estancava ou começava a decrescer. Pouco depois, o processo se acentuou, acelerado pela onda de epidemias que começou a assolar toda a Europa. A disenteria castigou vastas regiões desde 1315 e, no ano seguinte, morreram 3.000 pessoas de disenteria em Bruges e 2.000 em Ypres. Outras enfermidades contagiosas – a tuberculose e a varíola, especialmente – recrudesceram por causa das péssimas condições de higiene a que estavam submetidas as populações urbanas, cujo crescimento saturava as cidades e ultrapassava largamente os escassos recursos sanitários de que eram providas. Porém, foi a chamada “peste negra” que teve a maior incidência sobre o desenvolvimento demográfico. Entre 1348 e 1351, a epidemia, proveniente da Ásia, estendeu-se por toda a Europa e ceifou um número tão grande de vidas, adquirindo características de uma verdadeira catástrofe. Em cada lugar, a epidemia foi vivida como um desastre local e provocou crises psicossociais agudas, de que são testemunho as peregrinações histéricas dos flagelantes ou as variadas versões da Dança macabra.1 Porém, o fenômeno não era local nem terminou ao amenizar-se a intensidade da epidemia. Dizimadas as famílias, diminuiu o índice de natalidade. A fome e as enfermidades aumentaram no seio de uma sociedade abalada violentamente pelos estragos iniciais da peste e por suas variadas seqüelas de toda ordem. Deslocou-se especialmente a vida urbana – visto que foi nas cidades onde o flagelo se manifestou com mais violência – e a desorganização dos mecanismos econômicos se propagou por tudo ao longo dos circuitos de distribuição que as cidades controlavam: houve escassez de todos os tipos de produtos, mas sobretudo de produtos alimentícios que, ao longo do processo de urbanização, passaram a depender cada vez mais do sistema de distribuição organizado pelo comércio urbano. Combinados todos os fatores, a crise demográfica adquiriu tal magnitude que se tornaram visíveis a despovoação dos campos e a diminuição das cidades. Entre 1340 e 1450, estima-se que a população da Itália tenha passado de dez milhões a sete milhões e meio; a da Península Ibérica, de nove a sete; a da França e dos Países Baixos, de dezenove a doze; a das Ilhas Britânicas, de cinco a três; a da Alemanha e Escandinávia, de onze e meio a sete e meio; a da Rússia e Europa central, de treze a nove e meio; a da Grécia e dos Bálcãs, de seis a quatro e meio.2 A crise da mão-de-obra acompanhou a desarticulação geral do sistema mercantil que distribuía a produção: a retração econômica era inevitável.
A contribuição de certos fatores sociais e políticos para intensificar a retração não foi menor. A crise criou inflamados confrontos sociais, tanto urbanos como rurais, que multiplicaram os efeitos da retração. Um clima geral de insegurança predominou por todas as partes, destruindo as condições indispensáveis para que prosperasse, ou ao menos para que se mantivesse o sistema de relações econômicas que se havia estabelecido nos últimos anos. Guerras internacionais em cujas entranhas estava a própria crise contribuíram para aprofundá-la, exacerbando seus perfis e suscitando situações inéditas e irreversíveis que modificariam o quadro geral das relações econômicas, sociais e políticas. Quando o século XIV chegou a sua metade, houve uma crise total da nascente ordem feudoburguesa, da qual nasceria um reajuste da nova economia e da nova sociedade. Um vago sentimento apocalíptico predominou em muitos espíritos, como se a transformação estrutural que havia ocorrido na Europa houvesse entrado em colapso definitivo.
Porém, essa transformação estrutural, que já arrastava um processo de três séculos quando a retração começou, resistiu a todas as dificuldades. No quadro do empobrecimento geral, nem todos os setores sociais sofreram da mesma maneira. Ao contrário, a retração, que castigou tão duramente os setores médios e populares e deteve neles o fluido jogo da mobilidade social, favoreceu a concentração da riqueza nas mãos dos setores altos. Aqueles que possuíam um capital e souberam utilizá-lo habilmente nas condições irregulares que foram criadas aproveitaram as oportunidades que as convulsões sociais e políticas, as guerras e, sobretudo, a fome e a escassez ofereciam. Se os chefes dos bandos armados enriqueciam com os saques, os provedores dos exércitos e dos chegados ao poder, ocasional ou estável, beneficiaram-se com inumeráveis negócios ilícitos. Prosperaram os especuladores que se interpuseram no que antes era um jogo mais ou menos organizado e livre dos bens de consumo, os penhoristas mais ou menos usurários que atenderam ao chamado dos que se precipitavam na ruína. Em geral, aqueles que cumpriam funções de intermediação comercial e financeira acusaram o golpe da crise. Porém, os que conseguiram salvar-se por sorte ou pela hábil utilização de recursos ilícitos viram seu lucro aumentar e aproveitaram as desgraças alheias. Houve, portanto, por esses mecanismos anormais, uma concentração de capitais que contribuiu para acelerar o processo de estratificação social: assim se ampliou o fosso que separava os pobres e os que empobreciam dos ricos e dos que enriqueciam.
Diante da redução e do deslocamento geral do consumo, as economias urbanas aproveitaram o incremento de consumo das classes altas, renovadas pela inclusão daqueles que enriqueciam a favor da crise. A concentração da riqueza deu a esse patriciado que crescia e, ao mesmo tempo, se fechava um sólido poder de compra que não só alcançou os produtos correntes, mas também estimulou o mercado de artigos de luxo de diversos graus: prova isso a longa lista de artigos que podemos ver no tratado de Pegolotti e, em especial, a que ele se compraz em fazer das especiarias que podiam ser adquiridas;3 a carne transformou-se em um artigo muitíssimo procurado, assim como as especiarias, os vinhos e tudo o que podia transformar uma mesa em uma ostentação de poder e de riqueza. Indiretamente, a produção rural acusou em alguma medida a influência dessa demanda singular, que se somava à dos produtos tradicionais. E a produção artesanal devia responder às exigências desse novo luxo requerido por aqueles que queriam afirmar sua ascendente e consolidada condição social. Mas não foi somente o patriciado e sua roda de novos ricos aventureiros que sustentaram as economias urbanas. Nas classes médias não faltaram amplos setores que, em diferente medida, conservaram ou aumentaram seu poder de compra. Bons burgueses protegidos por suas poupanças e por sua tendência a evitar os gastos supérfluos – como Alberti aconselhava –4 mantinham um ritmo regular de consumo que satisfazia seu desejo de bem-estar e suas preocupações com o decoro. Uma mesa honesta e uma bela baixela exigiam uma resposta do mercado que ressoasse no mesmo âmbito em que eles exerciam uma proveitosa intermediação. Somente as pequenas classes médias e os setores populares foram, por fim, os que carregaram o peso da retração e os que alguma vez descarregaram sua angústia em exasperadas e inúteis explosões de raiva sem objetivos políticos definidos.
A retração não afetou, portanto, o patriciado, embora alguns de seus membros sofressem pessoalmente a crise. Rico, poderoso, dono do mercado e firme consumidor, o patriciado e, em geral, os mercadores deram às cidades esse ar de esplendor que os viajantes se compraziam em descrever. Philippe de Commynes escreveu, no fim do século XV, que Bruges era um “grande depósito de mercadorias e grande ponto de reunião das nações estrangeiras; e de fato eram despachadas dali mais mercadorias que em nenhuma outra cidade da Europa, e seria um prejuízo irreparável se fosse destruída”.5 Por isso, havia se dirigido até ela – vários decênios antes, no momento de seu máximo esplendor – Dom Pero Menino quando chegou, no comando da armada castelhana, ao porto de L’Ecluse: “De lá, o capitão foi para a cidade de Bruges, que fica a seis léguas de distância. Ali estavam muitos mercadores de Castela, que lhe prestaram muitas honras e serviços. Ali o capitão comprou panos e armas, jóias, e voltou para a Esclusa.”5 A mesma impressão ou uma impressão semelhante causavam Veneza, Gênova ou Florença; Barcelona, Bordeaux ou Toulouse; Lisboa, Londres ou Lübeck; Colônia, Munique ou Nuremberg. Nelas não faltavam setores sem posses nem classes médias de reduzidos recursos. Mas davam o tom à cidade os grupos florescentes que haviam consolidado sua riqueza e a ostentavam não só na vida privada, mas também na vida pública, escolhendo ricos edifícios para as corporações, suntuosas residências particulares e igrejas imponentes. E, embora o patriciado tivesse que suportar a revolta dos ofícios e às vezes da plebe, ele superou as dificuldades e recuperou seu papel de hegemonia ao longo do tempo. Giovanni Villani fez um quadro brilhante e documentado do esplendor de Florença no final da primeira metade do século XIV.6
Os mercadores não gozaram de muito prestígio aos olhos de certas testemunhas de suas operações, sobretudo quando estas testemunhas arrastavam certos preconceitos tradicionais. Um grande senhor castelhano, Pero López de Ayala, os criticou duramente; mas, ao fazê-lo, deixou uma descrição vivaz da economia de mercado tal como ela veio a funcionar na segundo metade do século XIV.7
Pois, o que poderia dizer dos mercadores aqui?
Se eles têm esse ofício para poder enganar,
Jurar ou perjurar, em tudo sempre mentir,
Esquecem-se de Deus e da alma, nunca cuidam de morrer.
Em suas mercadorias há muita confusão,
Mentira e há engano e há má confissão,
Deus lhes queira valer ou que tenham seu perdão,
Que quanto eles não deixam dão conta por bordão.
Certa vez pediram cinqüenta dobras por um pano,
Se virem que estais duro ou entendeis vosso prejuízo,
Diz: por trinta eu vos dou; mas nunca ele prove no ano
Se não lhe custou quarenta ontem de um homem estranho.
Diz: eu tenho tecidos escarlates de Bruges e de Malinas,
Há vinte anos nunca foram tão finos nesta terra;
Diz: tomai-os vós, senhor, antes que uma de minhas sobrinhas
Leve-nos de minha casa, pois elas têm fome canina por eles;
Se vós tendes dinheiro, se não pegais a prata,
Que em minha loja fareis boa troca.
O coitado que acredita nele uma vez a ele se liga
Através fica caído se não olhar adiante.
Se não se contentam por uma vez em dobrar
Seu dinheiro, mas querem aumentá-lo três vezes.
Diz: corremos perigo, na terra ou no mar.
Que nos faz agora o rei outros dízimos pagar.
Nunca confessam a verdade, assim foram acostumados,
Sempre parece pequeno o pecado que é usado;
Mas com outra visão julga aquele juiz ilustre
Que nas intenções nada lhe é ocultado.
Juram a Deus falsamente, isso a cada dia,
Mal lhe passam ali os Santos e Santa Maria,
E com todos os diabos têm feito confraria
Tanto que no mundo triplicam a quantia.
As varas e as medidas, Deus sabe quais serão,
Uma mostraram longa e com outra mediram.
Tudo é mercadoria, não entendem que nisso eles
Não têm nenhum pecado, pois que assim sempre o dão.
Se são coisas que a peso irão vender,
Para que pesem mais suas coisas, artes vão fazer.
Em outros pesos suas almas haverão de padecer Se
Deus por sua graça não os quiser defender.
Na antiga lei proíbe isso Nosso Senhor,
Nunca terás dois pesos, um pequeno e outro maior,
Se de outra forma o fazes, eu serei corregedor
E com sanha muito grande restituirei por esse erro.
Se quiseres prazo o preço dobrará:
O que um dá por cinqüenta, cem lhe pagarás.
Disso logo bem guardado com eles obrigarás,
E se o dia passar juros lhes outorgarás.
Ainda enganam o coitado do comprador,
Mostrando-lhe uma coisa e dando-lhe outra pior;
E dizem na primeira: isto mostrei, senhor,
Se não ele nunca irá velar Rocamador,
Deixam escuras suas lojas e pouca luz lhes dão,
Por Bruges mostram e por Malinas, Ruão;
Os panos violeta, vermelhos parecerão;
Ao contar o dinheiro, as janelas abrirão.
Segundo o Evangelho de Nosso Senhor parece
Que a quem quer fazer o mal sempre a luz odeia;
E como anda nas trevas, vê-las sempre merece
E com o chefe delas o tal pecador perece.
Por mal de nossos pecados a cobiça já é tanta
Que de fazer tais obras ninguém se espanta,
Nem sabem onde mora Deus, nem ainda santo nem santa.
Melhor paga a quota da despesa quem em tais bodas canta.
Bastantes perigos vejo em todos os nossos estados,
De qualquer modo que sejam ainda são ocasionados.
Prestes a fazer o mal ou do bem muito afastados
Em que pecam os muito simples e perecem os letrados.
De outra origem, um preconceito semelhante levou Erasmo, mais de um século depois, a vilipendiar os mercadores com palavras mordazes: “A mais louca e desprezível de todas as classes humanas – escrevia – 8 é a dos mercadores. Ocupados sem parar com o vil amor pelo lucro, usam os meios mais infames para satisfazê-lo. A mentira, o perjúrio, o roubo, a fraude, a impostura preenchem sua vida inteira; apesar disso, acreditam que seu ouro deve fazê-los passar-se pelos primeiros de todos os homens; e há bastantes frades aduladores que não se envergonham de dar-lhes em público os títulos mais honrosos para conseguir ao menos uma pequena parte de um bem tão mal adquirido.” Porém, não é essa a opinião da sociedade urbana em geral. Tanto os grandes como os médios e pequenos mercadores compartilhavam vícios e virtudes com o resto da nova sociedade urbana. Todos tinham um novo código de comportamento cujas prescrições se fundavam na reconhecida validade e legitimidade do lucro, para cuja consecução os preceitos da antiga moral haviam perdido a vigência. A tortuosa habilidade dos mercadores correspondia à fina astúcia do intermediário e às maldosas mãos do trapaceiro. Porém, nessa corrida inescrupulosa atrás do lucro que permitiu e estimulou a originária expansão do mercado, a posterior retração econômica forçou a tendência de regulá-la por meio do poder político ou das mesmas forças econômicas organizadas corporativamente.
Sem dúvida, o mercado urbano havia descoberto os mecanismos elementares da oferta e da procura, isto é, a regulação automática dos preços pelo acordo negociado de compradores e vendedores.
E é verdade também que, desde o princípio, o poder político havia procurado interferir no livre jogo daqueles, tratando de tirar alguma vantagem do tráfico comercial que era realizado dentro de sua jurisdição. Porém, a retração econômica intensificou essa última tendência, fosse pelo deslocamento que se manifestava no mercado por causa de seu jogo descontrolado, fosse pela vigorosa pressão de uma crise que se manifestava através da escassez, da desocupação e da fome. A resposta das corporações e do poder político foi uma tentativa de submeter o mercado a regulações coercitivas. E, em inumeráveis cidades, um amplo conjunto de medidas – umas de emergência, outras supostamente estáveis – começou a ser estabelecido para resolver não só os problemas econômicos, mas também os problemas sociais que a retração e o deslocamento do mercado traziam consigo.
Em um ambicioso plano, pretendeu-se regular as modalidades da produção; não tanto com relação à produção rural mas quanto à produção artesanal. Apenas certas matérias-primas – certa lã, por exemplo – podiam ser elaboradas pelos tecelões. Apenas os produtos artesanais que cumprissem certos requisitos podiam ser colocados à venda, sob a responsabilidade às vezes dos organismos corporativos, outras vezes do poder público. Vinhos de Bordeaux, pastéis toulouseanos, vasilhas de Dinant, sedas de Nápoles e logo de Lyon, tecidos de lã de Flandres e mais tarde da Inglaterra foram, entre outros, produtos que mereceram a cuidadosa atenção, tanto das corporações como do poder público, para assegurar o controle de qualidade, em defesa tanto do mercado interno como do externo. E, se o mercador enganava seu cliente oferecendo uma coisa por outra, essa era uma modalidade de compra e venda que só podia ser feita, precisamente, porque, quando se falava de armas de Milão ou de tecidos de Ypres atraía-se maliciosamente a atenção do comprador, predispondo-o a aceitar o que se oferecia com essa garantia.
Muitas cidades procuraram regular também a compra e a venda. Em alguns casos, outorgaram o monopólio a algumas corporações e outras o combateram, de acordo com as circunstâncias e os interesses em jogo. Mantiveram sua jurisdição sobre a habilitação de feiras e mercados e preocuparam-se com a exatidão de pesos e medidas. A rigor, nenhum passo da atividade mercantil ficou sem controle através de disposições diversas e reiteradas que atribuíam, umas vezes às corporações e outras vezes ao poder público, uma função de polícia sobre tudo o que fosse indústria e comércio, porém, muito especialmente, sobre os produtos alimentícios, entre os quais o pão e a carne mereceram atenção especial. A função de polícia significava a inspeção de depósitos para comprovar se os produtos se acumulavam, a vigilância da qualidade e, sobretudo, o controle dos preços. A retração econômica generalizada mas, sobretudo, os fenômenos locais e circunscritos de escassez em determinado momento originaram tremendos aumentos de preço que obedeciam não só a causas justificadas, mas muito mais ã especulação desenfreada. Não é estranho que, em meados do século XIV, Matteo Villani, burguês florentino, se ocupasse com a carestia dos produtos alimentícios, o que fez também o clérigo que escreveu o Journal d’un bourgeois de Paris, referindo-se aos primeiros anos do século XV; porém, é significativo que uma crônica senhorial como a do rei castelhano Afonso XI se detivesse no mesmo tema.9 A resposta às ondas de carestia foi o estabelecimento de reiteradas disposições regulando os preços, umas vezes através de organizações corporativas e outras através do poder público, sem prejuízo de obrigar a vender, pelo valor estabelecido, aqueles que ocultavam os produtos e especulavam com a fome e a necessidade.
Correlativamente, os salários também foram submetidos à regulação. Fixados, enquanto foi possível, de acordo com a oferta e a procura de mão-de-obra, sempre haviam sido manejados, não obstante, dentro dos limites impostos pela vigorosa decisão dos patrões. No setor das manufaturas e indústrias, sobretudo, sua influência era decisiva não só nas corporações, mas também no mercado de contratação. Foi precisamente nesse setor que mais se fez sentir a falta da mão-de-obra como resultado tanto da crise demográfica como da retração econômica. A tendência dos assalariados foi de exigir pagamentos mais elevados; porém, quando alcançavam um nível que comprometia as possibilidades do consumo e, sobretudo, as margens de lucro dos patrões, as corporações ou o poder público intervinham para obrigar os que vendiam seu trabalho a manter os antigos salários, apesar do tremendo aumento que havia sofrido o custo de vida. Inumeráveis disposições gerais, como o Ordenamiento de menestrales instituído pelas Cortes castelhanas em 1351, foram ditadas para comprimir os salários. Em várias correções introduzidas, entre 1377 e 1380, no Statute of labourers ditado na Inglaterra em 1351, as restrições impostas ao salário rural tornaram-se extensivas aos artesãos. E também em 1351, João II da França ditou a Ordonnance que legislava sobre os salários. Muitas disposições locais impuseram a mesma política em diversas cidades.10
Vítimas da pressão exercida pelos empresários e pelo poder público, os trabalhadores às vezes reagiram com violência. Houve greves e motins em muitas cidades; algumas vezes esses movimentos eram parte de um plano político, e os profissionais chegaram a tomar o poder em algumas delas: Gent, Colônia, Estrasburgo e muitas mais.
Outras vezes, embora fazendo parte de um plano político, os esforços dos profissionais só serviram para ajudar os projetos de algum nobre ambicioso, como no caso da revolução de Gualtieri di Brienne em Florença, em 1342, ou no da révolution cabochienne promovida em Paris em 1413 ao calor das ambições do duque de Borgonha, João sem Medo.11 Porém, o patriciado recuperou suas forças e retomou o poder em todas as partes. Mais ainda, a explosão popular acentuou a diversificação social e a distância entre os grupos sociais.
Essa tendência foi percebida através de uma política metódica e sustentada de regulação do trabalho. Nascidas sob um signo igualitário, as corporações foram se estratificando e, pouco a pouco, a posição do mestre foi se separando da do resto dos componentes, companheiros e aprendizes. Os requisitos necessários para alcançar a maestria tornaram-se cada vez mais inacessíveis e a produção da “obra-prima” viu-se cercada de dificuldades crescentes. Como em muitos outros casos, em 1o de abril de 1350, o grêmio dos fanqueiros de Liege resolveu que somente os mestres tinham direito de voto na instituição, ficando os artesãos dependentes reduzidos à vontade deles. Foi um fenômeno geral e mais uma resposta aos impactos da retração. Reduzida a demanda, decantado o consumo, a seleção dos sobreviventes da crise foi concentrando o poder nas mãos de uns poucos.
Também foram se concentrando em poucas mãos as organizações constituídas para desenvolver certas atividades econômicas em uma escala maior que a permitida pelas possibilidades pessoais de um comerciante ou industrial. Verdadeiras empresas foram montadas com capitais consideráveis e destinadas a integrar um ciclo de produção ou a explorar um setor comercial em condições de alta rentabilidade. O proprietário ou a sociedade centralizavam a direção, e o desempenho das diversas tarefas correspondia a um pessoal mais ou menos extenso. A condução econômica seguia a evolução dos negócios por meio de uma contabilidade cuidadosa, ajustada desde o início do século XIV ao método da divisão dupla que Luca Pacioli descreveu escrupulosamente em 1494.12 E, graças a essa concentração de capitais e de esforços, as sociedades ou empresas adquiriram uma força crescente no mercado.
Onde melhor se percebeu a importância desse modo de operar foi no âmbito do comércio internacional, acerca do qual deixaram um vasto panorama em seus tratados sobre o comércio Pegolotti, Uzzano e Chiarini.13 Com o tempo foram estabelecendo-se circuitos regulares que integravam zonas de economia complementar. A Hansa germânica, cujo centro ficava em Lübeck, constituía uma associação livre de cidades que abarcava os principais portos do Báltico, do Mar do Norte e do Atlântico. Entre eles circulavam regularmente produtos do norte e do sul, por conta de grandes comerciantes que tinham sua sede em alguma das cidades associadas e se valiam da organização para suas exportações e importações. A Hansa estabelecia regulações estritas, mas oferecia em troca segurança e importantes garantias a seus membros. Os depósitos instalados nos diversos portos gozavam de uma proteção que a organização havia gerido em cada lugar com todo o peso da autoridade que lhe dava o volume de suas operações, capazes de ativar e canalizar a vida econômica da região. O tráfico consistia em matérias-primas – grãos, lãs, madeiras, metais, peles, sal, pescado – e em produtos manufaturados – azeites, vinhos, tecidos, objetos. Grandes somas de dinheiro eram mobilizadas nesse comércio, organizado por uma ampla rede de agentes e representantes, em comunicação permanente através de uma correspondência regular que mantinha em dia a informação de todos sobre a produção, os preços e as condições do mercado.
Em outros setores a atividade não era menos intensa. O Reno servia de comunicação para as cidades que ficavam às suas margens, desde Colônia até a Basiléia. O sul da Alemanha – Nuremberg, Munique, Augsburgo, Ravensburg – voltou boa parte de sua economia para o tráfico com a Itália através da passagem do Brenner que levava a Veneza. A Inglaterra se vinculava com o continente por meio de seu staple, instalado por muito tempo em Calais e, às vezes, em Bruges ou em Amberes e no qual atuavam os comerciantes de lã. As casas centrais formavam o núcleo de uma extensa rede de agentes ou factores, através da qual circulavam as ordens para agir, as notícias e o dinheiro, esse último substituído muitas vezes pelas letras de câmbio e por outros mecanismos bancários que diminuíam os riscos.
Porém, o comércio mais intenso e talvez o mais bem organizado foi o do Mediterrâneo. Poderosas casas comerciais instaladas em numerosas cidades – interiores ou portos – estendiam suas operações por todo o seu âmbito, movimentando um grande volume de mercadorias e grandes quantidades de dinheiro. Gênova e Veneza foram as metrópoles mais poderosas dessa espessa rede, mas eram muitas as cidades cujo comércio, embora menor que o daquelas, alcançou um alto grau de desenvolvimento. Como o da Hansa, esse comércio cobria zonas de produção diversa e com demandas diferentes. Por Ragusa e Salônica introduzia-se nos Bálcãs; por Trípoli ou Alexandria, no norte da África; por Famagusta, no Chipre; por Varna, Moncastro ou Cafa, no mar Negro; por Chios, na Ásia Menor; por Beirute, na Síria; e a partir dessas zonas se entroncava com outros circuitos comerciais que recolhiam ali produtos de regiões remotas do Oriente. Porém, não era menos freqüente e intenso o comércio entre os portos da costa européia, entre os quais circulavam os produtos da Itália, França e Espanha. Uma estreita comunicação assegurava o desenvolvimento das atividades comerciais, a que prestava apoio uma eficiente organização de seguros contra riscos. E a atenção vigilante das atitudes que o poder público manifestava em cada mercado permitia enfrentar os problemas suscitados pela diversidade de jurisdições políticas.
Tratados e acordos entre estados podiam facilitar a tarefa dos mercadores que se moviam no âmbito internacional. Para alguns, não obstante, a tentação de resolver as situações contrárias a seus interesses pela força foi muito intensa. O aperto de um mercado que resistia a entrar na esfera de influência de um foco de poder econômico próximo e vigoroso costumava originar uma guerra puramente comercial, ainda que às vezes fosse dissimulada com outros pretextos. Requeria-se apenas que um centro de poder econômico fosse, ao mesmo tempo, um foco de poder político e militar. Se isso não acontecia, era possível buscar ou negociar uma aliança. Fruto dessa estratégia foram as inúmeras guerras nas quais a economia urbana ficou cada vez mais presa na rede dos poderes territoriais, senhoriais ou monárquicos. Preocupadas com seu porvir econômico tanto como com o predomínio de alguns grupos sociais sobre outros, as cidades flamengas, e também de outras regiões dos Países Baixos, entraram como elementos secundários na guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França e, finalmente, foram submetidas ao duque de Borgonha e logo ao imperador da Alemanha. Amplas lutas comerciais sustentaram as cidades italianas, que levaram a Espanha e a França a disputar a hegemonia sobre toda a Itália. Foi o comércio hanseático que conseguiu manter-se mais alheio às pressões políticas e militares, sem dúvida porque seus centros nevrálgicos eram desprovidos de poder.
Mas o fato é que o comércio hanseático declinou, precisamente porque não pôde incluir-se de maneira definida em uma área de poder político e teve que fazer frente aos problemas de todas, tanto que o de muitas outras cidades prosperou integrando-se nas novas áreas de poder territorial centralizado que se configuravam então. Do mercado urbano procurou-se passar, pouco a pouco, a um mercado nacional; e desse, ao âmbito da expansão que o estado tinha condições de oferecer, de acordo com sua influência e seu poder. Quando a concentração de capitais e o crescimento de seu volume sugeriu a possibilidade de aventuras ainda mais ousadas, surgiu o desígnio de explorar novas rotas em busca de mercados ou de fontes de matérias-primas. Os irmãos Polo, venezianos, percorreram a Ásia em busca das fontes nas quais se abasteciam mercadores árabes para quem serviam de intermediários, enquanto castelhanos e portugueses procuraram sua expansão no Ocidente. Assim, eles chegaram às ilhas Canárias e aos Açores. Os portugueses percorreram toda a costa africana para alcançar as terras do oceano Índico, enquanto os castelhanos persistiram na rota ocidental, até que chegaram ao continente americano, do qual tomaram posse, exceto pelas terras brasileiras, que foram ocupadas por Portugal. Ao constituírem-se os grandes impérios coloniais, foram traçadas imensas áreas políticas que também eram áreas econômicas. De acordo com a tradição cosmopolita e protecionista da economia urbana em primeiro lugar e da nascente economia nacional depois, essas áreas econômicas foram como um prolongamento do mercado nacional do país imperial. Mas, direta ou indiretamente, cresceu desmesuradamente o âmbito do mercado tradicional europeu, impondo uma nova escala a um tipo de atividade econômica que, não obstante, conservou as mesmas características. Projetadas em maior escala, essas características tornaram-se cada vez mais definidas e pouco depois puderam ser identificados e reconhecidos os mecanismos do que se chamaria o capitalismo mercantilista.
Por mais complexos e variáveis que pudessem ser os mecanismos estritamente comerciais, vinculados estreitamente às alterações da sociedade que se movia ao redor tanto dos mercados locais como do mercado geral, muito mais obscuros e inacessíveis foram durante muito tempo os mecanismos financeiros que o desenvolvimento comercial foi criando. Em algo contribuiu, indubitavelmente, o escasso conhecimento desses mecanismos, para que se produzisse a retração do início do século XIV, e não é uma coincidência que nesses anos as grandes casas italianas que haviam deitado as bases do sistema bancário internacional quebrassem; os Scali em 1327, os Bonnaccorci, os Usani, os Corsini em 1341, os Peruzzi, o Acciaiuoli, os Bardi em 1343. Giovanni Villani, atento observador do desenvolvimento econômico de Florença, lançou o mais dilacerante lamento diante da catástrofe financeira de sua cidade e apontou a responsabilidade dos banqueiros que haviam confiado seu dinheiro e o de seus clientes ao rei e aos senhores para financiar suas tresloucadas aventuras, estendendo-se em considerações morais e políticas e atribuindo tanto à consciência de uns como ao mau governo de outros a quebra das grandes casas bancárias da cidade.14 Porém, sua interpretação era inexata. Algumas dessas casas datavam do último terço do século XIII e haviam feito volumosos negócios. Operavam em diversos mercados acompanhando o curso do comércio internacional e se apoiavam em cada caso no poder político para facilitar e aumentar seus negócios: não é casual que os príncipes ingleses que foram lutar com Afonso XI de Castela quando esse cercou Algeciras, “desde que chegaram a Sevilha, foram à casa que a companhia dos Bardi tinha em Sevilha”.15 Os Frescobaldi atuavam na Inglaterra desde 1277 e muitos outros buscaram melhores horizontes sob a proteção de outros príncipes. Uma rede de agentes controlava e diligenciava as operações de crédito, movimentando polpudas somas de dinheiro. Porém, os banqueiros não financiaram somente as aventuras políticas e militares de reis e nobres. Muito mais que isso, a base de sua atividade foi menos perigosa e talvez menos rentável, visto que consistiu em operações de crédito relacionadas com a atividade comercial e industrial, tanto na área local como no âmbito internacional.
Organizado no calor da expansão econômica, o sistema de crédito desenvolveu-se de acordo com sua dinâmica: de início nunca parecia excessivo o risco e sempre parecia tentador o lucro. No processo de progressiva abertura de novos mercados, de exploração de novas riquezas, de incorporação de novas atividades, a imagem dos limites da expansão não se apresentou para os que se lançavam a essas aventuras até que os fatos se impuseram. Foram os fatos – e não as previsões – que mostraram as margens de confiabilidade que reis e senhores ofereciam, sempre seguros de poder sobrepor-se à penúria econômica, lançando o peso do poder sobre as atividades do mercado. Reis e banqueiros ignoravam igualmente os mecanismos que regulavam as relações entre mercado e poder. E foram os fatos que mostraram que a expansão tinha certos limites, precisamente quando eles haviam sido alcançados.
A retração econômica pôs fim à primeira aventura do crédito. Porém, no sistema ajustado à nova situação que foi se formando em meio à crise, o crédito voltou a encontrar seu papel e começou a se organizar de acordo com a experiência adquirida. Em 1380, Joseph Hompys fundou a Grosse Ravensburger Gesellschaft; em Florença, Giovanni di Bicci de Medici organizou definitivamente em 1397 o que seria a casa Medici; em Gênova foi constituída em 1407 a Casa di San Giorgio; em 1410 Ludovic de Ballionibus e Gérard de Boeris, ambos italianos, fundaram uma casa bancária em Lübeck, à qual sucedeu, depois de sua liquidação em 1449, a que o lubequês Godeman van Buren fundou. Com ele desenvolveu-se uma nova etapa do negócio do dinheiro e do crédito, mais ajustada à experiência comercial e financeira obtida nas difíceis circunstâncias da retração. Porém, nem por isso deixaram de atuar com as fortes monarquias que se consolidavam. Fizeram-no aquelas casas bancárias e as que foram sendo fundadas quando uma nova era de expansão começou na segunda metade do século XV. Surgiram, então, em Florença os Pazzi, os Ruccelai, os Strozzi e, mais tarde, os Frescobaldi e os Gualterotti; os Chigi em Siena; os Grimaldi em Gênova. Todos acompanharam o curso dos negócios em sua própria cidade e também o fluxo das importações e exportações nos mercados mundiais; porém, nenhum desdenhou o trato com as grandes potências, apesar do risco, não só por causa dos benefícios diretos que podiam obter, mas também devido aos privilégios que a função de banqueiro do rei podia alcançar, de forma explícita ou não. Mas os mecanismos de crédito já eram mais conhecidos; os riscos, menores; e as garantias, mais seguras. As operações eram mais diversificadas por meio de vários mercados, nos quais os agentes das casas bancárias mais importantes cumpriam as ordens que emanavam do centro de operações, onde se valorizava constantemente a economia internacional. Cada agente desenvolvia, portanto, as tarefas dentro de um plano geral no qual se levavam em conta todas as oportunidades e todos os riscos. Bruges, Londres, Amberes, Lyon, Milão, Avignon, Genebra eram, entre outras, praças importantes nas quais, todavia, não havia surgido um banco local; mas os agentes dos bancos internacionais operavam incorporando essas cidades e suas áreas de influência em um sistema financeiro cada vez mais intercomunicado.16
Um instrumento dessa intercomunicação era, naturalmente, a moeda. Depois de sua febril utilização para manobras fraudulentas, que alimentavam uma ilusão ingênua de rápido enriquecimento por parte de quem a cunhava, as cidades de economia mais sólida e de mais responsabilidade no tráfico internacional haviam começado a cunhar moedas de ouro em meados do século XIII. Antes, em 1231, haviam começado a circular as “augustais”, impostas no sul da Itália por Frederico II. Mas foram o “genovino” – Gênova, 1252 –, o “fíorino” – Florença, 1252 o “ducado” – Veneza, 1284 – e o “ambrosino” – Milão, princípios do século XIV – que impuseram o padrão ouro para o comércio internacional. Contudo, a moeda de prata não desapareceu e se iniciaram todas as complicações do bimetalismo, às quais se somou a persistente tendência à desvalorização cada vez que as circunstâncias se tornavam críticas. Mas a moeda de ouro, destinada sobretudo ao tráfico internacional, impôs-se sobretudo por causa da posição vantajosa dos países cristãos com respeito à área muçulmana e bizantina quanto ao volume comercial. A Boêmia adotou a moeda de ouro em 1325; e a Inglaterra, em 1344; e nos mesmos anos o fizeram as diversas áreas dos Países Baixos e de Castela. Entretanto, outras formas de pagamento se desenvolveram no comércio internacional. A generalização do uso da letra de câmbio facilitou os mecanismos cambiais restringindo o transporte de dinheiro. Porém, à medida que se acentuava a reativação econômica, viu-se que o volume do ouro existente era exíguo com relação às exigências do comércio internacional. O aumento da produção de prata no fim do século XV não pôde acalmar o que se chamou “a fome de ouro”. A descoberta das inesperadas riquezas metalíferas da América foi o que mudou substancialmente a estrutura financeira da Europa nas primeiras décadas do século XVI.
Por meio desse progressivo ajuste e aperfeiçoamento dos mecanismos do mercado urbano e do sistema financeiro, foi-se definindo desde a segunda metade do século XIV uma atitude econômica cada vez mais original e diferenciada da que era tradicional na economia senhorial. Enquanto nessa última era o sistema produtivo o que impregnava a estrutura social, a nova economia se organizava com base no sistema de intermediação montado sobre uma crescente concentração de capitais nas mãos de quem manejava o comércio e o crédito. Coincidiam nesses setores os interesses das altas classes urbanas e do poder político, cuja aliança, baseada na comunidade de interesses econômicos, contrapesava a tradicional aliança do poder político com as classes senhoriais, principais detentoras da terra, que se fundava principalmente na secular comunidade de interesses de reis e senhores e em sua atávica co-participação no poder. Muito lentamente os papéis começavam a se inverter e começou um longo e obscuro duelo entre as burguesias e a nobreza pelo ascendente poder real. Sem dúvida, a posse da terra continuou sendo durante muito tempo um fator decisivo na economia; mas, se antes era o único fator, agora era confrontado por outro que atuava de uma maneira diferente e revolucionária com respeito à estrutura tradicional: o dinheiro, que pouco a pouco se constituía como capital e, em conseqüência, como meio de produção. Não importava que as classes capitalistas se constituíssem às vezes misturando membros da nobreza e da burguesia; foi essa última a que impôs pouco a pouco sua nova concepção econômica ao conjunto. E quando os burgueses se transformavam em proprietários terratenentes – obtendo com isso às vezes o acesso formal à nobreza – transferiam à economia agrária sua maneira de entender a atividade econômica, orientada para o mercado e atenta a suas exigências.
O traço fundamental da nova economia foi uma tendência precoce à concentração de capitais, o que pôs o manejo dos meios de produção e, sobretudo, o controle comercial e financeiro em um número cada vez mais reduzido de mãos. Aqueles que conseguiram dessa maneira o maior poder econômico procuraram conservá-lo e aumentá-lo. Tentaram determinar com clareza quais eram seus objetivos e quais os melhores meios para alcançá-los, valendo-se do crescente conhecimento dos mecanismos do mercado que lhes dava uma ampla experiência acumulada. Talvez os que então se atreveram a falar de maneira teórica sobre as atividades econômicas não conseguissem discriminar analiticamente os conteúdos dessa experiência para extrapolá-los em um quadro doutrinário. Os esforços de Nicolás de Oresme,17 ainda que notáveis, não ultrapassaram alguns aspectos superficiais do problema, nem alcançaram suficiente projeção as reflexões de Leão Battista Alberti, e menos ainda as de Pace de Certaldo.18 Em contrapartida, comerciantes e banqueiros sabiam mais, ainda que não fossem capazes de formular doutrinariamente seu pensamento nem tivessem, talvez, interesse em fazê-lo. Um esforço constante por estabelecer as causas concretas dos fenômenos e seu mecanismo levou-os a racionalizar sua atividade, não só traduzindo suas operações em termos aritméticos e contáveis, mas, sobretudo, programando sua ação, calculando os efeitos dos diversos passos que podiam ser dados, projetando sua atividade imediata a médio e longo prazo. Esse esforço de racionalização terminou configurando uma atitude que se opunha à espontânea inflexibilidade que havia predominado na época da primeira expansão. Como conseqüência evidente da experiência, foi constituindo-se um esquema racional da vida econômica que se transformou, pouco a pouco, em um axioma da conduta do homem de negócios: sua expressão foi a empresa.
Por mais importante que fosse a capacidade individual do mercador, sua iniciativa, às vezes clarividente e audaciosa, estava limitada por suas possibilidades pessoais. Foi um esforço – e uma conquista – da racionalização da atividade econômica transpor o sistema operativo de um homem para uma organização suprapes-soal. Assim nasceu a empresa, organização funcional em que um plano de amplo alcance podia ser realizado mais além das forças e dos recursos de seu criador. A empresa comercial e financeira nasceu espontaneamente, mas pôde prosperar na medida em que se aplicou ao conjunto de pessoas que colaboravam nela um princípio racional de organização. Os objetivos foram fixados por uma pessoa ou um grupo diretor e muitas pessoas foram indicadas para a realização de cada um dos passos ou para cada uma das funções que o cumprimento desses objetivos requeria. A contabilidade foi o instrumento dessa organização. Porém, o importante foi a determinação de certos fins a que aspirava a empresa e que abriam um horizonte novo na medida em que a organização supria as limitações práticas de quem a projetava. Só assim se pôde relevar a retração econômica, ultrapassá-la e preparar os caminhos para uma nova etapa de expansão. Um exame da organização das casas dos Medici ou dos Fugger ilustra e esclarece a transcendência desse sistema operativo, capaz de acompanhar o processo econômico introduzindo nele, por meio de atos deliberados, as variantes que lhe injetariam uma crescente potência e que lhe abririam novas perspectivas.19
Resolvidos a aceitar as condições da realidade, os que procuraram encaminhar as atividades econômicas através das turbulências da época de retração admitiram, como um fato irreversível, que não podiam desenvolver-se fora da órbita da política. A rigor, mercadores e banqueiros haviam experimentado esse condicionamento desde o início de sua atividade, em plena expansão. O poder — real, senhorial ou municipal – não só descobriu que podia obter um benefício imediato impondo tributos à atividade mercantil ou industrial, mas também que podia alcançar outros mais importantes e a mais longo prazo se conseguisse orientar a atividade econômica em um sentido coincidente com seus interesses políticos. Talvez a burguesia mercantil vacilasse algumas vezes sobre se convinha ou não aceitar essa tutela, mas, em geral, admitiu que as vantagens eram maiores que os inconvenientes. Quando pôde, ela mesma se transformou em poder político, como o fez nas cidades mais ou menos autônomas, para apoiar as atividades econômicas com ele. Porém, quando o mercado urbano transcendeu suas fronteiras locais, percebeu que devia aceitar a tutela e as diretrizes do poder político ali onde queria atuar e começou a negociar sua participação, sabendo que, se o apoio a ele podia beneficiá-la, permitindo a ampliação de suas operações, também as atividades das burguesias mercantis favoreciam o poder político, aumentando sua capacidade financeira em termos imprevisíveis.
Os interesses se travaram. As burguesias mercantis e o poder político territorial se buscaram e se rechaçaram, estabeleceram pactos, cumpriram-nos e os violaram, e voltaram a fazê-los, talvez alterando-se as partes contratantes. O poder político costumava impor suas decisões sobre a economia, mas sempre se podia descobrir por trás dele um grupo econômico que o inspirava e lhe ditava essas decisões. Assim se foi configurando a política econômica do mercantilismo, protecionista, monopolista e programada de tal maneira que concorreram com ela os interesses inseparáveis daqueles que exerciam a atividade econômica e daqueles que detinham o poder, ainda que esses últimos conservassem em outros aspectos tendências senhoriais e reconhecessem a gravitação da nobreza latifundiária. Na corte de Carlos VII da França, Jacques Coeur, “argentier du roy”, desempenhava sem dúvida o primeiro papel como agente financeiro do rei, paralelamente aos que desempenhavam Dunois e Brezé, ainda que não fosse seu o primeiro lugar na ordem da precedência cortesã.20
Quem estivesse mais perto do poder político, mais proveito tiraria dessa interação entre o governo e os negócios. Sócio de um rei ou de um grande senhor, o mercador tinha sua fortuna assegurada. Porém, os que não gozavam desse privilégio e só desfrutavam da proteção que o poder outorgava àqueles que atuavam dentro dos limites fixados por ele também obtinham considerável proveito, de acordo com a magnitude de seus negócios, sua habilidade e sua sorte. Sobre os negócios de todos, o poder protetor ganhava de alguma maneira: a parte maior, se no trato intervinha diretamente quem o detinha; e uma parte importante em seu conjunto através da arrecadação fiscal.
O desenvolvimento da fiscalidade marchou ao compasso da formação de um poder político forte fundado em suas relações objetivas com a sociedade – que prenunciava o Estado moderno – tal como se insinuou nas comunidades independentes e em alguns estados territoriais: na Inglaterra e, especialmente, no reinado de Frederico II. Porém, também marchou ao compasso da nova economia. O imposto direto ou talla foi se transformando não só em uma fonte inescusável de renda para o Estado, mas também em um princípio fiscal indiscutível. Impuseram-no tanto as cidades como os senhores territoriais e a Igreja. Porém, por ser discreto, foi aquele em que mais repercutiram as situações sociais. Prevaleceu em algumas partes o princípio de que se exigia o consentimento dos contribuintes; e aumentou o número dos que conseguiram ser isentos dele. Os impostos indiretos, em contrapartida, cresceram em importância e conseguiram mais extenso consentimento, talvez porque refletiam mais exatamente as peculiaridades da nova sociedade e da nova economia. Se o imposto direto recordava os vínculos de dependência pessoal, o imposto indireto funcionava ao compasso da economia de mercado e seus níveis se estabeleciam de acordo com os níveis do lucro ou do consumo. Sem dúvida, a gabela simbolizou a presença do poder político nas atividades econômicas, visto que tirava um determinado produto — em primeiro lugar, o sal – do jogo da oferta e da procura, sujeitando-o a um monopólio. Porém, outros refletiam o jogo normal do mercado. O comércio exterior tributava através das alfândegas, geralmente na instância das importações, mas também na das exportações, se por essa via se instrumentava uma certa política econômica. Fazia-o da mesma maneira o comércio interior, tanto do lado do vendedor, sobre o qual pesavam os direitos de mercado e os impostos das vendas – a alcabala espanhola —, como do lado do comprador, que devia pagar impostos sobre o consumo. Todo o conjunto da tributação dava ao poder político a força não só para operar em sua esfera tradicional, mas também para intervir cada vez mais na vida econômica, na qual começou a ser um dos fatores dominantes.
De qualquer forma, tão importante como foi a participação do poder político na vida econômica, aqueles que a promoviam e impulsionavam, aqueles que descobriram novos horizontes e os exploravam até incorporá-los em sua esfera de ação foram os que compuseram essa classe mercantil, cuja elite era o ativo patriciado urbano que havia feito sua experiência social, econômica e política no âmbito das cidades. Entre eles apareceram os que decidiram ultrapassar os limites a que estavam sujeitos e que começavam a parecer-lhes estreitos e então se ativeram à política dos grandes estados territoriais para ajudar na passagem de sua estrutura feudal a uma estrutura mercantil, que a monarquia começava a entrever como o novo caminho eficaz. Foi uma nova carreira aberta para alguns dos membros do patriciado urbano e, pouco a pouco, para novas gerações de burgueses que, seguindo as pegadas do patriciado urbano, começaram a fazer sua carreira já no âmbito das novas monarquias, desdenhando prejuízos e aceitando a nova condição de cortesãos. Talvez fossem membros de famílias burguesas enobrecidas ou aventureiros afortunados. Ao longo do tempo haviam perdido o orgulho de serem burgueses e buscavam essa posição intermediária que começava a se esboçar, entre a burguesia e a nobreza, visto que na ascensão das burguesias mercantis apenas havia falhado o secular prestígio das classes senhoriais. Quase incólumes a seus privilégios, seguiam predominando nas áreas rurais embora tivessem que suportar algum vizinho recém-chegado, colono enriquecido ou burguês ávido de prestígio que havia gasto parte da sua riqueza na aquisição de uma propriedade rural, de onde pudesse obter não apenas rendas, mas também uma posição social impossível de conseguir em sua atividade tradicional. Lentamente, o mundo rural havia começado a acusar também o impacto da transformação da sociedade e da economia.
II. O Impacto da Economia de Mercado sobre a Economia Rural
Sem dúvida, em algumas das áreas rurais o processo de produção manteve suas características gerais – na Europa central, na Prússia, na Silésia, na Morávia, nos países bálticos –, enquanto em outras essas características foram se alterando pouco a pouco; de qualquer maneira, o impacto das mudanças sociais sobre as relações de produção fez-se notar. Não podia ser diferente. A retração do processo expansivo da nova economia de mercado; a peste negra com seus efeitos múltiplos; em especial a crise demográfica, que decorria, entre outras causas, das guerras internacionais e civis; os conflitos sociais; a pressão fiscal; eram todos fatores que incidiam sobre a vida rural e sobre a economia desse âmbito.
O sistema estava em pé, mas deteriorou-se aceleradamente e só se reconstituiu transformando-se. A crise demográfica produziu uma diminuição considerável da mão-de-obra rural, agravada pela emigração dos camponeses para as cidades, o que corroborou as situações anárquicas que se produziram. Foi inevitável uma luta pela retenção e recuperação de trabalhadores rurais, cuja conseqüência foi o aparecimento de exigências de aumentos de salário que os proprietários de terras aceitaram conceder, embora procurando fazer com que o poder político os compelisse a voltar a seus antigos níveis. Mas a falta de mão-de-obra e a possibilidade de abandonar os campos que os trabalhadores rurais tinham obrigaram-nos a contemplar a nova situação com uma elasticidade que mudou o antigo regime de sujeição. Os vínculos servis se relaxaram e estabeleceram-se novas relações entre proprietários e colonos, muitos dos quais conseguiram sua liberação e começaram uma nova vida como assalariados e, em muitos casos, como arrendatários ou possuidores de pequenas porções de terreno. A crise repercutiu particularmente sobre a fazenda senhorial, cujas explorações ficaram comprometidas tanto pelas alternativas da crise política e social como pelas guerras, mas sobretudo pelo deslocamento do sistema de trabalho.
A crise foi tão intensa que começou a produzir-se uma transformação no sistema de posse da terra. Houve senhores que a perderam e apareceram novos donos de outra condição social. Houve pequenos proprietários que aumentaram seus domínios e houve burgueses que os adquiriram, introduzindo modificações importantes no sistema de exploração. Mas, sobretudo, apareceram camponeses que se converteram em possuidores de pequenos terrenos, produzindo uma estranha variedade no quadro dos donos da terra. A mudança de condição social desses camponeses foi o sinal mais visível da transformação que acontecia em amplos setores dessa classe.
Diversos fatores influenciaram essa transformação. Sem dúvida, foi importante o desenvolvimento de novas áreas de colonização, para as quais se dirigiram os colonos que buscavam novos horizontes em um regime de liberdade. Porém, o mais importante foram as conseqüências da generalização do novo regime de relações servis, a partir da substituição das prestações de trabalho pelo pagamento em dinheiro ao senhor. Desde então, a condição dos camponeses tendeu a melhorar, em prejuízo dos senhores. As somas foram fixadas pelo costume; mas a inflação trabalhou a favor dos camponeses, pois, enquanto as cifras de suas obrigações se mantinham absolutas – pela força do costume e, mais ainda, pelo medo de provocar a emigração da mão-de-obra –, os preços dos produtos que os camponeses levavam ao mercado acompanhavam a onda da inflação. Assim, alguns camponeses puderam acumular uma certa quantia de dinheiro que lhes permitiu comprar a terra. Entretanto, sua condição social e jurídica havia melhorado. Na crise dos tradicionais possuidores da terra, numerosos domínios haviam trocado de mãos e outros haviam se subdividido. A conseqüência foi um enfraquecimento das relações de servidão, uma vez que certo número de camponeses ficou espontaneamente livre da tutela, enquanto outros passaram a depender de vários senhores de acordo com a sorte das vendas e das subdivisões que haviam ocorrido nas porções de terreno às quais estavam adstritos. Na confusão, os camponeses procuraram valer-se da jurisdição real, cuja tendência expansiva favoreceu seus desígnios. Mas nem todos tiveram a mesma sorte: os que sofreram o embate do deslocamento do sistema e não puderam fixar-se como proprietários ou fazer valer seus pedidos de melhores salários tiveram que emigrar para as cidades, onde muitos deles já haviam se estabelecido e para onde outros iam no inverno em busca de trabalho. E os que não optaram por essa saída ficaram nos campos, entregues à mendicância ou ao banditismo, às vezes organizados em bandos que trabalhavam por conta própria. Outros se agregavam a alguns dos exércitos privados que participavam dos confrontos políticos e sociais entre as diferentes facções que disputavam o poder nas cidades, ou entre os reis e os senhores, cujo poder tradicional estava abalado por uma crise que comprometia seus fundamentos políticos, sociais e econômicos.
A nobreza havia percebido esse abalo no nível primitivo de sua riqueza e de seu poder. Logo ela se projetou para outros planos, mas foi a relação com sua terra, com o trabalho que realizava nela, com a posição dos servos, com os produtos que se obtinham do trabalho e com a possibilidade de ter ou não dinheiro para competir com a nova riqueza monetária dos burgueses ricos das cidades que fez aparecerem as inquietações fundamentais dessa classe acostumada a ignorar os problemas econômicos devido ao poder formidável de que dispunha para assegurar sua posição privilegiada e gozar os benefícios que suas posses lhe ofereciam, como correspondia a uma ordem imutável do sistema de relações sociais. Porém, o sistema mostrou primeiro suas fissuras e sofreu, então, sucessivas transformações em um processo em que essas fissuras foram aprofundando-se cada vez mais. A nobreza se surpreendeu diante dos mecanismos econômicos que começavam a funcionar e que comprometiam sua tradicional estabilidade e deu-se conta de que os fundamentos econômicos de seu poder estavam comprometidos. Descobriu que a auto-suficiência do feudo não podia resistir diante das investidas, ainda tímidas, da economia de mercado. E aqueles que não foram capazes de adaptar-se rapidamente à nova situação venderam seus feudos ou parte deles, ou abandonaram sua administração para arrendá-los àqueles que fossem capazes de explorá-los nas condições que o mercado requeria. Houve, sem dúvida, em algumas partes, aqueles que consolidaram o poder político e asseguraram com isso o sistema tradicional de exploração. Mas, em muitas outras partes, houve aqueles que se sentiam impotentes e desertaram, deixando o lugar para outros senhores mais maleáveis para adequar-se à nova situação: foram eles que descobriram o funcionamento de novos mecanismos na vida econômica. Assim, dispuseram-se a ingressar, com todo o poder que lhes dava a posse dos bens de produção, em um processo novo no qual a distribuição dos bens adquiria uma crescente gravitação, porque os termos do consumo se haviam modificado. Era a economia de mercado, à qual os possuidores da terra chegavam com um movimento atrasado, quando já havia começado a surgir uma classe social que controlava sutilmente os mecanismos da intermediação nas cidades.
A economia de mercado, fundamentada no uso da moeda embora subsistissem as formas tradicionais de câmbio, foi uma resposta ao aumento do consumo. Aumentou no setor da nobreza e, especialmente, nas cortes. Artigos de luxo, produtos importados de mesa, vinhos finos, panos ricos, peças de ourivesaria, pedras preciosas e jóias delicadas, azeites perfumados, cera para velas, tapetes, esmaltes, madeiras entalhadas, livros em miniatura, escravos, armas luxuosas, os nobres compravam tudo para a satisfação pessoal e para revestir-se de uma ostentação que sustentasse seu prestígio social. Porém, não era menor a demanda de boas hortaliças e de bons grãos, do vinho da terra ou da cerveja e, sobretudo, do pescado e das carnes, essas últimas não só de caça mas cada vez com mais freqüência de criação: as aves, o cordeiro, o porco e a vaca. Um banquete de corte era, a cada vez, um desenvolvimento do que o campo produzia para ele; o camponês tinha certeza de que alcançaria um bom preço quando era capaz de oferecer uma qualidade indiscutível. Um consumo semelhante, mas, por outro lado, muito mais extenso, apareceu e desenvolveu-se nas cidades, requerido primeiro pelas classes patrícias, não muito menos exigentes em certas ocasiões que a nobreza, e logo pelas diversas classes sociais, cada uma na medida de suas possibilidades. Talvez a cidade solicitasse menos produtos importados e artigos de luxo, uma vez que os grupos exigentes eram reduzidos; mas necessitava, em compensação, cada vez mais de artigos alimentícios, animais ou vegetais, e cada vez mais de artigos manufaturados, como o vinho, a cerveja, o queijo, o pão, o azeite ou a manteiga. Na devida escala, eram ingentes quantidades de produtos que as mesas requeriam, ricas ou pobres; a cada dia, as despensas tinham que estar bem providas, as lojas necessitavam estar bem abastecidas, as pousadas e tavernas não podiam enganar sua clientela. Para tudo isso, o campo começou a produzir cada vez mais pensando no mercado, aonde o camponês chegava com sua mula carregada, com o cordeiro ou as aves no pescoço, com o carro de rodas grandes transbordando, com a vaca e o porco, ou a garrafa de azeite ou o cântaro de leite.
A medida que o consumo aumentava – sobretudo entre a nobreza e nos diversos setores urbanos –, a economia rural se orientava mais decididamente para a produção voltada para o mercado. O valor da terra subiu, os pagamentos subiram e, naturalmente, subiram os preços dos produtos da terra. Porém, esse último não só como conseqüência dos dois primeiros fatores, mas porque, além disso, multiplicou-se a intermediação entre o produtor e o consumidor. Transporte, armazenamento, impostos e, sobretudo, a margem de lucro que os intermediários reservavam para si incidiram sobre o preço que o consumidor devia pagar. E, quando as condições locais tornavam-se difíceis devido às convulsões políticas, militares ou sociais ou simplesmente devido à escassez, a especulação multiplicava os preços, geralmente em benefício dos intermediários, mas também em alguma medida em proveito do camponês produtor, cada vez mais experiente na defesa de seus interesses.
A pressão do mercado alterou profundamente, em alguns casos, as maneiras tradicionais de usar a terra. Nas proximidades das cidades prosperou a produção dos produtos para a alimentação cotidiana. Em muitas regiões, desenvolveu-se intensamente a produção de gado, especialmente ovino, porque nas cidades aumentou a demanda de carne para a alimentação normal dos mais poderosos e influentes. Porém, a produção de gado alcançou um grande desenvolvimento não só pelo rendimento da carne. O gado ovino constituiu-se no provedor da matéria-prima fundamental – a lã – para a indústria têxtil, sem dúvida a mais poderosa e importante, visto que a seu redor se organizava o mais lucrativo tráfico comercial e girava boa parte do sistema financeiro. Um forte estímulo motivou especialmente os grandes proprietários a dedicar parte de seus campos à produção de gado ovino, atividade que não exigia muita mão-de-obra e evitava ao senhor boa parte das complicações que haviam surgido na exploração rural.
Mas o desenvolvimento do negócio de gado teve importantes conseqüências econômicas e sociais. Repercutiu sobre a agricultura em geral e, especialmente, sobre a situação dos camponeses. Até a segunda metade do século XIV, intensificou-se em Castela o interesse pela produção de lãs para o mercado internacional e, como conseqüência, outorgaram-se, desde a época de Afonso XI, importantes privilégios à Mesta, corporação de produtores de gado composta principalmente por grandes senhores. Consistiam, sobretudo, no direito de trânsito das reses que eram levadas de um lugar para outro e que podiam pastar nos campos dos terrenos murados que atravessavam. Os prejuízos dos camponeses foram grandes e o clamor dos prejudicados foi silenciado pela influência dos grandes senhores.
Na Inglaterra, os proprietários começaram, progressivamente, a cercar os campos para dedicá-los ao pastoreio e, mais tarde, diria Tomas Morus,21 “não deixam nada para o cultivo e demarcam tudo para pastos; derrubam as casas, destroem as vilas e, se deixam os templos, é para transformá-los em estábulos para suas ovelhas”. Por isso, acrescentou ironicamente: “de tão mansas que eram, começaram a mostrar-se agora, segundo se conta, de tal maneira vorazes e indómitas que comiam os próprios homens e devastavam e arrasavam as casas, os campos e as aldeias”. Envolvida na corrente da economia de mercado, a vida rural não só mudou de fisionomia, mas também, pouco a pouco, de estrutura.
III. A Grande Expansão da Economia de Mercado
A partir da segunda metade do século XV, a retração começou a ceder e iniciou-se uma nova etapa de expansão, muito devagar no início, mas com aceleração crescente. Muitos fatores contribuíram para isso. Sem dúvida, houve um aumento de população. Mas o que mais influiu foi o lento restabelecimento de certa estabilidade política que correspondeu a um apaziguamento das tensões sociais, muitas vezes por meio da coação. As grandes áreas políticas se consolidaram e, depois do afiançamento da autoridade monárquica, começou a configurar-se uma nova concepção de Estado, mais vigorosa e agressiva que antes. A “razão de Estado” insinuou-se como um princípio indiscutível. E, a partir do Estado, organizaram-se as hierarquias sociais, invalidando as erupções esporádicas de rebeldia e indisciplina que até pouco não tinham freio.
França, Inglaterra, Portugal e Espanha apresentaram a imagem de uma marcha progressiva para a organização da monarquia nacional. As características feudais dos reinos do centro e do leste da Europa subsistiam, e mantinham sua antiga estrutura política – entre burguesa e feudal – os reinos do norte, reunidos desde o final do século XIV na “Union de Kalmar”, dissolvida no reinado de Cristián II. E mantinham sua antiga estrutura as pequenas potências que compunham o quadro político, da Alemanha e da Itália, já dissipado o poder imperial.
Mas, mesmo onde o poder monárquico absoluto não começou a se constituir, o Estado – expressão das classes feudais em alguns países e das burguesias patrícias em muitas cidades – manifestou uma clara tendência a consolidar-se, confiando às vezes na autoridade de príncipes e senhores que a exerceram de maneira cada vez mais autocrática ou constituindo fortes oligarquias igualmente autoritárias. Em ambos os casos puderam reorganizar-se as relações dos grupos sociais distintos, aproveitando, além disso, a nova onda de expansão econômica, como os estados monárquicos que marchavam sozinhos para o absolutismo.
Em geral, em todas as partes se saiu da crise com uma ordem mais estrita do sistema produtivo. Todos os setores haviam aproveitado a lição da crise e eram, ao mesmo tempo, mais firmes na defesa de suas posições e mais compreensivos quanto à função que os demais cumpriam. A rigor, o que se havia afiançado era uma nova estrutura econômica, na qual a economia de mercado desempenhava um papel cada vez mais importante, já prestes a alcançar um amplo domínio no final do século XV. O mercado urbano assumia um papel regulador nessa economia, cujo alcance internacional se apoiava nos grandes centros comerciais, do mesmo modo que a área da produção rural aceitava a sua função reguladora. Além disso, a progressiva emancipação dos servos constituía, na Europa ocidental, um fato que a opinião cada vez mais generalizada considerava irreversível. E essa situação, assim como o crescente desenvolvimento das cidades, promoveu uma imagem da sociedade não só diferente da que predominava antes da retração do início do século XIV, mas diferente também da que se aninhou na mente das classes em conflito violento durante a época da retração. A essa nova e imprecisa imagem da sociedade correspondeu um desenvolvimento das novas concepções da vida econômica, cada vez mais claramente definidas pelos mecanismos da empresa racionalizada e pelos princípios do capitalismo. Antes de se falar da igualdade diante da lei, começou-se a pensar na igualdade diante do consumo; porque, sem que esse se generalizasse, as perspectivas da empresa e a expansão do capitalismo encontravam-se limitadas ao que seus protagonistas consideravam sua expansão ilimitada.
Porém, durante a crise, a situação social havia adquirido certos características que se mantiveram fixas durante vários decênios. O mais importante foi certa modulação da mobilidade social estabelecida pela polarização da riqueza. Havia se acentuado a diferença entre pobres e ricos e o abismo entre eles havia se aprofundado; o que na espontânea concepção da sociedade surgida na primeira expansão era simplesmente uma distinção quantitativa começou a parecer uma diferenciação qualitativa. As classes possuidoras – tanto o patriciado urbano como as classes nobres – haviam se aproximado na época da retração e, sem demora, ao desencadear-se a nova era expansiva, já constituíam uma frente relativamente compacta.
As conseqüências foram decisivas. Os que haviam acumulado uma riqueza ingente foram os que puderam aproveitar as novas possibilidades abertas pela expansão; e, com os benefícios que obtiveram, acentuaram a distância que os separava dos que haviam conseguido guardar algumas reservas suficientes para incorporar-se a certos negócios cujo giro era medido agora por somas importantes. Houve, sem dúvida, mobilidade nas classes médias e populares, e não faltaram aqueles que puderam transpor o abismo. Porém, era um abismo profundo e o módulo da mobilidade social foi restringido nas classes não possuidoras. Em troca, nas classes que haviam acumulado capital durante a crise de retração, as perspectivas cresceram extraordinariamente, em proporção à magnitude das novas possibilidades.
Desse modo, a mobilidade social tornou-se descontínua. Houve uma onda restrita de mobilidade e de ascensão para as classes médias e populares; e, depois de um hiato, houve outra onda de mobilidade que as classes possuidoras de possibilidades imprevisíveis puderam aproveitar. Certamente, a estabilização social e política, a repentina ampliação geográfica dos mercados e a configuração de uma classe que contava com os recursos necessários para explorá-los modificaram a fisionomia social e econômica da segunda etapa da expansão.
As burguesias urbanas foram as principais beneficiárias dessa nova etapa. Ricas em recursos econômicos, não eram menos ricas em experiências sobre os vaivéns da economia de mercado. Eram parte dessa experiência tanto a vivência do ciclo de expansão como a do ciclo de retração. Estavam claros na mente dessa classe quais eram os alcances e possibilidades de um mercado restrito e local e quais eram as variantes que surgiam quando o mercado se estendia. Estava claro também o alcance do jogo livre da oferta e da procura e o que se podia esperar da regulação pelo poder político. Sabia-se mais sobre a função da moeda, do crédito. Em suma, sabia-se melhor como funcionava o capital mercantil em um mundo em que a atividade comercial e financeira constituía um trespasse – revolucionário, sem dúvida – dentro do amplo tecido da produção rural, na qual subsistiam os ressaibos da antiga estrutura senhorial. Essa experiência e esse conhecimento multiplicaram os recursos econômicos do patriciado urbano e permitiram que eles fossem usados em um mercado que se ampliava. Ao distender-se a crise de retração, o patriciado urbano percebeu rapidamente que, embora seu âmbito social e político continuasse sendo a cidade, seu âmbito econômico podia transcender esses limites estreitos. Em cada cidade, esse grupo buscou quais podiam ser suas fronteiras econômicas e lançou-se na direção delas, às vezes mediante uma ação puramente econômica e às vezes combinando-as com a ação militar e política. O patriciado já o havia tentado antes, sem dúvida, porém desde meados do século XV essa foi decididamente sua meta.
Por vezes, não foi a cidade como um conjunto que empreendeu essa política. Foi apenas o patriciado urbano e, às vezes, um setor do mesmo que desencadeou uma crise dentro da cidade ao propor uma política ambiciosa e renovadora. E outras vezes não foi uma política originada na cidade, mas imposta por um poder territorial, como no caso da Inglaterra e da Borgonha, sucessivamente, em relação às cidades dos Países Baixos; ou nas cidades inscritas nos reinos nacionais, que viram reduzir-se suas possibilidades de jogo livre ao se enrobustecer o poder real. Em todos os casos, o patriciado urbano teve de revisar sua política e a de sua cidade. Não faltaram os tradicionalistas que não quiseram ou não souberam aceitar as novas situações. As vezes triunfaram; mas nem sempre por sua estupidez, mas sim porque, algumas vezes, a cidade ficou marginalizada no processo de ampliação dos mercados e, outras vezes, porque ela carecia da possibilidade de incorporar-se nela. No entanto, o vigoroso esplendor que outras cidades alcançaram entre meados do século XV e as primeiras décadas do século XVI foi obra de um patriciado renovador que deixou para trás muitas de suas convicções políticas, sociais e econômicas para aceitar as novas situações criadas simultaneamente pela estabilização política e pela expansão econômica. O aproveitamento dos novos mercados – regionais ou nacionais – exigia abandonar a antiga concepção urbana, nascida no seio da cidade murada, o apego à especificação do reduzido mundo da cidade e a defesa de uma autonomia incompatível com a nova escala dos poderes políticos que, além disso, tinha estreita relação com a nova escala potencial dos mercados.
Lançado à nova aventura, o patriciado renovador coincidiu em seus projetos com a nova nobreza, parte da qual provinha, além disso, de suas próprias fileiras. De comum acordo, começaram ambos os grupos a ingressar no sistema criado pelos novos poderes territoriais e aceitaram sua escala política, que correspondia à nova escala econômica de suas expectativas. Juntos, já misturados e sem que importasse muito a ocasional diferença que pudesse haver quanto a brasões e avoengos, conceberam vagamente os projetos transoceânicos em busca de novas fontes de riqueza, em um prodigioso aparato da imaginação. Houve, sem dúvida, um risco calculado, diante do qual a tentação da aventura venceu. Porém, em um lapso incrivelmente curto de tempo, essa burguesia originariamente urbana, transformada pouco a pouco em burguesia nacional e aliada à nova nobreza, conseguiu criar vastos impérios coloniais que superaram não só suas previsões, mas também suas possibilidades financeiras para afrontar as inimagináveis possibilidades que se abriam.
Passou-se algum tempo antes que, imprevistamente, tombasse sobre a Europa a massa de capital que representavam as riquezas da África e da Ásia e, sobretudo, a prata e o ouro americanos, que alterariam radicalmente a estrutura econômica européia tal como se manifestou na assim chamada “revolução dos preços” desencadeada no século XVI. Até então, o montante dos investimentos requeridos pelos empreendimentos transoceânicos superou amplamente as possibilidades do capital acumulado pelo patriciado e pela nova nobreza ao longo do período de expansão. Houve uma etapa de distorção da economia, que se modificou quando o ouro e a prata da América começaram a chegar. Mas então a influência do metal introduziu outras distorções que modificaram profundamente a estrutura tradicional da Europa.
Naquele tempo, a Europa havia se dividido e a luta religiosa não só delineou duas áreas ideológicas. Viu-se então que a divisão correspondia a duas áreas que sustentavam duas atitudes sociais e econômicas diferentes. A emigração do ouro e da prata da Espanha para os países de forte tradição burguesa e mercantil constituiu uma nova experiência que enriqueceu substancialmente o conhecimento dos princípios básicos da economia de mercado e o comportamento do capital.
Notas
1. Sobre a peste negra, Boccaccio, Decamerone, Prima giornata; Matteo Villani, Crónica, I, i e xii, que acrescenta outras referências sobre epidemias em VII, ixxxvii e ix, xiii; Vitae paparum avenionensium, Clementis VI, prima vita; Chronica Heinrici Svrdi de Seibach, MGH., pp.75 e s. Uma descrição localizada do fenômeno em E. Carpentier, Une ville devant la peste: Orvieto et la peste noire, Paris, 1962. Sobre conseqüências demográficas, Y. Renouard, “Conséquences et intérèt démographique de la peste noire de 1348”, em Population, t. III, 1948, pp. 459 e ss. De interesse geral é o ensaio de E. Perroy, “Les crises du XlVe siècle”, em Annales, t. VI, 1949, pp. 167 e ss. A pintura do cemitério de Pisa e inumeráveis obras posteriores que giram em torno do “triunfo da morte” relacionam-se com a peste negra – segundo a concepção de Petrarca –, o Juízo Final e a dança macabra ou dança da morte. O tema literário é talvez o mais antigo, mas adquire um novo tom com Jacopo Passavanti, prior de Santa Maria Novella, em Florença, durante os anos da peste negra, cuja predicação apocalíptica ele recolheu no tratado Specchio della vera penitenza. Sobre os flagelados, Henrique de Herford, Liber de rebus memorabilioribus sive chronicon, ed. Potthast, p. 281; Hugo de Reutlingen, Weitchronick, ed. Gillert, pp. 21 e ss. Matias de Neuenburg, Chronica, MGH, pp. 426 e s.
2. Cf. J. C. Russell, “Popuiation in Europe, 500-1500”, em The Fontana Economic History of Europe, 1972, t. I; é fundamental a obra de R. J. Mols, Introduction à la démographie historique des villes d’Europe du XIVe siècle, Gembloux, 1954-56.
3. Francesco Balducci Pegolotti, La pratica della mercatura, ed. Evans, passim e especialmente pp. 293 e ss.; uma longa lista de mercadorias pode ser encontrada em R. Doehaerd, Études anversoises. Documents sur le commerce International à Anvers, 1488-1514, Paris, 1963; em J. Heers, Gênes au XVe siècle, Paris, 1961, quadros XVI e ss., e em Ph. Dollinger, La Hanse, Paris, 1964, pp. 521 e ss.
4. Leon Battista Alberti, I libri della famiglia, 1. III.
5. Ph. de Commynes, Mémoires, V, xviii.
6. Giovanni Villani, Cronica, XI, xci-xciv.
7. Pero López de Ayala, Rimado de Palacio, 297-313.
8. Erasmo, Elogio da locura.
9. Matteo Villani, Crônica, I, iv; III, xiix, iii e ixxii; Journal d’un bourgeois de Paris, 1410; Crónica de Afonso XI, caps. CXX e CCCXII.
10. B. H. Putnam, The enforcement of the statutes of laborers, Nova York, 1908; G. M. Trevelyan, England in the age of Wycliffe, Londres, 1948; R. Vivier, “La grande ordonnance de février 1351: les mesures anticorporatives et la liberté du travail”, em Revue Historique, t. CXXXVIII, 1921, pp. 201 e ss.
11. Sobre Gualtieri di Brienne, Giovanni Villani, Cronica, XII, i-iv; viii; sobre João Sem Medo e a révolution cabochienne, Jean Jouvenel des Ursins, Histoire de Charles VI, 1413; Pierre de Fenin, Mémoires, 1413; Journal d’un bourgeois de Paris, ano de 1413; L ‘ordonnance cabochienne, ed. A. Coville, Paris, 1891.
12. Luca Pacioli, Summa de arithmetica.
13. F. B. Pegolotti, op. cit. (c. 1340); Giovanni di Antonio da Uzzano, Practica della mercatura (1442); atribuído a Giorgio Chiarini, Libro che tracta di mercantie et usanze de paesi (c. 1450), este último é reconhecido por Pacioli na Summa.
14. Giovanni Villani, Cronica, XII. Ver A. Sapori, La crisi delle compagnie mercantili dei Bardi e del Peruzzi, Florença, 1926 e os estudos do mesmo autor recolhidos em Studi di storia economica medievale, Florença, 1946.
15. Crónica de Afonso XI, ca p. CCXCII.
16. Ver, além dos trabalhos citados de Sapori Y. Renouard, Les hommes d’affaires italiens du Moyen Âge, Paris, 1949; J. Le Goff, Marchands et banquiers du Moyen Âge, Paris, 1956; R. de Roover, The rise and decline of the Medici bank, 1397-1494, Nova York, 1966; Id., L’évoiution de la lettre de change, XIV-XVIIIe siècles, Paris, 1953; R. Ehrenberg, Le siècle des Fugger, Paris, 1955. Um estudo até certo ponto sintético de todo o problema nos diversos ensaios que compõem o primeiro tomo de The Fontana Economic History of Europe, Londres, 1972; e uma notável coleção de textos em R. S. Lopez e I. W. Raymond, Medieval trade in the mediterranean world, Nova York, 1955.
17. Nicolás de Oresme, Traictie de la première invention des monnoies (1360).
18. L. B. Alberti, op. cit., 1. III; Paolo di messer Pace da Certaldo, Il libro di buoni costumi; ver: A. Sapori, “La cultura del mercante medievale italiano”, em Studi di storia economica medievale.
19. R. de Roover, op. cit.; R. Ehrenberg, op.cit.
20. Ver Hendrik de Man, Jacques Coeur, Der königliche Kaufmann, Berna, 1950.
21. Tomas Morus, Utopia, 1. I.
CAPÍTULO III
Os Conflitos Internos da Vida Socioeconômica
Durante longos séculos – talvez até o século XVIII a nova sociedade não foi exatamente essa sociedade nova que se constituiu no mundo urbano, conjunto de entrelaçamentos burgueses estabelecidos no vasto tecido da velha sociedade feudal: foi muito mais o conjunto das duas, muito diferentes por certo, porém inseparáveis e desde muito cedo em situação de conflito aberto. Por isso, a nova sociedade foi essencialmente conflitante. A que nascia criava trabalhosamente sua própria estrutura, mas no seio da estrutura da que já existia antes, abrindo um espaço nela apesar da resistência que lhe opunha. Somente ao longo do tempo, essas tensões, que às vezes terminavam em conflitos frontais, se resolveriam. Mas no período que começa com a crise de retração no princípio do século XIV, o processo de integração apenas começou a insinuar-se e, mais ainda, as tensões e conflitos se intensificaram. O progressivo crescimento da sociedade burguesa aos poucos foi deixando claro todo o potencial que continha e, à medida que ele ficava à vista, aumentava o sentimento de que era muito diferente da sociedade feudal, mais ainda, de que, em última análise, eram incompatíveis. Foi exatamente nesse período – entre os primórdios do século XIV e as primeiras décadas do século XV – que a contradição se tornou mais evidente.
Porém, não só ficou visível a incompatibilidade entre as duas sociedades; certas divergências profundas que cresceram na sociedade tradicional também causaram crises; e se manifestaram, sobretudo, as contradições que romperam no próprio seio da nascente sociedade burguesa, à medida que ela crescia e procurava desenvolver suas possibilidades latentes. As tendências dos diversos grupos chocaram-se, e sobretudo se chocaram suas expectativas e seus interesses econômicos. Princípios que pareciam consubstanciados com o processo de sua formação, se viram controvertidos ou negados ao longo do processo de seu desenvolvimento, especialmente quando algum dos grupos achava oportuno abrir mão das antigas tradições da sociedade feudal para fortalecer sua posição ou defender seus privilégios. Uma acentuada incoerência assinalou a vida socioeconômica da nova sociedade a partir do momento em que a crise da retração colocou a descoberto o jogo que cada um teria de fazer para salvar-se ou para aproveitar a confusão em seu benefício.
Certamente, os conflitos internos da vida socioeconômica inseriram-se em um quadro que incluía muitos outros conflitos: os da vida política, os das diversas mentalidades, os das formas diferentes de vida. Todos eles se viram acentuados pela dificuldade de interpretá-los. Como sempre, as situações reais mudaram mais rapidamente que as ideologias, e demorou-se muito tempo em estabelecer os novos critérios para analisar situações novas. O normal foi que se utilizassem velhos esquemas mentais para compreender processos inéditos, e a conseqüência foi um generalizado sentimento de crise, que não só expressava as crises da realidade, mas muito mais ainda o desconcerto diante de um mundo que parecia ininteligível. Sem dúvida, muitos protagonistas e testemunhas pensaram que os conflitos em que se viam envolvidos levavam de forma irremissível à frustração de uma e de outra sociedade, de uma e de outra cultura. Porém, não era exato. Os conflitos eram, como sempre, as condições necessárias da criação, tumultuosa e fecunda. Todas as peças foram postas sobre o tabuleiro e o jogo foi se armando pouco a pouco, em uma sucessão de criações, todas valiosas por si mesmas e todas em busca de uma linha de coerência.
I. As Tensões da Vida Social
1. OS ANTAGONISMOS SOCIAIS
O começo do longo processo através do qual as duas sociedades justapostas e coexistentes tentaram obscuramente interpenetrar-se para. alcançar sucessivos graus de integração se manifestou paradoxalmente, por meio de irritadas denúncias de alguns grupos contra os outros, acentuando seus agravos e dissidências. Os grupos se buscavam no conflito. Ao se denunciarem reciprocamente, tratavam de estabelecer sua identidade e a identidade do adversário, às vezes inimigo. Porém apelava-se à identidade originária, quando, na realidade, os grupos sociais começaram a mudar de identidade no momento mesmo em que se manifestou a coexistência das duas sociedades. Mudaram os grupos existentes, e no processo de aproximação e distanciamento foram se constituindo outros por aglutinação ou desagregação dos antigos, cuja fisionomia imprecisa foi se definindo com o tempo. Era inevitável que essas mudanças produzissem ou intensificassem as tensões sociais e foram tão evidentes, que aqueles que viveram o processo as perceberam e as denunciaram, às vezes com clara consciência de sua magnitude, embora quase nunca com a visão adequada do que havia por trás delas.
Antes ignorado, o novo ator cuja presença abalou o cenário tradicional foi o povo ou, mais exatamente, as pobres gentes que se agitavam tanto nos campos como nas cidades. As rebeliões populares, urbanas e campesinas, que adquiriram tremenda intensidade nos séculos XIV e XV, atraíram a atenção de todos os que observavam as novas situações criadas, voltando-se para esse componente insólito da crise. A Saturno, o cavaleiro de Chaucer atribuía o descontentamento e a rebelião da plebe.1
Em uma simplificação muito expressiva do quadro social, coincidiram muitos testemunhos de que a sociedade se dividia, no final, somente em ricos e pobres. Houve espíritos práticos – e cruéis – que não viram as pobres gentes a não ser como instrumentos maléficos de um desígnio destruidor da ordem constituída, como aqueles nobres que reprimiram sem piedade as insurreições campesinas da Flandres marítima, da França, Inglaterra, Boêmia ou Alemanha. Porém, houve certa comiseração pelas vítimas desamparadas de todas as guerras internacionais e civis, humildes camponeses que viram arrasadas suas parcelas e destruído o pouco que tinham, depois de serem explorados cotidianamente pelos senhores e, cada vez mais, por um fisco voraz. A expressaram, não sem violência, Wycliffe e os lolardos antes e depois da rebelião de 1381. Menos beligerante, o prior de Salon, Honoré Bont, escrevia até 1390 no Arbre des batailles;2 “Compraza a Deus por no coração dos reis ordenar que em todas as guerras os pobres lavradores sejam mantidos em segurança e em paz; pois, hoje, todas as guerras são contra as pobres gentes trabalhadoras e contra os bens e imóveis que têm. Por isso não a chamo guerra, mas me parece muito mais ser pilhagem e saque.”
Não muito depois, enquanto Jan de Zeliv e Juan Zizka alentavam as massas populares da Boêmia seguindo a doutrina de Jan Hus, um cônego de Paris, Alain Chartier, que era secretário de Carlos VII, escrevia um tratado particularmente significativo em que intervinham alegoricamente quatro personagens – França, o Povo, o Cavaleiro e o Clero – e que se intitulou Le quadrilogue invectif. Examinando os males que a França suportava depois do assassinato de João sem Medo e do tratado de Troyes, Alain Chartier expressava as recriminações de O Povo contra as classes privilegiadas:3 “Eu sou como o asno que sustém um fardo impossível de carregar e sou açoitado e castigado para que faça o que não posso e sofra. Sou o alvo contra o qual todos arremessam setas de atribulação. Ai, mísero dolorido! De onde vem esse costume que tanto alterou a ordem da justiça para que cada um tenha sobre mim tanto direito quanto lhe conceda a força? O trabalho das minhas mãos nutre aos covardes e aos ociosos e eles me perseguem com feno e com espada. Eu sustento suas vidas com o suor e o trabalho do meu corpo, e eles guerreiam por nada por causa de seus ultrajes, por isso estou em estado de mendicância. Eles vivem de mim e morro por eles. Eles deveriam impedir que meus inimigos me atacassem, ai, e só me impedem de comer meu pão em segurança. Nessa partida, como um homem poderia ter uma perfeita paciência quando à minha perseguição só pode seguir-se a morte. Eu morro e pereço pela falta e pela necessidade dos bens que ganhei: perde-se a esperança de trabalho, o comércio não encontra caminho que possa encaminhá-la. Despojo de guerra é tudo o que a espada não defende, e não tenho outra esperança na minha vida, a não ser, por desespero, abandonar minha morada para fazer como aqueles a quem meu despojo enriquece, que mais amam os despojos que a honra da guerra.” E para revelar os termos da contradição acrescentava: “As armas são apregoadas e os estandartes içados contra os inimigos, porém, as façanhas são contra mim pela destruição da minha substância e da minha vida miserável. Os inimigos são combatidos pela palavra e eu o sou de fato.”
Meio século depois, Commynes, com tão claras tendências senhoriais, comporia um amplo quadro não menos revelador do enfrentamento entre ricos e pobres e da dura situação destes últimos na França:4 “Os maiores males vêm ordinariamente dos mais fortes, dizia, pois os fracos não buscavam mais que paciência.” E referindo-se a Castela dizia nos mesmos anos Hernando del Pulgar:5 “Naqueles tempos de divisão, a justiça sofria e não podia ser executada nos malfeitores que roubavam e tiranizavam nos povoados, nos caminhos e geralmente em todas as partes dos reinos. E ninguém pagava o que devia se não quisesse; ninguém deixava de cometer qualquer delito, ninguém pensava em obedecer nem em se sujeitar a outro maior. E assim, pela guerra presente como por todas as turbações e guerras passadas no tempo do rei Dom Henrique, as gentes estavam habituadas a tanta desordem, que se tinha por diminuído aquele que menos força fazia. E os cidadãos e lavradores e homens pacíficos não eram senhores do seu nem podiam recorrer a nenhuma pessoa, pelos roubos e forças e outros males que sofriam dos alcaides das fortalezas e de outros ladrões e larápios. E cada um gostaria de contribuir de boa vontade com a metade de seus bens para ter sua pessoa e família em segurança.”
A imagem que Tomas Morus dava da Inglaterra em 1516 não era muito diferente. O tema dos roubos e latrocínios generalizados suscitava a questão de um castigo condigno; mas Morus preferia encontrar outras soluções atacando as causas sociais do problema. “Grande é o número de nobres – escrevia –6 que, ociosos como zangões, não só vivem do trabalho dos demais, porém os exaurem como tiram aos colonos suas propriedades e os desossam até a carne viva para aumentar suas rendas. Essa é a única economia que esses homens conhecem e que, por outro lado, até a ruína, vivem rodeados de uma imensa caterva de mandriões que jamais aprenderam algum meio de ganhar o sustento e que, assim que seu amo morre, ou ficam doentes ou se vêem confusos, pois os senhores preferem alimentar os desocupados aos enfermos. Muitas outras vezes, o herdeiro do que morre não tem o suficiente para sustentar a servidão paterna; toda essa gente passaria fome, sem dúvida, se não se dedicasse depressa ao roubo. E que outra coisa poderiam fazer? Em seu vagar vagabundo foram arruinando pouco a pouco as suas roupas e a sua saúde e, logo, esquálidos devido à enfermidade e cobertos de farrapos, nem os nobres se dignam recebê-los nem se atrevem a fazê-lo os camponeses, pois não ignoram que os que haviam sido educados brandamente no ócio e nos prazeres e acostumados a brandir a espada e a empunhar a adaga, depreciam a todo o mundo com gesto altaneiro e carecem em absoluto de aptidão para manejar o enxadão e o picão e servir fielmente a um nobre por salário módico e alimento escasso.”
A situação social foi ainda mais caótica na Alemanha, especialmente depois da sanção da Bula de Ouro em 1356 e depois da morte de Carlos IV. Os conflitos entre os príncipes e as cidades se sucederam e alcançaram sua maior gravidade depois de 1449. Mas, na crise total, as cidades se defenderam formando ligas regionais, o que não impediu, não obstante, que no seio daquelas se manifestassem graves e permanentes conflitos sociais. Suécia, Noruega e Dinamarca conheceram essas tensões em menor escala. Flandres, sacudida por intensos movimentos sociais, caía desde primórdios do século XV sob a autoridade dos duques de Borgonha, consolidada pouco a pouco não sem que tivesse que sufocar uma acirrada resistência; e transferida logo à jurisdição do Império, recomeçaram os movimentos de resistência contra o novo senhor, nos quais se misturavam – como antes, na época dos naturais de Borgonha – os confrontos dos diversos grupos sociais. No reino de Nápoles, conflitos semelhantes se manifestaram favorecidos pela anarquia geral na época das Joanas. Os barões devastavam campos e cidades e as companhias brancas contratadas por uns e outros saqueavam o país, sem que Afonso de Aragão descobrisse remédio para a dissociação social. E nas cidades italianas, algumas florescentes, as lutas sociais e políticas alcançaram um grau de verdadeira ebulição, que tentaram reduzir os príncipes que instauraram um poder absoluto nas antigas comunidades. Em todos os cantos aonde havia chegado a revolução burguesa, a retração econômica pôs a descoberto as fissuras da nova sociedade e desencadeou um confronto geral de todos contra todos. Nostalgicamente, Ambrogio Lorenzetti havia contraposto em um dos amplos afrescos do palácio comunal de Siena os frutos que davam o mau governo e o bom governo. E Pero López de Ayala apelava para o sentimento de todos para alcançar a paz em uma longa passagem do Rimado de Palacio em que se enumerava o que dela se podia esperar.7 E acusava os que não a queriam ou a violavam:
Portanto de cristão não deve ser chamado
Quem a paz não quer, e está deserdado.
No confronto geral de todos contra todos, a nobreza se viu na defensiva. Era ela que tinha mais poder econômico e político, a que gozava do mais alto prestígio social. Era inevitável que contra ela se dirigissem os ataques dos novos grupos que haviam se constituído na sociedade feudoburguesa e que haviam adquirido, na crise da retração, não só uma identidade mais clara, mas também uma atitude mais agressiva. A nobreza era a peça-mestra da sociedade tradicional, e não só a respaldavam a força dos fatos e a tradição, mas também contava com o apoio doutrinário da Igreja, cuja doutrina social confirmava a imutabilidade da ordem constituída. Mas o processo social e econômico de formação das burguesias havia ferido aquela doutrina, e a própria Igreja havia entrado no torvelinho da crise. Agora era outra a concepção social das ordens mendicantes; em alguns de seus traços se adivinhava o legado de algumas das seitas consideradas heréticas pouco antes de sua aparição. E, em seu conjunto, a Igreja perdia autoridade desde a época de Bonifácio VIII, e cada vez mais depois do traslado do Papado a Avignon e ao longo do cisma que começou em 1378. O poder temporal dividia suas opiniões sobre a legitimidade do pontífice e o movimento conciliatório propunha uma organização parlamentar da Igreja, comprometida, além disso, com a nova sociedade em mais de um aspecto. Questionada a Igreja, foram questionados muitos dos princípios que havia sustentado, e, talvez mais que nenhum, os que se relacionavam com uma ordem social que os fatos haviam abalado de modo irreversível. A nobreza ficou, pois, abalada em seus fundamentos doutrinários, precisamente quando percebeu a gravidade da comoção operada em seus fundamentos sociais, econômicos e políticos.
Jean de Venette guardou a profecia de um frade menor que estava na prisão papal de Avignon em 1356:8 “Perguntais a mim se as guerras durarão. Eu digo que durarão e aumentarão até que alcancem os céus. O que vemos agora não é nada, porque todo o estado do mundo deve ser mudado. Logo a tirania reinará por todas as partes. Muitos homens poderosos e nobres cairão e serão assassinados por gente comum e serão despojados de sua dignidade.” A nobreza foi, certamente, o alvo dos ataques dos grupos inconformados da nova sociedade, especialmente dos grupos rurais que sofriam mais sua opressão, mas também dos grupos urbanos que buscavam ampliar a brecha que permitia sua ascensão.
Certamente, a nobreza era vulnerável. Não só seus membros eram geralmente injustos e cruéis, mas, com o desuso de certos princípios, o pareciam cada vez mais, visto que pareciam cada vez mais legítimos os direitos dos oprimidos. Mas o mais grave foi a crise em que se viu afundada a própria nobreza. Ela foi perdendo força econômica, prestígio social e legitimidade; mas, além disso, foi perdendo a identidade. Sem dúvida, houve em seu seio aqueles que mantiveram sua autoridade, seu soberbo decoro e sua fortuna; mas o conjunto se ressentiu com o desaparecimento de sua homogeneidade como classe. Junto aos que se conservavam como haviam sido, houve muitos que aceitaram as novas situações e se introduziram nelas. Alguns se dedicaram à atividade comercial, participaram da vida urbana e de seus avatares, tornaram-se mercenários a serviço de determinada facção; e não só alguns se dedicaram ao roubo e ao assalto, mas houve aqueles que caíram mais baixo e se tornaram bobos da corte ou jograis públicos “que cantam e bailam por um preço”. A antiga classe nobiliária, antes compacta, se decompôs em grupos conforme suas reações diante da nova situação, e se desprenderam dela alguns indivíduos que deixavam clara a crise. E, no entanto, apresentavam-se como nobres os que acabavam de ser enobrecidos, revelando que também a nobreza havia se transformado em uma classe aberta.
As turbulências políticas, as crises da autoridade monárquica e a ambição de aumentar seus domínios, seu poder e sua influência promoveram o confronto das facções no seio da nobreza. Em certas ocasiões, a luta foi desapiedada e feroz, e os adversários se destruíram às custas de comprometer ou quase aniquilar sua própria classe. Tratava-se fundamentalmente de tensões políticas. Porém, ao mesmo tempo, a nobreza passava por tensões sociais com outras classes. Antes de tudo, com as classes populares rurais, desesperadas pelas cobranças injustas dos senhores e por suas depredações no tempo de guerra, que as deixavam em um estado de resistência cotidiana até a rebelião frontal se decidir. Mas, além disso, com essa burguesia que impunha progressivamente o poder do dinheiro, encurralando a nobreza e obrigando-a a modificar seu comportamento tradicional, seu estilo de vida e suas formas de mentalidade. As vezes, essa tensão entre a nobreza e o patriciado oscilava entre a rejeição mútua ou a aproximação circunstancial, e, ainda que a aproximação prosperasse, a tensão subsistia, visto que se tratava de setores contraditórios cujas afinidades só podiam ser alcançadas mediante múltiplas e reiteradas experiências. Mas, às vezes, a tensão se precipitou em uma luta aberta entre os senhores e as cidades, cujas burguesias sofreram a ameaça e o ataque.
A nobreza conservou, ainda na crise, um orgulho que ofendia aos burgueses. São reveladoras as palavras com que o duque Luis de Bourbon repreendeu a um de seus burgueses – em cuja casa se alojava – por haver-se permitido denunciar em um livro minucioso os prejuízos que os vassalos haviam causado ao rei durante uma longa ausência. “Hóspede – respondeu o duque – 9 haveis dedicado muito estudo e grande esforço, durante os sete anos em que estive na Inglaterra, a desfazer minha cavalaria e a nobreza do meu país, com o que haveis feito uma obra de mau vilão e refletis a natureza da qual fostes nascido. Pois, quando um senhor os toma a seu serviço, levando em conta o estado a que pertenceis, o desconheceis e não olhais ao fim de vossa origem, que nada sois, senão o eleito pelo príncipe naquele ofício em que vos pôs. E quanto ao que me dizeis, que vosso livro seja executado, imediatamente o será diante de vós.” Depois do que o duque lançou o livro ao fogo.
Sem dúvida era fraca a posição da burguesia nos reinos de tradição feudal. Ela carecia de uma consistência social comparável à da nobreza, ainda em crise, e tanto seu poder econômico como seu prestígio eram permanentemente questionados, em virtude dos princípios tradicionais que, embora questionados também, se beneficiavam do apoio do costume e do prejulgamento. Mas, em compensação, a posição do patriciado urbano foi mais sólida, sobretudo naquelas cidades que gozavam da independência e naquelas em que a antiga nobreza da comarca carecia do arrimo que a monarquia oferecia nos reinos. Ali, as tensões entre a nobreza e o patriciado se resolviam a favor do patriciado, uma formação social nova e adaptada às novas situações reais. Porém, nem por isso o patriciado deixava de sofrer outras ciladas. Se triunfava frente àqueles que desfrutavam de um privilégio anterior ao seu, o patriciado urbano via-se acossado pelas outras classes urbanas que não viam nele um grupo de natureza diferente, como o era a nobreza, mas como um estrato afortunado da mesma sociedade a que elas pertenciam.
O fato de o patriciado se fechar e se transformar em uma estreita oligarquia não ajudou a obter o consentimento das outras classes urbanas, nem que descobrisse uma maneira de imitar a nobreza revestindo-se de um decoro de tradição clássica e de um luxo espetacular sustentado pela sua riqueza. Ao contrário, a retração econômica unida à ostentação do patriciado acentuaram as tensões sociais. Houve, finalmente, um começo de aproximação com a nobreza e com os altos poderes senhoriais; mas, à medida que essa aproximação foi se acentuando, as tensões cobraram mais espaço, visto que envolveram duas contradições sociais, uma antiga e outra nova. Somente a força que os novos estados adquiriram, graças a uma riqueza convertida em maquinaria militar, pôde conter os conflitos em que essas tensões desembocavam, sem acalmar por isso as tensões que os promoviam.
Como a nobreza, a retração econômica abalou o patriciado urbano e, muitas vezes, comprometeu sua coesão. A luta pelo poder o dividiu dentro de cada cidade, o opôs de cidade em cidade, o inimizou no seio dos estados territoriais enquanto tratava de inclinar a vontade senhorial ou real em favor de uma ou outra política comercial que conviesse aos seus interesses. Depois, essas formações patrícias se distanciaram ou não das outras classes urbanas, de acordo com os vaivéns do prestígio ou da influência dessas minorias, elas mesmas um pouco instáveis. Porém, com freqüência, essas tensões também acabaram em confrontos, e então foi difícil que as classes subordinadas pudessem se subtrair à exigência de tomar partido. Conjuntos heterogêneos, as classes médias e populares urbanas não tinham uma política única, ou melhor, uma só tendência; cada setor tinha a sua, mais ou menos clara, e os últimos estratos não tinham nenhuma que se relacionasse com objetivos públicos a não ser os muito primários que se relacionavam com a subsistência.
As classes médias e populares das cidades constituíram o grupo mais equívoco e surpreendente da nova sociedade. Em união com as classes campesinas compunham o que geralmente se chamava “o povo”; mas, diferentemente daquelas, estavam sempre congregadas e podiam galvanizar-se em cada cidade em pouquíssimo tempo e manifestar-se como uma força temível capaz de causar tumultos, provocar incêndios ou saques, agredir pessoas de qualidade; as classes campesinas, ao contrário, eram mais pacientes e somente em circunstâncias especiais podiam congregar-se e constituir uma onda humana ameaçadora. Mais oportunistas, as classes médias e populares urbanas podiam ser seduzidas e usadas por nobres ou patrícios, canalizando seu ressentimento a favor de uma causa que convinha aos dois últimos. As classes campesinas, menos atentas e menos sensíveis às mudanças, eram dificilmente mobilizáveis e só entravam em ação depois de um longo processo de aglutinação ao redor de seus próprios problemas imediatos.
Mas, em todo caso, o povo, tanto o urbano como o rural, foi adquirindo uma fisionomia cada vez mais precisa à medida que, no curso da crise de retração econômica e de deslocamento social, se viu avançar intempestivamente como um ator inabalável no quadro dos conflitos generalizados. Tanto para a nobreza como para o patriciado urbano, o povo foi o adversário, se não o inimigo, que apareceu inesperadamente interferindo no jogo do antigo e do novo poder. Ambos contavam com ele, ainda dando por assentada a sua passividade; a crise lhe ofereceu a oportunidade de fazer ouvir sua voz.
Aqueles nascidos em seu seio falariam, seguramente, em cada ambiente aldeão. Porém, se a sua voz alcançou ressonância, foi porque soou na boca daqueles que podiam fazer-se ouvir, geralmente frades vinculados à vida popular, cujo sentimento moral alcançou, na crise, um grau perigoso de exaltação. Assim ocorreu com Wycliffe, com os lolardos, com Hus e com outros de menor ressonância. As tensões aumentaram quando as partes tomaram consciência delas; e, como o povo, urbano e rural, estava em estado de tensão e conflito com todos por causa da independência, os que quiseram compreender a crise social refletiram particularmente sobre as relações do povo com as outras classes. Tal foi, por exemplo, o tema de Le quadrilogue invectif, um documento expressivo sobre a percepção das tensões sociais.
No colóquio alegórico de Alain Chartier,10 O Povo se queixa amargamente dos abusos da nobreza. Reprova seus vícios, sobretudo sua cobiça e suas ambições de poder, e a própria França declara que “o povo quer estar em segurança, guardado e mantido livre, e se impacienta por sofrer a sujeição à senhoria”. Porém, O Cavaleiro expõe a situação de seu próprio ponto de vista e destaca as inevitáveis tensões sociais. “Es inclinado para toda a perturbação de ordem pública – ele diz a O Povo – e não a podes sustentar sem desencaminhar-te da verdadeira obediência.”
Porém, O Cavaleiro diz mais, e chega ao cerne da questão, que é o deslocamento da ordem social tradicional. “Eu te pergunto, – segue dizendo a O Povo – qual vício é mais prejudicial, o nosso de abusar dos nossos estados na medida do permitido quando eles nos pertencem, ou o teu de tomá-los quando não te pertencem? E para concluir… peço que os vivos testemunhem que tu te enganaste em teu estado mais que nós; e tu bem vês os sinais, visto que um escudeiro daqueles que levam a espada ou a mulher de um homem de menor condição usam a veste de um valente cavaleiro ou de uma dama nobre, com o que costumam estar na corte do príncipe muito bem enfeitados. Esse escândalo veio de mais acima que de ti e de mim, quando aqueles que tinham de repartir as recompensas dos benefícios e as honras os outorgaram aos vestidos e às aparências exteriores, com o que cada um tomou tal aspecto, que é difícil conhecer a condição dos homens por suas vestimentas e distinguir um nobre de um mecânico trabalhador.”
O Cavaleiro defende o seu papel na sociedade e denuncia os protestos populares como contrários aos seus deveres. “O povo se queixa de nós, e gritam e murmuram as gentes comuns contra o senhorio pelo dinheiro que algumas vezes é cobrado deles para a defesa do país. Querem ser guardadas e defendidas e não se esforçam em contribuir com a guarda, como se quisessem ter os bens para si sem sofrer nada e deixar para nós os perigos e os sofrimentos sem termos nada. Nós não podemos viver de brisa, nem as nossas rendas bastarão para sustentar os gastos da guerra; e se o príncipe não recolhe de seu povo o que ele possa nos pagar, e servindo à comunidade vivemos dos bens que encontramos, então me volto para Deus para que perdoe nossas consciências.”
As diversas recriminações se resumiam em uma: o povo se opunha às classes dominantes, antigas ou novas, e se mostrava partidário de uma mudança social sem saber, certamente, o que queria. O povo das cidades, especialmente, sempre parecia disposto às aventuras e não só empreendia as que pensava serem suas, mas aderia às que os outros encabeçavam, nobres ou burgueses, se entrevissem a possibilidade de obter alguma vantagem. Já o havia dito Dante, referindo-se ao de Florença; e Chaucer, testemunha de tantas inquietações, o expressava com uma mescla de irritação e desprezo;11 “Ó, povo violento, inconstante e sempre falso, simplório sempre e volúvel como catavento, satisfazendo-se em todo momento com os rumores novos (pois cresce e mingua sempre como a lua), cheio continuamente de frívola garrulice, que não vale um salário; tua opinião é falsa; tua perseverança mal se prova. Grandíssimo louco é aquele que confia em ti!” Palavras semelhantes Alain Chartier punha na boca de O Cavaleiro quando reprovava a sua tendência à sublevação. E todos os que reuniam essas opiniões haviam sido testemunhas de como as tensões sociais podiam desembocar em confrontos furiosos.
2. OS CONFRONTOS
A crise de retração econômica e social criou as condições adequadas para que se acentuassem as tensões sociais até o ponto em que foi inevitável que se resolvessem em confrontos entre as partes do conflito. Todos os grupos sociais perceberam que não podiam ceder gratuitamente o passo aos seus rivais e que era mister arriscar uma vez o todo pelo todo, medindo forças de peito aberto. Foi essa convicção que deu aos confrontos sociais do século XIV a sua qualidade dramática viva.
Talvez os confrontos mais dramáticos tinham sido aqueles provocados no seio da nobreza. Antes onipotente, a nova sociedade ia encurralando-a lenta e inexoravelmente ao reduzir suas margens de ação e ao forçá-la a agir em condições diferentes daquelas em que havia consolidado seu poder. Ela continuou sentindo-se poderosa, mas não onipotente. E seu antigo orgulho converteu-se em fúria desatada contra as forças que via como inimigas, certamente, mas também contra si mesma, porque percebia que sua unidade fora destruída. Cada facção se sentiu possuidora da melhor estratégia para enfrentar a crise que ameaçava toda a classe, mas, enquanto a enfrentava, disputava as posições com as outras facções para assegurar para si ao menos os privilégios que pudessem salvar no que muitos sentiram como um naufrágio.
Quase sempre os confrontos entre facções nobiliárias tiveram contornos de luta política. Acostumadas ao poder, reduziram a termos políticos as pressões que sentiam sobre seus flancos. Talvez muitos nobres acreditassem que eram, simplesmente, lutas políticas as que empreendiam quando tomavam partido por um ou outro candidato ao trono imperial na Alemanha; ou quando se embandeiravam nas numerosas lutas dinásticas que surgiram nos diversos reinos; ou quando desafiavam o rei acusando-o de estar entregue a um favorito, ou de alienar sua autoridade cedendo-a a uma das facções nobiliárias ou a uma nova nobreza; ou quando pegavam em armas para impedir que o poder real, talvez apoiado nas novas burguesias, levasse a cabo seus projetos centralizadores e autoritários. Mas, embora se manifestassem como lutas políticas, esses confrontos também eram fruto direto ou indireto das novas tensões sociais, como quando lutavam para submeter à sua obediência as cidades que lhes escapavam das mãos. Foram as tensões sociais e econômicas que levaram os duques de Borgonha a confrontar-se com os Armagnac, ou os Lancaster a aniquilar os Plantagenet, ou os York a derrubar os Lancaster. Cada vez mais, as lutas pelo poder econômico eram, nessa nova sociedade na qual se constituía uma nova economia, uma peleja pela posse de um instrumento insubstituível para alcançar esse novo tipo de poder econômico que agora disputavam tanto a nobreza quanto a monarquia, e as novas classes burguesas.
Porém, nem toda a nobreza tinha as possibilidades nem a visão dos borgonheses, dos Lancaster ou dos York. Em cada país e em cada região, e da mesma forma em cada nível, a nobreza percebia, de acordo com sua própria escala, as ameaças que a espreitavam. Em alguma coisa todos coincidiam: na defesa de seus antigos privilégios ameaçados por uma constelação de fatores. Eram a nova sociedade e a nova economia que os comprometiam. Mas em cada episódio aparecia algum responsável visível. As facções nobiliárias distanciadas do poder real acusavam as facções que gozavam de sua proximidade de beneficiarem-se com seus favores enquanto a monarquia se orientava por uma política antifeudal. E o alvo dos ataques podia ser um favorito da nova nobreza, ou os grupos judeus que organizavam o desenvolvimento da fiscalização, ou os comerciantes estrangeiros, ou talvez as burguesias urbanas, ou as que já se moviam na escala do reino. Porém, o ataque terminava enfrentando as facções nobiliárias, todas zelosas de seus antigos privilégios, mas não menos zelosas de que, no reajuste das –situações criadas pelos avatares da crise, fosse uma delas a que saísse beneficiada em prejuízo da outra. As alterações monetárias, as variações nos preços, os impostos inusitados podiam prejudicar a todos. Mas aqueles que estavam perto do poder podiam obter doações de terras, dádivas e privilégios especiais que lhes permitissem compensar os prejuízos. Os adversários, ao contrário, não só não podiam recuperar o que perdiam, mas, além disso, podiam sofrer confiscos, restrições em seus direitos sobre vassalos e, talvez prisão ou morte. Ainda que o alvo indireto dos ataques pudesse ser o rei, a luta decorria entre as facções nobiliárias que tratavam de defender seus privilégios ou de aumentá-los.
Nos primórdios do século XIV, os partidários do bastardo de Trastámara lutaram em Castela contra os que apoiavam a política fiscal e as tentativas centralizadoras do rei Pedro I. Em Aragão, levantaram-se em armas os nobres que defendiam as prerrogativas que lhes concedia o Privilégio da União contra os que apoiavam o rei Pedro IV. Em Portugal, boa parte da nobreza tradicional enfrentou os grupos que apoiavam o pretendente da casa de Avis, João I, a quem apoiavam, além disso, a nova nobreza e as burguesias urbanas. O século XV foi mais tormentoso. A nobreza conservadora de Castela, cada vez mais ávida por terras, levantou-se contra a facção encabeçada pelo favorito de João II, Álvaro de Luna, em quem viam não só um favorito onipotente, mas também o inspirador de uma política centralista e antifeudal. E a situação voltou a repetir-se na época dos Reis Católicos, entre as facções que acatavam a pressão implacável da monarquia e as que, como os nobres galegos, resistiam a ela. Por razões semelhantes, enfrentaram-se na Inglaterra, na Guerra das Duas Rosas, as casas nobiliárias que apoiavam os York e as que sustinham os Lancaster, e depois com as que respaldavam Henrique Tudor. As longas guerras civis que se misturaram com a guerra internacional dos Cem Anos desembaraçaram o caminho da monarquia para o poder absoluto, e a percepção desse perigo, estreitamente relacionado com o crescimento da burguesia e da economia de mercado, alertava os nobres para defenderem seus privilégios. As grandes casas, sobretudo, mas também a nobreza que se formava por trás de cada uma delas, tentaram resistir na França aos intentos de robustecer o poder real, enfrentando-se com as que, por uma razão ou outra, apoiavam essa política da Coroa. A Praguerie na época de Carlos VII, o Bien Public na de Luis XI, a Guerre Folie na de Carlos VIII são transformações sucessivas do mesmo confronto entre os que viam sua salvação na manutenção de sua antiga independência e os que confiavam em prosperar à sombra do crescente poder real. Em Portugal, em 1439, uma facção nobiliária resistiu à que empurrava o infante Dom Pedro à regência, e quase meio século depois houve um movimento semelhante contra João II. Em Aragão se rebelaram contra o rei Fernando os nobres que seguiam o conde de Urgel e depois contra João II aqueles que seguiram a causa do príncipe de Viana. E, em Nápoles, os barões se levantaram contra o rei Ferrante em um tremendo esforço para defender seus direitos e sua autonomia. A luta em defesa de seus antigos privilégios enfrentava em todas as partes as facções nobiliárias, revelando a sua impotência para reconstruir uma situação que desejavam, mas à qual não podiam retroceder.
Mas não foi só isso o que enfrentaram. Se sempre houve querelas e conflitos entre os senhores feudais, a situação crítica acentuou-se porque cada vez pareceram mais questionáveis os direitos que cada um considerava indiscutivelmente próprios; e sua defesa exigiu uma ação cada vez mais desesperada. Sem dúvida, a luta para estender os domínios territoriais comprometia somente a um senhor que localizava obsessivamente seu adversário. Porém, em muitos outros casos, a defesa do próprio direito de cada senhor aglutinava vários outros que se viam em situação parecida. Se se lutava pelo poder, os senhores se agrupavam por parcialidades, ainda que no fundo fosse um, particularmente poderoso, o que encabeçava uma querela contra um rival. A facção preexistia ou se constituía rapidamente e a luta sobrevinha comprometendo a todos os que não podiam encabeçar a luta, se era dirigida contra poderes superiores. Os reis, e mesmo o imperador, tentaram limitar o poder senhorial para aumentar sua própria autoridade; mas nem todos os senhores resistiram a ela, nem se aglutinaram em um só bando. E a proliferação das facções senhoriais acentuava-se quando os poderes superiores entravam em crise, umas vezes aproveitando os conflitos dinâmicos ou as lutas eleitorais no Império, outras o enfraquecimento da monarquia quando a menoridade ou a incapacidade real enfrentava aqueles que disputavam a regência ou, simplesmente, o ascendente sobre a pessoa do rei.
Durante a menoridade de Eduardo III, as facções da nobreza na Inglaterra enfrentaram lutas sustentadas; em Castela durante a menoridade de Henrique III, na Escócia durante a de Jaime III; e por esse exercício do poder por trás do trono combateram as facções nobiliárias na França durante o reinado de Carlos VI, antes e depois de sua demência, como combateram na Inglaterra durante os reinados de Eduardo II e Ricardo II. No Império se misturaram os fatores que desencadearam as lutas senhoriais. A eleição imperial de Luis IV da Baviera enfrentou dois candidatos, e depois deles aos dois bandos que os apoiavam; porém, a luta foi geral e constante: dos senhores entre si, como na época de Wenceslau e como derivação da nova ordem instituída pela Bula de Ouro, e dos senhores contra o imperador cada vez que este tentava transformar sua autoridade de formal em efetiva. A formação de facções por trás de um candidato ao trono no reino de Nápoles depois da morte de Roberto de Anjou foi clara, ao longo das querelas suscitadas no seio da própria dinastia. Com finalidade análoga, enfrentaram-se os Douglas e os Stuart na Escócia, os Lancaster e os York na Inglaterra, os partidários de Juana la Beltraneja e de Isabel em Castela. Subjugados os senhores por Waldemar IV na Dinamarca, voltaram a levantar-se contra a regente Margarida; e depois de constituída a União de Calmar, voltaram a rebelar-se contra os seus sucessores nos três países escandinavos. E foi a luta entre os barões do centro da Itália a que obrigou o Papado a emigrar de Roma.
Foi a crise de retração a que, desde os primórdios do século XIV, abalou a superfície de sustentação da nobreza latifundiária e a obrigou a sair em defesa de suas posições, rompendo a frente comum e pondo às claras os interesses encontrados e as tendências diversas dos grupos distintos. O crescente poder da monarquia, apoiada nas novas classes burguesas, ameaçava a nobreza latifundiária, porém a deixou mais em perigo o impacto da economia de mercado, em parte porque transtornou o sistema de relações econômicas tradicionais e, sobretudo porque abalou a ordem social das áreas rurais nas quais repousava sua riqueza e seu poder.
A comoção profunda e suas conseqüências foram gravíssimas. Manifestou-se em todas as partes através de uma intensificação das tensões. Porém, em certos lugares, algumas circunstâncias transformaram as tensões em conflitos frontais que revelaram a profundidade das mudanças que haviam ocorrido tanto nas condições reais em que se desenvolvia a vida rural como na consciência que as classes campesinas haviam adquirido dessa situação e de seus direitos inalienáveis. Talvez mais que os movimentos sociais urbanos, foram os confrontos rurais os que delataram a crise do sistema tradicional de relações sociais e econômicas.
A primeira grande insurreição campesina irrompeu na Flandres marítima, em um clima preparado pela violência dos confrontos urbanos e favorecido pela vitória que o exército popular havia obtido em Courtrai sobre os cavaleiros franceses em 1302. A nobreza rapidamente tentou não só recuperar suas posições, mas aumentar o seu poder, e procurou impor a servidão aos campesinos naquela zona flamenga onde nunca havia existido este regime, visto que estes eram os descendentes dos que a haviam colonizado. A resposta foi a insurreição campesina que começou em 1323 e durou até 1328, quando a nobreza francesa a aniquilou na batalha de Cassei. Porém, durante esses cinco anos, a guerra foi sem quartel e a matança desapiedada. Abatidos finalmente, os campesinos resistiram longo tempo graças ao apoio das burguesias urbanas; mas, sobretudo, porque tinham um plano político claro, uma vez que, tratando-se de colonos tradicionalmente livres, não só aspiravam conservar a sua liberdade, mas também conservar o sistema democrático no qual haviam organizado suas comunidades. Politizados pelo exemplo dos grupos urbanos flamengos, os campesinos empreenderam a luta com plena consciência de seus objetivos.
Não foi assim na França em 1358, quando irrompeu a Jacquerie. Também ali, uma nobreza voraz oprimia os campesinos; mas não como antes, quando se satisfazia com as suas prestações pessoais e compensava de alguma maneira com sua proteção o duro domínio que exercia sobre eles. Agora, quando muitos campesinos haviam obtido sua liberdade ou, ao menos, haviam conseguido substituir o serviço pessoal pelo salário, a nobreza, que via diminuir suas rendas e tinha saudade dos tempos, para ela felizes, em que vivia despreocupada de sua riqueza, procurou deter o êxodo rural e, principalmente, aumentar suas rendas aumentando os impostos chegando até ao roubo do dinheiro que constituía a poupança do campesino. Um desespero crescente, à medida que a arbitrariedade aumentava no clima de anarquia que se seguiu à derrota de Poitiers e à prisão de João II, lançou a insurreição armada de milhares de campesinos – os Jacques – que satisfizeram sua cólera matando sem piedade os nobres e suas famílias, os seus agentes e os eclesiásticos que compartilhavam os privilégios com eles. Foi uma erupção emocional que se traduziu em uma atitude vingativa, irracional; mas a Jacquerie, em que pese os movimentos burgueses que se produziam então, não conseguiu organizar-se como movimento político, precisamente porque os campesinos não tinham clareza dos objetivos que perseguiam. Marchavam para a libertação da servidão, até a livre contratação de trabalho, talvez até a pequena propriedade; mas não constituíam um conjunto social homogêneo com reivindicações definidas e organização para a luta. Entretanto, matavam. “E quando lhes perguntavam por que faziam isso – disse Froissart –12, alegavam que não sabiam, mas que viam que outros o faziam e eles o faziam também e pensavam que dessa maneira deviam destruir a todos os nobres e cavalheiros do mundo.” Inequívoca guerra de classes, concluiu com a repressão desapiedada que Carlos, o Mau, organizou e pôs em movimento não só os nobres da comarca mas também os de Navarra, Flandres, Hainaut, Brabante e de outras regiões nas quais pediu auxílio aos “seus amigos”, de acordo com a expressiva frase de Froissart.
A inquietação campesina se renovou na França. A situação havia se agravado e desde 1379, no Languedoc, os bandos rurais se entregaram a todo tipo de excessos durante seis anos: foi a jacquerie des Tuchins, sufocada implacavelmente em 1385. Mas nessa época havia irrompido outro movimento rural, desta vez na Inglaterra, em 1381, com caracteres de violência inusitada. Diversas motivações o desencadearam: por um lado, a política da Coroa que procurava manter estanques os salários enquanto aumentava a pressão fiscal; e, por outro, a tendência de obter a anulação da servidão, cada vez mais odiosa à medida que se tornava mais ostensiva a decisão da nobreza de defender e aumentar seus privilégios. Um sermão ideológico que provesse de justificação os revoltosos foi desenvolvido pelos tribunos – clérigos e seculares – que bebiam nos textos da Escritura em busca de fórmulas igualitárias. “Na origem dos tempos – dizia John Bali em seu famoso discurso –13 todos os homens eram iguais. A servidão foi introduzida pelas ações injustas dos maus, contrariando a vontade divina; pois, se Deus tivesse a intenção de fazer a uns servos e a outros senhores, teria estabelecido essa distinção desde o começo. Uma ocasião se apresenta aos ingleses, se quiserem aproveitá-la, de abalar esse jugo tão antigo e de obter a sempre desejada liberdade.” O movimento irrompeu em diversos condados e teve caracteres de extrema violência. Quando os campesinos entraram em Londres, fizeram-se donos da cidade, contaram com o apoio das classes populares urbanas e ainda de alguns setores burgueses. Mas os campesinos tinham seus próprios objetivos, que expuseram ao rei em Mile End e em Smithfield Market. Ricardo II pareceu ceder, mas ao apresentar-se ocasião favorável, a nobreza assassinou o chefe revoltoso, Wat Tyler, e pouco depois, o movimento se desagregou e as concessões foram anuladas. A repressão foi dura.
No início do século XV houve novas insurreições no noroeste da França, entre 1424 e 1433, e outra irrompeu na Suécia em 1431. No entanto, o movimento taborita havia se desencadeado na Boêmia como conseqüência da sentença judicial contra Juan Zizka, que havia enfrentado a grande cruzada internacional lançada contra os revolucionários boêmios. Estavam em jogo apaixonantes questões dogmáticas, mas também os grandes domínios eclesiásticos. No fim da guerra, que se extinguiu somente em 1434, foi a nobreza quem obteve essas terras e as massas rurais apenas melhoraram sua condição.14
Houve um movimento rural na Dinamarca em 1441 e uma nova insurreição campesina na Inglaterra em 1450. Esta última foi encabeçada em Kent por Jack Cade e, ao seu redor, agruparam-se pessoas de todos os condados vizinhos de Londres. Porém, desta vez, os objetivos dos amotinados eram muito confusos e, apesar da crise do reino, foram subjugados rapidamente, não sem que conseguissem ocupar Londres durante dois dias. Nesse mesmo ano começava na Catalunha e em Malhorca o movimento dos países que as agitaria durante longo tempo. Como em todas as partes, a crescente pressão da nobreza latifundiária para reconstituir e aumentar suas rendas foi o principal motivo desencadeador. Mas, como em todas as partes, também contribuiu para os levantes revolucionários a crescente tendência dos campesinos a fugir da servidão obtendo uma nova condição jurídica. O movimento reapareceu em 1462 e, desta vez, duraria dez anos; e, irrompeu em 1484, mantendo-se até 1486. O mesmo caráter tiveram, em 1433 e em 1467, a rebelião dos Irmandinhos da Galícia.15
Por esses anos se levantaram os campesinos de Liège, unindo-se à rebelião geral contra o arcebispo Luis de Bourbon, imposto pelo duque de Borgonha Felipe, o Bom. Seu filho, Carlos, o Temerário, teve que enfrentar os campesinos suíços que, além disso, também se moveram contra as populações urbanas. Entretanto, na Alemanha – onde já haviam ocorrido outros movimentos rurais – desencadearam-se novas insurreições em 1476, e depois em 1491 e 1493. O auge dessas lutas foi a grande sublevação dos aldeões que começou em 1524, no marco das agitações desencadeadas pelo movimento religioso de Lutero e ao qual Tomás Münzer incorporou uma doutrina social radicalizada. Os aldeões foram vencidos em 1525 pela nobreza alemã, que percebeu o crescente sentimento anti-senhorial que os animava. Coisa semelhante ocorreu com o movimento popular castelhano de 1521.
Os movimentos campesinos só parecem compreensíveis se relacionados à crise geral da sociedade dual tradicional, manifestada também através das tensões e confrontos que abalaram as classes nobres. Um desajuste fundamental alterou as relações entre latifundiários e colonos, entre milites et rustici; e a partir dessa situação irromperam os variados conflitos entre colonos e latifundiários, de um lado e, de outro, os confrontos entre os latifundiários, pertencentes aos setores dominantes que tratavam de sobrepor-se à crise da maneira mais vantajosa. Sem dúvida, a crise se gerou em certa medida no seio da própria sociedade dual. Porém, sua aceleração e a diversificação dos processos que desencadeou provieram de um fator externo. Foi a constituição de um terceiro setor – as burguesias urbanas – e sua maneira singular de atuar social e economicamente que precipitou inexoravelmente o deslocamento do sistema tradicional da sociedade dual. A ação desse terceiro setor foi, a rigor, indireta e manifestou-se sobretudo no plano econômico, por meio dos desajustes que o aparecimento e o funcionamento do mercado provocaram no sistema produtivo tradicional do mundo rural. Mas também indiretamente, manifestou-se no plano social, através do efeito da expressão, visto que contrapôs de fato, ao tradicional sistema rural de vida, um novo, o urbano, que subjugou a imaginação daqueles que continuavam sujeitos ao antigo.
O fato de a crise da sociedade dual tradicional ter sido, se não desencadeada, ao menos acelerada e aprofundada por um fator exógeno contribuiu decisivamente para que nem os latifundiários nem os colonos elaborassem uma política autônoma para reajustar a sua situação. Uns e outros se sentiram arrastados por um torvelinho do qual tinham dificuldade para tomar consciência, ignorando qual era a direção dos ventos predominantes que o provocavam. Por isso agiram ao acaso, movidos pela perplexidade ou pelo desespero, uns procurando salvar o que possuíam sem medir a força dos que disputavam esses bens, outros procurando aproveitar a conjuntura para melhorar de condição sem avaliar as próprias forças e sem ter ideia, sequer aproximada, de quais eram os objetivos que podiam realmente alcançar na situação de quebra do sistema em que se achavam. Os senhores lutaram para conservar seus privilégios no sistema social e econômico que caía, e os campesinos lutaram para obter algo no meio do que suspeitavam ser uma crise: talvez alguns, a destruição total do sistema, outros, a extinção do vínculo servil, umas vantagens módicas no regime de arrendamentos, alguns, a consolidação do seu novo estado como pequenos proprietários. Mas todos, latifundiários e campesinos, sem perceber o sentido geral do processo desencadeado e acelerado por esse terceiro setor alheio à sociedade dual e, sobretudo, sem clara consciência dos fins que perseguiam no momento em que, aproveitando a crise e deixando-se levar por um sentimento cego, se lançavam à ação investindo desesperadamente algumas vezes contra a totalidade do sistema e outras contra um dos seus fatores, geralmente o mais visível, porém quase nunca o decisivo.
Muito diferente foi o caso dos confrontos urbanos. Nas cidades os processos sociais que começaram quase com sua constituição tiveram geralmente como protagonistas grupos pequenos e compactos cujo comportamento não só se gerou em circunstâncias muito concretas, mas também foi decidido no ininterrupto intercâmbio de ideias que o ambiente urbano permitia, através do qual cada setor recuperou a perfeita consciência da sua situação, das suas aspirações mediatas e imediatas e da estratégia apropriada para conseguir alcançar seus objetivos. Sem dúvida, algumas vezes certos grupos populares urbanos se lançaram cegamente a aventuras aloucadas, crendo que uma situação inesperada era favorável. Porém, geralmente, os confrontos urbanos responderam a atitudes muito definidas dos grupos que queriam modificar a situação existente a seu favor: eram lutas sociais expressas em objetivos políticos claros.
Ao começar a crise de retração, a maioria das cidades mercantilizadas ou industrializadas contava com um patriciado com forte consciência de classe que havia conseguido, em maior ou menor medida, impor seu estilo à cidade. Em muitas delas, o patriciado governava, dentro de complexos sistemas políticos, muitas vezes efêmeros, que o obrigavam a compartilhar o poder com outros setores sociais. Os grupos menos privilegiados se lançaram contra esse patriciado e em busca de novos sistemas de participação no poder, exatamente porque o patriciado procurava consolidar e monopolizar os privilégios e manifestava uma clara decisão de aproximar-se da nobreza e aliar-se com ela. Os confrontos se tornaram muito intensos em alguns casos e alcançaram uma violência tremenda.
Porém, no século XIV, a burguesia ainda não havia alcançado uma situação de pleno predomínio em todas as cidades. Em cidades muito mercantilizadas – como Londres ou Paris – incluídas em estados territoriais fortes e sob a influência de um poder real ou senhorial importante, a burguesia tropeçava em certos limites, cujo único remédio era reconhecer e aceitar. Mas, se esses limites oscilassem, a burguesia possuía uma capacidade virtual para organizar suas forças e fixar seus objetivos no momento em que a conjuntura se tornasse favorável. No século XIV ocorreram dois casos singulares em Paris e Lisboa.
Em Paris, os Estados Gerais estavam reunidos em 1356 quando aconteceu a batalha de Poitiers, na qual foi derrotado e feito prisioneiro o rei João II. Já preocupada com as exigências de dinheiro suscitadas pela guerra, a burguesia de Paris radicalizou-se a partir do momento em que se produziu a acefalia. Foram enunciadas diversas aspirações ocasionais. Porém, no plano de Etienne Marcel, preboste dos comerciantes de Paris e chefe do movimento, dois pontos pareceram fundamentais. Um seria a aliança das comunas. Outro seria a reorganização do reino sobre a base de uma autoridade política compartilhada pela nobreza, o clero e a burguesia, esta última desejosa de um predomínio efetivo sobre o poder real. Esta ideia foi a que mais impressionou o historiador florentino Matteo Villani, que, interpretando à distância o processo político parisiense, aludiu à sua própria experiência política italiana e chamou a atenção para o significado revolucionário do fato de submeter um poder dinástico tradicional às constrições de um sistema político que expressava a nova realidade social.16 Mas as circunstâncias provaram que o plano era prematuro: as burguesias das outras cidades retrocederam, a monarquia se recuperou na pessoa do regente, o futuro Carlos V, a nobreza encontrou um chefe em Carlos o Mau, e os diversos setores da burguesia e das classes populares reduziram seu apoio ao preboste dos comerciantes e representantes da alta burguesia. Assassinado Etienne Marcel, o ambicioso projeto de um poder burguês originado na própria burguesia se precipitou; e os burgueses aceitaram uma posição subordinada para prosperar à sombra da Coroa.
Em Lisboa, o movimento antinobiliário havia crescido impulsionado pela Coroa na época do rei Pedro I. Quando o seu sucessor, Fernando, inclinou-se a favor da nobreza, especialmente a partir da sua união com Leonor Téllez, o movimento antinobiliário voltou a se expressar como uma tendência popular, que foi descoberta no motim de 1371, dirigido pelo alfaiate Fernando Vasques. Foi essa tendência popular que, ao morrer o rei Fernando, se galvanizou ao redor do Mestre João de Avis, bastardo de Pedro I, quando se abriu a perspectiva de que Castela consumiria Portugal. Em 1383, o Mestre desafiou a nobreza tradicional e matou seu chefe, obtendo o apoio das classes populares de Lisboa – o povo miúdo – para a sua política anticastelhana e antinobiliária. Porém, o Mestre vacilou em recebê-lo e, só diante do desafio nobiliário, decidiu-se a aceitar o título de “regente do reino” que o povo comum, o povo miúdo lhe ofereceu. Ainda então o Mestre se recusou a encabeçar uma revolução popular e buscou o apoio dos cidadãos honrados. Foi em 1385 que os cidadãos da Câmara também consentiram em conferir-lhe aquele título; e quando o obteve de “todos os da cidade”, iniciou a reorganizaçãob do reino, sob a inspiração e com a crescente influência da alta burguesia comercial e marítima de Lisboa, à qual se somou a de outras cidades, especialmente do Porto.17
Pequenos confrontos – e inúteis – se sucederam em Castela entre os grupos senhoriais e uma burguesia que lutava por fortalecer-se. Em diversas cidades houve movimentos na época de Afonso XI, e constituiram-se entre algumas delas “irmandades” orientadas contra a alta nobreza, graças ao que as cidades receberam o apoio dos fidalgos da nobreza menor. A luta entre Pedro I de Castela e Henrique de Trastámara deixou claras as tensões existentes, visto que as burguesias urbanas tomaram o partido de Pedro I. E, nas sucessivas crises do reino, as cidades elegeram seu partido tratando de conter a nobreza latifundiária.
Uma cidade pouco atingida pelo processo de mercantilização na qual, não obstante, a burguesia tratou de sobrepor-se à nobreza, foi Roma. As forças populares haviam irrompido nela já em meados do século XIII com Brancaleone degli Andalò e voltaram a se insurgir em 1312 e em 1328. Porém foi Cola di Rienzo quem imaginou um novo regime político para a cidade, quando, em 1347, chamou os setores médios em seu apoio. “ Depois disso, reuniu muitos Romanos, populares discretos e homens bons; também entre estes houve cavallerotti e de boa linhagem; muitos mercadores ricos e discretos.”18 Apoiado nessas camadas sociais, Cola deu a Roma, privada do Papado, uma organização democrática baseada na supremacia dos privilégios nobiliários. Reminiscências antigas nutriam uma concepção republicana e igualitária, teoricamente sem distinção de classes. Porém, os barões conseguiram superar as humilhações e as espoliações e, voltando a opinião contra Cola, obrigaram-no a fugir. Quando retornou, movido pelo cardeal Albornoz, em 1354, voltou a polarizar por pouco tempo os sentimentos antinobiliários dos setores médios, porém fracassou novamente. Todavia, esses sentimentos foram suficientes para inspirar um novo governo igualitário, em 1358, que durou até o efêmero retorno de Urbano V em 1367.
Muito diferente foi o caso das cidades nas quais o processo de mercantilização e industrialização chegou ao auge. Foi nelas que o patriciado exerceu o poder ou, de alguma maneira, impôs o seu estilo de vida. Mas, na mesma medida em que o poder do patriciado aumentou, foram se robustecendo as classes subordinadas e, particularmente, as que estavam em relação direta de dependência com ele. As duas forças sociais – capital e trabalho – entraram em conflito nessas cidades, e aconteceram insurreições da pequena burguesia – el popolo minuto – e dos ofícios, isto é, das organizações, às vezes ilegais, de companheiros que constituíam a mão-de-obra especializada, particularmente na indústria têxtil. O objetivo dos rebeldes sempre foi solapar o poder do patriciado e obrigá-lo a compartilhá-lo com eles, em sistemas constitucionais cuja fórmula variava conforme a força que em cada cidade puderam afiançar os grupos médios e, ocasionalmente, os grupos populares. Típicos movimentos antipatricios às vezes também entranhavam em certos lugares um sentimento antinobiliário na medida em que o patriciado era apoiado pela nobreza. Mas a atitude dos revoltosos dos grupos médios revelava a convicção de que a batalha contra os privilégios nobiliários já estava ganha. E, certamente, assim foi no princípio. Porém, foram precisamente estes movimentos da pequena burguesia e dos ofícios os que contribuíram para fortalecer a aliança entre o patriciado e a nobreza e, pouco depois, a aliança entre ambos e os poderes territoriais que subordinaram as cidades à sua autoridade.
Foi nos Países Baixos onde os conflitos tiveram maior intensidade. Em Bruges o movimento antipatrício irrompeu em 1302 e os ofícios, triunfantes sobre os patrícios e sobre os cavaleiros franceses, conseguiram democratizar o governo.19 A ressonância dos êxitos militares do povo comum de Bruges – o dia dos “Matinas” e o dia de Courtrai – foi grande nas cidades de Flandres, Brabante e em Liège, em muitas das quais outros movimentos semelhantes se produziram com êxito distinto. E ainda que a pressão francesa conseguisse diminuir o alcance do movimento, a presença política dos ofícios e da pequena burguesia foi reconhecida e os patrícios perceberam a ameaça que significava. Essa ameaça se cumpriu em Liège em 1312. Ali os artesãos derrotaram o patriciado em ferozes combates urbanos e impuseram – na paz de Angleur – um governo popular, cujos membros deviam pertencer aos ofícios com exclusão dos que fossem de origem patrícia.
Mas o movimento de maior envergadura foi o que de desencadeou em Gent, em 1338. A cidade estava comprometida em uma grave crise econômica, e Jacob van Artevelde promoveu a aliança com a Inglaterra e aglutinou ao seu redor todos os setores sociais. Porém, as antigas tensões, que já haviam se manifestado em 1311 e em 1319, irromperam novamente; os ofícios se separaram do patriciado e conseguiram conquistar o poder. De todos, os mais radicais eram os tecelões que se dispuseram a separar os demais do governo da cidade. Jacob van Artevelde foi sacrificado e seus competidores vencidos, e assim o governo ficou exclusivamente nas mãos dos tecelões.20 Conflitos semelhantes entre os diversos grêmios se produziram em Bruges nos mesmos anos. E em Liège, em 1345, uma revolta popular restabeleceu o governo dos ofícios.21
De natureza semelhante foram os movimentos que se produziram na mesma época em muitas cidades alemãs. A partir de 1332 Estrasburgo entrou num processo revolucionário, que desalojou a nobreza das altas magistraturas; em 1334 foi estabelecido o princípio de que os artesãos tivessem os mesmos direitos que os outros estratos urbanos, até o ponto em que o Conselho se constituiu de oito nobres, 14 burgueses e 25 artesãos.22 Um sistema político semelhante foi estabelecido em outras cidades: Colmar, Basiléia, Zurique. Magdeburgo também havia visto uma revolução dos artesãos em 1330, e fenômenos parecidos ocorreram em várias cidades hanseáticas, com a consciência grave de que se viam excluídas da liga quando o governo passava às mãos dos ofícios.23
Em 1369, radicalizou-se o movimento artesão de Liège e o governo ficou nas mãos dos ofícios com a exclusão dos outros grupos sociais e econômicos. Esse sistema, talvez o mais extremado, foi imitado por Colônia em 1396, onde, primeiro, o sentimento antinobiliário e, depois, a decidida atitude antiburguesa dos artesãos criaram um clima de tensão violenta resolvida, no quadro político, a favor dos ofícios.
Na Itália, um movimento de natureza semelhante se produziu em Florença já em 1293, quando se estabeleceram as Ordenanças de Justiça sob a pressão dos minuti e a inspiração de Gian della Bella; mas o governo popular durou pouco e, depois da morte do tribuno, foi restabelecida a hegemonia do patriciado. O experimento repetiu-se em Siena. Desde 1283, os patrícios detinham o poder, depois de terem dominado a nobreza; porém, em 1355, tiveram que cedê-lo às classes médias, as quais, por sua vez, se viram obrigadas a dividi-lo com o popolo minuto, que apareceu em cena com inusitado vigor. Durante certo tempo, manteve-se um sistema partilhado que expressava uma aliança de classes, até que a crise econômica e a fome mobilizaram os tecelões, que tomaram conta do governo em 1377. Os “Quinze Defensores” foram inicapazes de resolver os problemas sieneses que, além disso, superaram as possibilidades da cidade. A violência aumentou e o popolo minuto se dividiu, com o que pôde ser expulso do poder por uma aliança do patriciado e da burguesia média.24
Contemporâneo do movimento popular sienês – no qual os tecelõess alcançaram um alto grau de radicalização política e conseguiram mobilizar os estratos sociais mais baixos – foi o movimento dos Ciompi em Florença, que irrompeu em 1378. Também ali se mobilizaram os setores sociais do mais baixo nível econômico, irrompendo na cidade contra o patriciado e criando um clima revolucionário. As exigências eram sempre as mesmas: redistribuição dos tributos obrigatórios, revisão das condições de trabalho e, sobretudo, participação no poder. Quando o movimento triunfou nas ruas, Michele di Lando foi eleito estandarte da justiça; nessa qualidade encabeçou o movimento popular e, nos acontecimentos, o governo. A criação das três novas Artes – ou grêmios – devia modificar o quadro político da cidade. Porém, como sempre, os setores radicalizados superaram as margens de ação de Michele di Lando, que se viu obrigado a contêlos. Uma vez mais se repetiu o processo: perdido o apoio dos grupos radicalizados, Michele di Lando se viu à mercê dos setores moderados, que preferiram entender-se com os popolani grassi. Michele di Lando e Salvestro de Medici – que havia encabeçado o movimento com ele – foram desterrados e o governo de Florença caiu nas mãos das Artes Maiores, isto é, dos patrícios.25
Por esses anos – em 1379 – irrompeu em Gent a grande insurreição contra o conde de Flandres, que se estendeu a Bruges e Ypres. O conde e o patriciado de Gent que a apoiava tiveram que fugir sob a ameaça dos tecelões, que logo encontraram um chefe em Felipe van Artevelde. Em Bruges e Ypres, os tecelões também dominaram a situação; porém, em Bruges tiveram que enfrentar a oposição dos outros ofícios que, unidos, os derrotaram em 1380. Pouco depois, só Gent resistia e, em um esforço desesperado, Artevelde levou a guerra para Bruges para instalar os tecelões, seus aliados, no poder, que, depois do triunfo, castigaram sem piedade as pessoas dos ofícios: açougueiros, cuteleiros, vidraceiros, pescadores. A guerra social perdia seus contornos ao se desmoronar a frente dos ofícios. Mas o perigo desencadeou a intervenção francesa, e o exército popular flamengo foi vencido em Roosebeke em 1382.26
Na França também ocorreram conflitos sociais de natureza semelhante na mesma época. Ruan viu, em 1382, uma intensa insurreição popular – la harelle – que começou como uma reação contra os impostos, mas se transformou em um movimento não só contra os funcionários reais, mas também contra os patrícios. Pouco depois irrompeu em Paris a insurreição dos Maillotins, também desencadeada originariamente pela pressão fiscal, logo generalizada como um vago protesto das classes populares contra os patrícios ricos e, como no caso de Ruan, contra os judeus.27 Outras cidades francesas foram cenário de explosões sociais semelhantes na mesma ocasião.
Porém, foi mais tarde que os conflitos sociais adquiriram maior violência na França. Lyon, onde o patriciado havia alcançado a hegemonia em 1320, viu sucederem-se os movimentos populares, especialmente a partir dos princípios do século XV. Ao mesmo tempo, Paris se viu comprometida na revolta popular de 1413 encabeçada por Simon le Coutelier, chamado Caboche. O movimento dos açougueiros, envolvidos nas peripécias da guerra civil que eram mantidas pelos armagnacs e borgonheses, ganhou as ruas e manifestou-se em inumeráveis atos de violência de que foram protagonistas grupos populares que, servindo aos interesses de João sem Medo, superavam esses objetivos e davam rédeas soltas à sua rebeldia. Por entre os fios da agitação popular se misturavam os dos reformadores que redigiram a chamada Ordonnance cabochienne, inspirados por uma política que não era a dos amotinados. Mas, tanto estes como os borgonheses que os haviam lançado à ação e de cujas mãos haviam escapado foram dominados pelos armagnacs. E, quando os borgonheses recuperaram Paris, o movimento popular foi zelosamente controlado por João sem Medo.28
Em 1419 irrompeu em Praga a rebelião dos hussitas. Profundos motivos religiosos moviam-nos; porém, o motim popular, impelido pela prédica de Jan de Zeliv, adquiriu no início caráter de uma irrupção popular urbana. A virulência das ações tornou-se patente quando a multidão se lançou sobre o ajuntamento da cidade nova e jogou pelas janelas um grupo de conselheiros e burgueses que caíram sobre as lanças dos contingentes armados.
Nas cidades catalãs – e especialmente em Barcelona – as tensões que se criaram entre a alta burguesia, por um lado, e o conjunto da pequena burguesia, os menestréis e, às vezes, o poble menut, de outro, enfrentaram dois grupos que alcançaram clara fisionomia política na luta pelo poder: a primeira constituiu a biga e os segundos a busca. O confronto se intensificou entre 1451 e 1455. Em Barcelona os buscaires conseguiram impôr-se em 1453 e constituíram a maioria no conselho, impondo uma política hostil aos bigataires; o traço predominante dessa política foi uma desvalorização da moeda que, a rigor, mais do que à pequena burguesia e aos menestréis, favorecia a uma nova classe capitalista surgida em oposição ao velho patriciado. Porém, o confronto das duas facções mobilizou os diversos setores sociais e abalou a estrutura social das cidades catalãs.29
Foi, pois, geral, ainda que com diversos graus de intensidade, o tumulto das sociedades urbanas, especialmente nas áreas mercantilizadas e industrializadas e em suas zonas de influência. Houve, além disso, um efeito de contágio. Enquanto a nobreza combatia por seus privilégios em duas frentes – contra a monarquia de tendências autoritárias, por um lado, e contra os campesinos rebeldes, por outro –, o patriciado devia fazer frente às insurreições das classes médias e do proletariado urbano. A crise suscitou diversos projetos de solução, buscando cada grupo fortalecer suas posições. E as conclusões desses intentos revelavam as contradições da nova estrutura social, na qual o patriciado, no entanto, conseguiu manter sua supremacia apesar das suas derrotas ocasionais.
A situação geral definiu-se por uma crescente aproximação do patriciado e da nobreza – nova ou antiga – que fundiu em uma só suas políticas antes praticadas. Esta política, apesar dos seus matizes, expressava o afã solidário de dividir o sistema de privilégios, impedindo que o processo de ascensão social das classes inferiores os pusesse em perigo. Essa aliança insinuou desde o século XIV sua tendência a ceder às pressões dos poderes senhoriais e reais com a condição de obter sua proteção. Foi uma renúncia progressiva às pretensões de partilhar a autoridade política com aqueles poderes em troca de assegurar a hegemonia social e os privilégios econômicos.
Mas, dentro dessa situação geral, ensaiaram-se outras soluções. Uma foi a aliança com as classes populares de uma figura proeminente dentro do sistema tradicional para estabelecer uma ditadura popular dirigida contra a nobreza e o patriciado, unidos e constituídos cada vez mais em uma oligarquia fechada.
Uma tentativa dessa classe fizeram em Flandres, em 1302, os filhos do conde Gui de Dampièrre e seu neto, Guillaume de Juliers, depois das “Matinas de Bruges”. Despojados pelo rei da França, assumiram a direção da luta que as classes populares haviam desencadeado contra o patriciado local e o rei francês e obtiveram a vitória de Courtrai. A aliança durou certo tempo: as classes populares mantiveram suas conquistas sociais e políticas, estendendo-as a cidades onde antes não haviam conseguido, e os herdeiros de Gui de Dampièrre recuperaram o condado. Porém, estes últimos, para consolidar sua posição, se separaram das classes populares ao firmar com o rei da França a paz de Athis em 1305. E, embora voltassem a unir suas forças, ficou visível que seus interesses não eram os mesmos.
Em alguma medida expressou as mesmas tendências Simón Boccanegra, imposto em Gênova como duque pelas classes populares em 1339. O movimento era dirigido contra o patriciado transmutado em nobreza que dirigia a cidade: os Fieschi, os Grimaldi, os Doria, os Spinola. A pequena burguesia e as classes populares esperavam muito, certamente, do novo senhor, o qual, no entanto, atendeu de preferência aos seus próprios interesses e aos da sua família com uma preocupação quase dinástica. Fugitivo em 1344, Simón Boccanegra voltou ao governo entre 1356 e 1363, ao calor outra vez de um veemente movimento popular. Outra vez o resultado foi o mesmo, e pouco depois morreu abandonado pelos setores que o haviam levado ao poder.
Não é certo que o projeto autocrático atribuído ao duque de Veneza, Marino Faliero, em 1355 tivesse as mesmas características. Em compensação, o de Gualtieri di Brienne, posto em prática em Florença em 1342, as teve de maneira inequívoca. Chefe de um contingente militar enviado pelo rei de Nápoles em apoio à Signoria florentina – em mãos dos popolani grassi –, o duque de Atonas capitalizou o descontentamento popular e, com o apoio da pequena burguesia e do popolo minuto, instaurou uma ditadura popular, de traços acentuadamente demagógicos. O experimento durou pouco tempo: no ano seguinte terminou esmagado pelos grassi. Também teve aquelas características, e em supremo grau, o plano do duque de Borgonha João sem Medo, posto em prática desde 1411 e cujo mecanismo fundamental foi sua aliança com os açougueiros. Durante um breve tempo pareceu que o movimento popular fugia das mãos de João sem Medo; mas as tendências radicalizadas e autônomas que apareceram foram dominadas e o duque continuou utilizando os grupos mais submissos para servir à sua própria política. Ainda em 1433 se veria em Barcelona um nobre, Galcerán de Requesens de Soler, acaudilhar o movimento popular que introduziu os artesãos no governo.
Outras soluções se insinuaram. Na mente de alguns burgueses parece haver-se esboçado o projeto de estabelecer um sistema político cujo nexo fundamental seria uma aliança das comunas independentes.
Com Jacob van Artevelde, em 1337, e com Etienne Marcel, depois de 1356, este projeto teve um princípio de execução; e talvez Cola di Rienzo o houvesse concebido também em 1347. A mobilização revolucionária das comunas serviu, sem dúvida, para que se fizesse patente a força das cidades como entidades socioeconômicas e, a partir do momento da sua insurreição, triunfante em maior ou menor medida, também sua força como entidades políticas. Pôde agregar-se a esta percepção o efeito demonstrativo que as insurreições de algumas cidades tiveram sobre outras, nas quais talvez as circunstâncias não fossem tão favoráveis; e se pôde ver nisso uma coincidência política generalizada acerca de uma nova ordem burguesa e democrática. Sem dúvida, a descoberta das tendências autoritárias que a monarquia demonstrava não alarmou somente a nobreza. O patriciado também se sentia alarmado e, em certas áreas, quando as circunstâncias se mostraram favoráveis, pensou na possibilidade de conseguir a independência, ou, em todo caso, de substituir, por meio de uma troca de jurisdição, uma dependência por outra, da qual esperava maior liberdade de ação.
Diante dos conflitos estabelecidos nas sociedades urbanas pela atitude ameaçadora – e às vezes triunfante – das classes subordinadas, o patriciado foi definindo pouco a pouco a sua atitude política. Contribuiu para essa definição a sua crescente tendência a ultrapassar os limites da economia urbana em busca de horizontes mais amplos para as suas operações comerciais, afinadas com a grandeza de seu capital acumulado, com a sua capacidade organizadora, com as suas expectativas de lucro. Combinando as duas preocupações, o patriciado concebeu aos poucos a ideia de que devia renunciar ao poder político para conservar um sólido poder social e econômico, que adivinhava que iria crescer progressivamente, à medida que aumentasse esse novo meio de produção que estava se constituindo: o capital. Porém, tinha que renunciar ao poder político em favor de outro poder político já constituído, mais forte e com mais experiência de seu exercício, que necessitava da riqueza da nova burguesia e que podia oferecer em troca dela, se a obtivesse, um sistema de segurança e de ordem no qual a atividade econômica podia prosperar. Ou, em todo caso, de um novo poder que aceitasse e cumprisse essa missão. Pouco a pouco, o patriciado renunciou ao exercício direto do poder, pelo qual havia lutado tenazmente em muitas cidades durante muito tempo. Delegou-o às mãos de novos senhores que foram sua estrutura, ou o aceitou de reis ou príncipes com os quais negociou em termos expressos ou implícitos. Sua opção ficou definida: preferiu o poder social e econômico ao poder político. E transformou-se no amparo fundamental das novas monarquias autoritárias. Além disso, era o mesmo que havia feito a nobreza, ansiosa, como o patriciado, por conter o processo de mobilidade social. E esta coincidência assinalava a sua progressiva interpenetração no que seria, cada vez mais, uma sociedade feudoburguesa.
II. As Contradições da Vida Econômica
O conflito entre as duas economias – uma feudal, a outra mercantil – não se manifestou, naturalmente, com a mesma clareza que tiveram os conflitos entre as duas sociedades. Apenas perceptível no início, foi tornando-se manifesto ao longo do tempo e se intensificou ao aprofundar-se a crise de retração ao longo do século XIV. A rigor, as tensões e os confrontos sociais, mais visíveis, delatavam as contradições da economia. Porém, a visão para perceber e penetrar nos problemas políticos e sociais era muito mais refinada do que a que começou – somente então – a instrumentalizar-se para analisar os problemas econômicos. Talvez nisso tenha consistido, em primeiro lugar, a contradição fundamental da vida econômica: no que não se adivinharam os segredos da nova economia nem apareceu uma metodologia para analisá-los.
Mas a nova economia não era, a rigor, a economia comercial. Era muito mais, a difícil e cambiante combinação das duas: a feudal e a mercantil. Nos fatos, a combinação produziu-se de formas muito diferentes; porém, os mecanismos mediante os quais essa combinação operava e as conseqüências insólitas que derivavam dela permaneceram semi-ocultos, de modo que as explicações ocasionais sobre os diversos fenômenos em que se manifestava a crise foram superficiais e mais relacionadas com os sintomas do que com as causas profundas que os produziam.
A fome, a escassez, a inflação, com seus fenômenos conexos de carestia e de desvalorização monetária, foram geralmente explicadas por razões impróprias, entre as quais ocupavam um lugar de destaque as morais. Porém, ao mesmo tempo, a nova economia mercantil aprimorava seu funcionamento e tornava evidente, de diversas maneiras, os mecanismos e as leis que a regiam. O contraste entre a realidade da nova vida econômica e sua interpretação acentuou-se quando a crise de retração deslocou as formas elementares daquela, sem que se dispusesse de chaves para entender os fenômenos de deslocamento, visto que tampouco as tinham para entender os de maior regularidade.
O afloramento progressivo das contradições da nova economia suscitou a identificação e diferenciação dos diversos interesses setoriais que, na crise, se manifestaram como irredutivelmente antagônicos. As vezes se contrapuseram com denodada intransigência e trataram de impor-se uns aos outros, como se não fossem parte inseparáveis do mesmo sistema. E a incompreensão dessas relações indissolúveis os levou a buscar um princípio regulador extraeconômico: o poder político, que começava a adquirir algumas dos características de um estado objetivo.
Contudo, o poder real – ou senhorial – manifestou-se, nessas circunstâncias, como um dos setores econômicos que a crise contribuía para identificar. Antes preocupados somente em aumentar os seus domínios, os reis e os senhores logo desenvolveram uma forte tendência a participar dos ganhos proporcionados pela economia mercantil por meio do imposto. A política fiscal delineou-se como um aspecto importante da política real, e às vezes adquiriu perigosas características de voracidade que comprometeram a atividade dos setores castigados. Operando como um setor econômico, o poder real ou senhorial fixou os impostos em relação às suas necessidades, que em certas ocasiões eram enormes, como quando se tratava de financiar uma guerra exterior; porém, normalmente, a capacidade do contribuinte não interveio em seu cálculo: e não só pela falta de escrúpulos da voracidade fiscal, nem pela possibilidade de aplicar livremente o princípio de autoridade, mas também pelo desconhecimento das regras da nova economia e dos níveis de produção e riqueza. Comportando-se como um setor de interesse, o poder real ou senhorial interferia na vida econômica como parte desta, e nessa qualidade, enfrentavam-se os outros setores de interesses apelando a todos os recursos – inclusive à força – para limitar os alcances da fiscalização. Houve certo jogo entre o fisco e os contribuintes, graças ao qual foram estabelecendo e reconhecendo algumas pautas que revelariam alguns dos mecanismos da vida econômica.
No entanto, em que pese essa atitude do poder real ou senhorial como parte da vida econômica, os outros setores que lutavam por defender seus interesses reconheceram a autoridade política como o único regulador dos seus conflitos à qual podiam apelar. Por isso, aceitaram – ou promoveram – a intervenção estatal na economia, até configurar o que se chamaria uma política mercantilista. Se todos consentiram, em maior ou menor medida, nessa intervenção, foi porque não se descobriram mecanismos de auto-regulação para uma competição que parecia não ter limites. Produtores, consumidores e intermediários exerceram suas respectivas funções no quadro da nova economia de maneira espontânea, porque cada um tinha que cumpri-las e lhes convinha cumpri-las, sem descobrir oportunamente as relações indissolúveis que as diversas funções tinham entre si. O confronto dos interesses setoriais foi violento na medida em que foi cego.
O fato de amplos setores das classes latifundiárias não compreenderem as peculiaridades do processo econômico em que se viram inseridas foi provado pela desaforada obsessão com que quiseram reter na terra os camponeses que ameaçavam emigrar e manter os vínculos de servidão, quando houve uma nova abertura para as forças de trabalho. A rebelião e a repressão foram as respostas sociais; porém, houve respostas econômicas, através das quais começaram a se modificar as condições da produção. Uma modificação foi admitir a substituição do servo pelo campesino assalariado; outra, a prática do arrendamento; outra, os sistemas estimulantes de parceria. Porém, a mais importante foi a transferência de certas modalidades organizadoras, experimentadas nas atividades mercantis, à produção rural dedicada, precisamente, ao mercado. Estabelecidas empiricamente, essas modificações costumavam resolver o caso particular do produtor que as adotasse. Porém, as relações do produtor com o mercado demoraram muito tempo para encontrar formas regulares. Fruto da irregularidade foram os episódios de fome, escassez, açambarcamento e carestia que apareceram em numerosas oportunidades e em todas as partes, provocados mais por problemas de distribuição do que por problemas de produção, levando em conta, sobretudo, as alterações de mercado – tanto interno como externo – por causa das convulsões sociais e políticas. O produtor preocupou-se em manter a liberdade de fixar os preços, mas entrou em choque com os consumidores e com o poder público cada vez que as circunstâncias ficaram críticas. Em todo caso, a sorte dos grandes produtores foi menos dura do que a dos pequenos, cujas margens de resistência em épocas difíceis eram escassas e que, ao se verem vencidos, caíam na miséria. Além disso, os ditos produtores – pequenos possuidores ou arrendatários – estavam à mercê de seus vizinhos poderosos, que faziam pesar a sua autoridade ou sua influência social e política. Os despojos ou as cercaduras foram casos representativos dessa situação.
Diferente foi o caso dos produtores de artigos manufaturados ou industriais. Nascidos com a economia de mercado e acostumados desde o início às suas regras incipientes, aprenderam muito depressa a calcular seus custos e a conhecer o jogo da demanda, tanto no mercado interno como no externo. Porém, na crise de retração, as condições sociais e políticas foram tão variadas e complexas que o mercado se tornou aleatório. O acordo ou a inversão de uma aliança, baseada em razões dinásticas ou políticas, interrompia repentinamente uma corrente de importações ou exportações fundamentais para determinadas áreas. As contingências do mercado interno não foram menores. Crises de pobreza e desocupação alteravam substancialmente a demanda por tecidos ou utensílios. Porém também produziram alterações substanciais a falta de matérias primas ou o aumento do seu custo, ou o aumento dos salários, ou dos impostos, ou a desvalorização da moeda. Como no caso dos produtores agropecuários, todas as contingências econômicas, combinadas com as contingências sociais e políticas, se refletiam no preço, símbolo da nova economia de mercado.
O preço – fator inoperante na economia de consumo – transformou-se imediatamente no ponto de encontro de todos os interesses setoriais. Em princípio, os consumidores eram os destinatários da produção e, em conseqüência, os adversários inequívocos dos produtores. Mas os consumidores não lutavam com os produtores e sim com os intermediários, um setor antes inexistente e que havia sido o criador da economia de mercado. Os consumidores afirmavam sua própria personalidade como setor. Nas cidades constituíam grupos sociais concretos e visíveis, visto que se congregavam nas feiras e mercados, nos açougues e padarias. Ali discutiam os preços ou reclamavam os produtos que escasseavam ou haviam desaparecido, chegando aos gritos e às ameaças e promovendo, algumas vezes, verdadeiros motins. No entanto, também os consumidores açambarcavam as mercadorias, em uma escala moderada, ao primeiro sinal de escassez, de encarecimento ou de ameaça de qualquer tipo de transtorno público. E, enquanto representavam “a demanda”, constituíam, para produtores e intermediários, um conjunto protéico, instável e volúvel, cujos apetites tinham que estar preparados para satisfazer contando não só com suas necessidades permanentes, mas também com suas preferências ocasionais – movidas por correntes subterrâneas de opinião que os inclinavam para certos consumos recusando outros – ou por apreensões ou opiniões imprevisíveis e infundadas que modificavam as tendências do mercado. Detectar os apetites dos consumidores constituía uma preocupação sempre inquietante de produtores e intermediários. Mas, como a maioria dos consumidores formava parte dessa nova sociedade caracterizada pela intensa mobilidade social, era difícil estabelecer a magnitude de cada um dos setores que integravam, sua capacidade aquisitiva, suas preferências. Como grupo social, os consumidores eram o reflexo da nova sociedade em processo de mudança e agora em plena crise, e a previsão de seus apetites constituía um elemento do jogo da vida econômica, inédito e por isso mesmo enigmático.
No entanto, o elemento mais conflitante foi o preço. Quando a economia de mercado começou a funcionar, de fato admitiu-se que o preço ficava configurado pela oferta e pela procura. Porém, duas noções tradicionais, de tipo moral e elaboradas em outras circunstâncias econômicas, questionaram este mecanismo: uma foi a ideia do “preço justo” e a outra a da usura. A alegação e o uso dessas duas noções revelaram as contradições em que se desenvolvia a nova economia.
O “preço justo” foi uma resposta moral dada pela Igreja às flutuações dos valores, às quais se atribuía uma motivação especulativa. Doutrina de longa tradição, admitia a existência de um preço justo para cada mercadoria, que correspondia ao seu presumido valor intrínseco e, em conseqüência, condenava como imoral a obtenção de um lucro imoderado que ultrapassasse as necessidades do vendedor. Talvez adequada às condições predominantes nas áreas de economia feudal, a noção de “preço justo” colidiu com as inequívocas tendências da economia de mercado, na qual o lucro constituía o motor de toda a atividade econômica. Dessa colisão resultaram numerosas e sucessivas correções à teoria do “preço justo”. Santo Tomás, que a defendeu em princípio, assinalou a inevitabilidade dos ajustes exigidos e impostos pelo mercado, e esse ponto de vista foi fortalecendo-se com o tempo. Mas as transformações da doutrina do “preço justo” deixaram claras tanto as contradições da nova economia como a lenta percepção de sua força incontrastável. Quaisquer que fossem as razões – éticas ou sociais – que pudessem obrigar circunstancialmente que se interferisse na configuração do preço pelo jogo da oferta e da procura, impunha-se a certeza de que, na nova economia, era esse o mecanismo fundamental para estabelecê-lo.
Algo semelhante ocorreu com a condenação da usura. Declarada ilícita pela tradição cristã hebraica, Santo Tomás consolidou esse juízo afirmando que era injusta. Porém, o tráfico do dinheiro havia crescido paralelamente com o desenvolvimento comercial e constituía uma atividade imprescindível. A rigor, a formação do novo sistema econômico baseava-se na existência de um capital, e quem quisesse operar dentro dele devia possui-lo. O capital era a primeira condição para colocar em marcha um projeto econômico, e quem não contasse com um capital suficiente recorria ao crédito para aumentá-lo. Assim funcionaram as primeiras experiências da economia de mercado. A obtenção do dinheiro só era possível oferecendo, em troca, uma vantagem. Como determinar os seus limites? A aplicação de um critério moral, derivado da experiência do necessitado que pedia para sustentar-se e logo se via ultrapassado por uma dívida desmesuradamente aumentada pelos juros, não tinha nada a ver com a situação do que pedia dinheiro emprestado para constituir ou aumentar um capital com o qual esperava obter certo lucro. Na prática, a usura era somente uma designação tradicional aplicada indevidamente a uma das diversas fases do novo tipo de atividade econômica; e sua condenação em geral era como condenar as atividades financeiras, inseparáveis das atividades mercantis e manufatureiras, cujo desenvolvimento impulsionava a transformação econômica. Também a noção de usura foi revisada durante o período de retração econômica, e tanto Duns Scotus como seu discípulo Francisco de Mayronis adiantaram a opinião de que não era necessariamente ilícita. Mas durou um tempo mais longo. Em primeiro lugar, porque sempre podia ser atribuída a casos particulares que não tinham que ver com o funcionamento do capital em dinheiro aplicado à obtenção de lucro. E, em segundo lugar, porque ainda mais que o mecanismo da configuração do preço, ficou oculto o papel do dinheiro na nova economia, confundido com o problema mais visível da moeda. Nicole D’Oresme que, como antes Buridan, preocupou-se com este último, não foi adiante no descobrimento dos mecanimos financeiros, que funcionaram sem merecer uma análise de suas peculiaridades: foi mais um sinal das contradições da nova economia.
Em defesa de seus interesses setoriais, os consumidores tiveram que confrontar-se diretamente com os intermediários, um setor fundamental da nova economia. Inexistentes ou de muito pouca gravitação até então, os intermediários foram os criadores da economia de mercado. Desnecessários, e em conseqüência ausentes, no âmbito da economia feudal, só foram vistos esporadicamente sob o aspecto do mercador ocasional, em certas zonas da fronteira como as que separavam o mundo cristão do mundo muçulmano, além de outras regiões onde costumavam chegar navios normandos trazendo produtos exóticos. Porém ao desenvolverem-se as cidades, os intermediários dominaram as novas atividades econômicas, e com eles se constituíram as novas burguesias e os poderosos patriciados que foram sua mais elevada classe social e econômica. Sua função permanente e decisiva era, pois, inédita no âmbito que se mercantilizou. E precisamente por ser inédita, e por haver estabelecido mecanismos desconhecidos que atuavam, de cada vez, sobre a produção e o consumo, os intermediários mudaram a imagem tradicional da vida econômica, introduzindo um fator aparentemente supérfluo dentro dela. Com os critérios derivados dessa imagem tradicional, a função intermediária resultava, efetivamente, supérflua, mas a experiência cotidiana mostrava não só sua necessidade – num mundo de cidades que haviam modificado a fisionomia social do setor consumidor – sem que, no entanto, se conseguisse discernir em que residia essa necessidade, e como a satisfaziam os setores intermediários. Estes depressa se transformaram em fatores decisivos da economia e puderam mostrar como muitos dos seus membros criavam para si um novo tipo de riqueza, que podia ser, em certas circustâncias, um novo meio de produção. O aparecimento dos intermediários – sobretudo mercadores e financistas – instalou uma nova contradição – a mais importante – na atividade econômica.
Talvez o sinal mais evidente dessa contradição, nascida da confusão criada pelos novos mecanismos da economia, fosse a cruel e tenaz perseguição dos judeus – e, em geral, aos financistas estrangeiros estabelecidos em cada cidade ou país – que se desencadeou assim que as burguesias locais estavam bem assentadas e, particularmente, ao prever os efeitos da crise de retração econômica.
Uma curiosa fixação representou nos judeus — e em menor escala nos caorsinos e lombardos – este novo fator econômico que constituíam os intermediários. Certamente haviam sido chamados, em alguns lugares, para promover o comércio e as atividades financeiras. Em outros apareceram sós; em muitos estavam estabelecidos desde antes de as atividades mercantis começarem a se desenvolver, e então conseguiram um grande relevo social ao identificarem-se com elas e se sobressaírem por sua eficácia. Em todo caso, ainda atuando ao lado de grupos locais de grande capacidade mercantil, os judeus contavam, a seu favor, com a ampla rede de suas próprias vinculações internacionais, que multiplicaram as possibilidades de ação. Enquanto as nascentes burguesias urbanas buscavam diligentemente como chegar a novos mercados e como obter capitais suficientes para aumentar a sua ação, os judeus já contavam com conexões estabelecidas que lhes permitiam iniciar com rapidez operações inesperadamente extensas e complexas. Os judeus foram os arquétipos da nova classe burguesa que se constituía em todas as áreas que se mercantilizavam.
Todas as contradições e conflitos suscitados pelas novas formas de atividade econômica, resultantes de mecanismos complexos e desconhecidos, foram encarados de maneira cega e primária, imputando a responsabilidade aos representantes visíveis desses mecanismos: os intermediários. A eles pessoalmente – e não às insuspeitadas leis da nova economia de mercado – atribuía-se a culpa, em termos morais, pelos fenômenos de escassez, de carestia, de monopólio. E, entre todos os intermediários, os judeus, como os caorsinos ou lombardos, resultaram o alvo predileto e o objetivo mais fácil dos movimentos de cólera popular. Fruto dessa localização arbitrária de culpa – e talvez de uma cega irritação contra a força impessoal do mercado – foram, mais do que tudo, as perseguições aos judeus que adquiriram particular violência ao começar a crise da retração.
Protegidos geralmente pelo poder político, principalmente pelo apoio pecuniário que lhe prestavam e, mais ainda, pelo auxílio que proporcionavam para a implantação de uma política fiscal cada vez mais severa, os judeus foram abandonados por ele quando certas pressões se tornaram insustentáveis. Eduardo I os expulsou da Inglaterra, em 1290; e Felipe IV da França, em 1306; ainda que este autorizasse a sua volta pouco depois. Ao mesmo tempo, os movimentos populares começaram, adquirindo particular violência em Brabante, em 1349, e em Navarra, em 1360. Expulsos depois de Brabante, em 1370, a perseguição tornou-se particularmente feroz na Espanha, onde houve ataques contra os judeus de várias cidades em 1391, entre elas Sevilha, Valência, Palma de Maiorca e Barcelona. Dois anos depois os judeus foram expulsos da França, onde em 1418, ao entrarem em Paris os borgonheses, as perseguições foram estendidas aos lombardos, florentinos, luqueses, bolonheses e genoveses que exerciam o comércio e, sobretudo, o negócio do dinheiro. Em meados do século XV, enquanto em Castela se ditava uma rigorosa prática contra os judeus, em Portugal se produzia o assalto às judiarias de várias cidades. Uma decisão transcendental foi a expulsão dos judeus de Aragão e Castela ordenada pelos Reis Católicos em 1492.
Fora os argumentos religiosos, alegados com maior ou menor sinceridade, os movimentos contra os grupos intermediáros alógenos tiveram causas variadas. Houve verdadeiras rebeliões dos devedores contra os prestamistas, que conseguiram mobilizar as classes populares e usá-las para vinganças pessoais e para a destruição de documentos comprometedores. Além disso, houve movimentos das burguesias locais que, ao alcançarem certo ponto de desenvolvimento, se propuseram a desalojar os grupos estrangeiros – e os judeus, que com freqüência eram nativos – para suprimir uma perigosa competição. Houve movimentos populares espontâneos ali onde os judeus representavam o braço visível de um fisco cada vez mais voraz. Porém, a causa genérica era a irritação contra os mecanismos da economia de mercado; imprescindíveis, embora não se conhecessem as suas características; impessoais, visto que operavam através de agentes múltiplos e desconhecidos cuja função era assumida por outro quando algum deles desaparecia; inexoráveis porque, sem sabê-lo, todos os interesses setoriais contribuíam para impulsioná-los. Era inevitável, então, que essa irritação difusa se descarregasse sobre os agentes mais fracos e melhor identificáveis por meio de um raciocínio primário, fortalecido por uma atitude irracional nascida da perplexidade diante de processos incompreensíveis e inexplicáveis.
Os intermediários atuavam no mercado interno como comerciantes que ofereciam sua mercadoria no mercado ou na tenda, pedindo um preço que parecia fixado por ele, mas que na realidade se configurava ao longo de um processo complexo. Finalmente, o comerciante ficava frente ao consumidor, e, sem dúvida, ao estabelecer sua margem de lucro, adicionava um novo fator a esse preço que já estava em grande medida conformado. Produtores, transportadores, atacadistas, varejistas, especuladores e o próprio fisco, todos fixavam a sua margem de lucro ao longo do processo de intermediação; porém, o consumidor não os via e, embora pudesse conhecer seus nomes e talvez calcular o montante das fortunas que acumulavam, apenas lhe era dada a possibilidade de conhecer alguns dos agentes subsidiários, que intervinham nessa ampla manobra de distribuição. Mais imperceptível ainda era a ação daqueles que se dedicavam ao comércio de importação e exportação, geralmente personagens de alta categoria na vida da cidade, cuja atividade prática se desenvolvia através de uma organização de caráter empresarial. A condução dessas “empresas” baseava-se em uma rede de agentes e informantes no exterior que fazia do grande comerciante – às vezes banqueiro também – um personagem qualitativamente distinto dos demais no seio da cidade.
De fato, todas as contradições da vida econômica se manifestavam como contradições sociais. O aparecimento dos diversos interesses setoriais deixava claro o antagonismo de grupos funcionais; porém, também delatava a diversidade de funções que os diversos indivíduos cumpriam no seio de cada grupo social. Só muito lentamente se percebeu que todos os setores sociais e todos os indivíduos, na medida em que operavam economicamente, compunham o mercado, isto é, a sociedade toda em função econômica. Esta era a contradição mais aguda: a nova sociedade, à medida que se constituía e variava, via-se presa em um gigantesco e complexo jogo no qual todos os seus membros atuavam como agentes diretos ou indiretos, voluntários ou involuntários, de um amplo sistema que os envolvia e superava, e no qual cada um cumpria diversas funções. O conjunto, em termos econômicos, era o protagonista social do mercado, e dentro do seu contexto as classes, os grupos ocupacionais e os indivíduos definiam sua posição. O símbolo abstrato das relações entre todos foi o jogo da oferta e da procura.
Nas formas mais elementares do seu funcionamento, a oferta e a demanda constituíam um mecanismo simples: compradores e vendedores discutiam o preço, às vezes alegremente nesse tipo de festa popular que se desenvolvia nas cidades no dia do mercado e, finalmente, chegavam a um acordo que convinha às partes. Porém nas suas formas mais complexas apareceram inumeráveis contradições que se acentuaram com a crise de retração. A persistência das formas de mentalidade tradicional que alimentavam a noção de privilégio como reguladoras das relações sociais, conspirou contra as novas modalidades do tráfico comercial que supunham um princípio de livre concorrência. O produtor e o intermediário procuraram por todos os meios e com diversos pretextos assegurar para si algum tipo de monopólio. As guildas e toda sorte de associações de produtores ou comerciantes tinham, entre outras, essa finalidade. Eram excluídos do mercado aqueles que não pertenciam a determinada associação, ou os estrangeiros, ou os que não cumpriam certos requisitos. O importante era suprimir ou restringir a competição, com o que o privilegiado ficava em superioridade de condições diante do consumidor na disputa pelo preço. A mesma importância teve a política protecionista, apoiada por produtores e intermediários e imposta pelo poder público. Os consumidores respondiam com reclamações sobre limite de preços. Os produtores requeriam picos salariais. A rigor, a mecânica da oferta e da procura ficou travada por essas contradições, sem prejuízo de continuar sendo uma regra inflexível, que se cumpria, apesar das restrições, por caminhos escusos: as compras e vendas ilegais, o monopólio, as alterações da qualidade ou as mil variantes que a picardia no exercício do tráfico sugeria.
Porém, precisamente porque todas as contradições econômicas se manifestavam como contradições sociais, na crise de retração, a mecânica da oferta e da procura teve que submeter-se cada vez mais à pressão do poder público. O princípio da livre concorrência foi se limitando cada vez mais através de sucessivas regulações, algumas ocasionais e outras de longo alcance, que restringiam os contratantes. No final, fatores sociais, a escassez, o monopólio, a carestia, o empobrecimento de certos grupos, o desemprego e tantos outros, obrigaram o livre funcionamento do mercado a intervir. As normas se sucediam; mas como nessa área da economia as leis internas do mercado funcionavam inexoravelmente, as normas só conseguiam distorcê-las, promovendo a formação de correntes econômicas subterrâneas colaterais. Uma situação caótica – verdadeiramente contraditória – caracterizou esta etapa da vida econômica, na qual concorriam a nova economia de mercado com suas próprias leis e uma ótica inapropriada para interpretá-la, fundada na certeza de que se podia intervir eficazmente mediante atos do poder político: este operava sobre os mecanismos visíveis, e o mercado respondia através de mecanismos invisíveis.
De qualquer maneira, o poder político conseguiu condicionar o funcionamento da oferta e da procura em muitas partes, sobretudo porque os que o retinham – ou seus assessores – estavam interessados nele e colocavam seu peso em um sentido favorável aos seus interesses. Especialmente nas cidades, o patriciado reuniu o poder político e o poder econômico e manejou ambos com eficácia a favor dos seus negócios. E nos estados territoriais, esses mesmos setores, sob a forma de uma burguesia cada vez mais adscrita ao poder, inspiraram sua política econômica de acordo com as suas conveniências.
Se a ação do poder político sobre a nova economia mostrou-se inequivocamente contraditória em algo, foi em certos excessos, provocados não só pela voracidade fiscal, mas também pela ignorância dos mecanismos econômicos. Pesar excessivamente com cargas impositivas sobre o jogo da oferta e da procura significava alterá-lo por meio de decisões deliberadas que comprometiam a liberdade do mercado. Porém, o mais grave foi que, comprometendo a liberdade do mercado, se ameaçava o impulso que o movia e cujo aparecimento havia introduzido um novo mecanismo psicossocial: o afã do lucro. Manifestado como uma aspiração para a reprodução do dinheiro, não era apenas um mecanismo novo, mas também diferente dos tradicionais e cujo funcionamento oferecia possibilidades imprevisíveis. Cada um, cada dia, descobria os meandros nos quais a intermediação podia constituir uma nova fonte de ganhos. E foi esse desenvolvimento da imaginação o que multiplicou as possibilidades do mercado. Porém, o fisco atuou implacavelmente e muitas vezes contribuiu para acentuar a retração, fechando essa fonte de possibilidades renovadoras somente pelo fato de diminuir sua rentabilidade. Ávido por ganhos imediatos, o fisco continha a criação de novas riquezas.
Além do mais, o poder político abusou da sua força e sua influência quando precisou de dinheiro. Um uso desmedido e coercitivo do crédito por parte dos reis e senhores produziu os mesmos efeitos que a voracidade fiscal. A quebra das grandes casas bancárias italianas em meados do século XIV constituiu uma demonstração clara das conseqüências dessa política, que só se corrigiu muito lentamente. Os sucessivos fracassos deitaram fora uma experiência valiosa, ainda que escassa, em relação aos mecanismos do mercado. O mesmo aconteceu relativamente à moeda, na qual o poder político viu, num primeiro momento e com uma visão ingênua, uma fonte de riqueza à sua disposição, visto que era seu monopólio estabelecer a sua lei e, ao mesmo tempo, alterá-la e inclusive decretar seu curso inevitável. Mas o mercado reagia subrepticiamente e introduzia a flutuação do valor monetário no jogo da oferta e da procura. Desse modo, o poder político também conspirou, portanto, contra a nova economia: ignorou os limites das possibilidades que o crédito e a moeda lhe ofereciam, e os ultrapassou de acordo com os seus interesses momentâneos, sem perceber os prejuízos que provocava a longo prazo.
Pero López de Ayala ofereceu um quadro animado de todas as contradições que o observador percebia na experiência cotidiana da vida econômica, ao glosar o “pecado da avareza” em seu Rimado de Palacio.30 A conotação moral do afã do lucro alenta em sua descrição, porém o que mais brota dela é um sentimento de perplexidade diante do jogo de interesses setoriais e dos sinais exteriores do comportamento econômico da nova sociedade, toda ela implicada no funcionamento do mercado.
Avareza é pecado, raiz e fundamento
E de todos os males este é um alicerce muito grande:
Fugir deve o homem de bom entendimento,
Que deste nasce na alma uma destruição muito grande.
E a este pecado se soma a usura,
As forças e furtos, e toda a roubalheira,
Encher os grandes peitos, falsa mercadoria
A que são advogados nesta confraria.
Por este pecado foi vendido o Senhor,
Por trinta moedas, por Judas o traidor;
Por esta foi da morte merecedor no fim
O que tomara sua vinha ao pobre servidor.
Esta traz as guerras, destrói o povoado,
A viúva e ao pobre deixa deserdados,
E de boa demanda faz muito mal o advogado.
Deixando o pequeno órfao mal aconselhado.
Aqui é compra e venda ilícita que faz muito mal,
A quem tem ouro e prata cinco bispados vale,
Embora seja letrado, se este lhe falha,
Não lhe dariam benefício pela sua epístola.
Esta trai os preitos nos povos desventurados,
Moedas, tributos, empréstimos dobrados,
Soldos aos cavaleiros e homens de escudos;
Galeotes, besteiros, por ela são depostos.
Ao que tem boa casa, deixam-no fora dela,
Quem trata de estar em paz, deixam-no com a briga,
A ricos e pobres traem-nos por dinheiro,
Levanta muitos males esta pequena centelha.
Esta faz perder a muitos mercadores
Sua alma e sua fama, e os torna mentirosos:
Vendem lã por linho, e são enganadores,
Querem com uma tinta tingir quatro cores.
Esta traz usuras, que levam com engano
Por cento quatrocentos antes do meio do ano,
Se lhes tomares fiado a vara do seu pano,
Mesmo que seja boa, a levarás com grande dano.
Nesta cobiça peco cada dia,
Com muita avareza vivo a minha vida,
Reparto mal com os pobres toda a minha quantia,
Depois, quando me dói, chamo a Santa Maria.
Sem dúvida, quem mais depressa percebeu as contradições da nova vida econômica na crise de retração foi o patriciado urbano, nascido no calor das mudanças e implicado nelas de modo radical. Isso aconteceu principalmente nas cidades independentes ou que gozavam de grande autonomia. Ao patriciado urbano coube manobrar quando as circunstâncias se tornaram difíceis na crise de retração, visto que tinha a maior responsabilidade – e os maiores interesses – na nova economia. Na contradição, o patriciado urbano e, como ele, as burguesias dos estados territoriais, optaram por uma política transacional fundada no método da experiência e erro. Combinaram nela os princípios do sistema produtivo tradicional e os que se derivaram de uma concepção organizadora tirada dos novos sistemas comerciais. Combinaram, não sem tropeços e dificuldades, os princípios e os mecanismos da produção e da intermediação. Combinaram os distintos interesses setoriais segundo a força que em cada momento respaldava a cada um, usando por vezes a autoridade política para regular a livre atividade do mercado e disputando outras vezes com o fisco – que ele mesmos costumavam encarnar – as margens de liberdade necessárias para estimular a produção da riqueza. Combinaram, enfim, as tendências de risco com as tendências de segurança, e as exigências da racionalidade com os apelos da imaginação. Com essas transações multiformes o patriciado urbano e as burguesias dos estados territoriais trataram de driblar, pelo método de experiência e erro, as dificuldades que lhes propunha um sistema econômico que se havia constituído espontaneamente e que mostrava a cada dia novos sinais do mecanismo que o regia sem descobrir, no entanto, os seus princípios fundamentais. E, ao driblá-las, conseguiram manter pragmaticamente sua hegemonia social e econômica e impor pouco a pouco – também transacionalmente – sua nova concepção da vida.
Notas
1. Geoffrey Chaucer, The Canterbury tales, The knightes Tale.
2. Honoré Bonet, Arbre des batallles, cap. CII; XLVII-XLVIII.
3. Alain Chartier, Le quadrilogue invectif, ed. Droz, pp. 20 e ss.
4. Phillipe de Commynes, Mémoires, V, XIX.
5. Hernando del Pulgar, Crónica de Don Fernando y dona Isabel, II, li. Para a época imediatamente anterior, ver Férnan Pérez de Guzmán, Generaciones y semblanzas e Juan Alfonso de Baena, Dezir “Para rey tan excelente”.
6. Tomas Morus, Utopia, I.
7. Pero López de Ayala, Rimado de Palacio, pp. 520 e ss.
8. The Chronicle of Jean de Venette, ed. Birdsall, p. 61.
9. La chronique du bom duc Loys de Bourbon, ed. Chazaud, p. 11.
10. Alain Chartier, op. cit., pp. 37-38; 14; 25; 40-41; 32-33.
11. Chaucer, op.cit., The clerkes tale.
12. Jean Froissart, Chroniques, I, ixvi.
13. Chronicon Angliae, Rolls Series, I, p. 231; Thomas Walsingham, Historia anglicana, II, 33-34; ver G.M.Trevelyan, England in the age of Wycliffe.
14. Ver R. R. Betts, “The social revolution in Bohemia in the later middle ages”, Pastand Present, novembro de 1952; Joseph Macek, Jean Huss et les traditions hussites, Paris, 1973.
15. Vasco de Aponte, Relación de algunas casas y linajes del reino de Galicia, Casa de Sotomayor; Lic. Molina, Descripción del Reyno de Galicia; Felipe de la Gándara y Ulloa, Armas y triunfos de Galíiia; hechos heroicos de los hijos de Galicia; Crónica del rey Dom Juan segundo, ano vigésimo quinto, cap. VIII.
16. Matteo Villani, Historia, VIII, xxviii e xxxvii. Cf. The chronicle of Jean de Venette, p.65. Para os movimentos urbanos e rurais, ver M. Mollat e P. Wolff, Ongles bleus, Jacques et Ciompi, Paris, 1970.
17. Fernão Lopes, Crónica de el rey D. João, caps. XI-XXVII. Cf. Joel Serrão, O carácter social da revolução de 1383, Lisboa, 1946.
18. Romano anônimo, Vita di Cola di Rienzo, I, cap. iv.
19. Chronique artésienne, ed. Funck-Brentano, pp. 40-63; Annales gandenses, ed. Funck-Brentano, pp. 24-42.
20. Jean le Bel, Chronique, caps. XXVI e ss; Henry S. Lucas, The Low Countries and the hundred year’s war, Ann Arbor, 1929.
21. Jean de Hocsem, Chronicon, ed. Kurth. Cf. Fernand Vercauteren, Luttes sociales à Liège, Bruxelas, 1946.
22. Cf. Ph. Dollinger, “Patriciat noble et patriciat bourgeois à Strasbourg au XIVe siècle”, em Revue d’Alsace, t. 90, 1950-51.
23. Cf. Dollinger, La Hanse, Paris, 1964; Karl Pagel, Die Hanse, Braunschweig, 1952.
24. Cf. Langton Douglas, Histoire de Sienne, Paris, 1914.
25. Il tumulto dei ciompi, atribuído a Gino Caponi ou a Alamanno Acciaiuoli, em Muratori, t. XVIII, parte III; Diario dello Squittinatore, ed. Corazzini; Marchionne di Coppo Stefani, Cronaca. Cf. N. Rodolico, I ciompi, Florença, 1945.
26. Chronique rimée des troubies de Flandre, ed. Le Glay, Lila, 1842 e Pirenne, Gent, 1902.
27. Jean Jouvenel des Ursins, Histoire de Charles VI, ed. Michaud, pp. 348 e ss.
28. Journal d’un bourgeois de Paris, ed. Michaud, pp. 637 e ss.; Jean Jouvenel des Ursins, op. cit. pp. 466 e ss.; L’ordonnance cabochienne, ed. Coville. Cf. A. Coville, Les cabochiens et l’ordonnance de 1413, Paris, 1888.
29. Cf. S. Sobrequés, em Vicens Vives, Historia social y económica de Espana, t. II; J. Vicens, Juan II de Aragón, Barcelona, 1953; P. Vilar, La Catalogne dans l’Espagne Moderne, t. I, Paris, 1962.
30. Pero López de Ayala, Rimado de Palacio, 73 e ss.
SEGUNDA PARTE
A Política do Realismo
Introdução
Como a nova sociedade se constituiu na formação de uma nova economia, era inevitável que se elaborasse nela uma nova atitude política. Como no caso da sociedade e da economia, a novidade não consistiu somente no aparecimento de uma conduta política peculiar da burguesia, mas também no reajuste total das atitudes políticas de todos os grupos sociais, antigos e novos, em virtude do aparecimento deste setor social transformado agora também em outro fator de poder.
Desde o seu aparecimento, a nascente burguesia havia mostrado uma conduta política original, distante da tradição própria dos senhores, dos reis, do Império e da Igreja. Até então, a política era uma atividade exclusiva destes últimos. Porém, desde o século XI, a burguesia havia insinuado uma nova atitude política na sociedade feudoburguesa que começava a se formar. Ao surgir a retração econômica e a crise social que começou em princípios do século XIV, essa nova política se definiu inequivocamente e adquiriu características precisas e revolucionárias.
Talvez se pudesse dizer – embora o termo seja um pouco equívoco – que começou então a praticar-se uma política realista. A que se insinuou primeiro e se definiu depois foi, precisamente, a que encontrou ao fim deste período um teórico consumado em Maquiavel, cuja grandeza intelectual consiste em haver descoberto e expressado o que as burguesias pensavam intimamente, às vezes dissimulando seu pensamento. As coisas haviam começado a ser chamadas pelo seu nome. Os antigos princípios começaram a se desvanecer, e o sinal dessa transformação foi uma progressiva distinção entre o campo da política e o campo da ética. As causas que se reconheceram no comportamento social foram identificadas como práticas estritamente humanas, alheias a qualquer outra consideração que não fosse o interesse, as ambições e, às vezes, os instintos elementares. A rigor, foi unânime o sentimento de que o quadro jurídico, político e moral em que se inseria até então a sociedade havia caducado e de que era necessário reconhecer a existência de novas realidades. A imagem do rei benévolo e justiceiro que governava segundo os preceitos das Sagradas Escrituras se desvaneceu para dar lugar à figura do príncipe eficaz no manejo dos negócios mundanos.
Foram as burguesias as que operaram a dissolução da antiga concepção política, talvez porque não se enganaram acerca do que costumava esconder a imagem idealizada de um poder político justo e alheio aos interesses terrenos. Criadoras de novas realidades sociais e econômicas, criaram também novas realidades políticas. E, sob o peso dessas realidades, sucumbiram essas duas velhas abstrações que, supunha-se, ordenavam o mundo: o Império e a Igreja. Daí em diante, outras seriam as realidades políticas que haviam de contar: os senhorios que constituíam verdadeiros estados territoriais, os reinos que se transformavam graças ao exercício de um poder cada vez mais forte dos reis e as ricas cidades que atuavam como potências comerciais e políticas.
Nesse mundo cada vez mais iluminado pela crise – visto que nela cada um dos fatores do poder provou seu verdadeiro peso –, a política das burguesias adquiriu uma inexorável nitidez. Como a pintura, a política se tornou táctil, pragmática, imediata. Percebeu-se quando as burguesias a exercitaram no âmbito das cidades, mas, pouco depois, e talvez mais, quando começaram a destilá-la dentro do sistema um pouco rígido dos estados territoriais. Esta última operação foi um exemplo claro da interação de duas tendências que prenunciavam as atitudes barrocas: seguiam o rei e os senhores declamando seu secular discurso moralizador, enquanto buscavam e seguiam o conselho prático – e às vezes inescrupuloso – do comerciante ou do financista experiente que enriquecia suas arcas. Muitos burgueses aprenderam, nas antecâmaras reais, a praticar uma sutil duplicidade sem dúvida menos necessária na condução das opulentas cidades.
De inexorável nitidez e de sutil duplicidade se fez a nova política, vigente a partir da retração econômica e da crise social que começaram nos primórdios do século XIV, quando o Império já era uma sombra de si mesmo e a Igreja se abalava em uma tormenta que a arruinou no cisma. Pragmática e nascida da experiência, a política das burguesias teve teóricos que buscaram os fundamentos de sua atitude e encontraram a justificação de sua conduta, e cujo pensamento culminou nas reflexões um pouco cínicas de Commynes e nas formulações rigorosas de Maquiavel. Naquela ocasião, as burguesias haviam abandonado quase totalmente os princípios igualitários e democráticos que sustentaram corajosamente durante algum tempo e, por diversas razões, muitos grupos haviam optado pelas soluções autoritárias. “Il Principe” foi um anseio burguês, gêmeo do monarca absoluto, ambos capazes de conter o processo de expansão e diferenciação das novas sociedades abertas e aptos para conduzir os processos econômicos e políticos dos quais as burguesias esperavam um reforço da sua posição social e uma crescente expansão da sua riqueza.
CAPÍTULO IV
A Crise da Ordem Ecumênica e a Nova Política
Talvez depois de 1254 não fosse muito generalizado o sentimento de que algo transcendental havia ocorrido no campo da política, quando o trono imperial ficou vazio e começou o interregno que duraria, de fato, até 1273. Talvez tampouco se percebesse de imediato a tremenda importância do colapso do poder papal depois da desmesurada aventura teocrática de Bonifácio VIII. Porém, pouco a pouco, se manifestaram as novas forças e as novas tendências que haviam provocado, direta ou indiretamente, essas situações e prevaleceu, nas primeiras décadas do século XIV, a certeza de que outros eram os atores da vida política e outras as formas de comportamento lícitas ou, ao menos, possíveis. O passado começou a parecer fantasmagórico e o futuro pareceu requerer uma nova maneira de enfrentar os problemas práticos da luta pelo poder.
I. O Desvanecimento do Império e do Papado
Nascida da conquista, a sociedade feudal havia aperfeiçoado – ou encoberto – todo o complexo sistema de relações que a constituía mediante a inclusão do seu próprio plano, que era o das classes privilegiadas, no plano de Deus: um plano ordenado e perfeito, de uma rigorosa racionalidade, no qual todas as situações reais encontravam explicação e justificação dentro de uma ordem universal e eterna.
Fosse qual fosse a magnitude e a significação de um grupo social organizado politicamente, seu posto devia estar “ordenado a um”, isto é, ser atribuído a um princípio único que conformava uma ordem ecumênica, representado no plano espiritual pela Igreja e no temporal pelo Império. Por certo, nenhuma das duas potestades nunca conseguiu realizar o ideal da ecumenicidade. Mas o vigoroso predomínio que as abstrações teológicas mantiveram durante muitos séculos sobre a experiência proveu essa concepção de uma espécie de realidade virtual, capaz de ocultar a realidade real. Império e Papado foram realidades efetivas, poderes reais, mas não tiveram nunca, nem pareceu possível que tivessem, a força nem o alcance que a teoria lhes atribuía.
A rigor, Império e Papado constituíam as duas garantias teóricas e absolutas da ordem criada pela conquista germânica no âmbito do Império Romano: uma ordem autoritária e hierárquica concebida como uma pirâmide em cuja base estavam as classes servis e em cujo cume refulgiam as duas espadas, temporal uma, espiritual a outra, para assegurar a ordem e a paz.
Muitas coisas passavam por debaixo desta abstração quase sublime, porém todas pareciam absorver-se na perfeição final do plano divino. Somente o conflito entre as duas espadas, revelado no século XI na “Querela das Investiduras” que se opôs ao imperador Henrique IV e ao papa Gregório VII, revelou que certas forças reais conspiravam contra aquela abstração. Pouco a pouco, a distinção entre o sagrado e o profano começou a tornar-se clara, e as duas potestades descobriram que outras forças lutavam por participar da luta pelo poder, desconhecendo a vigência da ordem ecumênica.
O imperador reconheceu a superioridade da potestade eclesiástica em Canosa; todavia, era uma oposição dentro dos marcos tradicionais. Porém a partir da morte do imperador Henrique V, o contexto do problema mudou. Enquanto o Império recrutava a maior parte dos seus partidários – os gibelinos – nos setores senhoriais, o Papado recrutava os seus – os guelfos – nas novas burguesias. Naturalmente houve matizes; mas, de todos os modos, essas preferências sinalizavam, em geral, a introdução de fatores novos na disputa tradicional. Império e Papado não seriam no futuro o que haviam sido, mas se transformaram no calor das novas situações reais. Frederico Barba Ruiva o sentiu na própria carne ao cair vencido pelas milícias urbanas da Liga Lombarda na batalha de Legnano, em 1176. E Frederico II expressou seu reconhecimento da nova realidade social e política na primeira metade do século XIII preferindo seu reino da Itália meridional à vaga realidade de seu império, inequivocamente alemão e não ecumênico. Porém, ainda como imperador, afirmou frente ao Papado uma concepção do poder civil que não deixava dúvidas acerca de quanto havia progredido a distinção entre o sagrado e o profano, entre a jurisdição eclesiástica e a jurisdição civil, entre a antiga política, que admitia a existência de uma ordem imutável, e a nova política, que se delineava na constante mutação dos grupos de poder.
A crise imperial posterior a 1250, manifestada pouco depois na longa vacância do trono, a alguns pode parecer episódica. Dante Alighieri expressou em De Monarchia a esperança quase apocalíptica dos gibelinos, seguros de que um imperador justo e sábio voltaria para impor a ordem e a paz no convulsionado mundo que suscitavam, direta ou indiretamente, as novas burguesias. Porém, o Império não soube aceitar as mudanças que haviam se produzido e quando, depois de restaurado, tratou de dar-se uma estrutura política através da Bula de Ouro em 1356, confirmou sua vocação conservadora e senhorial.
Mais sensível às mudanças sociais e econômicas, o Papado não vacilou em apoiar-se nas burguesias em sua luta contra o Império. Prepararam o terreno para essa aliança alguns setores da Igreja que expressavam uma nova sensibilidade social e política, especialmente as ordens mendicantes, nascidas no calor da vida urbana e cuja influência era muito forte nas cidades. Os franciscanos, especialmente, mostraram-se integrados nas novas sociedades e provaram que nenhuma de suas ações e reações eram estranhas para eles.
Porém, o apoio preferencial que um ou outro setor prestava às duas grandes potestades em conflito não expressava exatamente o confronto. Por uma ou outra via era um novo problema político o que se manifestava. Era o autoritarismo hierárquico tradicional o que alguns questionavam e era o direito à autonomia da jurisdição civil o que todos perseguiam. O imperador e os senhores a perseguiam, enfrentando as pretensões do Papado; porém também a perseguiam as burguesias, como o vinham fazendo desde a época das insurreições urbanas contra seus senhores, muitos deles eclesiásticos. Se elas apelavam à proteção do Papado, era buscando apoio do inimigo do seu próprio inimigo, visto que o Império, ainda defendendo a autonomia da jurisdição civil, procurava perpetuar um sistema político autoritário hierárquico incompatível com as aspirações das burguesias. Assim entrelaçadas as tendências e os interesses, o tempo e as novas situações que se foram criando contribuíram para esclarecê-las.
Entretanto, o que havia promovido a transformação dos antigos reinos feudais foi o desenvolvimento das burguesias e da nova economia de mercado. Enquanto o Império não conseguia constituir um reino nacional na Alemanha, outros reinos se fortaleciam com esse caráter, aumentando em conseqüência o poder real, mantido agora não só pelos antigos estratos sociais, mas também pelos novos. O problema das relações entre a jurisdição eclesiástica e a jurisdição civil teve então novos protagonistas, e o Papado não só teve de confrontar-se com o Império, mas também com os reinos. Em meados do século XII, o confronto adquiriu novas características na Inglaterra, na época de Henrique II e do arcebispo Becket, este último sustentado pelo Papado e apoiado na sólida doutrina teológica de Juan de Salisbury. Porém foi na França, nos últimos anos do século XIII e nos primeiros do século XIV, que as tensões alcançaram seu mais alto grau. Se na Inglaterra os vassalos do rei assassinaram o arcebispo de Canterbury, na França o legado real sentiu-se capaz de assaltar o palácio do papa e fazê-lo prisioneiro.
A luta que havia irrompido entre o Papado e a Coroa francesa provocou episódios políticos inusitados. Felipe o Belo, convocou diversas assembléias nos primeiros meses de 1303 e com elas obteve o apoio generalizado de todos os setores da sociedade – clérigos e leigos – para enfrentar o que considerava um atropelamento da jurisdição civil pelo papa. E pouco depois, seu representante Guilherme de Nogaret mobilizava na Itália todos os adversários de Bonifácio VIII – a rigor, os adversários dos Caetani – para forçar sua vontade ou depô-lo e, talvez, matá-lo. Era precisamente o momento em que o Papado havia se sentido mais poderoso e mais audaz; e foi então que, decididamente, a nova realidade social e política investiu contra os princípios tradicionais que haviam nutrido uma ordem teoricamente universal, para declarar explicitamente a sua caducidade.
Houve alegações diversas a favor de um ou outro contendor. Entre outros, Egídio Colonna e Jacopo de Viterbo defenderam a tese expressa pelos pontífices; João de París, a tese real.1 Significativos e revolucionários foram os temas que se puseram em discussão e as soluções propostas por esses tratadistas e por outros inumeráveis mais ou menos panfletários. A negação das pretensões papais se agregava uma rotunda afirmação da autonomia do mundo profano, da jurisdição civil, do direito dos reis e, como que se insinuando pouco a pouco, do princípio de soberania. Porém, junto às polêmicas doutrinárias, não foram menos significativas e revolucionárias as atitudes políticas que se revelaram. Certo realismo político que as burguesias haviam praticado de maneira espontânea, como se ignorassem os grandes princípios tradicionais, se converteu pouco a pouco em uma regra que não foi ignorada por aqueles que, como os senhores, não podiam ignorar estes princípios. O Império e o Papado perdiam sua intangibilidade, talvez porque as burguesias haviam descoberto como aceitavam as regras práticas do novo jogo social, econômico e político e se transformavam, pouco a pouco, em peças da nova sociedade, E uma vez perdida sua intangibilidade, fazia parte de uma política ilícita enfrentar o papa e o imperador sem que parecesse um desafio à ordem sobrenatural. Era a mesma atitude que levava as burguesias a desafiar o imperador em Legnano ou o rei em Courtrai.
A crise geral da ordem sobrenatural havia arrasado o Império, e arrasou também o Papado. Da altura que este último havia alcançado com Bonifácio VIII, começou a cair até um abismo no qual pareceu desintegrar-se. O Papado teve que abandonar a sede romana em 1305 devido à hostilidade dos senhores da região e refugiou-se em Avignon, enquanto crescia no próprio seio da Igreja a disputa que desencadearam os espirituais franciscanos acerca do seu verdadeiro caráter. Desde Avignon João XXII teve que enfrentar o conflito com o imperador Luis da Baviera, no qual se manifestou ainda mais a crise que sofriam as duas grandes potestades tradicionais.
Dois grande tratadistas, Marsilio de Padua e Guilherme de Occam, levaram a extremos a tese revolucionária que invalidava o significado transcendental das duas grandes potestades tradicionais.2 Não só ficou fortalecida a tese da autonomia do poder civil, como também se tornou patente o princípio da soberania popular. Vagas reminiscências romanas coincidiam com as obscuras tendências espontaneamente manifestadas pelas burguesias. Porém, talvez mais revolucionária que as ideias doutrinárias foi a decisão do imperador Luis de Baviera de prescindir da coroação pontifícia e de aceitar em 1328 a coroa das mãos de dois síndicos representantes do povo romano. Potestade agora inequivocamente secular, ficou evidente que sua força e prestígio dependiam da sua real força política: era a regra bem conhecida pelos senhores gibelinos, que haviam acompanhado o imperador em sua aventura italiana, assim como pelos senhores que conquistavam ou defendiam seus domínios e por todos os patriciados urbanos que lutavam por defender ou reconquistar a hegemonia de suas cidades.
A polêmica doutrinária e os antigos atos políticos comprometeram quase na mesma medida a posição do pontificado. O abandono da capital milenária já a comprometia, como a comprometiam a prédica sobre o estado da Igreja e a apelação à pobreza. As preocupações sociais de Wycliffe, dos Lolardos ou de Jan Hus enfraqueceram a posição da Igreja em vários reinos e solaparam sua autoridade entre as classes populares. Porém, até então, nem na teoria nem na prática se insinuou a ideia de que o Papado era uma instituição secular. Houve uma onda de ceticismo diante do clero simoníaco, diante dos monges cobiçosos e sem pudor, contra o próprio pontífice, às vezes, por sua ambição, seu nepotismo ou sua sensualidade. Contudo, o fundamento sagrado da instituição e, em conseqüência, a ecumenicidade da ordem espiritual não só não foram questionados, mas, ao contrário, pareciam robustecer-se através da disputa, especialmente quando, como no caso de Guilherme de Occam, se insistia precisamente nessas características da potestade espiritual para diferenciar dela a potestade temporal. Mas a crise do Papado a partir do cisma de 1378 significou um novo passo no processo de questionamento de sua ecumenicidade.
Se o Império havia se visto condicionado pelas novas situações sociais até o ponto de ir-se convertendo num estado nacional alemão, o Papado sofria o condicionamento de diversos interesses locais. Os esforços de Cola di Rienzo e, sobretudo, do cardeal Albornoz reavivaram o bairrismo italiano que, por um lado, mostrava o Papado e, por outro, era ecumênico. E, ao morrer Gregorio XI, recém-chegado a Roma proveniente de Avignon, a eleição de um novo papa, desta vez italiano, de acordo com o clamor do povo de Roma, polarizou as tensões e suscitou a eleição de outro papa, desta vez francês. Duas sedes pontifícias ficaram estabelecidas, Roma e Avignon, e por trás delas dois atos jurídicos igualmente discutíveis sobre a origem da autoridade de cada um dos papas. Sobre esses atos jurídicos se concentrou a polêmica. E embora teoricamente o princípio sobrenatural que servia de fundamento para a Igreja ficasse incólume, os poderes seculares e a opinião geral se transformaram em juizes da legitimidade do eleito. Desse modo, ainda sem deslizar-se para a secularização como havia ocorrido com o Império, o Papado se viu à mercê da obediência dos poderes seculares. Parte da Itália, Alemanha, Polônia, Hungria, Inglaterra e Flandres acataram a autoridade do papa de Roma; Sicília, França, Portugal, Castela, Aragão, Navarra, Saboya e Escócia optaram pela do papa de Avignon. Assim contrapostas, as duas obediências configuraram dois mundos cristãos que negavam de fato o princípio ecumênico do Papado.
Na crise geral da sociedade, o cisma eclesiástico acentuou as tensões que, além disso, nada faziam a não ser evidenciá-lo. O concílio de Costanza, em que Jan Hus foi condenado, revelou as diversas correntes que trabalhavam no seio da Igreja, deixadas evidentes depois no concílio da Basiléia. A dura experiência das disputas pelo poder papal determinaram o aparecimento do movimento conciliar, cujo cabeça foi, na ocasião, Juan Gerson.3 Partidário de uma reforma profunda da Igreja, o movimento conciliar se havia gestado nas universidades e, especialmente, na de Paris, da qual Gerson era chanceler. Sob sua influência e a de Pedro de Ailly, o concílio de Costanza declarou em 6 de abril de 1415, a superioridade do concílio sobre o papa, tese revolucionária que respondia à nova concepção da Igreja, de acordo com a qual era esta uma sociedade humana que manifestava sua soberania através de um corpo representativo como o era o concílio. O triunfo dessa tese foi efêmero, porém o movimento conciliar continuou defendendo um princípio de reorganização eclesiástica que, transferido ao governo civil, significava o reconhecimento da soberania popular e a proposta de uma monarquia constitucional e limitada. Nicolàs de Cusa e Eneas Silvio Piccolomini desenvolveram essas ideias,4 que pareceram desvanecer-se pouco a pouco à medida que a crise geral da sociedade foi atenuando-se e começou, em meados do século XV, uma nova etapa de expansão.
Sem dúvida, os princípios teóricos suscitados pela análise das novas situações ultrapassavam as possibilidades da nova sociedade que se formou depois da crise. O princípio de soberania popular parecia associado a uma experiência dramática, na qual os pequenos grupos burgueses que tinham certa clareza em seus objetivos se haviam mostrado incapazes de controlar os amplos grupos que se mobilizaram, algumas vezes depois deles e outras vezes no calor do clima insurrecional que predominava. A preferência pelo estabelecimento de um poder forte foi a resposta àquela experiência, que parecia desaconselhar regimes montados sobre a autoridade débil e sujeita aos vaivéns de corpos representativos, incontroláveis na medida em que era incontrolável a sociedade aberta. No entanto, a teoria continuou desenvolvendo-se em busca dos mecanismos políticos que a tornaram praticável e talvez também à espera de que as burguesias chegassem a ser estratos sociais mais amplos e coerentes.
Esse processo se daria pouco a pouco no marco das realidades políticas – cada vez melhor delineadas – uma vez desvanecida a tradicional ordem ecumênica que, presumivelmente, as enquadrava. Da crise, as duas instituições que a representavam, o Império e o Papado, saíram transformadas e perderam definitivamente o caráter e as possibilidades de ação que pareciam ter até fins do século XIII.
II. As Novas Realidades Políticas
Em meados do século XIV, o Arcipreste de Hita punha na boca de um dos clérigos de Talavera – indignados porque o papa os mandava abandonar suas mulheres – estas palavras significativas:5
Digo: Amigos, eu queria que toda esta quadrilha
Apelássemos ao papa ante o rei de Castela.
Que apesar de sermos clérigos, somos seus iguais;
Servimos-lhes muito bem; sempre lhe fomos leais.
E depois que sabe o rei que somos todos carnais:
Quererá ele se condoer dos nossos males?
Diversas atitudes resumia o Arcipreste em tão poucas palavras. Consagrava ao final a potestade suprema do Papado, reconhecia o significado eminente da monarquia nacional, exaltava o vínculo primário entre a Coroa e os seus súditos e apontava o contexto profano que enquadrava os novos poderes políticos.
Certamente, à medida que se desvaneciam as duas grandes abstrações políticas vigentes até pouco tempo – Império e Papado – as novas realidades políticas, as cidades e os estados territoriais, cobraram um relevo mais destacado. Nestes últimos se transmutava pouco a pouco o antigo sentimento de lealdade dinástica em um incipiente e ainda vago sentido nacional que se afirmaria com o tempo, talvez semelhante ao que pulsava nas Cidades-Estado, algumas das quais, além do mais, se transformavam em estados territoriais também. Em troca, nas cidades que se integravam de bom grado ou por força ao âmbito dos antigos estados territoriais – monarquias ou senhorios – desvanecia-se o sentimento local e aprofundava-se a solidariedade com os poderes centralizadores, que tratavam de constituir as grandes unidades políticas, as quais o espírito das burguesias urbanas impregnava de um sentido renovador.
Desde a primeira metade do século XIV, muitas descrições da situação mundial expressaram, como se percebeu, o novo sistema de unidades políticas, cada vez mais individualizadas. Essas descrições revelaram a dissolução da concepção ecumênica e deram lugar a uma imagem do mundo político constituída pelo conjunto daquelas unidades, em situação de equilíbrio instável e livres de qualquer tutela ou de qualquer poder regulador. Assim os cronistas urbanos, geralmente de mentalidade burguesa, descreveram o mundo, como Giovanni e Matteo Villani, Andrea Dondolo, Lodrisio Crivelli, Sigismond Meisterlin, Detmar ou Hermann Korner;6 a partir de seu posto de observação, particularmente apto para perceber a extensão dos negócios e da política, destacaram a autonomia e a peculiar densidade de cada um dos centros de ação e decisão dispersos pelo mundo cristão e pelo que não o era. Contribuíram muito para ampliar o horizonte e precisar a importância de cada um dos âmbitos políticos os comerciantes que recolhiam e difundiam suas informações, como Marco Polo, Francesco Balducci Pegolotti, Jacques Coeur, os Paston, Francesco di Marco Datini, os Medici, os Fugger ou os numerosos comerciantes da Hansa.7
Também difundiram esta nova visão do mundo renovado os cronistas de viagens – de negócios, às vezes, diplomáticos outras e em certas ocasiões movidos pela curiosidade ou pelo espírito de aventura – ou os que escreveram sobre expedições militares que levaram os navios, os exércitos ou os simples bandos armados de país em país.
Entre estes últimos foram reveladores Ramón Muntaner, os cronistas de Bertrand Du Guesclin ou do marechal de Boucicaut, Ruy González de Clavijo, Gutierre Díez de Games; e entre os primeiros Jean de Mandeville, Guillebert de Lannoy ou Gilles de Bouvier.8 Também se observou esta distinta percepção nas crônicas reais ou senhoriais: as dos duques de Borgonha, ou as de Froissart, Jean le Bei, Pero López de Ayala, Johan von Winterthur, Heinrich Taube von Selbach, Jean de Wavrin, Polydor Vergil, Fernão Lopes, Garcia de Resende, Lorenzo Valia, Jean Duglosz ou Antonio Bonfini.9
Porém, talvez os mais sugestivos testemunhos dessa universalidade concreta e real com que se percebia o renovado mundo político sejam oferecidos por outras testemunhas situadas ocasionalmente em posições privilegiadas para observar o jogo das diversas forças e o novo estilo que as caracterizava. Ulrich von Richental resenhou o desenvolvimento do concílio de Constanza e, com mais perspicácia, Eneas Silvio Piccolomini o da Basiléia. Foram dois foros mundiais, não só pela origem dos que assistiram a eles, mas também pela vastidão e as projeções dos problemas que ali foram tratados. E nas memórias que escreveu, o segundo revivia o amplo quadro das forças reais que, já pontífice romano, via atuar com tendências cada vez mais definidas.10 Historiadores observadores, às vezes impregnados de espírito filosófico, recolheram a mesma imagem e a devolveram traçada com contornos precisos. Philippe de Commynes, Nicolau Maquiavel e Francesco Guicciardini teceram em seus relatos históricos incisivas observações sobre as novas peculiaridades do mundo político, sem esquecer que, às vezes, desenvolveram algumas delas em separado, com singular penetração. Talvez se pudesse incorporar a esse grupo Tomas Morus, se foi ele o autor da história de Ricardo III que lhe é atribuída. Contudo, pertence, de todo modo, como autor da Utopia, ao conjunto dos pensadores políticos que observaram o quadro das novas situações sociais e políticas, de que toma parte também de modo iminente Erasmo e, em alguma medida, seu discípulo espanhol Alfonso de Valdés.11
Sem dúvida, as unidades políticas que mais contribuíram para romper o velho esquema ecumênico e transcendental, impondo sua vigorosa personalidade e o seu poder – circunscrito, porém consistente – foram as cidades, cujas burguesias haviam feito uma experiência política original, totalmente distinta da que era tradicional nos reinos feudais, Império ou Igreja. As cidades foram outro mundo e à medida que aumentavam em poder e influência, percebeu-se que encarnavam uma atitude política alheia aos antigos princípios e presidida por certas tendências irredutíveis aos esquemas tradicionais. Eram como enclaves surdamente revolucionários em um mundo que lhes parecia anacrônico e que, além do mais, procuraria ajustar-se pouco a pouco às novas situações sociais e econômicas aproveitando a experiência das burguesias urbanas e imitando suas atitudes.
Espalhadas por toda a área que se havia mercantilizado, sua importância política não foi a mesma em todas as partes, nem foi igual em todas o estilo da atividade política. As cidades independentes, como as da Itália, desenvolveram todas as possibilidades de ação política, tanto no exercício do poder como nas lutas internas para conquistá-lo. O mesmo aconteceu durante muito tempo nos Países Baixos e nas cidades do Império, entretanto nelas a atividade política adotou outras características por causa dos confrontos com os poderes territoriais. E outras foram adotadas nas cidades que haviam crescido no seio dos reinos tradicionais.
De resto, também a situação das cidades foi mudando e, com isso, mudou seu comportamento político. Tanto que algumas cidades continuaram a ser um âmbito urbano restrito, enquanto outras chegaram a exercer uma poderosa influência sobre certa área. As vezes foi uma simples influência econômica; porém, outras vezes se transformou em um vínculo mais estreito sob a forma de ligas ou irmandades e, em outras ainda, quando uma cidade conseguia submeter as outras à sua autoridade transformando-se, de fato, em cabeça de um Estado territorial. Em cada caso, a estrutura política da cidade teve de se ajustar a essas novas situações e, conseqüentemente, o comportamento político de cada grupo social mudou em relação a ela.
Se, no conjunto, as cidades haviam inaugurado um novo estilo de comportamento político, em seu seio, cada um dos grupos sociais havia introduzido um matiz peculiar em sua maneira de lutar pelo poder ou de exercê-lo. Um foi a política dos patriciados; e outro, a das classes urbanas subordinadas, entre as quais se percebiam diferenças substanciais; de um lado, os grupos incorporados, que vislumbravam alguma possibilidade de participar do poder; de outro, os grupos marginais, que só ocasionalmente se sentiam convocados a participar de alguma aventura que lhes era alheia, porém que lhes dava ocasião de irromper de algum modo no jogo da política. Originalmente compactas, as sociedades urbanas foram se diferenciando cada vez mais; e aqueles que contavam com elas, tiveram de distinguir em cada caso o sinal que caracterizava sua política. Um exemplo claro desse jogo foi a decisão das cidades hanseáticas de desvincular-se daquelas nas quais os setores artesanais conseguiam desalojar o patriciado do poder. Todo o sistema de alianças se fundou na coincidência dos regimes internos.
Foram as novas atitudes socioeconômicas, políticas e culturais das burguesias as que mais contribuíram para modificar o comportamento político dos antigos estados territoriais, cuja importância cresceu até alcançar uma posição de primeiro plano. Também estes, como as cidades, se emanciparam de toda tutela, abstrata ou real, e definiram aos poucos uma política clara como entidades autônomas e compactas, constituídas sobre certas limitações progressivas impostas ao poder dos senhores subordinados. Entretanto, essa política não se definiu sem conflitos. Surdas tensões ou guerras declaradas enfrentaram o poder supremo – real ou senhorial – em muitos estados territoriais, que lutava para submeter seus subordinados e constrangê-los dentro dos seus próprios desígnios. A monarquia modificou seu caráter e, com isso, renovou seu estilo político. E não só nos países onde se havia conseguido dar certos passos, como Inglaterra ou França, mas em países marginais, como Hungria, Boêmia ou Polônia. O mesmo Império germânico procurou, ainda que com pouco êxito, definir uma política nacional, tanto que esse anseio despontava de diversas maneiras na Itália fragmentada. Quiseram ser estados nacionais o ducado de Borgonha e os domínios da Ordem Teutônica. E buscaram a unidade ibérica os reis de Castela e Aragão. Todos tentaram exercitar uma nova política para alcançar esses fins, que consagravam uma nova percepção das forças reais que operavam no mundo.
Contudo, como nas cidades, uma era a atitude política dos estados territoriais como conjunto e outra a dos seus diversos grupos internos. Diante dos desígnios da monarquia, a nobreza feudal buscava sua própria estratégia para resistir a eles ou para aceitá-los, de acordo com a atitude de cada um dos seus grupos e suas relações recíprocas. Esta política, circunscrita ao âmbito dos grupos mais altos e co-participantes do poder, devia, não obstante, combinar-se com a que a nobreza feudal tinha que praticar com relação às classes populares rurais, sustento de sua posição econômica e abaladas pelas mudanças econômicas. E isso não era tudo. Também devia contemplar uma política diante das burguesias urbanas, nas quais a monarquia buscava e encontrava apoio; apoio este, porém, que parecia resgatável para certos setores da nobreza, que descobriam seu crescente e indiscutível papel na política dos estados territoriais. Um emaranhado de interesses antigos e novos dava ao comportamento de cada grupo uma grande fluidez, que contribuía para fazer dos estados territoriais entidades políticas conflitantes e convulsionadas. Somente ao compasso da consolidação monárquica e da aceitação generalizada do poder absoluto dos reis foi que os diferentes grupos chegaram a estabilizar-se, com o que se definiu a atitude política dos estados territoriais. Então, a política interna começou a transformar-se em uma política cortesã, na qual se sublimaram muitas tendências que não provinham da tradição nobiliária, mas da tradição burguesa.
Novas realidades políticas, as cidades e os estados territoriais se modificaram tão profundamente desde o início da retração econômica nos primórdios do século XIV que, no processo que continuou até as primeiras décadas do século XV, desenvolveram e elaboraram um novo estilo político. Foi o resultado das mutações que se haviam operado nas sociedades, da diferenciação de seus diversos grupos, das mudanças de mentalidade que sofreram todos eles. A nova sociedade, uma nova política. Quando, no fim deste processo, Maquiavel escreveu seus Discursos e O Príncipe, não fez senão recolher e sistematizar uma experiência duas vezes secular.
III. O Estilo da Nova Política
Certamente, o estilo da nova política começou a delinear-se nos primórdios do século XIV e sua plena vigência pôde ser observada nas primeiras décadas do século XVI. As sociedades mudavam aceleradamente e, talvez em ritmo mais lento, as mentalidades também. E pouco a pouco essas mudanças se projetavam no sistema dc vínculos socioeconômicos e políticos.
Modificaram-se os vínculos econômicos ao impor-se uma relação sutil, antes desconhecida, entre os que começaram a atuar como produtores, como intermediários e como consumidores. A rigor, produção, intermediação e consumo eram funções e não se identificavam univocamente com determinados indivíduos: todos podiam ser, ao mesmo tempo, essas três coisas. Porém, o vínculo econômico atuou agrupando setores funcionais e dissolvendo as antigas relações de produção próprias da sociedade feudal e de seu sistema econômico. Lentamente se constituíram novos grupos de interesse de traços inequívocos, alguns dos quais se converteriam em importantes grupos de poder. Era como uma rede que se vinculava em certo nível a todos os membros de cada sociedade, cuja presença costumava passar despercebida para muitos deles e que costumava dissimular-se sob outros vínculos mais ostensivos. Porém, em momentos críticos, quando estavam em jogo determinados interesses, os grupos se compactavam e reclamavam o que lhes convinha com firmeza e, às vezes, com surpreendente agressividade. Era o momento de deixar de lado outros vínculos e de despojar-se de outras máscaras que correspondiam a outro tipo de vínculos, sem dúvida existentes também.
Se nas cidades havia sido visível a formação desses vínculos muito tempo antes, foi a crise de retração do início do século XIV que os pôs a descoberto em todas as partes. O abalo que a nascente economia de mercado sofreu mostrou que toda a sociedade era protagonista dela, isto é, que toda a sociedade, independentemente de outros vínculos, estava articulada pelos vínculos econômicos que o mercado havia criado. Antes desconhecidos, esses vínculos constituíam progressivamente outro tipo de sociedade. E na defesa inexorável que cada grupo fez de seus interesses setoriais, ficou claro que correspondia a essa nova sociedade outro tipo de comportamento político.
Entretanto ao mesmo tempo se dissolviam e se constituíam outros vínculos especificamente sociais. Em muitas regiões havia entrado em crise o vínculo servil e começou a ser substituído por outro mais flexível entre o senhor e o campesino assalariado ou arrendatário. Havia se iniciado um processo de emancipação dos servos que não dependia, certamente, de considerações humanitárias, mas que partia das novas situações econômicas. E, convertidos em homens livres, os antigos servos viram modificar-se sua situação na sociedade e frente ao poder político. Foi exatamente o poder real o que estimulou muitas vezes o processo de emancipação servil, tanto para enfraquecer a autoridade regional dos senhores, como para alargar as bases sociais do fisco. A conseqüência foi o estabelecimento de novos vínculos de dependência e, por conseguinte, a formação de outros modos de agrupamento nos setores populares rurais.
No entanto, modificavam-se também os laços que vinculavam os membros das classes privilegiadas. Sem prejudicar a subsistência das relações especificamente feudais, o poder real atuava de uma maneira deletéria sobre elas e as debilitava, oferecendo-se como um pólo de atração para aqueles que quisessem abalar ou enfraquecer o vigor dos laços de vassalagem. A corte foi o instrumento eficaz para levar a cabo essa política, visto que atraía aqueles que preferiam não ter outro soberano a não ser o rei; e as funções públicas outorgadas pela Coroa completavam o leque de possibilidades para reajustar a antiga dependência.
Paulatinamente, em alguma medida, começava a trasladar-se para os estados territoriais o tipo de vínculo que, entre o indivíduo e o poder político, vigorava nas cidades. Foi nelas que se realizou a primeira tentativa de criar um Estado objetivo e impessoal; ainda que parecesse que os estados territoriais continuavam apegados a uma concepção personalizada, a rigor, quanto mais personalizado parecia o Estado, mais se objetivava através das complexas estruturas que criava para exercer o poder. Diante desse Estado objetivo que crescia e se consolidava, as relações intermediárias tendiam a desvanecer-se e, em troca, fortalecia-se a tendência de se estabelecer uma relação direta entre o indivíduo e o poder. Foi muito lento o processo que levou, nos estados territoriais, à generalização do conceito de vassalo, relativo à totalidade dos indivíduos em relação direta com o soberano. Começou a produzir-se depois da crise do século XIV e estava concluído no seio das monarquias absolutas nas primeiras décadas do século XVI.
A medida que esta relação direta tendia a prevalecer, despertava e se definia um sentimento ignorado pouco antes: o sentimento de pátria. Não há dúvida de que suas manifestações tiveram muitas conotações retóricas, guardadas geralmente na tradição romana. Assim aparece nos poemas que Petrarca escreveu exaltando a Itália; ou na invocação à França, de Alain Chartier; ou no elogio da Espanha devido a Fernán Pérez de Guzmán.12 Porém, tampouco há dúvida de que crescia a percepção das características nacionais, como se vislumbra nas reflexões de Gutierre Díez de Games, de Commynes e de Maquiavel sobre diversas nações.13 E talvez o mais claro indício da percepção desse sentimento se encontre no veemente anseio de unificação da Itália que expressam Petrarca, Maquiavel e Guicciardini.14
O estilo da nova política foi dado por esta nova sociedade, amalgamada por este novo sistema de vínculos. Houve uma política para a cidade ou para o estado territorial como conjuntos; e houve uma política para cada um dos grupos socioeconômicos e políticos que os compunham. Em todos os casos, essa política foi de novo cunho e poderia definir-se como um realismo político.
O realismo político foi o estilo peculiar e espontâneo que as burguesias adotaram para operar na sociedade, atuar em seu seio e em relação aos outros grupos sociais, manejar seus interesses econômicos, lutar pelo poder e exercê-lo quando esteve em suas mãos. A rigor, foi mais uma expressão desse realismo que revelaram frente à natureza e que levou à prática do conhecimento experimental; o que adotaram na criação literária e plástica. Foi o fruto de uma atitude empírica e pragmática diante da realidade que envolveu, como um de seus aspectos, a realidade social.
Antes de toda teoria, foi realista a política dos patriciados nas cidades, em Veneza, em Florença, nas cidades flamengas ou hanseáticas e também nas capitais dos reinos, como Londres ou Paris. Porém, não o foi menos a política das classes médias e dos setores artesanais, como revelou van Artevelde em Gent ou os condutores do movimento dos ofícios de Liège, Colônia ou Estrasburgo. E até foi realista a política dos setores marginais, sempre à espera de uma brecha entre os grupos de poder para tentar sua ascensão política.
Foi realista – empírica e pragmática – a política dos condottieri. Aqueles que por uma ou outra causa se elevavam à condição de signori extremaram seu realismo até tocar os limites do cinismo: Castruccio Castracani, os Sforza, os Gonzaga. E adotaram uma política realista os reis e os pontífices, os novos nobres e ainda muitos daqueles da antiga nobreza, que se manifestou tanto na condução dos assuntos internos de seus domínios, como no manejo das relações internacionais.
O estilo da nova política – o realismo – foi o resultado de uma mutação bastante rápida na maneira de interpretar o comportamento individual e social. Duas distinções cada vez mais transparentes começaram a surgir – espontaneamente primeiro e metodicamente depois – e levaram a essa nova atitude política. A primeira foi entre o sagrado e o profano, e a atividade política ficou situada neste segundo campo. Houve um reconhecimento generalizado de que os fins que a ação política perseguia estavam relacionados com problemas práticos e imediatos e que, portanto, eram específica e inequivocamente profanos. Era, pois, necessário, para alcançá-los, contar com os dados da experiência, com os impulsos primários do indivíduo, com as tendências efetivas de dois grupos sociais distintos, com as circunstâncias concretas em que devia desenvolver-se a ação. Nada disso cabia no âmbito do sagrado, que propunha uma imagem idealizada do homem e a primazia de valores absolutos. Nisso consistiu, precisamente, a segunda distinção, entre o ser e o dever ser, entre os modelos ideais e as experiências imediatas. Essa distinção se traduziu no reconhecimento de um divórcio entre a moral e a política. Se o objetivo da moral era propor modelos ideais, a política consistia em operar sobre a realidade tal como se manifestava, aceitando suas regras. Não se tratava necessariamente de uma atitude imoral. Seria, pouco a pouco, uma recusa da moral transcendental para substituí-la por outra cujas regras emergiram das situações reais: um conjunto de regras sustentadas por um consenso social. Porém, nesse jogo, cabiam muitas atitudes condenadas pela moral transcendental, e houve progressivamente consenso para aceitá-las. Ficou cada vez mais claro que, se a política tinha fins profanos, os meios para alcançá-los podiam – ou deviam – ser profanos também.
Este novo estilo político predominou ostensivamente a partir da crise dos primórdios do século XIV, que promoveu a formação de uma nova sociedade. Revelou-se nas agitadas lutas pelo poder e, depois, em seu exercício quando ele foi alcançado. Havia surgido espontaneamente e foi se convertendo em prática admitida, fundada na experiência. Porém, muito depressa o novo estilo político começou a receber o apoio doutrinário daqueles que tiveram que elaborar novos argumentos e novas interpretações no calor das lutas pelo poder. Foi a doutrina da profanidade do poder político a que enunciou os primeiros princípios, dos quais derivariam pouco a pouco sucessivas conclusões, até chegar às mais explícitas e radicais.
Enquanto Egidi Colonna e seus seguidores defendiam tenazmente a tese das duas espadas, que não era senão a antiga doutrina teocrática tal como a havia expressado Santo Agostinho e formulado definitivamente Hugo de Saint-Victor, os polemistas que defendiam as prerrogativas do poder secular começavam no início do século XIV a organizar seus argumentos, tal como se vêem esboçados no anônimo Diálogo entre um clérigo e um soldado.15 A partir de então, a doutrina da profanidade específica do poder político elaborou seus fundamentos e extraiu deles as conclusões revolucionárias que exporiam Marsilio de Padua e Guilherme de Occam. Destas, a mais avançada era a tese da soberania popular, sem dúvida a mais perigosa, visto que excedia implicitamente os alcances do realismo político prático e contrariava a tendência predominante à concentração do poder nas mãos dos patriciados, dos senhores e dos reis. Porém, o importante era que, em última instância, justificava os fins imediatos pragmáticos da ação política, justificação de que se valeram todos os grupos sociais que aspiravam ao poder, mas que aproveitaram particularmente aqueles que o conquistavam e o exerciam.
As contradições entre o estilo da nova política e a concepção tradicional, assim como também as que surgiram no exercício da nova política, ficaram refletidas em todos os tratadistas, mas sobretudo nos que suscitaram o tema da tirania, de tradição clássica. Coluccio Salutati e Bartolus, entre outros, assinalaram tanto os limites entre o poder justo e o poder injusto, como os que separavam o poder legítimo do poder ilegítimo16 O realismo político continha uma negação virtual dos limites morais e jurídicos da ação política, enquanto rechaçava os princípios tradicionais sem substituí-los por outros. Talvez por isso Francesco Vettori pôde dizer, “falando das coisas deste mundo sem respeito e de acordo com a verdade”, que “todas aquelas repúblicas c príncipes de que eu tenho conhecimento pela história ou que já vi, me parece que cheiram a tirania”.17 Nas primeiras décadas do século XVI, esta convicção estava generalizada, e às vezes se chocava com o princípio de legitimidade das monarquias dinásticas. Secretário de letras latinas de Carlos V, Alfonso de Valdés faz com que, ao contemplar uma alma aproximando-se da barca de Carón, Mercúrio diga: “Deve ser algum tirano, ainda que todos se chamam reis.” E quando Carón perguntou à alma: “Tu pensavas que eras rei para o proveito da república ou para o teu?”, a alma respondeu: “Quem é rei a não ser para o seu proveito?”18 No transcurso do diálogo, Valdés justificava o saque de Roma pelas tropas imperiais, reivindicava o imperador e insultava o papa e o rei da França. Assim como Maquiavel, descobria no poder um pragmatismo intrínseco que o transformava em um fim em si mesmo, visto que tudo o que movia a ambição no mundo profano, como a riqueza ou a glória, parecia derivar dele. De tal transformação na concepção do poder proveio o realismo político, um novo estilo na maneira de conquistá-lo e exercê-lo.
Notas
1. As bulas fundamentais foram Clericis laicos (1296), Ausculta, fili (1301) e Unam sanctam (1302). Egidio Colonna (Egidio Romano), De regimini principum; De ecclesiastica potestate; Jacopo de Viterbo, De regimine christiano. Jehan de Paris, Tractatus de potestate regia et papali; Raoul de Presles, De potestate et pontificali et imperiali sui regia; Pierre Dubois, De recuperatione terrae sanctae. Todos os textos foram publicados por Dupuy, Histoire du différend d’entre le pape Boniface VIII et Philippe le Bel, rey de France, 1655.
2. Marsilio de Padova, Defensor Pacis; Guillermo de Occam, Dialogus; Octo quaestionum decisiones super potestate et dignitate papali. Ver os textos em M. Goldast, Monarchia S. Romani Imperii, 1611. Um interesse singular adquire entre esses textos Le songe du vergier, atribuído a Philippe de Mézières ou a Raoul de Presles entre outros.
3. Juan Gerson, De unitate ecclesiae; De auferibilitate papae; De potestate ecclesiastica. Ver Ulrich von Richental, Das Conciliumbuch zu Constanz, ed. Buck, 1882.
4. Nicolás de Cusa, De concordantia catholica; Eneas Silvio Piccolomini, Tractatus de ortu et autoritate Imperri Romani; De rebus Basileae gestis, ed. Fea, 1823.
5. Arcipreste de Hita, Libro de buen amor, 1696-7.
6. Giovanni Villani, Cronica; Matteo Villani, Cronica; Andrea Dondolo, Annales; Lodrisio Criveli, De vita et gestis Francisci Sfortiao Vicecomitis, ducis Mediolani; Sigismond Meisterlin, Chronographia augustensium e Nioronbergensis cronica; Detmar, Lübischer Cronik; Hermann Korner, Lübischer Chronik. Podiam agregar-se as crônicas florentinas de Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini, Nicolau Maquiavel e Francesco Guicciardini; a veneziana de Sabellicus; as de Milán de Giovanni Simonetta e Bernardino Corio; a de Berna de Anshelm; e ainda a de Adam de Bremen e seus continuadores.
7. Marco Polo, Il Milione; Francesco Balducci Pegolotti, La pratica della mercatura; sobre Jacques Coeur, ver Les affaires de Jacques Coeur; Journal du procureur Dauvet, ed. Mollat, Paris, 1952; The Paston letters; para Datini, textos em Bensa, Francisco di Marco da Prato, Milão, 1928; para os Medici, textos em Crünzweig, Correspondance de la filiale de Bruges des Medieis, Bruxelas, 1955; para os Fugger, ver Ehrenberg, Le siècle des Fugger, Paris, 1955; para os comerciantes hanseáticos, ver Dollinger, La Hanse, Paris, 1964, especialmente o cap. VI.
8. Ramón Muntaner, Crónica; Anciens mémoires du XIVe siècle sur Bertrand du Guesclin; Le livre des faiets du Marechal de Boucicaut; Ruy Gonzáles de Clavijo, Embajada a Tamorlán; Gutierre Díez de Games, El victorial; Jean de Mandeville, Voyage and Travayles; Guillebert de Lannoy, Pèlerinages de Syric et d’Egipte; Gilles Le Bouvier, Le livre de la description des pays.
9. Crónicas borgononas de Georges Chastellain, Chronique des choses de ce temps (e a continuação de Jean Molinet); Enguerrand de Monstrelet, Chroniques, e Olivier de la Marche, Mémoires; Froissart, Chroniques; Jean le Bel, Chronique; Pero López de Ayala, Crónicas (dos reis de Castela Pedro I, Henrique II, João I e o início de Henrique III); Johan von Winterthur, Chronica; Heinrich Taube von Selbach, Chronik; Jean de Wavrin, Anciennes chroniques d’Angleterre; Polydor Vergil, Anglicae historiae 11, XXVII; Fernão Lopes, Crónicas (dos reis de Portugal Pedro I, Fernando e João I); Garcia de Resende, Chronica de el rey D. João II; Lorenzo Valla, Historiarum Ferdinandi regis Aragoniae libri III; Jean Dlugosz (Longinus), Historia polonica; Antonio Bonfini, Decades III rerum Ungaricarum.
10. Ulrich von Richental, Das conciliumbuch zu Constanz; Eneas Silvio Piccolomini, Commentarii de gestis Basiliensis concilli, Commentarii.
11. Philippe de Commynes, Mémoires; Nicolau Maquiavel Il Príncipe, Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, Rittrato delle cose della Magna, Ritrato di cose di Francia; Francesco Guicciardini, Istoria d´Italia, Ricordi; Tomas Morus, La pitoyable vie du roi Édouard V et les cruautés horribles du roi Richard III, trad. Mornand; Erasmo, Coluquios, Elogio da loucura; Alfonso de Valdés, Diálogo de Mercúrio y Carón.
12. Petrarca, Italia mia (Canzoni), Ad Italiam, Linquimus Italiam; Alain Chartier, Le quadrilogue invectif, ed. Droz, pp. 10 e ss.; Fernán Pérez de Guzmán, Loores de los claros varones de Espana. As características de lugar comum que o tema tem se percebem na passagem sobre a França no prólogo de Les quinze joyes de mariage.
13. Díez de Games, op. cit., passim; Commynes, op. cit. , V, xviii-xx; Maquiavel, op. cit.
14. Petrarca, Italia mia; Maquiavel e Guicciardini, op. cit.
15. Disputatio inter clericum et militem; Dupuy, op. cit.
16. Antecedentes em John of Salisbury, Policraticus; Coluccio Salutatti, De tyranno; Bartolus de Sassoferrato, Tractatus de tyrannia. No mesmo sentido conta a Justification, de Jean Petit, em defesa do duque de Borgonha pelo assassinato do duque de Orleans em 1407. Ver E. Emerton, Humanism and tyranny, Cambridge, 1925.
17. Frarncesco Vettori, Sommario della storia d’Italiia dal 1511 al 1527, cf. Fueter, Geschichte der neueren Historiographie, Munique, 1936. 18. Valdés, op. cit.
CAPÍTULO V
A Política das Cidades de Desenvolvimento Autônomo
O estilo da nova política, criação original das burguesias, se cunhou sobretudo nas cidades que mantiveram certo grau de autonomia durante os séculos XIV e XV. Apareceu também nas cidades incluídas nos estados territoriais e também nestes, mas de maneira esporádica e mais timidamente. Foi naquelas onde, depois de cunhado, se extremou seu desenvolvimento e se fixaram suas características.
Nem todas as cidades de desenvolvimento autônomo se comportaram da mesma forma. Algumas conservaram sua plena autonomia, como Veneza, Florença, as cidades suíças ou as da Hansa; outras mantiveram uma dependência formal de seus senhores ainda que, na prática, agissem como unidades políticas autônomas, como quase todas as cidades imperiais livres; outras, enfim, suportavam sua dependência porém a questionando até o ponto em que, nesse questionamento, as sociedades urbanas exercitaram uma política autônoma extremada e em ocasiões revolucionária, como Gent, Bruges ou Liège.
Porém, não foram somente os confrontos com o poder senhorial, como no caso de Liège, o que estimulou o delineamento de um novo estilo político. Foram, sobretudo, as lutas pelo poder entabuladas entre diversos setores sociais, como na própria Liège e em tantas outras cidades, as que provocaram novas atitudes e novas estratégias. Conflitos sociais, no fundo, as lutas pelo poder revelaram um tipo de embate entre os grupos minoritários que controlavam o poder econômico e os grupos majoritários, que não tinham mais força além da que o peso de seu número lhes dava dentro do estreito âmbito urbano, tão sensível às pressões multitudinárias. Essa diferença qualitativa e quantitativa impediu encontrar fórmulas políticas estáveis e compatíveis com os interesses de todos os grupos.
A rigor, a luta pelo poder e seu exercício transformaram-se em um fim em si mesmo. As burguesias sabiam o que fazer com ele, porém as classes subordinadas o ignoravam. Assim como se desconheciam os mecanismos secretos da economia de mercado, igualmente se ignoravam os mecanismos que regiam a nova sociedade. Somente os mecanismos políticos eficazes em cada contingência foram idealizados e postos em prática, tanto pelas burguesias como pelas classes populares, especialmente as gentes dos ofícios. Não houve teoria que marcasse a ação nem princípios que guiassem as decisões. A política foi entendida como uma atividade a curto prazo, pragmática, sem outra regra ou requisito a não ser a eficácia. Foi a política do realismo, que se experimentou até suas últimas conseqüências e sem enfeites, sobretudo nas cidades de desenvolvimento autônomo.
A aplicação da política realista levou à radicalização tanto das oligarquias como das classes populares. Ambos os setores quiseram triunfar de maneira decisiva a qualquer preço, mesmo sabendo que não podiam viver um sem o outro. Foi também o realismo político o que, ante a crise tanto dos sistemas aristocráticos como dos democráticos, impôs nas cidades alguma forma de autoritarismo que assegurasse, a qualquer custo, a paz social.
I. O Fortalecimento das Oligarquias
Quem havia conquistado a autonomia – total ou parcial – de muitas cidades foram aquelas burguesias que se haviam levantado contra os senhores e haviam obtido as cartas em que se estabelecia sua liberdade e sua participação mais ou menos restrita no governo urbano. Grupos compactos, às vezes, haviam constituído uma “comuna jurada” que fortalecia o vínculo que os unia. Porém, de todos os modos, suas atividades, seus interesses e sua peculiar concepção de vida davam-lhes uma homogeneidade que se acentuaria por algum tempo, até que se constituíram em seu seio subgrupos por sua vez homogêneos, mas ligeiramente diferenciados entre si. Os mais ricos e influentes constituíram o patriciado. Nessas mãos estavam as cidades de desenvolvimento autônomo quando começou a manifestar-se a crise de retração econômica nas primeiras décadas do século XIV.
Ao longo do processo que havia começado por volta do século XI, nem toda a burguesia teve a mesma sorte. Em algumas cidades, já no século XIII e algumas vezes antes, a continuidade das atividades econômicas, o acúmulo de fortunas, a manutenção do prestígio social e o exercício do poder político haviam proporcionado ao patriciado burguês tal poder e influência, vindo a transformá-lo em uma verdadeira oligarquia. Assim aconteceu em Veneza e Colônia, em Barcelona e Estrasburgo, nas cidades hanseáticas e nas suíças. Em outras cidades, conflitos diversos haviam impedido que sua estrutura como grupo e seu papel na cidade se consolidassem como naqueles casos. Algumas vezes foram os conflitos internos da burguesia, dividida em grupos que disputavam o poder, separados por seus interesses econômicos ou por seus pontos de vista em matéria de alianças, ou simplesmente pelas ambições das linhagens ou dos indivíduos. Assim ocorreu em Gênova ou em Florença e, sobretudo, em Milão, onde a burguesia alienou o poder nas mãos dos signori, os della Torre e os Visconti já no século XIII. Outras vezes, enfim, foi a ofensiva das classes subordinadas – a média burguesia ou os ofícios – a que impediu a completa consolidação do patriciado que, embora tendesse inequivocamente a transformar-se em oligarquia, como em Liège, Florença ou Gent, não pôde viver sem sobressaltos e concessões.
Contudo, de todos os modos, a crise de retração econômica encontrou assentadas no poder, nas cidades de desenvolvimento autônomo, as burguesias mais ou menos oligárquicas, confiantes em suas forças para manter e fortalecer as posições conquistadas. No exercício da atividade mercantil, financeira e produtiva se havia operado uma paulatina concentração da riqueza e algumas linhagens patrícias haviam se separado notoriamente das demais pelo montante de suas fortunas e pela magnitude de suas operações. Assim ocorreu não só nas cidades onde a crise repercutiu a favor de certas atividades econômicas, mas também nas cidades onde seus efeitos foram intensos, e naquelas em que a retração beneficiou os mais ricos. A conseqüência foi que se acentuou a diferenciação social: no próprio seio das burguesias, porém mais ainda entre elas e outras classes urbanas, sobre as quais a crise teve, na maioria das cidades, efeitos desastrosos.
Assentadas no poder, as burguesias enfrentaram a nova situação dispostas a defender-se. No entanto, o conflito estava às vezes em seu próprio seio. O poder significava a orientação da economia, e cada grupo queria conquistá-lo para orientá-la em seu benefício, sem prejuízo de satisfazer as ambições das linhagens ou de alguns de seus membros. E, entretanto, todas as outras classes urbanas viam as burguesias com hostilidade, acusando-as de causar sua escassez ou sua miséria e esperando uma ocasião favorável para levantar-se contra elas a fim de limitar seu poder ou, se fosse possível, arrasá-lo.
A crise econômica desencadeou um conjunto variado de problemas que se entrelaçavam. As crises políticas e os conflitos sociais comprometiam as atividades econômicas: paralisavam ou diminuíam a produção, entorpeciam as operações mercantis, dificultavam as operações de crédito, restringiam o consumo interno. Enquanto disputavam o poder, exigindo certa participação política, ou talvez a total exclusão dos ricos burgueses do governo, as pequenas burguesias e especialmente as gentes dos ofícios, ocasionalmente apoiadas pela plebe indiscriminada, roubavam e incendiavam as cidades, matavam seus adversários, dominavam as ruas, praças e mercados. As burguesias reagiram para conservar ou recuperar sua posição em suas cidades. Porém, ao mesmo tempo, tinham que ficar atentas à crescente pressão que os poderes territoriais, que aspiravam submeter as cidades, tentavam exercer – como na Alemanha, especialmente – ou a obter delas os maiores benefícios mediante sutis medidas econômicas ou políticas. E, finalmente, deviam ficar atentas à conjuntura internacional, porque o jogo das alianças ou o azar das guerras podia desbaratar o sistema de mercados com o qual cada cidade operava. Para enfrentar o gordo feixe de problemas que a crise de retração suscitou, as burguesias tiveram que responder agressivamente. Possuíam o poder e a experiência: tinham que adequar-se à nova situação e delinear uma nova política apta a responder ao seu desafio, produzindo fatos decisivos, criando, em resposta, novas situações, eliminando os obstáculos para sua hegemonia e aqueles que trabalhavam para colocá-los.
Não obstante, se as burguesias foram capazes de responder agressivamente ao desafio da nova situação, não foi somente porque detinham o poder e a experiência. O que mais lhes valeu foi serem o único grupo urbano que tinha uma vigorosa consciência de classe. Graças a ela, compreenderam o alcance final de seus objetivos e puderam orientar claramente sua ação. Todos os obstáculos lhes pareceram circunstanciais e, para superá-los, deram provas de uma obstinada vontade que não se alimentava somente do egoísmo ou das ambições imediatas, senão de uma profunda convicção acerca do seu papel no desenvolvimento da vida da cidade, cujos fins pareciam confundir-se com os seus. Foi sua consciência de classe oligárquica o que as levou a estreitar suas fileiras e a defender tenazmente suas posições, transigindo às vezes, porém conservando in pectore a decisão de conservá-las, de recuperá-las se as tivessem perdido, ou de melhorá-las ao final da longa luta. Assentadas no poder antes da crise do século XIV, afrontaram todos os embates das lutas sociais e políticas e, finalmente, sob distintas aparências e em circunstâncias variáveis, ficaram instaladas no poder.
Muitos testemunhos difusos provam a existência desta consciência de classe oligárquica, sobretudo os que proporciona sua própria ação, persistente e tenaz. Além, também, dos apresentados pelas crônicas urbanas, saturadas quase sempre de espírito oligárquico; ou a abundante literatura do realismo burguês dos séculos XIV e XV; ou a plástica da mesma época, rica em retratos de burgueses de gesto imperioso e seguro.1 Há ainda um testemunho preciso e expresso: o que proporciona Leão Battista Alberti em I Libri della famiglia, verdadeiro breviário das convicções profundas de uma classe que se sentia consubstanciada com sua cidade e protagonista, além do mais, da história dos novos tempos.
Sem dúvida eram essas convicções profundas o que proporcionava solidez a essas burguesias que se transformavam em cerradas oligarquias. A consciência de classe oligárquica se baseava, em princípio, na posse de certos privilégios que faziam das oligarquias grupos inconfundíveis. Porém, a noção de privilégio tinha um significado positivo para essas sociedades, confirmado, além disso, pela coexistência dos privilégios senhoriais vigentes e realçado, aos olhos da burguesia, pelo esforço demandado para arrancá-los dos senhores. As burguesias mostraram-se decididamente dispostas a defendê-los, tanto contra os senhores, sempre tentados a revogá-los, como contra as ameaças das classes inferiores que lutavam por limitá-los e compartilhá-los. Alentava-as nessa decisão a convicção de que se tratava de privilégios legítimos, visto que elas se sentiam herdeiras dos grupos fundadores – da “comuna jurada” nos casos mais definidos – e mais legítimas herdeiras quanto mais se estreitavam suas fileiras e se convertiam em oligarquias precisamente em defesa desses privilégios e do conjunto de sua tradição.
A medida que as cidades cresciam, as burguesias confirmavam essa condição diante dos grupos que se incorporavam à cidade, aumentando a população e introduzindo novas tendências e aspirações. Foi nas cidades que se faziam, em sua escala, multitudinárias, que as burguesias manifestaram uma tendência assim acentuada de cerrar suas fileiras, tornando-se oligarquias. No seio das novas sociedades urbanas, cada vez mais numerosas e heterogêneas, viam a si mesmas como o único grupo arraigado e responsável. Viam ao seu redor, e diante delas, um conjunto social de enraizamento escasso e, em conseqüência, de escassa responsabilidade no manejo dessa entidade – a cidade – que seus antepassados haviam estabelecido. Os sucessores daqueles lhes haviam proporcionado uma orientação econômica e um potencial que haviam que cuidar com o tino e a moderação necessários para aumentá-las e não destruí-las. Porém, haviam proporcionado também uma personalidade cunhada ao longo do tempo, uma fisionomia social e cultural, um estilo de convivência. Pouco importavam a justiça e a legitimidade das aspirações dos grupos estrangeiros, se para alcançá-las era mister destruir a obra paciente das sucessivas gerações burguesas. As burguesias tornavam-se mais oligárquicas quanto mais perigava o destino dessa entidade criada pelos seus antepassados, da qual se sentiam não só usufrutuárias a título legítimo, mas também orgulhosas e, sobretudo, responsáveis, como sem dúvida não se sentiam os que se haviam agregado pouco a pouco com a esperança de melhorar sua sorte individual.
Além do mais, a ameaça que as burguesias viam avançar sobre seus privilégios e sobre o destino de sua cidade não contribuía somente para fortalecer a consciência de classe oligárquica. Também a fortalecia o sentimento de sua força para fazer-lhe oposição e, sobretudo, de sua capacidade e de sua eficácia. Claros os objetivos em suas mentes, elas haviam acumulado uma longa experiência para enfrentar todas as situações, conjugando as atitudes de força com a capacidade de negociação. Por serem anacrônicos, ou talvez somente ineficazes, os princípios morais tradicionais foram perdendo cada vez mais o seu significado. Outros surgiriam na seqüência. Porém, o importante para as oligarquias foi a própria ação, oportuna, prática e eficaz.
Mantidas por uma clara consciência de classe, as oligarquias ameaçadas optaram por uma política pragmática e realista para alcançar seus objetivos. Ninguém teorizou sobre as situações sociais reais da época e poucos, antes de Maquiavel, sobre as situações políticas reais. Os que se ocuparam desses assuntos – como Jean de Hocsem2 e, em um nível mais elevado, Marsilio de Padua, Guilherme de Occam, Coluccio Salutati ou Bartolus de Sassoferrato – apelaram geralmente para reminiscências clássicas e se mantiveram no plano das ideias gerais; porém não houve uma percepção da peculiaridade do fenômeno social nem tampouco, antes de Maquiavel, da peculiaridade do comportamento político real dos grupos que disputavam ou exerciam o poder. Os mesmos cronistas, às vezes protagonistas ou testemunhas dos fatos, são imprecisos e equivocados quando descrevem os processos e assinalam as causas. Não era uma casualidade. Os fenômenos eram inéditos, como era inédito o tipo de sociedade urbana que se havia constituído. E foi inédita a atitude política das burguesias, sempre na expectativa dos acontecimentos de cada dia, sempre especulando sobre a conjuntura e sempre disposta a encontrar em cada caso a conduta justa e oportuna para responder às circunstâncias.
Como o processo social e político era coerente, ainda que não se aprofundasse a análise dos seus mecanismos profundos, a experiência podia ser eficazmente usada. Essa foi a grande força das oligarquias. Afeitas ao exercício do poder, geração após geração, acumulavam um conhecimento empírico acerca da conduta dos grupos sociais, e cada um de seus membros, ao receber a autoridade, achava que possuía um repertório de recursos para responder com atos eficazes. As vezes eram surpreendidas por situações novas e ficavam deslocadas; porém, agiam por analogia, recorrendo sempre, em última instância, à força para impor seus desígnios. Realistas e pragmáticas, as oligarquias achavam que nada lhes era vedado para alcançá-los.
Seus desígnios não eram obscuros nem misteriosos. As oligarquias queriam conservar sua hegemonia política e manter os outros grupos urbanos submetidos a elas. Certamente, odiavam os grupos populares, as gentes dos ofícios, os pequenos burgueses e até mesmo a burguesia média, quando se insinuavam como rivais, e, mais ainda, quando alcançavam o poder à sua custa. As palavras de Jacques de Hemricourt são reveladoras, quando condenava, até 1398, o regime democrático de Liège, ou as de Gino Caponi quando narrava, depois de 1378 o tumulto dos ciompi em Florença.3 Porém, o seu propósito não era marcado pelo ódio, mas por outras causas. Antes de tudo, porque queriam conservar o poder; no entanto, além disso, porque não queriam que a administração dos negócios públicos e a orientação dos negócios privados passasse a outras mãos que não fossem as suas. E também porque aspiravam a que as conseqüências da crise econômica recaísse sobre as outras classes, tanto quanto estas aspiravam a uma redistribuição das cargas para poderem sobreviver. Fazia parte dos seus desígnios a conservação da ordem e a segurança de bens e pessoas, assim como a contenção da mobilidade social, que tanto comprometia a estabilidade do regime político. Para levar a cabo esses propósitos, as oligarquias haviam elaborado uma estratégia, em algumas cidades já no século XIII, e com a crise econômica e social ajustaram os seus termos.
A rigor, foram duas estratégias: uma para fortalecer a si próprias e outra para subordinar seus inimigos internos a sua vontade. Ambas revelaram um realismo patente e uma clara percepção dos fins e meios para consegui-los. Precisamente, a definição dos fins foi um dos pontos mais delicados da estratégia das oligarquias para fortalecer a sua posição. Interesses encontrados entre seus diversos setores puseram em risco mais uma vez a sua unidade. Desde a época em que se dividiam em guelfos e gibelinos na Itália, houve muitas fraturas em suas fileiras. Houve grupos dispostos a buscar apoio popular, especialmente nos setores mais humildes, e outros renitentes em condescender nessas alianças internas. Houve divergências profundas também quanto às alianças externas e houve setores de interesses contraditórios. Muitas vezes as oligarquias constituíram-se estreitando fileiras ao redor de uma política e praticamente excluindo de seu seio os que discordavam. Foi um remédio heróico que os intransigentes, porém, consideraram eficaz.
Não obstante, a estratégia dominante consistiu, em certos momentos, em cerrar fileiras mediante atos políticos tão drásticos como a Serrata del Maggior Consiglio de Veneza em 1297, qualquer que fosse o alcance a eles atribuído.4 Todas as oligarquias dominantes haviam aspirado a impedir a incorporação livre de novos membros, e em Gent ficava a lembrança da atitude dos XXXIX, dominantes até 1275. As linhagens patrícias, freqüentemente aparentadas entre si, agrupavam-se em associações excludentes que impunham os seus membros para os cargos comunais, perpetuando-se depois neles. Em algumas cidades, certas linhagens conservaram o seu poder e influência durante várias gerações, e, em certos casos, como em Colônia e Lübeck, houve as que permaneceram por dois séculos.5 Em todo caso, constituía um requisito generalizado pertencer a uma “família antiga”, como Christoph Scheurl escreveu em 1516 descrevendo o regime político de Nuremberg.6 Em Genebra, o direito da burguesia era herdado pela linha masculina,7 e lá, como em outras cidades, podia ser adquirido em certas condições: por concessão formal, por exemplo a um estrangeiro de posição equivalente que ingressara pelo casamento em alguma das linhagens tradicionais; e, às vezes, por compra, quando o nível da fortuna recomendava o candidato. Fechado o núcleo patrício, controlado pelas linhagens mais antigas, geralmente agrupadas em associações, depositário da maioria dos cargos comunais, de acordo com os seus membros em seus objetivos fundamentais, sua compatibilidade e vigor permitiam às oligarquias enfrentar seus inimigos, diante dos quais tinham, além disso, a imensa superioridade do poder econômico. De todas, a oligarquia veneziana constituiu o exemplo mais perfeito; e sua política, a mais eficaz: assim, em fins do século XV, Commynes lhe predizia um grande futuro.8
Não ter cedido lugar aos “tribunos do povo” pareceu a Commynes a máxima sabedoria da oligarquia veneziana. Isso podia se traduzir, dizendo que nunca contemporizou com as classes populares nem deixou resquícios em sua política que estas pudessem aproveitar para começar uma ofensiva. Essa foi a regra de ouro da estratégia de todas as oligarquias. No entanto, as condições não foram iguais às de Colônia e Veneza em todas as partes. Onde as indústrias – em primeiro lugar, a têxtil – concentravam grande número de trabalhadores, as oligarquias tiveram que suportar seu embate, defender-se e, quando as circunstâncias permitiam, contra-atacar. Para isso elaboraram uma estratégia destinada a vencer o inimigo interior.
As oligarquias falavam de suas cidades como de entidades compactas. No entanto, sempre consideravam que o corpo político de cada uma delas se compunha somente de seus próprios membros, sem levar em conta o resto da população urbana. Esta política de exclusão dos setores médios e populares do corpo político da cidade foi fixada no século XIII: algumas vezes, enquanto não existiu ameaça ou onde nunca existiu, a exclusão foi tácita; porém, no momento em que aquela apareceu, foi estabelecida taxativamente, como em Bruges em 1240. Enquanto puderam e onde puderam, as oligarquias mantiveram sua decisão de manter à margem do governo comunal não só as gentes dos ofícios, cuja atitude e cujas aspirações, em alguma medida, eram revolucionárias, mas também a burguesia média e ainda os novos setores da burguesia mercantil, que foi aparecendo em muitas cidades com uma atitude política e social diferente da que manifestavam as antigas oligarquias. Essa exclusão dos outros grupos sociais significava uma interpretação do processo de desenvolvimento das sociedades urbanas e um ato de vontade das oligarquias, um ato político sem outro fundamento que não uma apreciação de seus interesses particulares.
Enquanto puderam, as oligarquias procuraram controlar os ofícios. Regulamentaram seu funcionamento, limitaram o número de companheiros e aprendizes e impuseram obstáculos para que se atingisse a maestria. As disposições deviam ser coercitivas, pois a participação no trabalho era fundamental para a cidade e para os interesses das oligarquias, que não queriam que se repetisse uma secessão dos trabalhadores como a que havia ocorrido cm Gent em 1274. Essa estratégia preventiva se transformou em outra corretiva quando as pequenas classes médias, os ofícios e a plebe indiferenciada, se lançaram em motins ou tumultos. Então as oligarquias apelaram para a força sem vacilações. Algumas vezes atuavam por sua própria conta; porém, se temiam ser rebaixadas, apelavam para suas aliadas, as oligarquias de outras cidades, ou o poder senhorial. Em Colônia em 1370, em Florença em 1378, em Lübeck em 1408, os conflitos se mantiveram dentro dos limites urbanos. Mas em Flandres e no país de Liège, o exército do rei da França foi chamado duas vezes para pôr fim aos conflitos internos das cidades; em 1328 triunfou em Cassei sobre os flamengos e em Hoesselt sobre os de Liège, apoiando o conde de Flandres, Luis de Nevers e o bispo de Liège, Adolfo de La Mark; e em 1382 acudiu em apoio ao conde de Flandres, Luis de Mâle, e derrotou os insurgentes em Roosebeke. Fim semelhante tiveram os repetidos conflitos que na primeira metade do século XV atraíram sobre os Países Baixos os duques de Borgonha – João sem Medo, Felipe, o Bom, e Carlos, o Temerário, sucessivamente e que concluíram com a anexação de todo o território ao Estado ducal.
Quando as oligarquias foram derrotadas pelas classes populares, sua estratégia consistiu em aceitar a situação e negociar. Só excepcionalmente abandonaram o campo, como fizeram os patrícios de Estrasburgo em 1419, quando preferiram expatriar-se a ter que aceitar as crescentes exigências das classes populares. Via de regra, negociaram, com o que quase sempre conseguiram a instauração de regimes compartilhados em que os seus membros figuravam em maior ou menor número nos quadros comunais. Por outro lado, muitas vezes as oligarquias consentiram em manter uma parte das conquistas das classes populares quando voltaram ao poder depois de uma derrota efêmera. Foi uma estratégia flexível, baseada no reconhecimento das forças reais existentes em cada cidade e que as oligarquias não se sentiam capazes de dominar; e, só quando o peso de um poder forte – um poder territorial – caiu sobre a balança, foi que reivindicaram todos os seus direitos e declararam todas as suas intenções. Foi assim quando o rei da França, o duque de Borgonha ou o imperador Maximiliano intervieram nos Países Baixos; assim, quando Carlos V apoiou em Gênova a plena restauração oligárquica encabeçada por Andrea Doria; assim quando o rei de Aragão agiu sobre Barcelona. Somente algumas oligarquias mantiveram sua autoridade resistindo aos poderes territoriais, como ocorreu nas cidades suíças; tanto que algumas cidades puderam subsistir sem aquelas pressões, como as cidades hanseáticas.
Naturalmente, as oligarquias não foram sempre os mesmos grupos sociais. As burguesias mudaram de fisionomia ao longo do agitado processo que, em algumas cidades, já começou no século III, mas que alcançou sua maior intensidade ao longo do século XIV. Em seu seio, um grupo apelou sempre pela adoção de uma estratégia radical e somente concebeu as transações como manobras oportunas para driblar astutamente as conjunturas adversas. Outros, ao contrário, se inclinaram a reconhecer a existência de novas forças sociais que se iam constituindo no entusiasmo do processo econômico e também dos processos sociais e políticos, e admitiram a possibilidade de compartilhar o poder com elas. Porém, no entanto, as burguesias mantinham plenamente o controle da vida econômica; e, se houve dissidências internas em seu seio, foi porque diversos grupos, especialmente as novas categorias burguesas dedicadas a certos tipos de negócio, aspiravam substituir os antigos grupos que detinham o poder. Aqueles que disputaram o controle da vida econômica com as burguesias, contudo, não foram as novas forças sociais subordinadas, que as fustigaram valendo-se de seu número e de sua influência no âmbito urbano. Foram os poderes territoriais, de influência crescente, os que assumiram o papel de reguladores da vida econômica, tanto por meio da política fiscal, como pelas decisões políticas que se relacionavam com a moeda e com os mercados externos. Porém, ainda assim, descontando que cada nova contingência podia implicar o deslocamento dos grupos predominantes e sua substituição por outros, as burguesias, como conjunto, continuaram sendo as forças econômicas decisivas nas cidades de desenvolvimento autônomo, e sempre apareceram em seu seio grupos obstinados em manter suas fileiras cerradas. E, quando perderam o poder político, graças ao avanço dos poderes territoriais, modificaram mais uma vez sua estratégia e começaram a operar como grupos de poder e de pressão sobre os novos senhores. De seu seio saíram, sobretudo, os conselheiros econômicos dos novos senhores e a alta burocracia, capaz de ajustar a organização do Estado às novas circunstâncias.
De resto, os poderes territoriais prestaram, sem demora, um serviço decisivo às burguesias. Impuseram-se pela magnitude de sua força, muito superior à de qualquer dos bandos que se enfrentavam nas lutas civis. Porém, impuseram-se, sobretudo, porque foram capazes de estabelecer um tipo de paz social, que, ainda que não fosse francamente favorável às classes populares, favoreceu aos setores médios – às vezes, seu principal apoio – e ainda reconheceu a existência de certos direitos dos estratos mais humildes. Teoricamente, os senhores territoriais se apresentavam como neutros nas lutas civis, e, por isso, alguns deles, como o duque de Borgonha, Felipe o Bom, alcançaram considerável popularidade. Na prática, entretanto, reconheciam como um fato incontestável que as burguesias eram os grupos mais importantes das cidades e as protegiam, sem deixar de se apoiar no setor que melhor podia servir a sua política. Assim, as burguesias se beneficiaram com a paz social – que significava a submissão dos grupos populares rebeldes – e puderam manejar seus interesses com mais liberdade e maiores benefícios. Assim também fortaleceram seu prestígio social frente às classes populares, à média burguesia e ainda frente à nobreza, cada vez mais zelosa dos setores plutocráticos, mais ricos, de fato, que os latifundiários.
Somente em algumas cidades, os grupos mais oligárquicos das burguesias mantiveram todos os poderes: o social, o econômico e também o político. Em Veneza, nas cidades suíças, nas hanseáticas e em algumas outras cidades alemãs, a república urbana mostrou a duradoura eficácia desses grupos tenazes de empresários que conduziam o governo da cidade com extrema sabedoria.
Quando a crise de retração começou a ceder, em meados do século XV, as burguesias estavam assentadas no poder outra vez, embora se tratasse, então, de um poder de outro tipo. Em troca da paz social, de um amplo mercado territorial protegido por um poder forte, e de uma vaga proteção para suas atividades econômicas, as burguesias foram renunciando ao poder político, certas de conservar sua posição social e econômica. Sua tendência oligárquica concentrou-se na concepção mercantilista e na defesa do sistema monopolista de comercialização. A longo prazo, sua estratégia foi a expressão mais refinada da política do realismo: consistiu em colocar o poder político dos estados territoriais indiretamente a serviço de seus interesses econômicos.
II. A Radicalização das Democracias
Frente às oligarquias assentadas no poder, as classes populares e, especialmente aquelas que haviam alcançado certo grau de organização através das corporações de ofícios, insurgiram-se em defesa de seus direitos e na busca de privilégios, entre os quais se contava, fundamentalmente, a participação no poder.
Essa revolta já havia se manifestado no século XIII. Um patrício, Henri de Dinant, desencadeou em Liège, em 1253, um movimento popular que abalou o poder oligárquico. Em 1274, os trabalhadores têxteis de Gent rebelaram-se e decidiram abandonar não somente seu trabalho, mas também a própria cidade, depois do que a condessa Margarida impediu o governo oligárquico dos XXXIX no ano seguinte. E, em Florença, nos últimos anos do século, Giano della Bella encabeçou a rebelião das Artes menores e da plebe, da qual surgiram os Ordinamenti della giustizia. As oligarquias recuperaram seu poder, mas as tendências políticas dos grupos sociais que sofriam o peso da sua autoridade ficaram em evidência. Essas tendências se revelaram plenamente ao insinuar-se a crise de retração econômica e desembocaram em movimentos tanto ambiciosos como dramáticos.
Sem dúvida, foi essa crise que precipitou a insurgência das classes populares contra os governos patrícios das cidades. Porém estava latente na própria natureza da nova sociedade, visto que em todos os campos da economia de mercado – tanto da produção manufaturada como do sistema de comercialização – se estimulava a formação de uma força de trabalho que crescia em número e adquiria peculiaridades inusitadas. O crescente desenvolvimento das manufaturas e as inumeráveis atividades terciárias requeriam um grande número de pessoas que trabalhassem para os que as promoviam com seus capitais e as dirigiam em seu próprio benefício. Eram pessoas que conviviam no estreito espaço urbano, trabalhavam geralmente reunidas, compartilhavam os mesmos problemas e comunicavam cotidianamente as suas opiniões uns aos outros. Assim, chegaram a adquirir certo grau de cumplicidade, que deu a um número crescente uma força potencial capaz de despertar-lhes o anseio de lutar para melhorar sua situação.
A economia de mercado era, por muitas causas, um sistema flutuante. E não só porque seus mecanismos eram ignorados, mas porque, nessa etapa do seu desenvolvimento, tudo era aleatório. Eram aleatórios os mercados, tanto o interno como o externo, o grau de liberdade com que deviam se desenvolver, a moeda que se deveria usar nas transações, as fontes de provisão das matérias primas, o sistema de crédito e financeiro, tudo podia parecer estável em certo momento e desmoronar pouco tempo depois. Assim, tanto o mercado de trabalho como o montante dos salários sofreram freqüentes e graves altos e baixos, cujas vítimas foram as classes trabalhadoras. Houve problemas gerais que incidiam sobre uma extensa área e houve problemas locais de cada cidade ou particulares de cada indústria ou setor comercial. E cada vez que apareciam, as relações entre os trabalhadores e os patrões se tornavam difíceis: mais ainda, porque os patrões também exerciam o poder político.
A resposta das classes populares foi diferente. Amplos setores indiferenciados nada puderam fazer a não ser alimentar seu desespero e suportar sua fome sem ver nenhuma possibilidade de reação. Porém, os que estavam subordinados a certas atividades bem definidas, com uma relação de dependência contínua e estável, se agruparam em corporações de ofício e chegaram a ter um número considerável de membros, força incontestável no seio da cidade e, sobretudo, uma consciência cada vez mais clara de seus interesses e desejos. Eles foram os principais protagonistas dos movimentos que desafiaram o poder dos patrícios, donos das cidades e também das empresas econômicas.
Se houve causas socioeconômicas que promoveram esses movimentos, também houve causas sociomentais. Diante da consciência de classe oligárquica apareceu – melhor delineada, sem dúvida – uma consciência de classe das gentes de ofício que constituíam o núcleo principal das pequenas burguesias urbanas. As classes populares indiferenciadas também adquiriram uma certa noção da sua situação, capaz de empurrá-las para tumultos ocasionais sem objetivo fixo. Em determinadas ocasiões foram às ruas, cometeram desmandos, mataram ou roubaram. Porém, nem sabiam exatamente o que queriam – exceto livrar-se ao menos uma vez dos males que as agoniavam – nem o sistema lhes permitia alguma esperança de encontrar soluções. As suas reações eram desesperadas. A situação das pequenas burguesias e especialmente das gentes dos ofícios era diferente. Contra eles se voltavam, sobretudo, o fisco urbano e, contra sua atividade e seus ganhos, as medidas restritivas que o governo comunal manejado pelos patronos adotava. O primeiro traço de sua consciência de classe consistia em sentirem-se explorados e, sobretudo, em sentirem-se pobres diante dos ricos. Porém, imediatamente, se vislumbravam outros, sobretudo em cada circunstância concreta. Então, as gentes dos ofícios se uniam em torno de exigências muito definidas, com as quais concordavam todos os afetados por certas decisões das oligarquias, e dessa maneira – passiva de início, ativa depois – tomavam progressivamente consciência de quais eram seus interesses e quem eram seus opositores. Entretanto, tomaram consciência de sua importância na vida econômica e de que estava em suas mãos a possibilidade de que se desenvolvesse normalmente ou de que se alterasse. Assim ficou provado quando houve a divisão dos trabalhadores têxteis em Gent em 1274. A importância dos diversos grupos da pequena burguesia e das classes populares indiferenciadas era diferente nas diversas atividades, como era diferente o grau de coesão de seus membros e a clareza com que percebiam seus objetivos finais. Por isso, era difusa sua consciência de classe em relação àquela que animava os grupos oligárquicos.
Contudo, desta consciência derivaram novas atitudes políticas das pequenas burguesias. Enquanto as oligarquias traduziam suas em ações contínuas e positivas, as daquelas se manifestavam como reações ocasionais diante dos atos de seus adversários, que pareciam impedir, real ou virtualmente, a iniciativa. Ainda que as pequenas burguesias triunfassem em um episódio – que em muitos casos podia ser duradouro – as oligarquias conservavam uma capacidade de contra ataque que não se ocultava dos seus adversários, tanto por sua fortuna e pela força da rede econômica de que tomavam parte, como pelos aliados que podiam mobilizar. A luta pelo poder, nas quais concentravam sua hostilidade, era pois desigual, e as pequenas burguesias a empreenderam uma ou outra vez com o mesmo critério pragmático e realista que as oligarquias usavam.
A pequena burguesia apenas podia contar com sua própria força para essa luta. Os membros das burguesias médias não tinham geralmente a vocação para aproximar-se de seus inferiores, porque acalentavam a ideia de ingressar de algum modo nas mais altas classes da sociedade quando sua fortuna aumentasse ou conseguissem aparentar-se pelo matrimônio com alguma das grandes linhagens; e se, como classe, tentaram algumas vezes forçar a mão contra as oligarquias, preferiram atuar sozinhos: ou ofereceram seu apoio a algum aspirante ao principado, ou buscaram o apoio da plebe indiscriminada. A rigor, as burguesias médias temiam as gentes dos ofícios tanto quanto as temiam as oligarquias, não só porque também se compunham de patrões mas também porque as corporações constituíam a única força social comparável – em organização, força e disciplina – às oligarquias. De seu lado, as classes sociais indiscriminadas também viam com receio as gentes dos ofícios, em quem identificavam uma espécie de aristocracia popular. Talvez porque não soubessem o que exigir dessa sociedade na qual ocupavam uma posição praticamente marginal, voltaram-se para os poderosos quando estes as adularam, ofereceram-lhes algo gratuitamente, ou simplesmente lhes proporcionaram a ocasião para um extravasamento no qual satisfaziam momentaneamente seus ressentimentos. Porém, não tinham coerência nem organização, nem esperanças definidas para participar de uma luta por responsabilidades e direitos políticos que instintivamente sabiam não poder alcançar.
A pequena burguesia e especialmente as gentes de ofício estavam, pois, praticamente sozinhas diante das oligarquias. Somente elas tinham capacidade de luta e, ao menos, certa clareza sobre seus objetivos. Não excessiva, sem dúvida, porque a distinção entre seus fins socioeconômicos e seus fins políticos aparecia na sua consciência inevitavelmente confusa. No fundo, suas reivindicações eram fundamentalmente de cunho social e econômico; mas, sentindo-se impotentes nesse campo – cujos mecanismos, além do mais, ignoravam – concentravam sua ação no campo político, convencidas de que, se alcançassem o poder, o resto lhes seria dado como conseqüência. Era, por outro lado, uma concepção generalizada da qual participavam as oligarquias e os poderes territoriais. Mesmo Maquiavel a compartilhava. Parecia evidente que quem tivesse o poder alcançaria a riqueza. Certamente era uma concepção pré-mercantilista, anterior ao desenvolvimento da economia de mercado. Contudo, embora não faltassem observações ocasionais sobre a influência da economia sobre o poder, a experiência da nova economia não bastou para desvanecer essa ideia. As gentes dos ofícios, sem deixar de assinalar em cada caso quais eram as situações que recusavam ou as medidas às quais se opunham, enraizaram seu programa máximo na conquista total do poder, admitindo a participação parcial nele como etapas desse plano.
Se a conquista total do poder pelas gentes de ofício representou, de fato, a substituição de uma oligarquia por outra, com o mesmo caráter exclusivista, a participação nele constituiu uma espécie de pacto entre duas oligarquias. Se os regimes que surgiram da revolta dos ofícios puderam ser considerados democráticos, foi somente por extensão e porque, de certo modo, eram mais democráticos do que os tradicionais na medida em que eram representativos de uma parte mais ampla da sociedade. Porém, os movimentos dos ofícios nunca tiveram como meta ampliar a representatividade popular do governo comunal para além dos limites de suas próprias fileiras, restringindo-a, além disso, ao outro extremo mediante a limitação dos representantes da alta burguesia e, quando possível, por meio de sua exclusão total.
Nisso consistiu, em primeiro lugar, a progressiva radicalização do processo político desencadeado pelas gentes dos ofícios. Em Liège, elas haviam conseguido, em 1303, dividir em igualdade os postos no conselho dos jurados com o patriciado. Porém, diante de uma reação destes, irrompeu em 1312 o movimento chamado de os “Matinas de Liège”; os artesãos foram às ruas e atacaram os patrícios, alguns dos quais morreram combatendo; e outros, queimados em uma igreja que os revoltosos incendiaram. A paz de Angleur, firmada em 1313, confirmou a crescente importância dos ofícios; porém, uma nova reação oligárquica lhes arrebatou suas conquistas em 1331, até que outra rebelião restaurou o sistema de paridade entre patrícios e gentes dos ofícios em 1343, ficando estabelecidas as normas na chamada Carta de Saint-Jacques. A partir desse momento, a radicalização do movimento artesão foi maior. Em 1369, os patrícios foram excluídos do conselho e só permaneceram no escabinado, que funcionava como um tribunal simples. Uma disposição que exigia dos patrícios que se inscrevessem em um dos ofícios acentuava sua dependência. Eles mesmos decidiram, em 1384, abandonar toda função pública diante da força da pressão popular.9 Em Estrasburgo, se produziu contemporaneamente um processo semelhante. Os ofícios haviam alcançado um primeiro triunfo, em 1332, quando deram seu apoio ao patriciado burguês contra o patriciado nobre: ingressaram pela primeira vez no conselho e demonstraram uma tenaz energia para defender e consolidar suas posições. Porém, como o patriciado burguês tentou avassalar tanto as gentes dos ofícios como o patriciado nobre, produziu-se entre estes últimos uma aliança que terminou na revolução de 1349. Os ofícios dominaram a situação desde então e foi designado um açougueiro para o cargo de ameister, o mais alto da cidade e superior aos quatro burgomestres. A situação radicalizou-se em 1362, quando se constituíram novas corporações de ofício que aumentaram o poder do conjunto. Estabeleceu-se que os artesãos conservariam sua condição, ainda que aumentassem sua fortuna ou se aparentassem com o patriciado; e, em resposta a esse estreitamento das fileiras da pequena burguesia, os grupos patrícios – nobres ou burgueses – cerraram as suas, mas ao preço de enfraquecer ainda mais sua posição política. A situação tornou-se tão difícil para eles que, em 1419, um grande número de patrícios abandonou a cidade, depois do que os ofícios impuseram, em 1420, uma nova carta pela qual reduziam a um terço o número de seus postos no conselho, contra os dois terços reservados para as corporações. Essa situação consolidou-se com o tempo.10 O mesmo não ocorreu em Florença, onde o programa daqueles que encabeçaram o movimento dos ciompi, em 1378, teve resultados efêmeros. Durou apenas quatro anos o audacioso experimento político e social que desencadeou o gonfaloneiro de justiça Salvestro de Medici e derrubou o dirigente das classes populares Michele di Lando. O primeiro, com indiscriminado apoio popular, havia conseguido introduzir no governo as Artes menores; porém, o movimento radicalizou-se sob a inspiração de Michele di Lando. Depois de violentos distúrbios, constituíram-se três novas corporações, das quais uma agrupava todos os trabalhadores que não tinham profissão fixa e que eram, de fato, o mais humilde estrato social. Unidas às existentes, formaram uma consortería das artes menores, que conseguiu impor à comuna florentina um novo regime em que as corporações que a integravam alcançaram um forte predomínio através dos magistrados surgidos do seu seio. Porém, o popolo grasso estreitou suas fileiras e o experimento radical foi frustrado em 1382.11
Em outras cidades produziram-se processos sociais e políticos semelhantes, sobretudo em Magdeburgo, em 1330, e em Colônia, em 1396. E em diferente escala, com diferentes resultados e diverso grau de duração, produziram-se em Braunschweig, em 1386 e sobretudo em 1485, em Gênova, em 1378, 1383 e 1399, em Bremen, em 1418, em Stettin, em 1420, em Bremen, em 1427, em Rostock, em 1439, e, em Münster, em 1454. Arrastadas pela dinâmica do processo de mudança, as pequenas burguesias e as classes populares indiferenciadas se lançaram à aventura revolucionária sem calcular em cada caso as possibilidades reais de êxito e talvez colocando em perigo posições já conquistadas.
Esse comportamento político foi o resultado da radicalização dessas classes. Porém, essa tendência não se manifestou somente no afã de apoderar-se do poder e excluir dele os patrícios. Também se revelou em sua despreocupação absoluta pelos interesses coletivos da cidade, que muitas vezes comprometeram irrefletidamente abalando o sistema econômico em que estavam inseridas, com o objetivo de abater as classes que dele usufruíam. E pôs-se em evidência também na luta que se originou entre os ofícios em certas cidades, cada qual querendo aproveitar o triunfo de todos em benefício próprio, sem vacilar no aniquilamento dos ofícios rivais por meio de uma guerra enfurecida. Assim aconteceu em Gent e Bruges, onde o conflito dos tecelões com os outros ofícios ensangüentou ambas as cidades durante as décadas que transcorreram entre a morte de Jacob van Artevelde, em 1345, e a batalha de Roosebeke, em 1382. Levada até as últimas conseqüências, a radicalização de sua política pôs muitas vezes em perigo a posição das pequenas burguesias, as quais, ainda que pudessem alcançar o poder político pela força, não estavam em condições de tirar o poder econômico do patriciado e das burguesias médias. Somente uma política intermediária, baseada em alianças com outras forças, podia assegurar-lhes a manutenção de suas conquistas.
Certo ou errado, prudente ou não, esse comportamento político das pequenas burguesias e das classes populares indiferenciadas foi também, como no caso das oligarquias, resultado de uma estratégia pragmática e realista. Só que aquelas não tinham a experiência política das oligarquias nem podiam, sequer, conhecer as reações das forças sociais heterogêneas que liberavam ao iniciar sua ação. Seu pragmatismo consistiu sobretudo em esperar a ocasião que lhes parecia apresentar-se como favorável e seu realismo em defender seus interesses imediatos utilizando todos os recursos ao seu alcance. Se os programas e os fins costumavam ser difusos e não suficientemente estudados em relação às suas possibilidades, a ação foi pragmática e realista em relação às circunstâncias do momento em cada lugar.
Predispostos à ação por ressentimento de classe, por ambição de poder ou pelo anseio de melhorar sua condição social e econômica, as pequenas burguesias e as classes populares indiferenciadas se lançaram a ela quando se polarizaram frente a uma conjuntura favorável. Foi o inimigo, geralmente, que marcou o momento da ação. Algumas vezes foi o estabelecimento de um imposto oneroso o que suscitou a exaltação popular, como em Braunschweig, em 1374. Outras vezes foi uma explosão de cólera popular devido à insistente pressão socioeconômica e política das oligarquias em geral ou de algum dos seus membros em particular. Porém, o que mais freqüentemente pareceu indicar o momento da ação foi um enfraquecimento ocasional das oligarquias. Submetidas a influências como as encontradas nas cidades flamengas, que desde o início do século XIV oscilavam entre o poder político da monarquia francesa e a abertura econômica oferecida pela Inglaterra, parecia possível introduzir-se na brecha até quebrar o seu poder. Confrontadas com o aliado tradicional, como a oligarquia florentina, que rompeu seus vínculos com o Papado, em 1376 , sua capacidade de resistência parecia diminuída. Porém, ainda mais evidente foi o seu enfraquecimento quando uma fratura produzida em suas fileiras dentro do âmbito da cidade e por causas internas veio à tona.
O processo que causou a crise em Liège em 1303 e levou as gentes dos ofícios a participar do poder se desencadeou quando a oligarquia impôs um novo imposto sobre os artigos de consumo. No entanto, não foi só por isso, mas também porque encarregou da cobrança uma legião de jovens patrícios que converteram a arrecadação em uma espécie de cruzada antipopular. Contudo, a oligarquia passava por um mau momento por causa da rivalidade que havia irrompido em 1297 entre as linhagens nobres – os Awans e os Waroux – e nessa guerra se viram enredados os patrícios que tomaram o partido de uma ou de outra. Foi a circunstância que os ofícios julgaram oportuna para se lançarem ao ataque contra o sistema. Coisa semelhante ocorreu em Estrasburgo em 1332. Duas famílias burguesas particularmente influentes – os Zorn e os Mullenheim – enfrentaram-se e as gentes dos ofícios intervieram apoiando os patrícios de origem burguesa: foi então que conseguiram, pela primeira vez, conquistar um número importante de postos no conselho.
Essas fraturas correspondiam à estrutura tradicional da oligarquia. Porém, em outros casos, elas se produziram devido aos novos fenômenos sociais e econômicos. Junto às antigas famílias surgiram, em várias cidades e em diversos momentos, novos grupos que cresceram de importância devido à sua fortuna crescente; no entanto, encontraram fechado o caminho até o poder pela atitude oligárquica daquelas. Ricos comerciantes desencadearam a grande crise de Gênova apelando – desde a época de Simon Boccanegra – ao difuso apoio das classes populares contra as antigas famílias gibelinas. No entusiasmo dessas discórdias, irromperam os infrutíferos movimentos populares de 1378 e 1383; mas, em 1399, a luta entre as facções se precipitou conforme a atitude de cada uma frente à dominação francesa, e os populares instituíram um governo em maio – o Consiglio dei Quindici – formado somente por eles. Durou pouco, pois em novembro fizeram uma nova tentativa e estabeleceram um novo governo designando quatro Priores das Artes. Tudo acabaria quando se restabeleceu a autoridade francesa representada pelo marechal Boucicaut. Ricos comerciantes promoveram outros tumultos populares. Salvestro de Medici lançou em Florença as Artes menores contra a oligarquia, abrindo, em 1378, o caminho para o tumulto dos ciompi; Paternostermaker desencadeou em Lübeck a rebelião dos açougueiros em 1384; Karsten Sarnow iniciou em Stralsund o movimento de 1385. As rebeliões das pequenas burguesias e das classes populares indiferenciadas, efêmeras algumas, duradouras outras, só começaram a ter algum êxito quando a oligarquia perdeu sua coesão e quando puderam contar com o apoio de algum setor econômico mais poderoso que elas, mais influente e mais enraizado de alguma maneira na estrutura econômica tradicional, ainda que fosse em condições precárias. Por isso, a conquista total do poder lhes foi muito difícil, tanto que conseguiram perdurar as fórmulas transacionais refletidas em constituições mistas. Para alcançá-las, as pequenas burguesias – mais organizadas que as outras classes populares e com objetivos mais claros – fundamentaram de modo geral sua estratégia política – pragmática e realista – em alianças que lhes prestavam um ponto de apoio no sistema.
Grupos muito diversos aceitaram a aliança popular. Em Liège, já em 1285, viu-se formar uma frente constituída dos ofícios e do clero para opor-se ao estabelecimento de um novo imposto. Na revolução de 1303, essa aliança reapareceu e ela voltou a ser vista na de 1343, desta vez fortalecida com a de um setor patrício. Em Bruges, a rebelião de 1302 contou com o apoio dos descendentes do conde de Flandres, hostilizado pelo patriciado – os lyliaerts – que o rei de França respaldava. Em Braunschweig, em 1374, os comerciantes da média burguesia apoiaram os ofícios. E em Stralsund, em 1385, foi uma parte do patriciado que combateu ao seu lado para acabar com o predomínio dos Wulflam, uma das famílias de seu seio. Esses movimentos, se triunfavam, deviam desembocar em regimes transacionais, cuja vigência duraria até que, em alguns casos, a política dos ofícios se radicalizasse.
Sem dúvida, outros fatores contribuíram para o início dos movimentos populares. A situação internacional que originou a guerra dos Cem Anos – cujo transcurso coincide com esse período – produziu numerosas conjunturas críticas em diversos lugares. Algumas vezes houve anarquia e relaxamento do sistema de autoridade e dependência; outras vezes houve intensos conflitos entres os grupos dominantes; em muitas ocasiões a escassez, a desocupação, a miséria e a fome criaram uma intensa exaltação dos ânimos coletivos; e, com freqüência, o sermão do clero urbano – principalmente de frades mendicantes – que tinha um cunho popular e algumas vezes alcançava matizes revolucionários, contribuiu para rebelá-los.
Além disso, houve fenômenos de contágio. A intensidade dos movimentos artesanais ocorridos nas cidades flamengas – Bruges, Gent, Ypres – abalou a imaginação das gentes de ofício em outras cidades de diversos países. Repercutiram em algumas cidades de Brabante e em Liège, que, por sua vez, influiu sobre certas cidades holandesas – especialmente Utrecht – e sobre muitas da Alemanha que imitaram as novas instituições. As agitações das cidades hanseáticas se transmitiram entre si, e o movimento florentino teve repercussão em Gênova. Nem sempre as condições sociais e políticas eram as mesmas nem a ocasião igualmente favorável; porém, a tendência das gentes de ofício, esta sim, era a mesma e animava-se diante do exemplo dos seus pares de outras cidades. Uma vez, como em Flandres em 1324, os artesãos se lançaram à insurreição em Bruges, com os tecelões na liderança, arrastados pelo clima revolucionário que os campesinos da Flandres marítima criaram.
Não influiu menos o aparecimento de caudilhos políticos com forte atração pessoal entre as classes populares. Não faltaram, por certo, os demagogos inexperientes que não só não ajudaram a determinar os objetivos da luta e as formas da ação imediata, como também, ao contrário, conduziram os grupos rebeldes a aventuras mais radicais do que as circunstâncias permitiam. Houve, porém, os que, à frente de movimentos de objetivos confusos, conseguiram concretizá-los e incluí-los no quadro político conjuntural, aumentando as possibilidades de êxito. Um dos mais decididos e com condições inequívocas de liderança foi o caudilho dos minuti florentinos rebelados em 1378: “Um tal de Michele di Lando – escreveu um cronista contemporâneo –12 penteador, ou melhor, o que dirigia os cardadores e os penteadores, expedidor de loja de lã, levantava ao alto o estandarte do popolo minuto, aquele que se havia tirado à força da casa do verdugo; usava sapatos sem calças. Com esse estandarte na mão entrou no palácio com todo o povo que o quis seguir e, subindo as escadarias, chegou até a sala de reunião dos prepósitos e ali se deteve. Concedeu-se-lhe por aclamação popular, a senhoria e determinaram que fosse confaloneiro e senhor. Então fez redigir alguns artigos e os mostrou ao povo: constituiu como síndicos das artes aqueles que escolheu, para que transformassem a cidade. Assim, foi durante todo esse dia até o seguinte, até as nove e meia – por mais de vinte e oito horas — este Michele di Lando, penteador, foi senhor de Florença.” Porém, a figura mais significativa do amplo movimento dos ofícios foi Jacob van Artevelde, patrício de Gent que se transformou em 1338 no chefe de um governo de coalizão patrícia e popular para enfrentar a grave crise pela qual atravessava a cidade diante da pressão de Eduardo III da Inglaterra. Essa coalizão lhe pareceu indispensável e, para constituí-la, introduziu no governo os tecelões, o mais importante dos ofícios de Gent e que havia sido desalojado do poder em 1320. Assim, obteve o apoio dos ofícios, porém sem perder o do patriciado, porque a política que condenava era a do conde de Flandres, à qual opunha a do entendimento com a Inglaterra, lira o que julgava melhor para Gent e para toda a Flandres e, a esse objetivo subordinou sua política social, inserida no quadro de uma política geral que não excluía os patrícios produtores da riqueza. Quando o domínio de Gent se consolidou sobre Flandres, os excessos do governo, influenciado pelos ofícios, minaram seu prestígio. E depois, ao enfrentarem-se os diversos ofícios no seio da cidade, os tecelões abandonaram Jacob van Artevelde – então acusado por sua política pró-inglesa – e o caudilho caiu assassinado em um tumulto popular que os tecelões encabeçaram.13
Os movimentos triunfantes das pequenas burguesias, encabeçados principalmente pelas corporações de ofício, resultaram em mudanças institucionais, ainda que por trás da letra dos estatutos se vislumbrassem atitudes distintas que impregnavam as instituições de características diferentes. Foi o caso de Liège, onde os termos relativamente moderados da Carta de Saint-Jacques, de 1343, se viram ultrapassados com o tempo até o ponto em que, depois de 1384, só ocupassem postos no conselho os membros dos ofícios. Porém, o que teve influência em muitas cidades não foi esta variante radicalizada de fato, mas a concepção originária da Carta de Saint-Jacques, que estabelecia um conselho constituído por partes iguais de patrícios e gentes do ofício. Num grau intermediário, alguns estatutos – como a carta concedida em Bruges em 1304 – outorgavam a maioria dos postos para os ofícios, tanto no escabinado como no conselho. Em geral, ficou consagrado no século XIV, em muitas cidades, o princípio que Florença havia estabelecido nos primórdios do século XIII, excluindo os nobres do governo, porém radicalizando-o em algumas cidades até o ponto de excluir também os patrícios. No entanto, por diversos mecanismos, o patriciado pôde seguir tomando parte do governo: fosse porque os ofícios admitiam espontaneamente – ou se viam obrigados a admitir – a co-participação de alguns de seus setores, fosse porque alguns patrícios concordavam em cumprir o requisito de inscrever-se em um dos ofícios, como foi taxativamente estabelecido em Florença ou em Liège. Em geral, não mais do que nos momentos de grande exaltação – ou de grande confusão – o movimento dos ofícios pôde pensar em assumir só o governo das cidades de desenvolvimento autônomo. Os próprios fatos o forçaram a buscar alianças que logo se traduziram em concessões a outros grupos sociais, ou a aceitar, como limite das suas aspirações, tomar parte dele se suas forças não lhe permitiam impor condições. Outras medidas complementaram o quadro do novo sistema institucional, medidas relacionadas com o sistema de eleição dos membros dos corpos colegiados, o equilíbrio entre as diversas corporações, a distinção entre as funções judiciais, políticas e administrativas, as condições do serviço militar ou as disposições sobre as condições de trabalho, salário ou proteção das classes populares em situações críticas.
Apenas esporadicamente apareceu uma política de fundo com relação ao predomínio que as oligarquias exerciam sobre as atividades econômicas. Quando apareceu, foi em favor das médias burguesias, como ocorreu em Bruges, em 1302, quando se concedeu a todos os burgueses o direito de comercializar, o que até então havia sido monopólio dos patrícios. Porém, em geral, o mecanismo econômico que consolidava a dependência dos ofícios aparentemente não chamou a atenção deles, e não houve, em conseqüência, uma estratégia voltada para sua modificação. Houve, sim, uma total despreocupação com as conseqüências, que para a economia geral da cidade, tinham os conflitos sociais e a fustigação das classes dominantes que a promoviam e desenvolviam. E a conseqüência foi um empobrecimento geral de muitas delas, talvez mais notável porque, na crise, cresceram e se consolidaram muitas fortunas particulares de antigos e novos ricos.
O empobrecimento geral das cidades foi, de longe, uma das causas do fracasso dos movimentos populares, que se somou à impotência dos setores rebeldes tanto para manejar o aparato produtivo como para exercer sozinhos o governo. Limitada a ação por efeito da crise econômica, os ofícios caíram em uma política exclusivista em defesa de seus próprios interesses, que não foi, finalmente, a defesa do conjunto mancomunado dos ofícios, mas sim a de cada um deles contra os demais. Essa guerra interna da pequena burguesia – que alcançou traços dramáticos em Bruges e Gent nas décadas que se seguiram à morte de Artevelde – não só debilitou sua própria força, mas a isolou do resto das classes populares, de cujo destino se desinteressou. O conjunto do setor revolucionário mostrou sua heterogeneidade, sua falta de coesão e sua incapacidade para encontrar uma base mínima de coerência que lhe permitisse obter um êxito definitivo diante do setor da burguesia manufatureira, financeira e comercial.
Estas, por sua vez, haviam conservado seu predomínio econômico e social e o aumentaram por meio de uma política de alianças com os poderes territoriais. Quando a economia começou a sair da crise, a grande burguesia estava em condições de aproveitar ao máximo as novas oportunidades que a ampliação dos mercados e a restauração da ordem social e política ofereciam.
O processo deixou, a longo prazo, um saldo favorável. As cidades de desenvolvimento autônomo haviam posto em funcionamento uma política realista e pragmática que fixou o preço justo de cada um dos setores da nova sociedade em um âmbito plenamente mercantilizado. A grande e a média burguesia representavam o capital. Os ofícios representavam o trabalho. Os dois termos da nova economia mercantil e da nova sociedade tipicamente burguesa eram inseparáveis e indissolúveis. Ficavam fora desse quadro as antigas aristocracias senhoriais, exceto quando seus membros se incorporavam às fileiras da grande burguesia, e a massa das classes populares indiferenciadas, eventualmente utilizáveis dentro do sistema mercantilista, porém sem relevância social. O ajuste das relações entre os dois setores protagonistas do sistema criou, sobre os vestígios das concepções tradicionais que a política realista e pragmática havia dissipado, o modelo das relações fundamentais do novo mundo urbano e burguês.
Certamente, o mundo urbano e burguês era, por sua vez, somente um dos pólos da sociedade global. Porém, seu fortalecimento e sua definição explícita permitiram que pressionasse as estruturas feudais e territoriais e as constrangesse até forçá-las a integrar-se com ele. Assim, foi o que se viu com clareza nos estados territoriais, nos quais a política realista e pragmática conseguiu elaborar o novo quadro de relações em um mundo transacional, feudoburguês.
III. O Desenvolvimento do Autoritarismo Urbano
O novo mundo urbano e burguês havia se constituído como um conjunto de enclaves na sociedade feudal, que era, do ponto de vista político, uma sociedade bifronte. Os grupos privilegiados eram regidos por um sistema contratual no qual a obediência do inferior tinha como contrapartida obrigações expressas do superior, e era nele que os vínculos podiam dissolver-se, visto que eram contratuais. Os grupos não privilegiados, ao contrário, eram regidos por um sistema autoritário que obrigava seus membros a uma dependência sem contrapartida e a uma sujeição irreversível, como se correspondesse a um estado da natureza. Nessa sociedade, o mundo urbano e burguês constituiu, sobre a base de sociedades integradas muitas vezes por indivíduos provenientes das classes dependentes, um conjunto de enclaves nos quais se instaurou também um sistema político contratual: era-se burguês de uma cidade quando se integrava uma “comuna jurada” ou quando, simplesmente, se aceitavam os termos de um compromisso expresso sobre obrigações e direitos. Por isso pareciam sociedades democráticas, ainda que, a rigor, fossem como a sociedade dos privilegiados, apenas contratuais. As obrigações e direitos eram acordados entre os membros de uma comunidade; e apenas de uma maneira vaga, alimentada pelo igualitarismo evangélico, pôde-se pensar alguma vez que podiam estender-se a todos num sistema aberto.
As novas sociedades contratuais das cidades burguesas sofreram, desde o início, certas contradições difíceis de superar. Politicamente, constituíam núcleos fechados que só se estendiam cautelosamente mediante a concessão do direito de burguesia. Porém, do ponto de vista social e econômico, estavam destinadas a ser sociedades abertas, visto que eram fundamentadas sobre a nova economia de mercado, em plena expansão até o final do século XIII. Focos dessa economia, as cidades cresceram e ultrapassaram os núcleos políticos originários, fechados desde o primeiro momento, porém, que se fecharam cada vez mais, convertendo-se em estreitas oligarquias. Diante delas, as novas ondas de população achavam-se fora do contrato originário. Não buscaram o estabelecimento de democracias ilusórias, massivas – que sequer puderam ser pensadas – mas, simplesmente, a revisão e a ampliação do contrato original. Elas tinham razão e as oligarquias tinham as suas. A busca de novas formulações contratuais se fez às vezes por meio de negociação e outras vezes por meio de ação violenta. Porém, os interesses eram inconciliáveis; e a situação paradoxal, visto que as grandes massas que a nova economia requeria, podiam gravitar profundamente dentro do âmbito urbano, mas não podiam chegar a controlar sua estrutura econômica. Somente lhes restava a ilusão de consegui-lo conquistando o poder. Por seu lado, as oligarquias só confiavam no poder para conservá-lo. Da instabilidade social e da contradição insolúvel de interesses, surgiu a convicção, de ambas as partes, de que só a posse do poder autoritário – não contratual – podia resolver as diferenças. Assim se viu, nas cidades de desenvolvimento autônomo que, em princípio, procuravam resolver seus problemas mantendo sua relativa ou total independência, uma tendência progressiva a estabelecer regimes políticos não contratuais, mas sim definitivamente autoritários. As vezes emergiram das próprias sociedades. Mas o jogo de poder viu-se arrastado por suas próprias leis, e junto aos que lutavam por consegui-lo para assegurar seu domínio sobre a sociedade e a economia, apareceram os que lutavam pelo próprio poder, e pela riqueza que o poder oferece gratuitamente. Houve, em outras cidades, poderes territoriais que intervieram e puseram fim ao desenvolvimento autônomo de algumas, que até então haviam conseguido conservá-lo, impondo sua própria autoridade. As que o mantiveram, como as cidades alemãs livres, especialmente as da Hansa, e as cidades suíças, consolidaram seus regimes oligárquicos que, no clima político geral, puderam assegurar uma estabilidade social que só foi abalada pela tormenta da Reforma.
A marcha para o autoritarismo nas cidades de desenvolvimento autônomo revelou todo o alcance da política do realismo. As revoluções burguesas haviam instaurado nas cidades regimes políticos contratuais que, embora ainda contivessem vestígios do sistema feudal, constituíram uma renovação na percepção das relações entre a realidade social e o poder. Porém, se num princípio o poder foi percebido como nada mais que um instrumento eficaz para alcançar novos fins, nas novas sociedades que se constituíram dentro do quadro da nova economia, começaram a aparecer aqueles que perceberam o poder como um fim em si mesmo. E não foram só os que acreditaram que o poder trazia consigo uma fulminante ascensão social, mas também os que viam nele um modo de alcançar a riqueza, ou de projetar sua personalidade até um primeiro plano, ou simplesmente os que descobriam nele a conjunção das duas possibilidades: a riqueza e a glória. A busca do poder por si mesmo, sem outra finalidade, desenvolveu até suas últimas conseqüências as tendências implícitas na política do realismo.
A nova sociedade produziu um tipo de homem novo cujas características se acentuaram a partir da crise de retração do século XIV. Todo princípio de legitimidade tradicional havia entrado em crise ao ritmo da crise do Império e do Papado e da transmutação do sistema feudal. Cada vez mais rapidamente se tornaram consenso a nova riqueza e a nova glória, atrás das quais se moviam os homens novos e, às vezes, os homens renovados que procuravam seu caminho na política. Porque não faltaram os que pertenciam às antigas estruturas e souberam mudar seus esquemas tradicionais; talvez foram os que mais emergiram da nova sociedade e buscaram a ascensão social e a afirmação de sua personalidade singular através da obtenção da riqueza e da glória pelo caminho do poder. Novos ou renovados, eles foram os que levaram a extremos o realismo político e delinearam um mundo de poder que começou a funcionar de acordo com a própria lei e desprendido dos fins para os quais outros queriam conquistá-lo e fazê-lo servir.
Simon Boccanegra, Salvestro de Medici ou Cola di Rienzo revelaram a capacidade para abandonar velhos princípios – já convertidos em preconceitos – e para decidirem-se a embarcar em empreitadas ultrapassadas, mas sugeridas pelas circunstâncias. Todos tinham um arrimo na estrutura tradicional e todos pretenderam modificá-la com o apoio de forças novas que podiam atrair e aglutinar ao seu redor para constituir com elas um poder pessoal. Porém, em quem se viu mais claramente identificar as novas forças sociais que podiam lançá-lo até a conquista do poder e iniciar essa conquista sem outro objetivo que não seu êxito foi em Gualtieri di Brienne, eleito em 1342 “capitão e conservador do povo” em Florença. Giovanni Villani sublinhou todos os traços do personagem.14 Assim que chegou à cidade, ele se alojou em Santa Cruz, lugar dos irmãos menores “por conveniência, por sagacidade ou pelo que aconteceu depois”; e por conselho de alguns grandes decidiu apoderar-se do poder, mas sobretudo porque “viu a cidade dividida” e porque “estava desejoso de dinheiro”, uma vez que, “ainda que tivesse o título do ducado de Atenas, não o possuía”. Villani – também ele um realista – assinalava as árduas maquinações dos diversos grupos sociais e, sobretudo, a boa disposição dos grandes, por um lado, e da pequena burguesia e do popolo minuto por outro. Assim, ele se tomou senhor de Florença, em detrimento da oligarquia. “O popolo minuto teve grande alegria porque havia posto as mãos no governo; e quando o duque cavalgava pela cidade, iam gritando: Viva o Senhor!” Quando viu ameaçado o seu poder, distanciou-se dos nobres e consolidou sua base política apoiando-se somente “nos açougueiros, nos vinicultores, nos cardadores e nos artifici minuti”. Entretanto, impôs impostos pesados e “nos dez meses e dezoito dias em que reinou como senhor, vieram às suas mãos quatrocentos mil florins de ouro somente de Florença, sem contar o que trouxe de outras terras vizinhas que senhoreava, dos quais enviou mais de duzentos mil florins de ouro à França e à Puglia”. Levantou fortaleza, formou exércitos, matou inimigos, até que, finalmente, sucumbiu diante da coalizão de todos os grupos controlados.
Aparentemente justificado pelo apoio popular, o duque de Atenas não era, todavia, um político florentino que encabeçava uma luta de classes. Era, somente, um aventureiro que buscava apoio para uma aventura pessoal cujo fim era o poder, e com ele a riqueza. Aventureiros de diversas categorias, mas de estilo semelhante, apareceram desde fins do século XIII mas proliferaram no século XIV e principalmente na Itália. A frente das compagnie di ventura, os condottieri ofereceram uma força organizada e eficaz aos estados que careciam dela ou que queriam desprender-se da que tinham por causa de sua dependência senhorial. Houve estrangeiros que recrutaram suas forças não só na Itália, mas também entre os soldados de ofício, ocasionalmente ociosos, que participaram nas guerras entre a Inglaterra e a França. O inglês John Hawkwood talvez tenha sido o mais famoso; mas não foram menos famosos Anichino di Bongarden, Alberto Sterz, chefe da Compagnia Bianca, ambos alemães, como Guarnieri d’Urslingen, que declarava em seu lema: “Io sono Guarnieri duca, capitano della Gran Compagnia, nemico di Dio, di pieta i di misericordia.” Porém, os italianos foram os mais numerosos, alguns capitães brilhantes, como Nicolò Piccinino, Alberico da Barbiano, Nicolò de Montefeltro, Guidoriccio de Fogliano, e mais tarde Carmagnola, Cario Malatesta, o duque de Urbino, Frederico de Montefeltro, Francisco Sforza ou Nicolò de Tolentino. Dois deles, que serviram em Veneza – Colleoni e Gattamelata – mereceram a homenagem das estátuas eqüestres que foram levantadas para eles em Veneza e Pádua, obra de Verrocchio e Donatello. Dos outros, pintaram seus retratos artistas notáveis: Simone Martini o de Guidoriccio da Flogliano; Paolo Ucello o de John Hawkwood; Piero della Francesca o do duque de Urbino; Andrea del Castagno o de Nicolò de Tolentino e o de Pippo Spano; e Antonello de Mesina o de um desconhecido e arquetípico. Flumanistas ilustres escreveram suas biografias, tão reveladoras da inusitada importância do personagem e de sua variada imbricação nas situações políticas do seu tempo como a que Vespasiano da Bisticci fez do duque de Urbino ou as que escreveram Crivelli ou Simonetta.
Certamente, tanto a personalidade dos condottieri como os seus atos impregnaram a vida política de um realismo quase brutal, e não só nas cidades de desenvolvimento autônomo mas também no reino de Nápoles e no estado Pontifício. Dirigiram a mais importante força militar que operava tanto nos conflitos entre os estados como nos processos políticos internos de cada um deles, porém mantendo a alheia aos quadros institucionais e conservando uma notável autonomia, que lhes permitia inclinar a balança a favor de um ou de outro contendor, conquistar novos territórios para um estado e apoiar em cada um deles a alguns dos aspirantes a apoderar-se do governo. Instáveis como entidades políticas, as cidades careciam de um exército próprio, traço sobre o qual discorreu insistentemente Maquiavel quando quis explicar para si mesmo o estranho destino que haviam sofrido.15 Proporcionavam-no os condottieri, porém à custa de instalar entre os fios da rede política institucionalizada uma subestrutura de poder não comprometida com as estruturas políticas. Às vezes, os condottieri mantinham guerras particulares que se entrelaçavam com as que mantinham aqueles que lhes pagavam, porém cujo objetivo era consolidar seu poder ou desalojar um rival nesse negócio fecundo em que estavam empenhados com o único e evidente propósito de conseguir um benefício pessoal: poder, dinheiro ou glória.
Tão importante era seu papel e tão grande a ameaça que significavam para os estados e para suas populações que por duas vezes os execrou por meio de suas bulas o papa Urbano V, em 1364 e em 1366. Mas não eram muito distintas as hostes que o cardeal Albornoz havia reunido para subjugar os estados do Patrimônio. Não seria possível, no âmbito italiano, prescindir por muito tempo dessa subestrutura de poder militar independente, fruto da crise social e política.
Sem dúvida, o poder dos condottieri era um poder ilegítimo, mas a sua importância de fato era um fator político decisivo, com o qual o poder constituído devia contar e ao qual ninguém podia escapar. Era um poder pelo próprio poder, exercido com um pragmatismo feroz, com um realismo inexorável, e estava fundado sobre o uso livre e arbitrário de uma força organizada segundo uma reminiscência estranha ao vínculo pessoal, agora baseada mais no salário e nos despojos de guerra do que na lealdade. Era um poder extraterritorial e desenraizado, que só se atava por um convênio transitório à ordem jurídica e institucional que ostentava certa legitimidade. Porém, poucas cidades podiam ostentar um poder inegavelmente legítimo, e muitos signori não eram, enfim, senão antigos condottieri que haviam logrado concentrar suas forças em um lugar e ali estabelecer uma autoridade política mais ou menos estável que, em muito pouco tempo, chegou a ser considerada estável dentro do flexível sistema de legitimidade vigente. A tradicional legitimidade jurídica, cada vez mais parecia um princípio anacrônico em um mundo no qual, com quarenta mil florins de ouro, Mateo Visconti podia comprar, do imperador, um diploma de vigário imperial, enquanto se abria passagem para outra forma de legitimidade que consistia em reconhecer o direito de exercer o poder àquele que efetivamente tinha força e capacidade para exercê-lo e conservá-lo. Uguccione della Fagiuola, os Montefeltro ou os Malatesta – antigos condottieri — já estavam assentados em Pisa, em Urbino ou em Rimini quando surgiram bandos inumeráveis de compagnie di ventura no século XIV; e no século seguinte se viu Nicolò Piccinino transformar-se em senhor de Bolonha ou Francesco Sforza, de Milão. Dessa maneira, a subestrutura do poder se cristalizava pouco a pouco em uma situação reconhecida como legítima, da qual participavam, além disso os que por outros caminhos haviam tido acesso ao poder pessoal e autoritário, geralmente com a ajuda de bandos mercenários.
A força militar mercenária constituiu um instrumento inestimável para a consolidação dos regimes autoritários urbanos. Porém, a sua disponibilidade não foi, certamente, o fator decisivo para que se instaurassem. Foram os fatores sociais e econômicos, fundamentalmente, os que provocaram a transformação das sociedades contratuais em sociedades autoritárias. Em um regime de economia de mercado, a mobilidade social havia criado uma sociedade instável, em que os azares da prosperidade ou da escassez provocavam alterações imprevisíveis de conseqüências variáveis. Essa instabilidade comprometeu tanto a tendência geral ao livre jogo de mercado como os vagos princípios da sociedade contratual. E como a ilusão de uma ordem espontânea não forjava situações reais, a aspiração de estabelecê-la coercitivamente aumentou, sobretudo quando a crise de retração acentuou as características da desordem. As oligarquias pretenderam fazê-la e, quando não conseguiram por si mesmas, apoiaram quem pudesse alcançá-la à custa de algumas concessões, e também a tentaram as forças populares que as desafiaram. Quando não conseguiram, umas e outras acalentaram a esperança de que a conseguisse um procurador apto para exercê-la, confiantes em que responderia aos seus propósitos. Porém, aqueles que aceitaram essa missão agregaram ao uso do poder condicionado um poder pessoal, que era o exercício do próprio poder. A força era a condição indispensável e o poder se tornou tirânico, como disseram os humanistas de formação latina.
Esta combinação de um poder condicionado por uma finalidade e um poder exercido pelo próprio poder configurou o tipo de autoridade dos signori italianos. De uma concepção moral da política, houve um deslocamento para uma concepção realista: tal é, em suma, o que observou intensamente Maquiavel ao discorrer sobre a história das cidades burguesas. Donos de um poder militar e habituados aos costumes da guerra, os signori introduziram, de sua parte, uma variante no realismo político burguês. Somaram à flexibilidade e à astúcia que os caracterizava, uma atitude voluntariosa e arbitrária que descartava os direitos dos demais somente em benefício próprio. As sociedades contratuais, constituídas, em princípio, sobre a base do advento de todos os grupos, viram-se esmagadas pela vontade dos signoris, que não ocultavam seus desígnios. O afã da riqueza os fazia ambiciosos e avarentos, ainda que seus intérpretes às vezes elogiassem a sua prodigalidade, que não costumava ultrapassar o círculo de seus incondicionais. Poggio Bracciolini coloca na boca de Dante algumas observações cheias de ressentimento contra a mesquinhez de Can della Scala, que Boccaccio transforma no argumento de uma de suas histórias.16 As constantes guerras e o medo dos inimigos que ameaçavam seu poder os enclausuravam em suas fortalezas, das quais só saíam rodeados de guardas. Assim viveram Gian Galeazzo Visconti no palácio de Pavia e Filippo Maria Visconti no de Milão, este último em meio a uma estranha corte presidida por seus astrólogos e médicos. Uma extrema crueldade foi exercida para atemorizar seus inimigos: torturas refinadas esperavam o prisioneiro que, algumas vezes, era preso em jaulas de ferro, e outras, em horríveis calabouços construídos para esse fim, como os que Galeazzo Visconti mandou fazer no castelo de Monza. Na bula em que o excomungou – como nos seus Commentarii –17 Pio II descreveu a conduta de Segismundo Malatesta, condottieri e senhor de Rimini: “Era bastardo da nobre família dos Malatesta. Tinha grande força de corpo e de espírito; era dotado de eloqüência, era bom capitão e conhecia a história e a filosofia; para ele, tudo era fácil. Porém, o vício o arrastou; e, ávido de dinheiro, não só se entregou ao saque, mas também ao roubo. Foi injurioso, até o ponto de cometer violência contra suas filhas e seu genro; e, quando era adolescente, casou-se muitas vezes como mulher e, fazendo as vezes delas, afeminou os varões… Sua crueldade superou a dos bárbaros e suas mãos ensangüentadas torturaram tanto aos inocentes como aos culpados. Oprimiu os pobres, arrebatou dos ricos seus bens e não perdoou nem aos órfãos nem às viúvas; ninguém viveu seguro sob seu domínio.” Maquiavel elogiou com entusiasmo o signor de Luca, Castruccio Castracani, que havia vivido nos primórdios do século XIV. No entanto, dizia sobre ele: “Era grato aos amigos, com os inimigos era terrível; justo com os súditos, infiel com os estranhos. Jamais tratou de vencer pela força a quem podia vencer com enganos: porque ele dizia que era a vitória – e não o tipo de vitória – o que acarretava a glória.”18 Era uma definição do realismo político. Porém, suas virtudes humanas eram suficientes, tanto que Maquiavel, depois de assinalá-las, escreveu: “Foi um homem não só raro em seu tempo, mas também nos tempos passados”; com o que definia a qualidade dos demais.
Menos dramático, mas não menos sugestivo, é o testemunho acidental de Franco Sacchetti, em seu romance que situa na época do terrível Barnabò Visconti e em que conta o divertido episódio de Ambrogino da Casale, que decidiu gastar sua fortuna vivendo a seu gosto antes de entregá-la pouco a pouco ao senhor pela via do imposto. E à guisa de comentário final disse Sacchetti:19 “Por este romance se pode compreender verdadeiramente, levando em conta o que atualmente tanto se vê entre os senhores como nas comunas – e, especialmente hoje, que não buscam outra coisa a não ser ficar, mediante gravames, com o que é dos súditos – que Ambrogino proveu sabiamente querendo comer o seu antes que outros o comessem. E eu, escritor, sou dos que já disseram que os gastos da gula são os mais tristes; e assim costumava ser. Porém havendo chegado o mundo a essa situação, de modo que convém que todas as coisas anteriores vão à ruína, considero que hoje o comer e o beber são as que menos podem arrebatar os príncipes do mundo. Em troca, ao se tratar de dinheiro, não deixará de ser a primeira coisa a que eles prestam atenção. Se se trata de possessões, sempre estão atentos para tirá-las; se são móveis, sempre são o que primeiro a família e os servidores levam; se são os vestidos formosos que homens ou mulheres vestem, empenham-se ou vendem-se para pagar. Só o comer é o que jamais poderão ter. E por isso procedia sabiamente Ambrogino, porque houve muitos que, com grande avareza, amontoaram uma riqueza enorme e jamais puderam gozar uma hora dela; porque sobreveio um caso de guerra, de modo que foi necessário que pagassem com a maior parte do seu à malvada gente de armas, a qual gozará muito do seu, pois não está em sua vontade contentar-se com uma ninharia.” A astúcia e o senso comum respondiam com variável eficácia à arbitrariedade do poder autoritário, que diminuía ou rebaixava progressivamente aquele que antes se sentia orgulhoso cidadão de sua cidade, e ameaçava sua vida privada, seus bens e a sua existência. Assim, as classes e os setores sociais que apoiaram os distintos signori puderam ver-se ameaçados pelo poder autoritário que, encarnado em um indivíduo, podia descontrolar-se conforme as contingências normais ou doentias de sua personalidade. A política do realismo escorregava então para a irracionalidade total.
A situação nas cidades imperiais livres da Alemanha não foi menos dramática, se bem que muitas delas puderam resistir às pressões que, a partir de fora, exerciam os senhores em cujo território estavam encravadas. Não houve pressões sobre as cidades hanseáticas, porque as maiores tensões se produziram em regiões de antiga tradição, onde os problemas tinham enraizamento secular: em Würtemberg, na Suábia, na Baviera, em Saxônia-Turíngia, em Westfalia e em toda Renânia. Nelas abundaram os senhores de forca e faca que operavam como os condottieri italianos, enquanto os senhores e as cidades livres disputavam a hegemonia.
Livres juridicamente, tinham mesmo desde os tempos de Frederico II importantes limitações para seu desenvolvimento, em particular as que se referiam à incorporação de novos burgueses. Porém, a prosperidade econômica era tal que nada pôde impedir o esplendor, maior ou menor, de Estrasburgo, Nuremberg, Ulm, Frankfurt, Augsburgo, Colônia ou Munique. Foi precisamente o seu esplendor o que despertou a cobiça dos senhores, no clima de anarquia que arrastava a Alemanha. As cidades imperiais livres haviam desejado respaldar um poder imperial forte. Mas a impotência dos imperadores estimulou a audácia dos senhores que aspiravam incorporar cidades livres à sua jurisdição, ou ao menos, partilhar com elas, mediante algum tipo de coação, as rendas que obtinham com sua atividade mercantil e manufatureira. A situação tornou-se grave no último terço do século XIV quando, em meio a uma guerra civil generalizada, sobretudo no sul, o conde de Würtemberg atacou as cidades da Suábia. Todos os senhores o acompanhavam; c, se em 1377 as cidades triunfaram na batalha de Reutlingen, os esforços para conter a ofensiva senhorial fracassaram e as cidades foram vencidas: as da Suábia pelo conde de Würtemberg em Doffingen, as da Renânia por Ruperto del Palatinado.
Mas, embora as liberdades urbanas sofressem com a derrota, os senhores não conseguiram impor um regime autoritário nelas. Voltaram a tentá-lo no século XV. Alberto de Brandemburgo empreendeu a luta contra a próspera Nuremberg, porém caiu derrotado em campo aberto pelas tropas urbanas. E na mesma época, o arcebispo de Colônia, Teodorico II pretendeu, com a ajuda do imperador, dos senhores e da própria cidade de Dortmund, subjugar a cidade de Soest sem consegui-lo. O fracasso dos senhores era, a rigor, o da antiga nobreza, inclinada a subjugar as forças sociais como se o processo de mudança não se houvesse produzido e incapaz de encontrar vias transacionais para pactuar com qualquer dos setores que integravam a sociedade urbana. Não houve, pois, senhores que impusessem sua lei nas velhas sociedades contratuais que se alojavam dentro dos muros das cidades. Mais evidente ainda foi o fracasso dos Habsburgo frente aos suíços, talvez mais campesinos que cidadãos, porém, de todos os modos, representantes da nova sociedade frente à persistência dos antigos esquemas senhoriais.
O fracasso dos Habsburgo frente aos suíços correspondia ao fracasso de sucessivas expedições dos imperadores alemães à Itália: Henrique VII, Luis IV, Carlos IV, Ruperto, Segismundo. A tentativa de impor velhos esquemas sobre sociedades novas mostrou cada vez mais sua ineficácia. Os imperadores manifestaram seus princípios: algumas vezes tradicionais; outras, radicalmente revolucionários, como no caso de Luís IV, o Bávaro. Porém nem uns nem outros correspondiam exatamente ao realismo político que predominava nas novas sociedades: o povo ao qual os imperadores germânicos apelavam, segundo a inspiração de Marsilio de Padua ou de Guilherme de Occam, era um ente abstrato, tanto que nos decênios precedentes se havia formado, pouco a pouco, um povo concreto para o qual os problemas do Papado e do Império eram anacrônicos. Os imperadores se chocaram com os interesses imediatos daqueles que possuíam efetivamente o poder, e sua sorte foi variada. Receberam o interessado apoio de alguns senhores, porém tiveram que suportar a hostilidade de outros, enquanto todos seguiam seu próprio jogo e procuravam instrumentalizar a autoridade tanto do papa quanto do imperador. E não foi só na Itália que os imperadores acumularam fracasso após fracasso. O mesmo ocorreu na Alemanha, onde os príncipes, os senhores e as cidades perseguiam obstinadamente seus próprios fins, de acordo com as mutáveis circunstâncias da realidade, e desentendiam-se com essa autoridade, que se havia mostrado insensível à presença e ao significado das novas forças sociais. Mais do que em outras partes, o Império, que não sabia assumir o papel de reino alemão, resistia à confluência daquelas forças com as tradicionais em um conjunto feudoburguês.
Muito diferente foi a atitude dos duques de Borgonha nos Países Baixos. Herdeiros diretos ou indiretos de toda a região, como conseqüência da política de matrimônio que começou com o de Felipe, o Atrevido, e Margarida de Flandres, intervieram na política das cidades com uma ideia preconcebida acerca do papel que deviam cumprir ao ficar incluídas no estado borgonhês. A essa ideia serviram todos os passos dos sucessivos duques de Borgonha. Felipe, o Atrevido, participou da repressão do levante das cidades flamengas – Ypres, Gent e Bruges – em 1379, que terminou com a batalha de Roosebeke e a morte de Felipe de Artevelde em 1382. Assim foi aplacado o movimento que haviam desencadeado os ofícios contra as burguesias. Mas, dois anos depois, Felipe tomou posse do condado ao morrer Luís de Mâle e, desde então, a política de Borgonha se voltou precisamente contra essas burguesias, zelosas dos seus privilégios e que o duque borgonhês começou a forçar para que servissem aos interesses do ducado. Essa decisão de reprimir as burguesias atraiu a simpatia das classes populares para os duques de Borgonha. João sem Medo, que em Paris não vacilaria em aliar-se com os açougueiros, movia-se com mais folga ainda nas cidades flamengas. Seu filho, Felipe, o Bom, encontrou um raro apoio entre os humildes, que o aclamavam nas ruas com lágrimas nos olhos.20 O realismo da política de Borgonha consistia principalmente em seus fins, tão ambiciosos e difíceis de alcançar; porém, não consistia menos nos meios. Sensíveis às variações da nova sociedade, os bacalhaus, isto é, as burguesias urbanas inimigas da nobreza, os Hoeks – buscaram no condado da Holanda o apoio do partido dos Kabiljaws durante o conflito com a condessa Jacoba; com seu apoio, Felipe, o Bom, pôde tramar a maquinação que colocou em suas mãos o condado da Holanda em 1436, e, com ele, a Zelândia, Frísia e Hainaut.
Donos de Brabante desde 1440, decisivamente influentes em Utrecht e em Liège, os duques borgonheses foram pondo em ação sua política premeditada. Pouco a pouco, os privilégios econômicos das grandes cidades foram suprimidos para que pudesse funcionar fluidamente a ampla rede comercial que controlava o novo poder político. Bruges viu a administração dos armazéns de concentração – o staple –fugir de suas mãos, o que prejudicava a burguesia, mas, enquanto limitava a autonomia da cidade, prejudicava também a todos os setores da população. A rebelião irrompeu em 1436, mas a cidade foi submetida implacavelmente e forçada a cumprir a missão que o duque lhe destinava. Atitude idêntica foi adotada com Gent, cuja burguesia perdia em 1451 seus privilégios econômicos em benefício do novo estado territorial: a cidade rebelou-se e o duque a sujeitou à obediência sem considerações.21 Na mesma ocasião começaram os conflitos com Liège, onde se instaurou uma espécie de protetorado borgonhês. Mais autoritário ainda que seu pai, o novo duque de Borgonha, Carlos, o Temerário, os reprimiu a sangue e fogo em 1468, praticamente destruindo a cidade.22
Ao mesmo tempo, o progressivo ajuste da política borgonhesa significou a restrição ou a supressão das liberdades municipais. Carlos, o Temerário, levou seu autoritarismo a extremos e desbaratou o sistema institucional das cidades, porque estava em seu plano, como no de seus antecessores, introduzi-las no quadro geral de seus estados. Por certo, tanto as formas da economia como as institucionais eram questionadas nos últimos tempos, e os borgonheses introduziam soluções realistas em todos os campos. Os setores renovadores da burguesia mostraram-se muito dispostos a trocar os antigos privilégios da cidade por amplas perspectivas que uma economia aberta oferecia dentro de um extenso e poderoso âmbito político. Assim, constituíram-se grupos econômicos que abandonaram os marcos da economia tradicional para inserir-se no sistema do estado territorial borgonhês. Grupos advindos das antigas burguesias incorporaram-se também nele para constituir a nova burocracia e os quadros dirigentes e executores da nova política. O realismo dos borgonheses descobriu as classes mais ativas da sociedade e com elas constituiu as elites do novo Estado, uma típica elite feudoburguesa por sua origem social, sua formação e os objetivos adotados. Talvez o chanceler Nicolas Rolin – o que Van der Weiden pintou – seja a sua figura mais representativa.
Entretanto, Florença havia experimentado o caso mais singular de transformação de uma sociedade contratual para um regime autoritário. Florença possuía uma larga experiência de elaboração e reelaboração de normas legais, tão grande que Dante pôde zombar dela. A cidade sofreu profundas crises sociais e políticas e, em cada uma delas, revelou sua extrema sensibilidade para regular os problemas de convivência. O grosseiro ensaio de Gualtiere di Brienne foi efêmero e o tumulto dos ciompi não prosperou. Em compensação, prosperou o trabalho sutil de uma oligarquia refinada que tratou de consolidar suas posições exercendo um poder firme para lazer frente a seus inimigos internos e externos. Mas, nesse processo começou a definir-se a autoridade de Cosimo de Medici, tenuamente a princípio, com mais firmeza depois. Cada vez mais se faziam mais coisas somente depois de consultá-lo. E cada vez mais pessoas não faziam nada sem antes consultá-lo. Até que a consulta se transformou cm ordem, e a ordem em costume. Contou muito a clareza de juízo, a justa proporção entre os interesses privados e os públicos, a sabedoria política; mas não contou menos o dinheiro. Cosimo chegou a dominar a cidade sem que sua pessoa estivesse presente a não ser em contados atos de governo. Os outros faziam o que ele queria que fosse feito. Quando morreu, Piero de Medici chegou ao poder; e ainda que não tivesse a garra política e a sutileza de seu pai, herdou a rede que ele havia tecido, delicada e firme, e herdou também a influência que sua fortuna possuia. E quando Piero morreu, a rede chegou às mãos de Lorenzo, tão ambicioso e prudente quanto seu avô, talvez mais refinado e cínico. Em suas mãos, o poder trabalhou fluidamente por debaixo dos atos e das palavras. Quase era possível saber o que ele queria antes que o expressasse. Uma vontade, uma inteligência clara, uma percepção sutil das tendências predominantes da sociedade florentina e, sobretudo, a herança do poder experiente e da fortuna aumentada deram ao autoritarismo de Lorenzo um matiz singular; ele era o mais sutil e imprevisível dos autoritarismos; talvez o mais firme também e o que contou com o mais alto grau de consentimento. Observou-o profundamente o mais penetrante dos historiadores de Florença, Francesco Guicciardini,23 ou, talvez, o que melhor soube extremar esse realismo perceptivo que caracterizou Maquiavel, e sem o qual não se podia entender a originalidade dos mecanismos éticos e políticos, sociais e econômicos, da nova sociedade. O autoritarismo não institucionalizado dos Medici foi a mais delicada flor do realismo político.
No mundo complexo das cidades de desenvolvimento autônomo, a tendência autoritária terminou com as sociedades contratuais. Sua extinção coincide com certa mudança de escala espacial: os estados urbanos tendem a transformar-se em estados territoriais. Quem tirará mais proveito desse tendência – que é uma espécie de clamor diante da impossibilidade de encontrar ordem dentro do pacto social – serão as monarquias nacionais, lentamente modernizadas e respaldadas por um poder que lhes permitirá fazer o experimento extremo do absolutismo.
Notas
1. A tendência que aparece na arte plástica em fins do século XIII ou primórdios do século XIV na individualização dos personagens e que desemboca no retrato não é, essencialmente, um fato plástico; mas sim o é a maneira de resolver o problema. Porém o contexto geral daquela tendência deve buscar-se na progressiva percepção da nova sociedade urbana. Giotto ou Ambroggio Lorenzetti são inexplicáveis sem ela, visto que ela foi o que suscitou a nova temática e a condicionou, inclusive em termos plásticos, visto que condicionou a concepção do espaço. Os ricos burgueses das cidades, muitos dos quais foram os que encomendaram obras aos pintores – como no caso das capelas particulares: a dos Scrovegni, Rinuccini, Baroncelli, Peruzzi, Bardi, Brancacci, Portinari entre outras – foram os modelos humanos que os pintores e escultores tinham em sua retina, individual ou difusamente. Seria ocioso fazer uma lista dos artistas dos séculos XIV e XV que verteram as fisionomias, os traços e as atitudes dos burgueses, pois esta incluiria quase todos. Citemos Masaccio, Durero e Memling para dar alguns exemplos sugestivos. E poderiam agregar-se pistas não menos sugestivas: as figuras esculpidas no palácio de Jacques Coeur em Bourges, a do mestre Jörg Syrlin na catedral de Ulm, a do mestre Anton Pilgram na catedral de S. Esteban de Viena.
2. Jean de Hocsem, Chronicum.
3. Jacques de Hemricourt, Li patron delle Temporaliteit, Gino Caponi, Il tumulto de ciompi.
4. Roberto Cessi, Storia della Republica di Venezia, 1968; o autor restringe o alcance atribuído ao decreto de 1297, porém assinalou que por passos sucessivos se havia chegado ao fechamento das fileiras oligárquicas (t. I, pp. 266 e ss.)
5. Cf. Dollinger, La Hanse, pp. 166-7.
6. Cf. Gerald Strauss, Nuremberg in the 16th Century, 1966, pp. 58 e ss.; de uma tradução inglesa – Concerning the polity and government of the Praiseworthy city of Nuremberg – da carta latina de Christoph Scheurl.
7. Sobre a burguesia genovesa durante os séculos XIV e XV, ver Histoire de Genève, publicada pela Societé d’Histoire et d ‘Árcheologie de Genève, 1951, caps. IV e V.
8. Philippe de Commynes, Mémoires, VII, xviii.
9. Cf. Fernand Vercauteren, Luttes sociales à Liège, Bruxelas, 1946.
10. Cf. Philippe Dollinger, “Patriciat noble et patriciat bourgeois à Strasbourg au XIVe siècle”, em Revue d’Alsace, t. 90, 1950-51.
11. Cf. Niccolò Rodolico, I ciompi, Florença, 1945.
12. Gino Caponi, Il tumulto de ciompi. A atribuição da crônica é discutida por Gino Scaramella, que a considera obra de Alamanno Acciaiuolli.
13. Cf. Han van Werveke, Jacques van Artevelde , Bruxelas, 1943.
14. Giovanni Villani, Cronica, XII, i e ss.
15. Nicolau Maquiavel, O Príncipe, XII; Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, I, xxi, xliii; II, x,xx; III, xxxi; Histoire Fiorentine, I, xxxix; Iv, xx; Dell’arte della guerra.
16. Poggio Bracciolini, Facezie, 56 e 57; Boccaccio, Decameron, I, vii.
17. Aeneas Silvius, Commentarii Pii Secundi, II.
18. Nicolau Maquiavel, La vita di Castruccio Castracani da Lucca.
19. Franco Sacchetti, Novelle, CLXXXVIII.
20. Georges Chastellain, Chronique, VI, xxxviii, relata um episódio ocorrido em Paris que revela a mesma tendência.
21. Olivier de la Marche, Mémoires, 1.1, xxvii-xxviii.
22. Philippe de Commynes, Mémoires, II, xiii; Olivier de la Marche, op. cit., II, ii.
23. Francesco Guicciardini, Storia fiorentina.
CAPÍTULO VI
A Política nos Estados Territoriais
Com um ritmo mais lento no princípio, as monarquias dos estados territoriais adotaram também o estilo da nova política. Se as cidades constituíam um pólo especificamente burguês, muitos estados territoriais já eram, ao começar a crise social e a retração econômica, sociedades transacionais, feudoburguesas, nas quais as monarquias tinham que enfrentar problemas inusitados para os quais não valiam nem os princípios tradicionais em que se apoiavam, nem a experiência acumulada no exercício do poder. Tiveram que revisar seu comportamento tradicional e, geralmente, encontraram métodos eficazes no que já era uma experiência secular das burguesias urbanas: o realismo, uma política pragmática e sem preconceitos que elas haviam elaborado sem obstáculos de outras tradições e de acordo com as necessidades criadas pelo mundo que elas estavam criando e organizando. Porém, as monarquias não puderam adotar esse estilo político repentinamente. Pesavam sobre elas as tradições da monarquia feudal e, sobretudo, a peculiaridade de uma sociedade heterogênea em que, junto às novas e pujantes classes burguesas, criadoras da nova riqueza, subsistiam as antigas classes possuidoras da terra, orgulhosas do seu prestígio social e acostumadas a compartilhar o poder com a Coroa. Tiveram que adequar-se às novas circunstâncias; porém foram elas, precisamente, as que precipitaram as decisões, e finalmente as monarquias optaram por enfrentar o desafio das sociedades turbulentas que se moviam ao seu redor, respondendo indiscriminadamente com atitudes que pretendiam que fossem eficazes.
À medida que as ações se desencadeavam, a política das monarquias ia revelando cada vez mais claramente a influência daquela que as burguesias urbanas haviam elaborado. E não por uma concepção teórica, mas sim porque cada vez mais estas tomavam parte do conjunto real dos conselheiros e dos funcionários de extração burguesa que, espontaneamente, atuavam de acordo com a sua experiência e a sua peculiar interpretação das situações. Não foi em todos os estados territoriais que ocorreu esta variação da mesma maneira e com a mesma intensidade. Ela pode ser mais notada, e mais depressa, naqueles em cujo seio havia cidades prósperas e burguesias florescentes, cujas atividades enriqueciam indiretamente as arcas reais e que, por isso, não só mereciam ser atendidas, mas também imitadas em seus métodos e atitudes. E não só quando se recorria à experiência das que estavam submetidas à autoridade do poder territorial, mas também quando uma atividade mercantil internacional intensa punha esse poder em contato com grupos mercantis estrangeiros que tinham nele seus empórios ou seus agentes. O antigo estilo político subsistiu apenas nos estados alheios ao processo de mercantilização, ainda que se tenham transferido por contato certas tendências predominantes no mundo mercantil.
Pela posição que tinha no seio de uma sociedade cambiante – e em crise de mudança econômica e social – a monarquia teve que mudar. Quando não foi capaz de fazê-lo no momento oportuno, foi combatida por coalizões estranhas e ocasionais de forças internas; e algumas vezes caíram os conselheiros e favoritos do rei; outras vezes, o próprio rei; e outras ainda, a dinastia. A nova sociedade tinha objetivos imperiosos, e a Coroa tinha somente certas margens para resistir-lhes. O realismo político não foi para ela uma opção, mas simplesmente a resposta obrigatória para fazer frente às situações inusitadas para as quais não eram válidos os princípios tradicionais.
A adequação das monarquias às novas situações significou desprender-se progressivamente da íntima solidariedade que haviam tido com as classes feudais. Elas eram as vítimas da nova política, que limitava a sua ação, antes onipotente. O rei já não era somente delas, mas de toda uma sociedade complexa e inacessível. O conselho dos grandes senhores feudais não era mais útil, nem convinha às monarquias segui-lo cegamente. Agora havia ricos que pareciam conhecer o segredo da nova riqueza e também os mecanismos da nova sociedade, de quem as monarquias viram que era possível obter um novo fundamento para sua autoridade.
As monarquias buscaram o apoio das burguesias urbanas, mas contiveram energicamente o crescimento do seu poder político. No entanto, procuraram não perder o apoio da antiga nobreza, a qual procuraram atrair e manter ao seu redor. Porém, como às burguesias, lhes limitaram o poder político – não sem lutas – e, assim como foram caindo seus castelos e fortalezas quando pareceram perigosos, também se foi reduzindo o poder político dos grandes feudos depois de uma ação perseverante e vigorosa. Se no início do século XVI boa parte da antiga nobreza havia adquirido o caráter de uma nobreza cortesã, o processo que levou a esse resultado se havia desenvolvido desde os primórdios do século XIV, às vezes com características dramáticas.
I. A Renovação Política das Monarquias
Desde o século XIII, a antiga concepção da monarquia feudal estava, de fato, em processo de declínio. Subsistiam, certamente, as ideias tradicionais em muitos espíritos, e, quando se escrevia sobre o papel dos princípes, repetiam-se essas ideias. De muitos foi modelo o De regimini principum de Egidio Colonna, cuja tese ortodoxa podia repetir-se retoricamente, ainda que essa repetição se devesse computar como uma recusa das doutrinas revolucionárias de Occam e Marsilio de Padua e, negativamente, como uma ocultação do comportamento prático da monarquia.
Sem dúvida, ali onde a sociedade não havia mudado – de preferência nas áreas pouco afetadas pelo processo de mercantilização – a monarquia mantinha o seu comportamento tradicional. Porém, onde a sociedade e a vida econômica haviam experimentado mudanças importantes, também havia mudado o comportamento da monarquia, exigido por situações e problemas inéditos. Nem sempre essa mutação teve a mesma intensidade nem se produziu no mesmo ritmo. Tampouco foram sempre notadas a importância e as projeções de certos atos da Coroa, que marcavam uma incipiente ruptura. Foi exatamente o caráter pragmático da mudança de comportamento monárquico, referido em cada caso às exigências circunstanciais, o que impediu ver que todas essas circunstâncias se encadeavam no processo social e econômico e prefiguravam sucessivas reações semelhantes.
De resto, as aparências e as ideias preconcebidas contribuíam para que não se distinguissem os fenômenos. O desencadeamento da guerra dos Cem Anos pareceu depender de um conflito dinástico. O caráter cavalheiresco e as tendências feudais de Felipe VI que Froissart destaca, assim como os traços com que o mesmo cronista apresenta a primeira parte da guerra, correspondiam a uma imagem tradicional da política que, por certo, já não compartilhava com Eduardo III. A mudança foi gradual, confusa, acentuada em alguns aspectos e limitada em outros. A crise, que havia surgido quando começou o conflito entre a Inglaterra e a França, precipitaria as definições e, pouco depois, ficaria claro que a concepção feudal da monarquia já era coisa do passado nas áreas mercantilizadas, ainda que se conservassem vistosos sinais dos costumes feudais.
Foi necessário que a monarquia assumisse outro papel e elegesse outro modo de exercitar seu poder. Havia mudado seu sustento social ao acentuar-se o processo de transformação da sociedade, no tempo em que aparecia, junto ao tradicional, um novo sistema de relações econômicas. Se a monarquia feudal era a expressão dessa sociedade pré-mercantil e o rei era, na aristocracia feudal, primus inter pares, a transmutação da sociedade impunha que a autoridade real se exercesse sobre todo seu conjunto, com uma afinada avaliação da importância de cada grupo e deixando de lado a solidariedade exclusiva entre feudalismo e monarquia.
Os fatos revelaram que a monarquia tinha agora novos deveres, qualitativamente diferentes dos que antes lhe assinalavam a experiência, os moralistas, os costumes e os preconceitos. Eram deveres inéditos, insuspeitos, alheios à preocupação normal de um príncipe educado na tradição feudal. Porém, os fatos eram inegáveis e os reis foram se acostumando a eles. Daí em diante, os objetivos que a monarquia devia perseguir seriam outros, diferentes dos que haviam movido os seus predecessores. Mas os fatos também foram mostrando que a monarquia tinha agora novos recursos para agir, que seus predecessores só tinham podido usar em pequena escala. Com eles, a monarquia podia cumprir seus novos deveres e seus novos objetivos. Porém podia, além do mais, incorporar o modismo da nova riqueza. A monarquia adotou a política do realismo.
Talvez a primeira coisa que teve que fazer tenha sido assumir a responsabilidade total pela soberania. Todavia, na segunda metade do século XIV, o autor de Le songe du vergier acreditava ser necessário argumentar acerca da tese de que a jurisdição imperial não era válida sobre os reis.1 Porém, a experiência já opinava sobre a questão. Se o mundo político se enredava em uma rede de alianças complexas, as monarquias aprendiam que representavam, de fato, realidades irredutíveis e, embora ainda não estivessem claras as noções de soberania e de nação – tal como as caracterizava Jean Bodin no século XVI – essas ideias já pairavam nos estados territoriais que afinavam sua política e delineavam seus próprios objetivos. Só faltava às monarquias, que os encabeçavam, adquirir plenamente a convicção de que representavam um conjunto social formado tanto pelos antigos grupos privilegiados como pelos novos, cujo poder e eficácia aumentavam. Junto com tantas outras noções de direito romano, a noção de povo entrava na nova linguagem política, geralmente como expressão de um setor social numeroso e secundário e, algumas vezes, – jurídica ou retoricamente – como expressão do conjunto da sociedade. De todo modo, muitas vozes recordavam que já não se podia prescindir das classes não feudais para a condição política do reino. Isso já dizia Alain Chartier:2 “O povo é membro notável de um reino, sem o qual nem os nobres nem o clero são suficientes para fazer um corpo de governo, nem para sustentar seus estados e suas vidas…”; e recordava a missão que os tribunos do povo haviam cumprido em Roma.
Se nos fins do século XV era plena a certeza de que a monarquia representava o conjunto total da sociedade, a aquisição dessa convicção foi lenta e, para chegar a ela, tiveram que superar as ferozes acometidas das classes senhoriais para recuperar sua exclusividade no controle da política real. Foram derrotadas militar e politicamente por uma monarquia para a qual cada vez foi se tornando mais evidente que fracassaria se não assumisse os interesses da totalidade da sociedade. E não só fracassaria a monarquia – o rei, seus conselheiros e talvez a própria dinastia – mas comprometeria o destino do conjunto social que encabeçava e as possibilidades de poder e riqueza que se lhe ofereciam se ela soubesse mobilizar todos os recursos da sociedade. E foram derrotadas ideologicamente por uma onda crescente de opinião que se constituiu diante de certas evidências que impediam negar o que existia. Diego de Valera3 testemunhava, em fins do século XV, que os Reis Católicos haviam tomado posse de seus reinos “com aprovação e concórdia dos grandes e das cidades e vilas e povos, e dos seus três estados”, descrevendo a soma de vontades que a monarquia tinha que mobilizar para poder governar. Porém, então, escreveram-se muito poucas páginas tão clarividentes como as de Commynes para expressar a pluralidade dos setores sobre os quais se assentava a monarquia, dos quais, os que gozavam os antigos privilégios lutavam por impedir o livre desenvolvimento dos que percorriam penosamente o caminho de sua ascensão e tratavam de assegurar o reconhecimento do seu papel social e econômico.4
Então, nesse reino tão arruinado de muitas maneiras, depois da morte de nosso rei, houve algum levante contra o que reina? Os príncipes e súditos se levantaram em armas contra seu jovem rei? Quiseram algum outro? Quiseram tirar sua autoridade? Trataram de contê-lo para que não pudesse usar seu privilégio real e mandar? De nenhuma maneira. Se os houve suficientemente orgulhosos como para dizer que sim, não o haviam sido até esse ponto. Fizeram o contrário de tudo o que eu pergunto: porque todos se aproximaram dele, tanto os príncipes e os senhores como os burgueses; todos o reconheceram como rei e lhe renderam preitos; e os príncipes e os senhores fizeram seus pedidos humildemente, um joelho no chão, fazendo suas súplicas por escrito, e formaram um Conselho nomeando 12 companheiros. E, a partir de então, o rei, que só tinha 13 anos, dava ordens nesse Conselho. Diante da antedita assembléia de Estados, fizeram-lhe alguns pedidos e exortações com grande humildade para o bem do reino, confiando sempre tudo ao arbítrio do rei e de seu Conselho, outorgando-lhe o que se lhes quisesse pedir e o que se lhes demonstrou por escrito que era necessário para a vontade do rei, sem que nada se opusesse. E a soma pedida era de dois milhões e quinhentos mil francos, soma suficiente, e que podia cumular todos os desejos, e bem maior do que pequena, sem outras exigências.
E se suplicou aos ditos Estados que no final de dois anos se reunissem e que, se o rei não tivesse bastante dinheiro, que eles lhe dariam o que ele quisesse e que, se estivesse em guerra ou alguém o quisesse ofender, eles colocariam suas pessoas e seus bens a seu serviço sem negar-lhe nada do que lhe fizesse falta.
Deve o rei alegar o privilégio de tomar por capricho seu o que os seus súditos lhe oferecem tão liberalmente? Não seria mais justo para com Deus e o mundo arrecadar desta última maneira e não por vontade desordenada? Porque nenhum príncipe pode arrecadar se não for por um subsídio, como eu disse, a menos que o faça tiranicamente, e assim seja excomungado. Porém há os suficientemente tontos que não sabem o que podem fazer ou deixar de fazer nessa circunstância. Assim mesmo há povos que ofendem ao seu senhor e não o obedecem nem o socorrem em suas necessidades e, em vez de ajudá-lo, quando o vêem impedido por algum problema, desprezam-no ou se rebelam contra ele e desobedecem a ele, cometendo uma ofensa e sendo assim contra o juramento de fidelidade que fizeram.
A monarquia descobriu – nem sempre com a mesma rapidez e perspicácia – que tinha que repensar suas relações com a totalidade dos seus súditos, buscando apoio social, econômico e político para sua autoridade. Nessa busca podiam fracassar e cair vencidos – o próprio rei, seu conselho áulico ou talvez a sua dinastia – frente a outros mais capazes de imaginar novas fórmulas políticas que amalgamavam grupos representativos e poderosos. Triunfaram os mais dispostos a aceitar a nova realidade. E, se triunfaram, procuraram transformar a estrutura do Estado e estabelecer novos instrumentos para exercer o poder. O comportamento das monarquias frente aos regimes, cortes ou assembléias dos diferentes estados foi variável, algumas vezes dócil em relação às demandas de cada um dos setores em luta, outras vezes intransigente para defender as prerrogativas reais. Porém, não havia regras jurídicas inescusáveis nem tradições necessariamente válidas. A determinação do caráter das monarquias foi se estabelecendo em um longo e contínuo processo de ajuste, quase cotidiano, de suas relações com os diversos setores e subsetores sociais, todos tão instáveis como a própria situação da Coroa; todos em processo de redefinir suas posições e empenhados em alcançar as mais benéficas dentro do conjunto.
Encaminhar a nova sociedade do reino para fins precisos que coincidissem com os interesses dinásticos tradicionais ou com os novos que apareciam em cada conjuntura, era tarefa difícil. A mudança descartava as regras e normas tradicionais e necessitava-se de imaginação para encontrar as coincidências. Porém, as monarquias foram descobrindo que a nova sociedade propunha, expressa ou implicitamente, certos objetivos e que era possível aceitá-los, adequadamente ajustados aos interesses da Coroa e às possibilidades do conjunto social se a proposta provinha de um grupo com interesses setoriais definidos. Foi uma atitude essencialmente realista a que as monarquias adotaram diante dessas propostas. Se sua aceitação implicava em uma diminuição da sua autoridade e uma ascensão do grupo que a sustentava, a Coroa procurou, quando decidiu aceitá-las, inclui-las em seus próprios projetos, mas colocar freios à influência dos promotores. Foi um jogo constante entre a atitude de conceder e a de negar, para dar certo movimento a cada grupo, tratando ao mesmo tempo de que não se reconstituísse uma influência predominante, como a que a nobreza feudal havia tido sobre a Coroa durante vários séculos.
Esses objetivos, às vezes foram difusos e gerais e, outras vezes, concretos e imediatos. Os objetivos dinásticos haviam consistido tradicionalmente na consolidação e no fortalecimento interior da dinastia e na expansão de seus domínios territoriais. Porém era muito diferente se esses territórios anexados eram antigos senhorios perdidos ou reivindicáveis, de interesse para o dinasta só por razões históricas de prestígio, ou se, ao contrário, eram regiões requeridas pela geopolítica do Estado ou, sobretudo, áreas econômicas complementares importantes para o desenvolvimento da nova economia. Os interesses dinásticos de engrandecimento tornavam-se objetivos para toda a sociedade – nacionais, poder-se-ia dizer – quando cristalizavam uma confluência de interesses. A política das monarquias da Inglaterra e da França mostraram esse jogo, como o demonstrou a dos duques de Borgonha, a da casa de Avis em Portugal, a dos Reis Católicos em Castela e Aragão, a dos Anjou na Hungria, a dos aragoneses cm Nápoles e Sicília, a dos Jagelones na Polônia, a das monarquias do Báltico em contenda com a Hansa. Se a monarquia acertava ao mudar seus interesses dinásticos para interesses coletivos da sociedade, sua autoridade se fortalecia e crescia em consenso. Somente algumas vezes ocorreu um fenômeno inverso: objetivos setoriais, fundamentalmente econômicos, superaram os esforços de uma dinastia em situação de crise e só pareceram alcançáveis aos seus mantenedores com a mudança dinástica. Assim aconteceu na França com os Valois, quando Carlos VI, movido pelos borgonheses e pela burguesia de Paris – com o apoio doutrinário da Universidade – aceitou renunciar aos seus interesses dinásticos no tratado de Troyes, em 1420. A tese da “monarquia dupla” punha nas mãos dos Lancaster a autoridade sobre uma área econômica bem definida que incluía a Inglaterra, Flandres e França, esta última presumivelmente recuperável em sua totalidade. Foi, sem dúvida, uma exacerbação da atitude geral, invalidada pelo esquecimento de que os interesses nacionais territoriais eram irreversíveis. Considerações semelhantes pareciam haver pesado na união da Lituânia e Polônia nas mãos de Ladislau II Jagelão. A Lituânia reconheceu a soberania polaca, mas, unidos, os dois estados contiveram a Ordem Teutônica e a Polônia pôde enfim, no reinado de Casimiro IV Jagelão, dominar o baixo Vístula e ter acesso ao Mar Báltico, em 1466. Antes, em 1397, a Dinamarca, Suécia e Noruega haviam constituído a União de Kalmar para defender os interesses comuns e supranacionais frente à Hansa. Porém, apesar da importância que as situações reais conferiam a essa política de longo alcance, a política dinástica teve que ceder nos três países à pressão de uma sociedade em que os setores mercantis ainda não haviam alcançado suficiente vigor.
A rigor, esse processo girou fundamentalmente ao redor da política econômica, exigida e suscitada pelo novo sistema de relações, que ia formando uma crescente economia de mercado. Porém, houve outros objetivos. A luta contra os tártaros e os otomanos, no Leste, e contra os mouros, no Oeste, motivaram empresas nacionais, respaldadas pelo fervor coletivo, que robusteceram a posição da monarquia. As crises dinásticas ou os problemas de desagregação interna suscitaram anseios de regeneração que, às vezes, encontraram condutores dignos da esperança que se depositava neles, como Jorge Podiebrad na Boêmia ou João Hunyadi na Hungria. A esperança de uma grande abertura que revitalizaria a economia e a sociedade portuguesas, liberando-as dos estreitos interesses das classes feudais tradicionais, empurrou a casa de Avis ao triunfo em Portugal. A liberação do jugo tártaro permitiu ao grão duque de Moscou Ivan III proclamar-se czar e afirmar a independência dos seus domínios.
E ainda houve outros objetivos, aparentemente menores e mais difusos. O mais importante – e o que muitos acreditavam inatingível devido à experiência sucessiva de várias gerações – era o da paz interior e da ordem. As guerras civis, os bandos armados, os senhores prepotentes e astutos, os funcionários venais, as várias conseqüências das guerras internacionais criaram em quase todos os reinos uma atmosfera de violência e insegurança sufocante. A esperança de que se restaurasse certa ordem e certa paz, nas quais fosse possível desenvolver a vida cotidiana sem sobressaltos, transformou-se na longa crise, numa esperança veemente. O rei pareceu o pacificador por excelência, e todos esperaram, em cada país, que ele cumprisse esse dever primário. Muitos encarnaram essa esperança e, quando conseguiram convertê-la em realidade, ainda que em pequena medida, obtiveram uma solidariedade equivalente em devoção. Talvez ninguém como os Reis Católicos em Castela e Aragão, mas talvez não mais que outros, menos amados embora não menos eficientes, como Luís XI da França.
Os deveres que se apresentavam às monarquias a partir da época em que a crise de retração pareceu abalar todo o sistema tradicional eram inumeráveis. Porém, a nova sociedade, talvez estimulada pela própria crise, colocou nas mãos das monarquias inumeráveis e crescentes recursos para enfrentá-los. E no jogo entre suas obrigações e os meios para cumpri-las, as monarquias descobriram o caminho para fortalecer sua autoridade.
Sem dúvida, a crescente complexidade das sociedades e das atividades econômicas multiplicou os deveres da monarquia, contudo também aumentou seus recursos para enfrentá-los. Aumentaram as possibilidades financeiras do poder, sua força militar, seus plantéis administrativos e políticos; e adquiriram plena vigência, tanto no terreno do direito privado como no do direito público, certos princípios jurídicos que proporcionaram vigoroso arrimo às novas formas de comportamento político adotadas pela monarquia.
Foi motivo de queixa permanente dos reis a penúria fiscal. Um fato corriqueiro foi se ver algum rei castelhano percorrer as cidades do reino pedindo dinheiro emprestado aos mercadores.5 Os corpos legislativos – assembléias, parlamentos, cortes, estados gerais – ouviram continuamente os lamentos das chancelarias que assinalavam a impotência do poder para atender suas obrigações. E, quando uma situação de emergência, especialmente uma guerra, requeria novos gastos, o fisco começava a solicitar “ajudas” – o nome técnico de um imposto – e, se as necessidades eram muitas, solicitava empréstimos às casas bancárias nas quais o rei tinha crédito. Foi uma exceção, em meados do século XV, a florescente situação do ducado de Borgonha, que Commynes descreve atribuindo-a ao longo período de paz que havia gozado na época de Felipe, o Bom,6 embora então, a crise de retração houvesse começado a ceder em algumas regiões. Porém, no começo da crise, a situação havia sido diferente, a ponto de Christine de Pisan considerar significativo mencionar os escrúpulos de Carlos V da França em distribuir suas rendas.7 Na ocasião, os reis forçaram o crédito de que gozavam, e a isso se deveu a sucessão de quebras que a banca florentina sofreu especialmente entre 1342 e 1346.
Os conselheiros reais aguçaram sua imaginação para aumentar o tesouro fiscal. Mas primeiro foi necessário recrutar esses conselheiros entre aqueles que conheciam os mecanismos da nova economia, porque era evidente que muito pouco se podia obter da classe latifundiária feudal, ainda que se procurasse forçá-la. Em compensação, não era difícil taxar a produção da manufatura e o comércio, sempre contando, além disso, com as possibilidades de ter acesso ao capital financeiro acumulado, especialmente o que estava nas mãos dos judeus, lombardos ou caorsinos. Felipe, o Belo, havia dado um exemplo, nos primeiros anos do século XIV, apoderando-se dos numerosos bens dos Templários. Porém, a maior mostra de imaginação dos conselheiros reais e dos conselheiros jurídicos da monarquia deve ser observada no que diz respeito ao estabelecimento de impostos, escolhendo os rótulos e as ocasiões em que podiam ser cobrados, mas tratando, sobretudo, de chegar a estabelecer o princípio da imposição geral e permanente. As cidades já o haviam feito e os estados territoriais deveriam imitá-las e seguir seu exemplo, precisamente com o conselho de funcionários de extração burguesa.
Uma política econômica realista e de longo prazo levou as monarquias a adotar certas medidas que apoiaram e estimularam as atividades produtivas e de intermediação, visto que eram as que produziam uma riqueza geral sobre as quais podiam estabelecer-se os gravames. Os países nos quais a Hansa tinha empórios e procuradores procuraram controlar suas atividades para que a burguesia nacional manejasse os negócios internacionais. Aqueles em que os grupos estrangeiros – judeus, lombardos, caorsinos – manejavam as finanças ou o comércio, decidiram expulsá-los com o mesmo fim. Alguns, como a Inglaterra, proibiram a introdução de certos tecidos para favorecer a indústria local, no momento em que vetavam a exportação de matérias-primas que podiam ser transformadas no país. A Inglaterra também deu o sinal de que era necessário o monopólio da navegação marítima. Outros dispuseram um severo controle das atividades industriais. Outros, por fim, pensaram que era benéfico o fisco conservar o monopólio das explorações das minas. E todos concordaram que era necessário estimular e proteger as novas formas da economia com as medidas que o Estado pudesse arbitrar para conseguir esse objetivo. Porém, sempre que a monarquia adotava essa política, tinha como finalidade estimular uma maior riqueza que fosse, em última instância, taxada pelo Estado.
Certamente, os reis estavam cada vez mais necessitados de dinheiro, devido às diversas exigências que a nova sociedade estabelecia. Entretanto, por mais que houvessem aceitado essas exigências e percebido os novos mecanismos da vida social e econômica, os reis seguiam presos às suas tradições senhoriais e necessitavam de dinheiro – cada vez mais – para manter os gastos que demandavam sua ostentação, seus caprichos, sua corte e, em geral, seu estilo de vida. Muitos moralistas se queixaram da dilapidação das rendas públicas, chamando de dilapidação, precisamente, o gênero de gastos que antes pareciam normais em um senhor. Uma mudança de apreciação se insinuava. A monarquia não tinha todos os direitos, a não ser aqueles que eram lícitos depois de cumpridos os seus deveres. Porém, não era essa a opinião dos reis, rodeados de parentes, de membros da antiga nobreza dispostos a conservar seus antigos privilégios, de novos cortesãos que se acercavam para servir, mas também para subir na escala social. Os gastos se multiplicavam e, simultaneamente, a imposição fiscal era cada vez mais questionada, em geral e em cada caso particular. As classes feudais resistiam a toda imposição fiscal; e, quando lhes era imposta, cada um dos seus membros procurava obter uma isenção particular. As burguesias tratavam de consagrar o princípio de que não devia haver imposto sem consentimento. As classes populares suportavam as imposições sofridamente e recorriam a todo tipo de ardis para evitá-las. Porém, as monarquias persistiram implacavelmente em seu propósito: que todos fossem tributados, sempre. Uma política conseqüente e tenaz – em que pese a ocasional venalidade ou a falta de racionalização dos mecanismos – conseguiu que, ao acentuar-se o processo de expansão, o fisco real contasse cada vez mais com recursos maiores e mais seguros.
Commynes, comparando o sistema impositivo inglês com o da França, faz uma digressão que coloca o assunto em seus justos termos. Em uma sociedade que mudava de estrutura por causa do aparecimento de uma nova classe em ascensão, porém cujos membros ainda acusavam sua inferioridade social diante da antiga classe privilegiada, o núcleo da questão impositiva era se os ricos deviam pagar mais impostos que os pobres ou vice-versa. No entanto, esta não era uma questão fácil; ao contrário, dificílima. A antiga tradição senhorial indicava claramente que os privilegiados tinham direito a viver das cobranças injustas que cometiam contra os pobres, reconheeidos como inferiores. Admitir a tese de que os pobres não deviam ser explorados em benefício dos ricos significava uma modificação total das suas ideias tradicionais e, sobretudo, significava captar a peculiaridade da nova sociedade e aceitá-la, aceitando, ao mesmo tempo, o caráter irreversível do processo pelo qual esta se constituía. Nisso consistia a dificuldade para que novos critérios impositivos conseguissem impor-se. A força intrínseca da nova sociedade conseguiu isso. E as monarquias, estimuladas por seus novos deveres, coadjuvaram com isso, introduzindo uma reviravolta em sua política rumo a uma atitude realista que as levou a recusar as pretensões anacrônicas das classes feudais e a opor-se às dos setores mais ricos das burguesias, que procuravam atribuir-se mimeticamente os mesmos privilégios das classes feudais.
Foi o realismo político das burguesias o que conduziu as monarquias a sintonizar-se com as pujantes tendências da nova sociedade. As longas discussões dos diversos parlamentos ingleses da época, dos Plantagenetas e dos Lancaster, como as dos Estados Gerais franceses da mesma época, revelaram os interesses em questão e as soluções ajustadas a que se foi chegando. Particularmente significativas foram as declarações de Ricardo II no Parlamento de 1390, quando afirmou que o esforço tributário que solicitava devia ser evitado para os setores humildes. Mas o importante é que na Inglaterra os parlamentos tiveram essa política geral que se firmou na época dos Lancaster. Na França, ao contrário, a política fiscal foi mais dura, a partir de Carlos VII e, sobretudo, com Luís XI, e a monarquia reivindicou o direito de fixar impostos por si. Commynes criticava a fórmula que expressava o pensamento de Luís XI nessa matéria: “Eu tenho o privilégio de arrecadar dos meus súditos o que me aprouver”; mas criticava mais ainda que “tomava dos pobres para dá-lo àqueles que não tinham nenhuma necessidade”. No fundo, o realismo político das monarquias consistiu em auscultar em cada momento a capacidade econômica de cada grupo social, porém levando cuidadosamente em conta a força política que tinham e o apoio que podiam prestar-lhes. Assim, cedendo somente no imprescindível para a gravitação de suas antigas convicções, consentia – só no imprescindível também – nas exigências da nova sociedade.8
Assim como os dois pólos da política impositiva foram a conservação dos privilégios nobiliários, por um lado, e o reconhecimento dos direitos dos novos grupos sociais que pesavam na sociedade, por outro, a questão militar também reconheceu dois pólos opostos: de um lado a subsistência de um exército feudal e, de outro, a formação de um novo e distinto que fosse mais eficaz, que respondesse totalmente às monarquias sem reivindicar privilégios nem opiniões condicionadas e que fosse pago pelo Estado e, indiretamente, por toda a sociedade, da qual deveria ser a expressão.
A experiência da batalha de Courtrai em 1302 havia sido uma lição. Como antes em Legnano, os exércitos feudais haviam sido vencidos pelas tropas populares organizadas pelas comunas burguesas, como nos apólogos de Roman de Renart, nos quais a astúcia triunfa sobre a força. As três grandes derrotas francesas na Guerra dos Cem Anos – Crecy, Poitiers e Azincourt – foram a derrota do anacrônico exército feudal por um exército moderno, concebido por Eduardo III de acordo com os ditames da experiência militar e as possibilidades oferecidas pelos recursos que a nova sociedade podia proporcionar ao Estado. A infantaria armada de arcos e a novidade das bombardas, impuseram-se sobre a pesada cavalaria dos senhores. Pouco a pouco, toda a concepção militar se modificaria.
Mas não seria fácil mudar a mentalidade senhorial em alguns dos estados territoriais, visto que o controle da força era, para a antiga nobreza, a garantia da conservação da hegemonia política. Foram os reis “modernizadores” os que se preocuparam em transformar o seu exército. Pedro I de Castela, zeloso do incremento do tesouro feudal de cuja arrecadação havia encarregado os judeus, “tinha grandes besteiros” em seu exército. Em Portugal, o mestre de Avis – depois João I – havia triunfado sobre os Trastamaras espanhóis em Al-jubarrota, em 1385, não só com o auxílio material das tropas inglesas, mas também usando os novos métodos militares que tanto êxito haviam tido em Azincourt. Até Ladislau II Jagelão, cujos domínios lituano-polacos não conheciam um forte desenvolvimento burguês, ganhou em 1410 a batalha de Tannenberg contra a Ordem Teutônica, introduzindo modificações na tática da cavalaria, organizada agora em “bandeiras”, ágeis formações que evitavam o combate individual; mas, em 1445, Casimiro IV Jagelão já pôde recrutar um exército mercenário com o qual derrotou definitivamente seus adversários e conseguiu, depois da Paz de Torun, ocupar as costas do Báltico.
Os novos exércitos que as monarquias organizaram para servir aos seus próprios fins diferiam substancialmente dos tradicionais. A linhagem social das tropas era diferente e também a dos seus comandos. Também era diferente o seu armamento, visto que seu núcleo foi uma infantaria qualificada, muito diferente dos antigos corpos de peões destinados a auxiliar e servir ao cavaleiro em armas. A nova infantaria era constituída agora por unidades combatentes, organizadas de acordo com um critério prático e alheias aos preconceitos de honra feudal e às regras do combate cavalheiresco. Pouco a pouco se foi incorporando também uma artilharia incipiente. Por isso foram diferentes suas táticas e também a estratégia geral da guerra que, cada dia, acusou maior grau de realismo.
Não foi casual o aparecimento das companhias mercenárias, bandos armados cujos chefes lhes impuseram uma disciplina férrea e as transformaram em instrumentos eficazes para os propósitos daqueles que contratavam seus serviços. Conscientes de que a sua missão consistia em cumprir determinados objetivos a qualquer preço, as companhias sem bandeira aplicaram, muito antes que algum teórico o formulasse explicitamente, o princípio de que o fim justifica os meios. Na Itália, sobretudo, e em outras regiões, exercitaram o direito de guerra, que era, a rigor, o direito de saquear os vencidos e, inclusive, as indefesas populações que encontravam na passagem, principalmente quando não tinham contrato de serviço. Saquearam populações, violaram mulheres, devastaram campos, mas nada disso tinha que ver com sua função específica, se bem que revelasse sua atitude moral e política. O certo é que não tinham bandeira nem objetivos próprios. Por isso, quando eram contratados, aceitavam o que lhes propunham e o cumpriam com fria exatidão. Herói da progressiva e metódica expulsão dos ingleses, Bertrand du Guesclin foi um chefe de bandos mercenários e a sua imagem em Castela não foi a mesma que na França. Mas serviu a Carlos V com a eficácia que havia adquirido em outras guerras e pôde fazer o que os exércitos feudais haviam se mostrado incapazes de conseguir. Segundo os princípios tirados da sua experiência Carlos VII e Luís XI constituíram o novo exército francês. Ao cabo de algum tempo, as campanhas dos suíços se transformariam no mais solicitado e eficaz instrumento militar dos novos poderes.
O exército inglês, tal como o havia constituído Eduardo III, e as companhias sem bandeira – diríamos brancas – apareceram como o modelo do instrumento militar que a nova monarquia necessitava. Para ela, o importante era liberar-se de um exército feudal que, além de ineficiente, constituía uma ameaça contra a nova concepção monárquica de poder.9 E, para liberar-se dessa e de outras pressões teve crescente importância o progressivo consentimento que adquiria a concepção autoritária da monarquia elaborada pelos legisladores conforme os princípios do direito romano.
Os legisladores restauraram os princípios e as normas romanas, ali onde a tradição o permitia e até onde as circunstâncias o aconselhavam, introduzindo-os sutilmente nos documentos das chancelarias ou dos corpos colegiados, glosando-os nas alegações por escrito ou aplicando, simplesmente, o seu espírito aos conselhos oferecidos ao rei. Se a sua irrupção, desde o século XII, havia sido franca e ostensiva, seus progressos foram depois mais lentos e difíceis. O sistema consuetudinário que havia elaborado a sociedade feudal e que, em princípio, enriqueceu as cidades que lutavam por suas liberdades, tinha outra origem e acusava outras tendências. Quando notaram as implicações do direito romano, as classes feudais resistiram a ele, enquanto as burguesias discriminaram nele o que lhes convinha e o que as ameaçava. Sem dúvida, estas últimas o resgataram naquilo que se relacionava com o patrimônio, visto que aspiravam restabelecer o direito de propriedade fundado na noção romana de domínio; mas olharam com preocupação as derivações políticas, que anunciavam um avanço sobre suas próprias conquistas e uma progressiva ameaça para o sistema político que estava sendo construído nas cidades.
Não obstante, o progressivo desenvolvimento do Estado proporcionava às monarquias uma força própria e espontânea que os princípios autoritários do direito romano não faziam, no fundo, senão legitimar e robustecer. O autoritarismo de fato e o direito romano se entrelaçaram com os sistemas tradicionais de normas constituindo uma intrincada rede jurídica. Mas as monarquias persistiram ousadamente em sua atitude, superando as crises políticas e vencendo as resistências com uma posição cada vez mais pragmática e realista. De fato, as burguesias transformaram-se objetivamente em suas aliadas e colaboraram para que se desprendessem do seu tradicional contorno feudal e se adequassem à sociedade feudoburguesa. Movia-as o convencimento de que essa nova sociedade requeria um poder político transacional que, por esse caráter mesmo, tinha necessidade de sobrepor-se ao conjunto de normas tradicionais e resolver suas contradições mediante atos de autoridade.
Foi a nova sociedade que proporcionou às monarquias os recursos humanos necessários para organizar o novo aparato do Estado. A medida que seus deveres aumentavam, o Estado diversificava suas ramificações para cumpri-los e para exercitar sua autoridade de maneira cada vez mais ampla. As chancelarias transformaram-se em complexos organismos com várias cabeças, cada uma das quais controlava uma área bem definida do governo. Talvez essas cabeças continuassem sendo com freqüência membros da nobreza que já começava a converter-se em cortesã. Mas todo esse aparato estatal foi caindo progressivamente nas mãos de indivíduos de outra linhagem, geralmente burgueses e filhos de burgueses e talvez indivíduos da nova nobreza ou membros secundários da antiga pequena nobreza. Os clérigos desempenharam um papel importante em algumas cortes, onde às vezes se confundia o contorno pessoal do rei com o aparato do Estado, embora cada vez mais se fossem diferenciando, como se foram diferenciando as rendas fiscais das rendas pessoais do rei e sua família.
Uma burocracia densa foi se constituindo em quase todos os estados ao lado da corte, embora com conexões arbitrárias e variadas entre si. Seus membros transferiram para o manejo dos assuntos dos estados territoriais a experiência adquirida na administração e na vida política das cidades, os métodos e mecanismos para que fosse mais eficaz, os critérios práticos para enfrentar as novas situações e, sobretudo, um agudo senso para interpretar as ações e reações da nova sociedade e a maneira como o Estado podia se introduzir nela para alcançar seus fins. Algumas vezes para que cumprisse os seus deveres, e outras para que conseguisse os recursos necessários para fazê-lo. E por este caminho, a burocracia, em princípio estatal, servia também aos interesses pessoais do rei, freqüentemente inclinado a aproveitar-se do seu poder e dos mecanismos governamentais para seus próprios negócios, sempre necessitados de procuradores e intermediários. Hábeis no manejo de seus próprios assuntos, os burocratas de origem burguesa e de diversas categorias emprestavam sua experiência, sua eficácia e seu senso prático ao Estado e ao rei; mas a aproveitavam para si mesmos usando, com maior ou menor prudência e discrição, as vantagens que suas funções proporcionavam para os seus próprios negócios. Se a monarquia se tornou finalmente feudoburguesa, foi em grande parte, graças à influência dessa burguesia que encontrou acolhida nas cortes, se instalou em seu seio – ou ao seu lado, conforme o caso – e destilou sutil e permanentemente sua concepção de política e de negócios no ambiente senhorial que rodeava os reis.
Se a política das monarquias se tornou cada vez mais autoritária, nem por isso prescindiu da consulta aos representantes dos diversos corpos legislativos da nova sociedade. Ao contrário, o consentimento dessa representação institucionalizada em corpos colegiados contribuiu, ainda que pareça paradoxal, para fortalecer o autoritarismo real. As monarquias tinham que se desprender da tutela exclusiva que as classes feudais pretendiam continuar exercendo. E ao surgirem nas cortes, assembléias, parlamentos ou Estados Gerais, distintos interesses setoriais e distintas expectativas, o poder real assumiu cada vez mais o papel de árbitro cujas decisões conciliavam os confrontos irredutíveis. A sociedade feudoburguesa, heterogênea por constituição, só podia funcionar mediante decisões transacionais que, em geral, não satisfaziam inteiramente a nenhuma das partes, mas iam traçando uma política na qual cada uma delas procurava obter em cada ocasião o mais que pudesse em relação ao que pediam ou exigiam as outras. Foi o papel de árbitro entre os diversos setores o que mais contribuiu para situar o rei acima de todos eles, deixando-lhe uma guarnição de poder arbitrário que o novo aparato estatal conseguiu dilatar progressivamente, abrindo caminho até o exercício do poder absoluto.
Nesta renovação política da monarquia, desempenharam um papel decisivo as novas elites que a sociedade feudoburguesa gerou, entre cujos membros o rei buscou, cada vez mais, os seus conselheiros. Se continuaram sendo os grandes senhores em muitos casos, foi cada vez mais freqüente que não fossem só eles. Não era a política da antiga nobreza o que necessariamente convinha ao rei, porque, junto dessa, lhe eram propostas outras por outros grupos de pressão cuja influência e cujo poder a monarquia não podia desdenhar. Além do mais, a antiga nobreza estreitava seus alvos à medida que se acentuava a crise de retração, obcecada em recuperar a totalidade do poder que fugia de suas mãos e altivamente desdenhosa das novas forças sociais; e nessa luta aumentavam os receios entre pessoas e facções, debilitando a força do conjunto como classe. Cada um – e a facção que cada um encabeçava – queria exercer o poder por trás do trono e desalojar seus rivais, que acalentavam a mesma pretensão. Mas a monarquia estava cada vez em melhores condições para libertar-se da tutela dos grandes senhores, e os conselheiros reais foram buscados em outros setores, às vezes para equilibrar o poder daqueles e, às vezes, para suplantá-los totalmente. Membros da nova nobreza podiam servir para esses fins. E, à medida que se definia a política realista e pragmática da monarquia, começaram a incorporar-se membros da burguesia ao contorno real, no qual os conselheiros pessoais do rei exerciam um poder não necessariamente institucionalizado.
Em certas ocasiões, algum desses conselheiros alcançou um poder considerável – às vezes decisivo – ao se converter em favorito ou íntimo do rei. O favorito chegou a ser quase uma instituição, revelando as características da transição do poder real para o absolutismo pessoal. Vinculado ao rei por motivos distintos – inconfessáveis algumas vezes – o favorito gozava de total confiança e, com freqüência, monopolizava o exercício do poder. Porém, o aparecimento dessa função não era o resultado de um capricho. O rei se transformava cada vez mais em um funcionário que estava à frente de um Estado burocrático, e essas responsabilidades se chocavam em alguma medida com sua tradição senhorial e cavalheiresca, de modo que costumava buscar um modo de delegá-las. O favorito foi, de fato, um primeiro ministro ou, ao menos, o intermediário entre a vontade real e todo o crescente sistema operativo do Estado. Porém, sobretudo, foi o eleito do rei, aquele a quem o rei indicava a seu próprio arbítrio, desprezando os presumíveis direitos dos achegados e da alta nobreza a compartilharem na prática o poder, segundo assinalava a tradição feudal. Por isso, os favoritos e os íntimos foram tão odiados, um dos quais, o castelhano Álvaro de Luna chegou a ser figura representativa de uma situação e de uma época. Neles foram vistos os executores da política do novo Estado burocrático, os rivais da antiga nobreza conselheira do rei, mas, principalmente, os expoentes da crescente personalização do poder real, em marcha para o absolutismo.10
Certamente, a sociedade feudoburguesa requeria um novo tipo de monarquia, que foi elaborado por experiência, sem outro apoio doutrinário além da remota influência da tradição romana,11 aproveitando a crise das relações de vassalagem, o apoio direto ou indireto das burguesias e a presença das classes populares urbanas. Porém, em sua elaboração pragmática, apareceram duas alternativas. Uma era a de uma monarquia limitada, como o havia sido a monarquia feudal, cujo freio era agora a representação da nova sociedade feudoburguesa. Foi esse o modelo político que se insinuou na França na época dos Estados Gerais de 1356. A outra alternativa era a de uma monarquia cada vez mais vigorosa, na qual o rei era árbitro entre as diversas classes, talvez com vocação para buscar o apoio dos novos setores urbanos como o fizeram os reis chamados “justiceiros” em Castela e em Portugal, Ricardo II da Inglaterra, Carlos, o Mau, de Navarra, os duques de Borgonha ou Luís XI da França, todos eles preocupados em resistir ao poder das classes nobres. Essa alternativa foi a que predominou. A medida que aumentava o Estado burocrático, crescia a autoridade do rei, cuja vontade foi se transformando em lei de acordo com o princípio romano. Diante dele, o corpo colegiado que representava a sociedade feudoburguesa, composto de legislativos de interesses opostos, só ocasionalmente pôde impor suas decisões, quando a monarquia passava por uma situação crítica. Mas, na luta pelo poder, a monarquia foi ganhando terreno, precisamente pela sua posição de árbitro entre aqueles interesses; e atenta às questões de cada dia, aprendeu a usar o poder com esse realismo pragmático que a nova sociedade parecia requerer.
II. A Política das Classes Nobres
Na turbulência da mudança social e econômica, as classes nobres foram as mais castigadas. Elas não só haviam sido o grupo dominante da antiga sociedade, anterior à mudança, mas continuavam sendo o setor social arraigado e mais forte por seu incomensurável prestígio social, pelo respeito que cada um de seus membros impunha, tanto aos seus antigos subordinados quanto aos que haviam começado a rebelar-se e, sobretudo, por sua antiga riqueza, medida em senhorios que compreendiam campos e cidades. Quando a situação mudou, conservaram seu prestígio e sua soberba, porém comprovaram que o mundo sobre o qual deviam atuar começava a adquirir certa autonomia insólita e se comportava de uma maneira diferente da tradicional. As classes nobres observavam ao seu redor atitudes não usuais, alheias à tradição, e às vezes recebiam golpes duros sem que pudessem definir com clareza quem era o adversário. Pareceu como se, em pequena medida, tivessem começado a deixar de ser os amos. Alguns demoraram a descobrilo; porém os que o observaram primeiro, se viram imersos em uma profunda confusão e incerteza que, pouco a pouco, acabou sendo a atitude de todos.
Quem compartilhava com os reis a posse de todas as terras e, na qualidade de pares, o exercício do poder, viu-se acossado desde o início da crise por três adversários inesperados. Um vago mal-estar propagava-se nas fileiras dos campesinos – servos e livres – tão humilhados até então, que só a ideia de que pudessem resistir à vontade senhorial parecia descabida e absurda. E, não obstante, o mal-estar aumentava e começava a traduzir-se em atitudes e, pouco a pouco, em atos voltados contra a tradicional onipotência do senhor. Simultaneamente, aumentava o poder das burguesias urbanas, e os senhores comprovavam que este poder constituía uma espécie de mundo à parte, regido por novas normas e por uma inequívoca e desembaraçada política que costumava prejudicá-los, mas que, sobretudo, parecia ignorá-los e prescindir deles. E, o mais grave, os reis deixaram entrever que haviam deixado de considerar as classes nobres como o único grupo social significativo em seus domínios e que estavam cada vez mais atentos à totalidade dessa complexa sociedade que começava a mover-se como um conjunto heterogêneo e escorregadio. Desses três adversários, um era novo e quase incompreensível; os outros dois não o haviam sido até então. Era inevitável que a nova situação produzisse marcante confusão e insegurança naqueles que continuavam considerando-se o único setor social significativo.
Até então, as classes nobres haviam tido uma política: sua própria política, que as monarquias compartilhavam no que era fundamental. A medida que a crise se definiu, a política das classes nobres perdeu unidade e firmeza, oscilando entre uma intransigência total frente à mudança, movida pela cólera e pelo orgulho, e uma tendência a resolver as situações particulares com um critério flexível, de acordo com as possibilidades que cada situação oferecia. Acossados seus membros pelos efeitos indiretos do desenvolvimento da economia de mercado, cada um procurou salvar-se perdendo o menos que pudesse e ganhando o que fosse possível por meio de procedimentos adequados e alheios à tradição senhorial. A classe acusou o golpe dessa política, que tinha algo de desesperada e muito de irrefletida improvisação.
Talvez o mais grave efeito das repercussões que a crise teve sobre as classes nobres tenha sido a perda de sua própria política interna, a que governava as relações entre os seus membros. As relações de vassalagem, antes tão estritamente estabelecidas, começaram a se enfraquecer, e a pirâmide monolítica que constituíam mostrou as primeiras brechas. Os vínculos não foram questionados, porém deixaram de ter força e eficácia, de modo que apareceu para eles o perigo de verem-se sós e reduzidos aos próprios recursos. Agarraram-se ao antigo sistema enquanto puderam; mas, quando não funcionou mais, procuraram substitui-lo por alianças ocasionais, inegavelmente políticas, das quais nasceram as facções aglutinadas não por um sistema estável de relações invulneráveis, mas por fins imediatos e concretos dentro do mundo em que se moviam. Instáveis, as facções senhoriais se precipitaram nos meandros da luta pelo poder e, sobretudo, pelos benefícios que o poder – ou sua sombra – podia lhes proporcionar. Da antiga majestade que imprimia às classes nobres a concepção cavalheiresca da vida, desceram às intrigas palacianas e ao saque desembaraçado. A sua foi a mais ignóbil das formas do realismo político.
Certamente, o campo e as populações rurais constituíam o âmbito natural das classes nobres. Nele repousavam suas riquezas ou, ao menos, seus meios de vida. Se a comoção social chegasse ao campo, se não pudessem apelar aos recursos que lhes proporcionavam seus domínios, sua sorte estaria acabada. Por isso decidiram, não só recorrer a eles sem vacilações e sem limites, mas também jogar o todo pelo todo para manter o mundo rural sob sua jurisdição e dentro da ordem estabelecida.12
Esta foi uma decisão política nascida da análise da situação e adotada de maneira resoluta. Sem dúvida, cada senhor fez em seus domínios as pequenas concessões que as circunstâncias lhe aconselhavam: aparentemente liberais com respeito ao campesino beneficiado, mas, sobretudo, vantajosas para o senhor que buscava uma maneira de aumentar suas rendas, diminuir suas preocupações e seus riscos e, acima de tudo, obter dinheiro constante e sonante, cada vez mais imprescindível no mundo da economia de mercado. Porém eram pequenas e, sobretudo, concessões, isto é, regulações outorgadas graciosamente, sem ceder a pressões formais e menos ainda multitudinárias.
Sim, talvez o senhor cedesse à anônima pressão das circunstâncias e à ainda mais difusa pressão dos novos mecanismos econômicos. Mas, se as classes nobres não vacilaram em recorrer à violência quando se viram apertadas pela escassez e movidas por uma cobiça mesquinha pelos poucos bens dos campesinos, com mais razão a adotaram como política quando a inquietação das populações rurais tomou características de franco protesto ou de rebelião armada. Então comprovaram que, em seu desígnio de manter as áreas rurais à margem do processo de mudança, contavam com o apoio incondicional das monarquias.
A repressão das insurreições campesinas foi obra conjunta das monarquias e das classes nobres, ambas coincidentes nessa política de preservar a ordem tradicional na área de influência feudal. Outras mudanças mereceriam outra atitude dos reis. Porém, ali onde os grandes senhores assentavam seu poder e sua riqueza, parecia imprescindível que nada mudasse. A guerra contra os campesinos rebeldes foi impiedosa e a política realista de Ricardo II da Inglaterra – de transação primeiro, de prejuízo depois – foi considerada justificável pela ameaça ao setor tradicionalmente hegemônico da sociedade e ao sistema fundamental de produção de bens.
Coisa diferente ocorreu quando as classes nobres quiseram defender seus interesses frente às cidades e às burguesias urbanas e, mais ainda, quando quiseram obter novos benefícios. Então compreenderam que estavam sós, que sua política não era compartilhada pelas monarquias e que, ao contrário, estas se manifestavam resoluta e sistematicamente adversas à intromissão dos senhores na atividade das burguesias urbanas.
Sem dúvida, as classes nobres tardaram muito tempo para ter uma política própria frente às burguesias. Constituíam para elas grupos estranhos, híbridos desde sua composição social, incompreensíveis do ponto de vista de suas formas de vida e comportamento, e, quando começaram a constituir-se, a primeira reação dos senhores havia sido uma mescla de cólera e desprezo. Consideraram foragidas e usurpadoras; e, quando se organizaram para reclamar direitos e garantias, a atitude espontânea dos senhores foi negar-lhes o que pediam e esmagá-las. Foi uma surpresa para eles que pudessem resistir, talvez porque não souberam perceber a força que tinham tanto pela capacidade para organizar-se como pelos novos recursos que o dinheiro lhes outorgava. E quase sempre tiveram que ceder, vencidos umas vezes nas revoltas das ruas, porém, mais freqüentemente, domesticados pelo oferecimento de dinheiro e pela promessa de um sistema de relações que podia lhes dar uma renda.
Mas a surpresa das classes nobres foi maior ainda quando comprovaram que – diferentemente do que ocorria em seus conflitos com os campesinos – as monarquias adotavam uma atitude compreensiva diante das burguesias. Talvez não fosse uma atitude resolutamente favorável e simpática, mas foi desde o início uma atitude de negociação e de eventual apoio quando descobriram que a aliança com estas podia ser favorável ao poder real. A surpresa se convertia às vezes num verdadeiro estupor, ao comprovar um senhor que o seu rei tomava o partido dos burgueses rebeldes dos seus próprios domínios. Diante dessa política das monarquias, as classes nobres compreenderam que eram assaltadas e que, na área das cidades e das burguesias urbanas, os reis reconheciam a validade do fato novo de seu aparecimento e a importância insólita das novas formas de atividade que desenvolviam.
Se era difícil para as classes nobres adotar uma política frente às cidades e às burguesias urbanas por causa da repugnância que o aparecimento desses grupos e esse novo tipo de vida lhes causava, mais difícil foi para elas quando compreenderam que nesse confronto estavam sós e que as monarquias se aproximavam cada vez mais desse novo adversário. Desorientadas, comportaram-se de modo confuso até que optaram por uma política realista também nesse caso.
Ao se desencadear a crise, a situação estava muito mais clara. Já fazia tempo que os reis haviam incluído definitivamente as burguesias dentro de sua órbita e as possibilidades de que as classes nobres tivessem uma determinada política frente a elas eram muito escassas. Sobretudo, era quase impossível uma política intransigente ou agressiva, e não só pela presença dos reis, mas também porque as cidades e as burguesias urbanas eram já demasiado poderosas. Só foi possível algumas vezes, como na Alemanha – onde o poder do imperador não era igual ao dos reis – quando uma crise anárquica debilitou ainda mais a autoridade imperial. Porém, o que se delineou cada vez mais firmemente foi uma política transacional e pragmática, fundada em um progressivo reconhecimento do fato consumado e em um propósito de aproveitar o que se pudesse de alguma aliança ocasional ou de certos vínculos pessoais que somavam as operações comerciais dos burgueses a algum membro das classes nobres. Só em uma coisa se mantiveram firmes: em resistir à progressiva pressão das classes burguesas sobre as monarquias, tratando de impedir que as superassem em influência. Foi um desígnio mantido que moveu surdas batalhas nas ante-salas reais, sem impedir que mais de uma vez se transferissem às ruas e aos campos de batalha.
As classes nobres convenceram-se, no curso da crise, de que seu principal adversário era o rei. Antes expressão pura das aristocracias feudais, as monarquias haviam se separado pouco a pouco delas e buscavam seu rumo no seio da nova sociedade, confusa e heterogênea. Talvez, em geral, esse rumo fosse ainda incerto, mas as classes nobres tomaram clara consciência do que se relacionava a elas na nova atitude das monarquias, e isso pareceu seguro e definitivo. E era inevitável que fosse assim. Outros setores integravam o tecido social. Mas, desde o começo da crise e até o triunfo do absolutismo nos primórdios do século XVI, as monarquias e as classes nobres foram os protagonistas da intrépida luta pelo poder.
No que dizia respeito às classes nobres, a atitude das monarquias foi manifestando-se com marcada nitidez. Estavam dispostas a proteger e manter as classes nobres como setor social predominante, ameaçado gravemente pelo processo de mudança, mantendo sua posição econômica e social nas áreas rurais das quais extraiam sua riqueza, sua força e seu prestígio; mas com a condição de que tudo isso não fosse posto a serviço de seus próprios interesses pessoais ou de classe, mas a serviço da monarquia e de sua nova política. Era, no início, um projeto sinuoso e difuso, mas cada vez mais ficou evidente para as classes nobres que as monarquias pretendiam subjugá-las c domesticá-las para que viessem a ser – como finalmente foram – aristocracias cortesãs sem poder político próprio. E não só na esfera em que podiam competir, mas também nas regiões onde tradicionalmente o nobre feudal atuava como um pequeno monarca.
As classes nobres perceberam que queriam vê-las reduzidas a seus antigos recursos, na medida em que as monarquias cresciam em poder econômico e militar graças à sua participação direta ou indireta nas novas atividades econômicas. Além das atividades privadas, as classes nobres puderam abrigar poucas esperanças de aproveitar seu poder para beneficiar-se, como senhores, da riqueza que as cidades e as burguesias urbanas acumulavam, exceto quando uma monarquia atravessava uma crise de fraqueza, como no caso de Castela depois da ascensão dos Trastámara. Mas, mesmo nesses casos excepcionais, foi uma reação, uma recuperação efêmera do terreno perdido. A economia mercantil necessitava do poder real, e aqueles que a manejavam buscavam seu apoio e aceitavam de bom grado a imposição fiscal e as obrigações pessoais que pudessem ser exigidas no âmbito da Coroa. Assim, consolidou-se a ideia de que esse âmbito não era o das classes nobres.
Mas talvez o que as classes nobres perceberam mais intensamente foi que as monarquias não estavam dispostas a aceitar a anacrônica concepção de que elas constituíam o todo da sociedade. Como fato, isso já não era certo, e as monarquias o haviam notado com clara percepção das situações novas. Agora estavam resolvidas a fazer com que as classes nobres aceitassem ser parte de um todo mais complexo, reconhecendo a importância das outras esferas, uma das quais, a burguesia, que crescia em importância para as monarquias, porque proporcionava os recursos necessários para seu fortalecimento. Houve uma pressão imprecisa e confusa para conseguir esse consentimento, porém foi o mais difícil de obter.
As classes nobres resistiram em aceitar essa diminuição do seu papel social e político, que as monarquias tratavam de encobrir oferecendo aos seus membros, como compensação, lugares honoríficos em suas cortes cada vez mais suntuosas e dádivas provenientes das rendas reais. A alternativa era difícil, mas em poucas gerações houve aqueles que se decidiram por essa possibilidade muito promissora em cada caso pessoal. Outros, mais zelosos dos interesses de sua classe, resistiram passivamente – embora, às vezes, aceitassem as graciosas concessões reais a título pessoal – esboçando uma política de afirmação e defesa da aristocracia, fustigada pelo processo de mudança e somente defendida pelos reis na medida dos seus próprios interesses.
A resistência passiva das classes nobres consistiu em cerrar as fileiras para não perder sua identidade como grupo e em codificar suas normas e suas formas de vida para distinguir-se no seio da sociedade gárrula e confusa. Seu espelho coletivo foram as ordens militares que perpetuavam, imobilizando-as, as tradições cavalheirescas dos séculos passados e seu modelo individual dos cavaleiros sem medo e sem defeito imortalizados pelos cronistas nostálgicos e já cortesãos. Alguns moralistas reivindicaram suas antigas virtudes, mas, com freqüência, para fazer uma severa crítica sobre a decadência da cavalaria. A defesa passiva das classes nobres não só adquiriu um ar melancólico, mas expressou-se, em geral, através de uma retórica tão convencional, que ficou provado que sua política doutrinária carecia de atualidade e de vigência.
Mas as classes nobres adotaram, ao mesmo tempo, uma resistência ativa frente às monarquias. Exerceram uma política de permanente pressão sobre os reis, através de uma presença marcante, de uma reivindicação constante dos princípios tradicionais, de uma alegação sobre a legitimidade dos seus direitos em cada caso particular. Em geral, o objetivo final dessas pressões era conseguir que as classes nobres mantivessem a totalidade de seus privilégios, muitos deles ameaçados em termos gerais pelo jogo das circunstâncias e, outras vezes, questionados em determinado caso. Sem dúvida, as monarquias necessitavam e desejavam reduzir os privilégios nobiliários, e a batalha foi cotidiana e permanente. Mas não era só isso o que preocupava as classes nobres. Fez parte da sua política prática tratar de manter seu papel de grupo político exclusivo, para o que multiplicaram seus esforços para cercar os reis com o objetivo de impedir que outros grupos que não fossem da nobreza fizessem o mesmo. Nessa batalha palaciana, o adversário eram as burguesias em ascensão, em cujo seio se destacavam os mais ricos ou os mais hábeis ou os mais instruídos para incorporar-se às chancelarias ou aos conselhos. Para suprimir estas influências, podiam unir-se todos os grupos ou facções das classes nobres. Porém, à medida que crescia o poder real e tropeçava a antiga aristocracia feudal, essas facções se tornavam mais fechadas, mais intolerantes e mais agressivas entre si. Umas lutavam contra as outras para obter o favor real, faziam intrigas para desalojar a adversária, procuravam colocar seus membros em posições-chave. Talvez o que mais as irritasse não fosse o triunfo de uma facção rival, mas o de um personagem individual – o favorito ou íntimo – que sub-rogava a vontade real e que costumava exceder a medida de sua própria importância tratando de sobrepor-se à nobreza. Contra eles se voltava um ódio quase feroz, que às vezes degenerava na formação de bandos enfrentados com a morte, cuja política intolerante e desmedida só visava à destruição do inimigo.
A crise, que havia enfraquecido a arquitetura das relações de vassalagem no seio das classes nobres, comprometeu de maneira singular e gravíssima as relações entre elas e o seu rei. Presas às suas velhas concepções, persistiam em considerar sua lealdade ao rei como um simples vínculo feudal, sem perceber que, cada dia mais, o rei não era simplesmente o senhor dos seus vassalos nobres – embora alguns, como Carlos VII da França, se obstinaram em crê-lo – mas o representante de uma entidade jurídica que adquiria crescente importância: o Estado. As classes nobres rebelavam-se precisamente contra o Estado e as novas formas que assumia cada dia. Seus membros rompiam os laços de vassalagem que os uniam ao seu rei – desnaturalizavam-se, como se dizia em Castela – e sentiam-se em liberdade para estabelecer outros laços com outro rei estrangeiro, porque se recusavam a integrar-se nessa nova sociedade que já era uma sociedade nacional, com um Estado que se constituía passo a passo, e cujo representante eminente era um rei que deixava rapidamente de ser um senhor feudal para ser o mandatário de uma nação. Essa confusão de lealdades provava a indecisão e a incerteza das classes nobres, reduzidas pelo processo irreversível de mudança de uma situação de onipotência para outra de participação negociada. Tinham um lugar na nova sociedade feudoburguesa, mas devia ser estabelecido sobre novas bases depois de muitas transações com as outras forças concorrentes. Nesse esforço pelo estabelecimento de uma nova ordem, as classes nobres foram as que mais demoraram para adotar uma política realista.
Às vezes, adotaram uma política desesperada. Quando comprovaram que as pressões pertinazes – exercidas através do conselho, da ameaça ou da intriga – não davam os resultados que esperavam, começaram a pensar em recorrer à violência. Durante os séculos XIV e XV houve numerosas guerras civis nas quais se enfrentaram dois bandos senhoriais. Mas, no fundo, foram guerras contra a monarquia ou, mais exatamente, contra a incipiente forma de Estado que as monarquias procuravam instituir.13 Os objetivos eram os mesmos que haviam motivado sua tenaz política de pressão sobre os reis, embora aparecessem outros pretextos e se agitassem diferentes bandeiras. As classes nobres queriam somente conservar seus privilégios e recuperar sua ascendência sobre a monarquia.
A ocasião às vezes prestou um contorno confuso à ação armada dos senhores. Os grupos podiam proclamar que estavam a favor ou contra o rei e lutar uns por sua derrota e outros em sua defesa; podiam manter distintos candidatos para um trono vazio; podiam disputar a tutela de um rei durante sua minoridade. Mas sempre lutavam pelo mesmo. Somente algumas situações particulares agregavam diversos matizes de drama: o inflamado ódio de duas famílias – como os Douglas e os Stuart na Escócia ou os Lancaster e os York na Inglaterra – a brutal contenda de dois irmãos – como Pedro I e Henrique II em Castela ou Jaime III e o duque de Albany na Escócia – ou o confronto entre pai e filho, como o que mantiveram na França Carlos VI e o delfim Carlos VII e o futuro Luís XI e, em Aragão, João II e o príncipe de Viana. Batalhas memoráveis – Montiel, Olmedo, Towton, Bosworth, Sauchieburn – revelaram os ódios fratricidas das facções feudais e a cegueira política que as levava até a autodestrição.
Foram guerras formais, de inimigos jurados que apelavam para todos os recursos, para todas as alianças e para todas as crueldades de modo a triunfar, e cujo saldo foram inumeráveis vidas de membros das classes nobres. Mas nem sempre chegaram a esses extremos. O assassinato dissimulado – como o do duque de Orléans em 1407 e o do duque de Borgonha em 1419 – podia ser um recurso drástico sem chegar ao confronto dos exércitos. A deposição de um rei e depois sua morte misteriosa – como nos casos de Eduardo II e Ricardo II da Inglaterra – pareceu uma solução definitiva cuja violência podia disfarçar-se sob pretextos legais. Mas era a guerra, isto é, a última fase de uma política ambígua e desesperada.
III. A Política das Burguesias Integradas
Características menos trágicas que aquelas que acarretaram nas classes nobres teve a busca de uma política eficaz no seio das burguesias integradas nos grandes estados territoriais. Por certo, tinham menos preconceitos, mais experiência de mudança e certa urgência em consolidar uma posição na nova sociedade. Quando a crise social e econômica começou, já havia percorrido um grande caminho; mas só então se pôde avaliar a intensidade da mudança; e, assim como as classes nobres e as monarquias compreenderam que tinham que definir suas atitudes no obscuro processo de constituição da sociedade feudoburguesa, também as classes burguesas tiveram que examinar os passos que haviam dado desde o século XI e deduzir, a partir desse exame, uma conduta política.
Grupos frágeis e de fisionomia imprecisa, as primitivas burguesias urbanas elaboraram muito depressa uma política defensiva, graças à qual conseguiram obter dos senhores, leigos ou eclesiásticos, cartas de franquias ou de comunas, foros ou constituições, que lhes proporcionaram segurança jurídica e garantias para o exercício de suas atividades mercantis ou artesanais. As vezes, tiveram que combater os senhores; outras vezes, pactuaram com eles a um custo diverso; e, em algumas ocasiões, lutaram unidos – como na Inglaterra no século XIII – para conter o poder real. Mas o jogo das forças, em geral, inclinou as burguesias a se enfrentar com os senhores e buscar o apoio dos reis. Encravadas nos senhorios, as cidades sentiam-nos como seus protetores frente aos atropelos das classes nobres, talvez porque descobriram que os reis estavam interessados no seu desenvolvimento como grupo social e na expansão de suas atividades, ou porque descobriram prematuramente a importância que os reis lhes atribuíam acima de todo preconceito.
Dos reis obtiveram mais de uma vez garantias efetivas em situações perigosas e, em muitas ocasiões, a revalidação ou a confirmação do status jurídico que haviam conseguido e lhes custava tanto conservar. Mas obtiveram, sobretudo, o reconhecimento de sua importância como braço da sociedade quando começaram a ser convocadas para as assembléias da Cúria Régia, de que antes só participavam o clero e as classes nobres. Aconteceu pela primeira vez no reino de Leão em 1188, quando foram convocados à Cúria Régia, junto ao arcebispo, os bispos e os magnatas do reino, “os cidadãos eleitos em cada cidade”. A incorporação dos burgueses produziu-se, sucessivamente, em quase todos os reinos: pouco depois de Leão, ocorreu em Castela; na Catalúnia em 1218; no regime imperial em 1232; no reino de Valência em 1238; no parlamento da Inglaterra em 1265; nas cortes de Aragão em 1274 e nas de Navarra em 1300; e nos Estados Gerais da França em 1302. Esse apelo da Coroa aos burgueses não foi um ato gratuito. Geralmente, se tratava de obter dinheiro deles. Porém, precisamente no caso de Felipe IV da França – institucionalmente confuso –14 nota-se que a monarquia começava a buscar o apoio de todos os setores da sociedade em situações difíceis. E assim aconteceu em todas as partes, embora o objetivo concreto fosse que consentissem em pagar novos impostos ou outorgar certa quantia ao fisco. Desde então, a monarquia reconheceu que as assembléias que expressavam a opinião do conjunto da sociedade – da nova sociedade feudoburguesa – não podiam ser plenamente representativas se não contassem com a presença dos burgueses das cidades.
Mas, apesar disso, as burguesias urbanas não se entregaram plenamente. Potencialmente menos perigosos que as classes nobres, os reis também eram seus adversários. Quando se mostravam fracos, aumentavam as cobranças injustas; e embora as estimulassem para que produzissem mais riquezas, vigiavam-nas para que não aumentassem a autonomia das cidades e para que não acalentassem aspirações políticas. Habituadas a defender-se dos senhores, as cidades se organizaram para defender-se dos reis, sempre dispostos a reclamar o mais alto preço por seu apoio. Fraternidades ou ligas de cidades juntaram seus vínculos para oferecer uma frente unida. Foi uma política sutil, a das burguesias que se viam obrigadas a ceder e a exigir alternativamente, sem comprometer uma aliança tácita nem render-se incondicionalmente.
Porém, quando a crise social e econômica começou a insinuar-se, a situação já estava em processo de mudança. O espírito comunal, antes tão forte, começava a enfraquecer. A comuna era um corpo jurídico cujos primeiros caracteres derivavam de seu enclave em um mundo totalmente feudal. Desse mundo e do sistema de relações que nele prevalecia, haviam se defendido eficazmente com a longa luta que vinham conduzindo até então. Mas o mundo feudal já estava tocado pela crise, e se ele mesmo começava a ser anacrônico, a comuna, que estava nele inserida, parecia mostrar os mesmos sinais.
O que mais havia contribuído para aquele declínio do espírito comunal tinha sido a progressiva formação de um patriciado cada vez mais fechado e oligárquico. As mesmas poucas famílias retinham os cargos comunais durante gerações e os exerciam em seu próprio benefício. Enriqueciam-se o quanto pudiam, malversavam as rendas, sumiam com as comunas na miséria e, sobretudo, mantinham afastados da vida comunal todos os grupos sociais alheios à oligarquia, com o que aumentava neles a indiferença e a irritação com o sistema que, outrora, fora constitutivamente igualitário.
Porém, outras causas também haviam contribuído para o declínio do espírito comunal. A medida que a comuna se tornou patrimônio exclusivo do patriciado, outras instituições foram se desenvolvendo, em parte para substituí-la em alguma de suas funções e, em parte, pelo jogo das forças sociais. Se nas origens da associação comunal – especialmente na comuna jurada – o vínculo de solidariedade constituía uma garantia suficiente de segurança para seus membros, à medida que a cidade foi crescendo, essa garantia diminuiu em eficácia. Os diferentes setores sociais constituíram suas associações particulares para defender seus interesses. Houve ligas de cada um dos setores de comerciantes, entre as quais tinham suma importância as daqueles que constituíam a atividade fundamental da cidade. Houve corporações de ofício – ou, como se dizia na época, corpos de ofícios, ligas, colégios – que agruparam os artesãos que trabalhavam no mesmo ramo. E houve confrarias de ajuda mútua, postas sob o altar de um santo patrono, que às vezes coincidiam com as corporações, mas que eram mais abertas em outras ocasiões.15 Em todos os casos, estas confrarias resgataram da própria tradição da associação comunal a função primária de ajuda mútua, separando-a das funções administrativas e, em certo sentido, políticas que a comuna cumpria e que haviam sido monopolizadas pelos patriciados cada vez mais oligárquicos. A ajuda mútua, relacionada com os problemas cotidianos de cada um, era talvez a que, em princípio, o cidadão recebia da comuna igualitária. Mas quando deixou de recebê-la da comuna oligárquica, seu espírito comunal decaiu e se refugiou nas associações privadas.
Foi esse declínio do sentimento coletivo e unânime dos cidadãos o que preparou o caminho para a transformação das comunas. Manejadas e controladas por uma oligarquia rica e comprometida em importantes negócios, as comunas mostraram-se cada vez mais inclinadas a aceitar a tutela real. Sem dúvida, sua riqueza não assegurava a tranqüilidade das burguesias oligárquicas das cidades. A monarquia era insaciável e, quanto mais riqueza via acumular-se nas cidades, mais exigente era quanto aos impostos, subsídios e ajudas com diversos pretextos ou, às vezes, com causas muito fundadas. Os burgueses urbanos aspiravam à proteção da Coroa e a associar-se com amplas empresas mercantis e financeiras que só se podiam tentar com o apoio real. Mas sempre temiam por suas liberdades, por aquelas que constituíam a condição necessária de sua vida nas cidades onde estavam baseadas a atividade que desenvolviam e a fortuna que haviam acumulado. Uma queixa permanente e uma constante ação estavam voltadas a reduzir as cargas fiscais que pesavam sobre cada um deles, a evitar as ameaçadoras exigências de ajudas imprevistas, obter apoio financeiro para saldar as dívidas que a cidade havia contraído e não podia pagar, geralmente devido à má administração das famílias oligárquicas. Porém, tudo devia ser feito cautelosamente, porque o desejo de que se fortalecesse a tutela real era veemente entre o patriciado.
Os reis acudiram em auxílio das comunas quando estas se viram ameaçadas pela prepotência de um senhor. E a atitude das burguesias urbanas era tão benévola – em que pesem suas reticências – que mais de uma comuna francesa solicitou que fosse incorporada ao domínio real. Com a mesma boa predisposição aceitariam o controle cada vez mais estreito da administração real sobre a comuna: controle financeiro e administrativo, mas também político, que podia ser limitado, como o que introduziram Luís IV e Carlos IV no Império, ou Luís XI na França, ou os Reis Católicos em Castela e Aragão; mas que também podia ser total, como ocorreu na Holanda na época do conde Guilherme V, estimulado precocemente pelos tratadistas partidários do poder absoluto dos senhores.16
Porém, o certo é que, então, as burguesias já não se consubstanciavam com as comunas; e, enquanto estas tinham uma política oscilante, mas com claros objetivos finais, certos setores das burguesias começavam a estabelecer outra ainda mais realista. Já no século XIII, em alguns lugares, havia começado um tênue processo de diferenciação social, em virtude do qual as burguesias deixariam de ser um setor estritamente adstrito à organização das cidades, sem outro horizonte que não aquele que elas pudessem proporcionar-lhes. Ao fim desse processo de diferenciação social, já nos fins do século XIII ou início do século XIV, estaria constituída uma burguesia extra-urbana.
Sem dúvida, as burguesias urbanas mantiveram suas bases de apoio e de operações nesses recintos privilegiados, especialmente onde gozavam de cartas de comunas ou de franquias e onde, além disso, absorveram todas as funções e voltaram a seu favor todas as garantias e privilégios de que gozavam. Mas, à medida que se foi entretecendo o mundo dos negócios, muitos membros dessas burguesias urbanas foram-se integrando em um setor sui generis, uma classe mercantil rica, poderosa e com um horizonte cada vez mais amplo. Pouco a pouco começaram a compreender que não eram exclusivamente cidadãos de uma cidade nem estavam confinados dentro de seus limites, mas que estavam incorporados, de fato, num estrato social intercomunicado acima deles, que tinham fortes interesses comuns e um vasto campo, e que cada um deles tinha insuspeitas perspectivas em atividades que excediam o marco local e, além disso, podiam superar o campo das atividades estritamente mercantis. Ainda se apoiando em sua condição de grupos urbanos bem definidos em cada cidade, aqueles burgueses começaram imperceptivelmente a se ver integrados em uma classe extra-urbana, em uma burguesia mercantil dispersa, que começava a ser diferente das burguesias urbanas e que era mais do que a soma delas. Talvez esses burgueses começassem a subestimar ou a desdenhar, inconscientemente, a importância das antigas comunas, criadas para um mundo que desaparecia; e talvez por isso tratassem de buscar vínculos mais eficazes frente às novas situações. Foram esses vínculos que aglutinaram essa nova burguesia extra-urbana, difusa no princípio, mas que entrevia seus interesses comuns e seus objetivos próximos e distantes.
Essa burguesia mercantil, extra-urbana e difusa, demoraria a constituir-se como classe social com características definidas. O processo de sua formação foi alheio ao que determinou as alianças, estáveis ou ocasionais, das burguesias urbanas. Seguiu outro caminho e ficou marcado na tendência à individualização que se começou a notar no seio das burguesias urbanas, originariamente muito compactas, mas nas quais a desintegração era inevitável, não só pelo tipo de atividade competitiva dos seus membros, mas também por sua mentalidade. Foi na França onde esse processo – tão notório nas cidades de desenvolvimento autônomo como nas da Hansa, da Itália ou de Flandres – se manifestou claramente na área dos estados territoriais. Desde meados do século XIII, a monarquia francesa concedeu a condição de “burgueses do rei” a alguns indivíduos pertencentes às burguesias urbanas, isto é, um status de burguês independente do vínculo comunal. Em outros estados, ainda sem a precisão dessa figura jurídica, o fenômeno condensa-se nas formas de comportamento de alguns indivíduos. O mercador que ampliava o seu horizonte e começava a desenvolver suas atividades mercantis em escala regional, nacional ou internacional adquiria uma condição pessoal que sobrepassava largamente os limites de sua condição jurídica como burguês de tal ou qual cidade; e, ainda que continuasse sendo a sua filiação inexcusável, socialmente adquiria a figura – imprecisa mas inequívoca – de um membro dessa classe burguesa que se constituía pouco a pouco, mas era reconhecida em todas as partes, mesmo que ainda não estivesse definida ou legalizada. Um burguês era algo diferente de um nobre, mas também de um pequeno comerciante, de um artesão ou de um campesino. Era rico, respeitado, influente. E podia ser dessa ou daquela cidade, mas continuava sendo-o em qualquer uma delas.
O processo de diferenciação que se produziu no seio das antigas burguesias foi, como todos desse tipo em suas primeiras etapas, sutil e difícil de apreender. Essa classe burguesa mercantil, extra-urbana e difusa, movimentava-se por entre os interstícios da sociedade organizada. Tinha uma inequívoca fisionomia social e econômica; às vezes política ou cultural. Mas não tinha figura institucional. E quando as monarquias começaram a chamar os burgueses para as suas cortes ou parlamentos, aferraram-se ao setor burguês de fisionomia definida. Chamaram os representantes das cidades, isto é, as burguesias urbanas. Mas essa classe, como conjunto, estava cedendo lugar para a classe que constituíam aqueles seus membros que se desligavam da estreita vida comunal para agrupar-se de outra maneira. Esses agrupamentos, ainda imprecisos e difusos, tornavam-se cada vez mais importantes porque, se não encontravam facilmente uma expressão corporativa, igualmente se via neles um forte grupo de poder. E, se encontravam essa expressão – nas ligas de comerciantes, por exemplo – seu poder aumentava muito mais. Talvez não tivessem, de imediato, uma política definida de grande estilo e fácil formulação, mas a tinha cada um dos seus membros em cada conjuntura e a tinha o conjunto como uma perspectiva de longo prazo, até onde o permitiam seus interesses comuns. Um traço a definia: a vontade de impulsionar o desenvolvimento mercantil, buscando em cada caso o apoio do poder político para robustecer sua ação imediata.
Essa classe difusa e extra-urbana constituía-se inexoravelmente. Se a individualização do burguês mediante uma segregação voluntária ou afastamento de sua cidade podia ser um passo difícil para um homem maduro e rotineiro, não o era, ao contrário, para o jovem de família burguesa que pretendia forjar seu próprio destino; como seus mais velhos, por seu esforço pessoal, porém talvez de outra maneira e talvez com outros objetivos. O jogo das gerações operou aquele processo de diferenciação entre a antiga burguesia urbana e a nova, extra-urbana e contudo, difusa. O jovem nascido no seio de uma família burguesa de recursos médios era tentado pela possibilidade de alcançar uma grande fortuna, impensável dentro do módico esquema familiar. E ainda nesse caso, e mais se era alguém que provinha de famílias de fortuna, costumava levar o jovem burguês à imitação e, sobretudo, à ambição do êxito, do prestígio social que cercava os jovens da classe nobre, do gozo da vida dentro de um contexto de luxo ao qual não estavam acostumados. Entre todos os destinos possíveis, servir na corte era o destino mais ambicionado. Quem o conseguia podia satisfazer todos os seus desejos, conseguia desprender-se das limitações que, em alguma medida, lhe impunha sua origem burguesa e tomava posição no caminho da ascensão social. Também podia optar por outros destinos: ser legislador, sacerdote, estudante em uma universidade de prestígio. Mas nada seduziu aos jovens burgueses que se desagregaram de seu núcleo originário como as duas possibilidades fundamentais que se ofereciam a eles: a fortuna e a ascensão social. Em ambos os casos, a proximidade do âmbito real constituía uma ajuda inestimável para o sucesso.
No final dessa carreira de individualização – que trouxe consigo a diferenciação dos grupos burgueses – estava a esperança do enobrecimento. A partir de certo momento acabou-se o abismo que separava as classes nobres das altas classes burguesas, e o burguês pôde obter – gratuitamente ou por dinheiro – um título nobiliário que modificava o seu status e, sobretudo, o dos seus descendentes. Com isso, diversificou-se ainda mais o que havia começado como um grupo social restrito e compacto. Era inevitável que as burguesias não pudessem ter, em conseqüência, uma só política.
Foram, ao menos, duas, análogas em seu ponto de partida, mas divergentes. Uma foi a das burguesias estritamente urbanas, preocupadas com os seus negócios, seus privilégios e sua posição dentro da cidade. Outra foi a da burguesia extra-urbana, preocupada também com seus negócios e seus privilégios, mas com outros objetivos muito mais ambiciosos no campo da economia e que, em certas condições, podiam projetar-se no da política. Foi esta última que surpreendentemente, ficou a descoberto em meados do século XIV, revelando não só o tipo de política, mas também o tipo de setor socioeconômico que ela propunha.
Na área das cidades de desenvolvimento autônomo, o experimento havia sido tentado por Jacob van Artevelde em Gent. Uma burguesia urbana que havia transcendido os limites da cidade e da região para situar-se no centro de uma rede econômica internacional, atreveu-se a adotar uma política econômica própria que, por seu alcance e por sua orientação, configurou uma política total. Fiel aos seus compromissos de vassalagem, o conde de Flandres, Luís de Nevers, fugiu para Paris, junto com seu senhor natural, enquanto Gent, unida sob a inspiração do mais lúcido e audaz dos patrícios, se aliou em 1339 a Eduardo III e aos ingleses em defesa dos seus interesses. A experiência durou pouco e provou o vigor das tensões sociais, tão fortes como para neutralizar uma política idealizada e conduzida pela burguesia de uma só cidade e, além disso, sem outro respaldo permanente e seguro que não o dos seus próprios membros. A escala havia mudado, e a burguesia de Gent, confiando imprudentemente no apoio de uma sociedade urbana desunida, havia-se introduzido em um conflito sustentado entre dois poderosos estados territoriais, de estrutura monárquica vigorosa e nos quais a sociedade feudoburguesa havia dado passos importantes rumo à sua integração.
Porém, vinte anos depois, o experimento se repetiu, desta vez em um estado territorial – França – em uma crise conjuntural desencadeada no momento mais difícil da crise geral de retração econômica. Intensificada esta última depois da Peste Negra de 1348, a França foi derrotada pelos ingleses em Poitiers em 1356; e seu rei, feito prisioneiro. Todas as tensões da instável sociedade feudoburguesa, todas as contradições da sua economia alcançaram então um grau de paroxismo. Foi nesse momento que as burguesias urbanas conceberam uma política para o reino que deveria ser sustentada por todas as cidades e que poderia, virtualmente, projetar-se em seu proveito sobre a difusa rede econômica que procurava manejar a seu modo essa variante da burguesia extra-urbana e internacional que estava se constituindo.
O primeiro esboço dessa política foi traçado nos Estados Gerais de 1356 pelo bispo de Laon, Robert Lecog, a quem acompanhava o preboste dos mercadores de Paris, Etienne Marcel. Tratava-se de limitar o poder da monarquia, obrigando-a a aceitar o conselho e, eventualmente, as decisões dos Estados Gerais. O delfim – o futuro Carlos V, então regente do reino – devia abandonar os conselheiros de seu pai prisioneiro e aceitar aqueles que emanariam dos Estados Gerais; o corpo se reuniria periodicamente e teria uma participação importante no governo. Esse projeto político não chegou a concretizar-se, e não só pela resistência do delfim, mas porque, ao reunir-se a assembléia no ano seguinte, faltaram tantos dos seus membros que, de fato, foi composta quase exclusivamente pelos burgueses de Paris, como se os ausentes – ou seus mandantes – se houvessem retraído ao perceber a magnitude da reforma proposta. Porém ficou assinalada uma das linhas políticas que as burguesias procuravam defender – e alguma vez, instaurar – nos estados territoriais: a co-participação da monarquia e da burguesia no poder.
O segundo esboço foi traçado, depois do fracasso do primeiro, por Etienne Marcel, que exercia a chefia dos comerciantes parisienses e gozava de grande prestígio na turbulenta capital do reino, onde os novos grupos sociais impunham seus hábitos e suas formas de mentalidade. Porém, Marcel não era somente um comerciante de Paris, mas sim um homem, entre comerciante e político, que estava familiarizado e mantinha contato com outras áreas de intenso desenvolvimento burguês, como Flandres e a Catalunha. Por isso, esse segundo esboço foi mais audaz ainda. Talvez o modelo lançado em Gent por Jacob van Artevelde tenha influenciado o delineamento de sua política. Mas a ocasião lhe foi proporcionada pela brecha que um poderoso aliado abriu na tensa situação: Carlos, o Mau, rei de Navarra e chefe rebelde de uma facção nobiliária da França, a cuja coroa parecia aspirar. Tal-vez Marcel visse nele um possível “rei burguês” – como os que apareciam muito depressa – que embora sem aceitar uma sujeição formal à burguesia institucionalizada, ficara a cargo da política econômica da burguesia extra-urbana para apoiá-la em seus ambiciosos planos de expansão. De todo modo, quando Carlos, o Mau, então prisioneiro na França, conseguiu fugir, Marcel se uniu a ele, e juntos delinearam uma política revolucionária.
Caso insólito, Carlos, o Mau, refugiado no mosteiro de Saint-Germain-des-Prés, apareceu um dia no prado e começou a falar à multidão fazendo sua defesa diante dos cidadãos; ele, que seria o impiedoso chefe dos nobres que reprimiram a insurreição campesina daqueles dias, a Jacquerie. Tudo indicava que ele aspirava a ser um “rei burguês”. De uma maneira sugestivamente concordante, Etienne Marcel convocou as cidades para consertar a política da burguesia, enquanto Carlos, o Mau, tratava de seduzi-la por meio de conferências públicas – o novo estilo político que havia inaugurado – em Rouens e em Amiens. O propósito parecia claro: ou o delfim aceitava a primazia política da burguesia, ou esta se aliava a Carlos, o Mau, que parecia aceitar, ao menos, o compromisso de desenvolver a política que a burguesia propunha. Finalmente, o projeto fracassou. A nobreza e o clero aliaram-se ao delfim, e, depois de muita violência, Marcel foi assassinado por uma facção da burguesia parisiense que o abandonou, seguramente por haver ido demasiado longe. Depois do desenlace, pairava o terror generalizado que a insurreição campesina dos Jacques suscitava.17
Desse modo, a burguesia parisiense, transmudada em alguma medida e integrada na difusa corrente da burguesia extra-urbana, havia deixado visíveis suas tendências extremas. Desencadeado o experimento radical, não só se reagruparam em atitude defensiva os outros setores da sociedade, mas a própria burguesia se rompeu, deixando avançar a sua ala moderada. Porém, apesar do fracasso do experimento radical, suas metas finais foram reveladas e, de maneira mais ou menos expressa, indicavam o caminho pelo qual as burguesias aspiravam seguir, especialmente essa que se manifestava como extra-urbana. A estratégia do ataque frontal havia fracassado. Daí em diante, daria preferência a outras manobras, oblíquas ou envolventes.
Ordenadas sobre si mesmas, as burguesias mediram suas forças e graduaram seus objetivos. Aquelas que mantinham seus interesses fundamentais em suas cidades estabeleceram como meta a confirmação e a garantia dos seus privilégios, com os quais podiam seguir desenvolvendo suas atividades em condições altamente benéficas. Mas não era somente necessário, para isso, que a monarquia moderasse uma e outra vez seus avanços sobre a autonomia das comunas e o seu apetite fiscal. Era necessário também que prestasse seu concurso para conter a pressão dos ofícios, que, no deslocamento geral do sistema, pretendiam alcançar um poder que ameaçava seus interesses. Era uma política de alcance módico, que situava as oligarquias urbanas em uma posição de derrota diante de um poder monárquico que, ainda nos estados territoriais onde existiam graves problemas que comprometiam a autoridade real, ostentava uma força muito superior à de cada uma das cidades sozinhas.
Mas as burguesias que haviam superado em alguma medida o âmbito urbano tinham expectativas muito mais extensas e a mais longo prazo. Para defender-se não só dos seus reis, mas de todos os poderes que pudessem interferir em suas atividades, organizaram-se em ligas capazes de exercer uma pressão efetiva, apoiando-se na importância que suas operações comerciais tinham para uma cidade, para certa região, talvez para um país inteiro. Não o bloqueio, mas simplesmente, o abandono de um porto podia, na nova situação, causar grandes prejuízos; e, em certos casos, não só para a atividade comercial do país, mas para o abastecimento de certos produtos fundamentais.
As ligas de comerciantes transformaram-se por essa via em importantes grupos de pressão que conseguiram muitas vantagens graças às represálias que podiam exercer. Em país estrangeiro, a pressão era destinada a conservar certos privilégios ou garantias. Mas, no próprio país, as ligas de comerciantes traçaram outros objetivos que forçariam a Coroa a adotar uma política muito comprometida. Foram elas que conseguiram que o poder real adotasse certas medidas que favoreceram as burguesias nacionais contra os competidores estrangeiros. Assim, foram limitadas ou suprimidas suas atividades; às vezes, expulsos os seus membros. E, às vezes, as burguesias nacionais obtiveram mais dos seus reis: isenções obrigatórias, privilégios para a produção e a comercialização, monopólios para o transporte, proibições para certas importações cuja concorrência era temível. A política das ligas de comerciantes foi de curto alcance para obter o favor real em relação a seus interesses imediatos, que a Coroa aprendeu a considerar como próprios enquanto estava associada aos seus benefícios.18
Certamente, ao longo do tempo, as burguesias foram definindo quais eram os pontos de coincidência que tinham com as monarquias, enquanto estas faziam o mesmo. O resultado desse exame contribuiu para descartar os ataques frontais recíprocos. A experiência provou que as monarquias estavam tão interessadas quanto as burguesias no tipo de desenvolvimento mercantil e industrial que as últimas promoviam, tanto em escala urbana como em escala regional, nacional e internacional. Também provou que ambas coincidiam na necessidade de um poder forte que assegurasse não só a paz imediata do mercado dentro do reduto urbano – que geralmente as cidades estavam em condições de garantir – mas a segurança nos caminhos, rios, portos e, até onde fosse possível, nas rotas marítimas. Provou, além disso, que o respaldo do estado era extremamente útil para facilitar a penetração dos comerciantes nos mercados estrangeiros, porque era melhor ater-se às regulações preestabelecidas do que tentar aventuras individuais. E provou, por fim, que era imprescindível que o Estado tivesse uma política monetária firme que ajudasse no estabelecimento e na manutenção de relações financeiras internacionais confiáveis. Essas coincidências – e outras menos significativas – foram fixando os termos de uma espécie de pacto tácito entre as monarquias e as burguesias.
O ponto inescusável desse pacto tácito era que as burguesias se distanciassem das áreas rurais e não se comprometessem de nenhum maneira com os movimentos campesinos revoltosos, como ocorreu na França em 1358 e na Inglaterra em 1381. As áreas rurais constituíam o âmbito natural das classes nobres, e as monarquias necessitavam demasiado delas para permitir que se comprometessem as bases de sustentação econômica. Além do mais, a mudança perceptível na vida econômica só parecia afetar o setor industrial e mercantil, visto que, no setor produtivo agropecuário, os impactos eram indiretos e somente compreensíveis.
O ponto mais importante ficou estabelecido quando cada uma das partes reconheceu qual era sua força e qual era a da outra. As burguesias podiam oferecer apoio social, econômico e político às monarquias, mas necessitavam da proteção destas em todos esses aspectos: proteção regional, nacional e internacional para o exercício e a expansão de suas atividades; proteção interna contra os avanços sempre temíveis das classes nobres, em geral, e de alguns nobres em particular; e proteção contra o avanço das corporações de ofícios que adotavam uma atitude cada vez mais ameaçadora. Somente as monarquias podiam oferecer essa proteção às burguesias, tanto às que se mantinham arraigadas em suas cidades, quanto às que se iam integrando nessa difusa formação social que constituíam as burguesias extra-urbanas. Porém, as monarquias reconheceram qual era a força dessas burguesias e o que lhes podiam oferecer: apoio e respaldo no processo de centralização no qual estavam empenhadas para a formação de um Estado acima das classes e que representasse a totalidade das sociedades dos reinos, o que constituía, no fundo, um apoio político; mas também um forte apoio social e econômico que não podiam obter das outras classes sociais, ao menos não na mesma grandeza.
Assim, o pacto tácito se colocou em marcha, e seu cumprimento foi a expressão mais perfeita da política das burguesias, sobretudo porque, atendo-se ao mesmo, não só renunciavam a todo ataque frontal contra as monarquias, mas também renunciavam, além disso, ao exercício direto do poder político por via institucional. As burguesias persistiram nessa política, e sua maneira de exercer o poder seria rodear o trono, envolvê-lo e transformá-lo em instrumento de suas aspirações. Cedo ou tarde, as monarquias se tomariam decididamente burguesas.
O cumprimento desse pacto tácito resultou em uma política tão audaciosa da Coroa na Inglaterra, que o reino ficou comprometido em uma guerra que duraria cem anos. Até o pretexto que provocou a crise flamenga em 1336 foi um ato formal de proteção dos mercadores ingleses pelo seu rei; porém, o contexto era mais claro ainda. Em outros países, o funcionamento do pacto tácito foi igualmente claro. Os borgonheses aliaram-se às ricas burguesias dos Países Baixos à medida que foram incorporando em sua órbita as diferentes regiões e cidades, como o rei de Aragão, que procurou servir às burguesias catalãs e especialmente à burguesia de Barcelona, servindo-se ao mesmo tempo delas. E ocorria o mesmo na França, no Império, na Boêmia e na Hungria, nos países do Báltico e na Rússia. Porém, talvez onde mais claramente se mostrou o compromisso foi em Portugal, ao produzir-se a revolução burguesa de 1383 e a ascensão ao trono do mestre de Avis, João I. Foi o programa das burguesias que elevou o novo rei, e, por esse programa, bateu-se contra as classes nobres que o haviam eleito seu chefe e contra o rei de Castela. E, quando consolidou o seu poder, pôs em andamento o plano que as burguesias haviam elaborado lentamente, em benefício delas mesmas e da Coroa.
A instrumentação da política do pacto tácito entre as monarquias e as burguesias acentuou em todas as partes, com diversos matizes, a influência destas últimas. Elas conseguiram desvanecer pouco a pouco as formas tradicionais de comportamento das monarquias; certamente, não no externo, onde continuou prevalecendo o estilo cavalheiresco, ainda que com tendência a transmutar-se em um estilo cortesão; mas, sim, no terreno prático, no qual as pautas foram mudando rapidamente. Sem dúvida, coexistiram durante muito tempo as velhas e as novas. Porém, a burguesia impôs o abandono de certa concepção moral da política e a adoção de um realismo pragmático. Expressão típica da nova sociedade feudoburguesa, a monarquia manteve certa ambigüidade e exercitou várias vezes duas políticas. Mas uma declinava e a outra ascendia, e a tradicional foi relegada cada vez mais aos aspectos formais e simbólicos da vida do reino, enquanto a nova predominou no terreno dos problemas práticos e imediatos.
Foram, precisamente, as burguesias que induziram as cortes reais — geralmente frívolas e um pouco anacrônicas – a prestar cada vez mais atenção aos problemas práticos, isto é, ao tema dos negócios, da política dos negócios e da condução dos negócios. Era um tema fundamental para as burguesias, mas souberam convencer as monarquias de que também era fundamental para elas, visto que a área da economia de mercado crescia e, com ela, a importância do dinheiro. Uma educação sutil prática havia desenvolvido nas burguesias o instinto da conjuntura. Em cada momento e em cada lugar, souberam descobrir precocemente as circunstâncias que aconselhavam ou desaconselhavam uma estratégia comercial, um pacto, uma retirada oportuna do mercado ou um compromisso profundo. E esta aptidão – que também era uma atitude – foi posta a serviço das monarquias para proveito mútuo.
As burguesias ofereceram mais. Ofereceram sua ampla experiência para conduzir os negócios do Estado e os do monarca, transformando-se, ao mesmo tempo, em gestores privados e públicos dos assuntos comerciais e financeiros que se desenvolviam à sombra do poder real. Aproveitando a experiência comunal, puderam oferecer também seu conselho para questões administrativas e fiscais – cada vez mais importantes para os Estados que se constituíam – e que tinham repugnância pelo contorno aristocrático do rei. Serviram para organizar a burocracia e também para ordenar os distintos níveis do sistema judicial, cada vez mais embaraçoso à medida que se diversificava a sociedade e apareciam problemas não usuais.
Em cumprimento daquele pacto tácito, as burguesias ofereceram ainda mais: puseram à disposição das monarquias as pessoas que realmente podiam cumprir todas essas funções, muitas delas advindas de seus ramos originários, porém já em arraigada posse de uma experiência incorporada e de atitudes que pareciam espontâneas e individuais, mas que eram, em grande parte, o fruto maduro daquela experiência. Novos quadros foram-se constituindo nas cortes, que de fato relegavam, apenas por sua eficiência prática e seu realismo pragmático, aos antigos conselheiros empenhados quase sempre em perpetuar atitudes anacrônicas.
E, finalmente, as burguesias ofereceram às monarquias o que estas mais necessitavam: dinheiro. As obrigações de Estado, e especialmente a guerra, o exigiam cada vez em maior quantidade e com mais urgência. Sobretudo, costumavam necessitá-lo em um certo momento, para resolver uma contingência urgente. Foram as burguesias as que puderam proporcioná-lo, transformando-se em credoras dos reis e adiantando com isso mais um passo no estreitamento dessas relações que se formavam baseadas no pacto tácito surgido da coincidência de interesses e objetivos.
Se, nos fatos, as classes nobres tendiam a se integrar com as burguesias em uma nova sociedade feudoburguesa, convulsionada pelas fortes tensões internas, as monarquias operaram como um catalisador, para que a mera justaposição de setores sociais fosse transformando-se pouco a pouco em uma união mais profunda. Contribuíram para que certos setores das burguesias se enobrecessem, enquanto as circunstâncias se encarregavam de que certos grupos ou indivíduos da nobreza deixassem de pertencer a ela. A roda da Fortuna – um tema da época – rebaixava alguns e elevava outros, rachando levemente os princípios de um sistema baseado na desigualdade. Muitos poucos ousaram então falar em igualdade entre os vivos; mas talvez não fosse um acaso que, então, uma ampla literatura relacionada com a morte suscitasse o tema da igualdade entre os mortos. O castelhano Jorge Manrique assim o resumiu:
Nossas vidas são os rios que vão dar no mar,
que é o morrer;
(…)
chegados, são iguais os que vivem por suas mãos
e os ricos.
Por trás do realismo pragmático da política que as burguesias praticaram, havia uma aspiração igualitária, sem prejuízo de que cada um acreditasse que a conta da ascensão devia ser fechada depois de haver conseguido a sua.
Notas
1. Le songe du vergier, I, xxxvi.
2. Alain Chartier, Le quadrilogue invectif, ed. Droz, pp. 21-24.
3. Diego de Valera, Crónica de los Reyes Católicos, IX.
4. Philippe de Commynes, Mémoires, V, xix.
5. Cr. De Alfonso el Onceno, cap. CXI.
6. Commynes, op.cit., I, ii.
7. Christine de Pisan, Le livre des fais et bonnes moeurs du sage roy Charles, I, xix.
8. Commynes, op. cit. V, xix; Rolls of Parliament, III, p. 90; Thomas Basin, Histoire de Charles VII, V, xxvi.
9. Thomas Basin, op.cit., IV, iii-vi; Jean de Troyes, Histoire de Louis XI (Chronique scandaleuse), primeira parte, 1473; Commynes, op.cit., v-xviii; ver M. Mckisack, The fourteenth century, Oxford, 1959, cap. IX; C.W. Oman, The art of war in the Middle Ages, Ithaca, 1953.
10. Uma descrição do íntimo ou favorito real, em Pero López de Ayala, Rimado de Palacio, 650 e ss. Sobre Álvaro de Luna, Gonzalo Chacón, Crónica de Dom Álvaro de Luna; Marquês de Santillana, Doctrinal de privados; e um sinal da repercussão da sua importância política em Vespasiano daa Bisticci, Vite di uomini illustri del secolo XII, Álvaro de Luna, ed. Mai, pp.405ss. Sobre os favoritos dos reis de Castela e da Inglaterra, ver supra, primeira parte, primeiro cap., pp. 29-31 e notas 29 e 30. Sobre os de Carlos V e Carlos VI da França, ver Christine de Pisan, op. cit., I, xxxv e Jean Jouvenel des Ursins, Histoire de Charles VI, ano MCCCLXXXVIII,
11. Os tratadistas políticos que percebem o predomínio de uma concepção realista na monarquia dos séculos XIV e XV são tardios e suas obras não são perceptivas, mas comprobatórias das tendências observadas. O primeiro é o inglês Sir John Fortescue (c. 1394-1476), entre cujas obras se deve citar, em primeiro lugar, De laudibus legum Angliae e, além dessa, On the monarchy of England e De natura legis naturae. Reflexões semelhantes, cada vez mais incisivas, aparecem como já assinalei, em Philippe de Commynes (1447-1511) e em Nicolau Maquiavel (1469-1527).
12. Sobre a atitude das classes nobres em geral e, de algum modo, sobre sua atitude política, há inumeráveis testemunhos, muitos deles já citados. É particularmente significativo Le quadrilogue invectif de Alain Chartier. Os cronistas e os moralistas castelhanos – entre outros, Pero López de Ayala e Fernán Pérez de Guzmán – voltam vez por outra ao tema. Há observações em John Gower, Vox Clamantis e em Piers Plowman, geralmente atribuído a William Langland. Igualmente, nos sermões de Wycliffe, na prédica dos lolardos, e na dos reformadores da Boêmia, Conrado Waldhauser, Juaan Milic, Matías de Janov, Tomás de Stitny e Juan Hus. Ver supra, primeira parte, primeiro e terceiro capítulos e as notas correspondentes, especialmente a nota 28 do primeiro capítulo.
13. Ver a primeira parte, terceiro capítulo e as notas correspondentes.
14. Robert Fawtier (L’Europe occidentale de 1270 a 1328, em Hist. du Moyen Age dirigida por G. Glotz, t. VI, primeira parte, pp. 253 e ss.) nega que tenha havido Estados Gerais na França na época dos Capetos e, em conseqüência, não se pode falar de incorporação da burguesia a eles em 1302. Do ponto de vista institucional, está correto; mas não impede que tenha havido então uma consulta à nação e que se tenham convocado os burgueses. O mesmo ocorreu em Tours em 1308 e em Paris em 1314. Se o problema institucional é confuso, os alcances sociais de tais atos são inequívocos.
15. Ch. Petit-Dutaillis, Les communes françoises, Paris, 1947, pp. 169 e ss.; M. Mckisack, op. cit., cap.XII; E.F. Jacob, The fifteenth century, Oxford, 1961, cap. VIII c.
16. Exerceu particular influência o tratado composto no século XIV por Felipe de Leyden, De cura rei publicae ac sorte principatis.
17. The chronicle of Jean de Venette, ed. Newhall, pp. 67 ss.; Chronique des règnes de Jean II et de Charles V, ed. Delachenal. Ver R. Delachenal, Histoire de Charles V, Paris, 1909-31. 18. Ver Sylvia L. Thrupp, The merchant class of medieval London, Michigan, 1948; Eileen Power, The wool trade in English medieval history, Oxford, 1941; M. Mckisack, loc. cit.; E. F. Jacob, op. cit. cap. VIII, b; Régine Pernoud, Histoire de la bourgeoisie em France, Paris, 1960; La bourgeoisie alsacienne, publicado pela Société savante d’n Alsace et des régions de l’est, Estrasburgo, 1967; Hendrik de Man, Jacques Coeur, Des königliche Kaufmann, Berna, 1959 (existe tradução francesa, Paris, 1951); para as oligarquias hanseáticas e suas relações com os reinos, as obras de Pagel e Dollinger já citadas.
TERCEIRA PARTE
As Formas Conflitantes de Vida
Introdução
Confusa e contraditória no início, a sociedade feudoburguesa foi definindo sua fisionomia através das duras alternativas da crise. Cada grupo social adquiriu nela, pouco a pouco e ao preço de experiências dramáticas, uma imagem cada vez mais clara da sua identidade. Porém, ao longo desse processo, cada um deles também deixou fluir sua personalidade coletiva tal como se manifestava em cada momento e exercitou espontaneamente seus dotes, seguiu suas tendências e procurou viver à sua maneira.
Visto que se compunha de grupos justapostos, a sociedade feudoburguesa criou diversas e variadas formas de vida, conflitantes entre si e cada uma conflitante em si mesma. Os grupos sociais que já tinham um estilo se viram acossados por novas necessidades, mas também por novos incentivos e novas sugestões tiradas difusamente de um conjunto mesclado cuja pujança agredia inexoravelmente esses estilos, nos quais despontava certo anacronismo. Aqueles que quiseram conservá-los tiveram que fechar os olhos e refugiar-se no passado; mas, ainda assim, filtrava-se pelas gretas dos preconceitos o ar fresco das influências suscitadas pelos novos grupos sociais que, no entanto, ainda que tivessem um estilo próprio, ao contrário, realizavam todos os dias, livremente, o experimento criador de viver segundo seus impulsos e seus desejos. Assim, apareceram junto às formas antigas de vida outras formas insólitas que foram se perfilando pouco a pouco. Exercitadas em ambientes distintos e por grupos sociais diferentes, revelavam em conjunto a diversidade intrínseca da sociedade feudoburguesa em cada momento. Mas, à medida que o tempo passava, foram revelando que, junto com as divergências que separavam progressivamente os setores cada vez mais diferenciados, apareceram coincidências, superficiais ou profundas, que promoviam o reagrupamento de alguns deles dentro do quadro de perspectivas e possibilidades que a nova sociedade oferecia.
Essas coincidências e esses reagrupamentos iniciaram o processo de integração da sociedade feudoburguesa. Foi um processo lento, às vezes com retrocessos mais visíveis que os avanços, que se operou na experiência da vida cotidiana muito antes que seus protagonistas tomassem consciência dele e, sobretudo, de sua intensidade e suas implicações. Em plena crise de diferenciação social e quando sinais inequívocos mostravam que sua intensidade arrefecia, na nascente sociedade feudoburguesa, seguiu-se pensando com os esquemas ideológicos próprios da sociedade que se dissolvia e transmutava. Mas, os fatos se mostraram inexoráveis, e não só se acentuou o processo de diferenciação, apesar de ele ser ignorado, mas o próprio processo foi assinalando as pautas para um novo ordenamento social.
Reflexo das estruturas reais, as formas de vida próprias de cada grupo adquiriram toda a variedade que aquelas permitiam. Em todas as partes e em todos os setores, acusou-se o impacto das mudanças que se produziram nas estruturas, e revelaram-se os conflitos que se criavam em seu seio, assim como a capacidade dos seus protagonistas para resolvê-los, moderando seus termos e limitando seus alcances. Lentamente, também as diferentes formas de vida descobriram certos princípios de compatibilidade entre elas, logo expressas em fórmulas contratuais de convivência. Foi precisamente na crise que começou a esboçar-se o primeiro esquema de uma ordem feudoburguesa. Nos campos, nas cortes e nas cidades, a vida da sociedade feudoburguesa mostrou suas diversas faces de acordo com quem foram seus protagonistas e descobriu o tortuoso jogo de cada grupo social para afirmar-se na coexistência.
CAPÍTULO VII
A Vida Rural
Acostumados com uma grande estabilidade, tanto os senhores como os campesinos sofreram profundamente as conseqüências das mudanças sociais e econômicas. Se nas regiões além do Elba e em algumas outras comarcas européias o regime senhorial pôde resistir e até consolidar-se, nas regiões mais ou menos mercantilizadas houve transformações importantes tanto nas relações entre as pessoas como nas que as vinculavam à terra. Contudo, as formas de vida mudaram pouco. A sociedade dual de milites et rustici subsistiu em muitas partes, apesar da persistente tendência à libertação dos servos e da nova condição adquirida tanto pelos arrendatários como pelos pequenos proprietários, cujo número começou a crescer. E a vigorosa resistência daqueles que gozavam de privilégios diante das tentativas de limitá-los manteve o mundo rural um pouco à margem do processo de mudança.
No entanto, alteraram-se as formas de vida dos senhores em seus senhorios, e mais as dos leigos do que as dos eclesiásticos. Os primeiros conheceram a amarga experiência do empobrecimento e de ter que lutar com seus colonos, antes dóceis, para manter sua sujeição. A vida do castelo rural tornou-se menos plácida e, algumas vezes a dos mosteiros foi abalada. Novos tipos de proprietário surgiram a seu lado. Porém, abaixo de todos eles, os campesinos continuaram sua vida dura de trabalho, somente aliviada pela esperança de uma mudança em sua condição, que só alguns conseguiam alcançar.
Melhoraram de condição os servos que conseguiram emancipar-se, os que se transformaram em arrendatários ou aqueles que obtiveram o gozo de uma pequena propriedade. Cada um quis resolver sua própria situação, apelando para os recursos inesperados que lhe proporcionavam as sucessivas conjunturas que a mudança estrutural da economia suscitou. E quando o conseguiram, começaram a esboçar um projeto de vida distinto do de seus pais, em cuja forma se percebiam ressaibos do modelo urbano e burguês e, às vezes, do modelo senhorial, desprovido este último, pouco a pouco, de sua auréola de intangibilidade.
Aqueles que não conseguiram tiveram que continuar como estavam: comendo pobremente e repousando do rude trabalho cotidiano na choça isolada ou na aldeia rural. Mas mesmo esses começaram a confrontar sua situação com novas e vagas aspirações. O que antes parecia um destino inexorável começou a parecer a alguns impossível de suportar. Alguns, reduzidos à miséria e incapazes de adotar uma atitude ativa inconformada, saíram a mendigar o pão de cada dia. Outros, mais desesperados e mais viris, tomaram o caminho da rebeldia frontal. E outros optaram por imitar os senhores pobres que haviam se transformado em bandidos, lançando-se aos caminhos, punhal na mão, e caíram na senda do crime. Todavia, tiveram outra opção: entrar nos exércitos reais como arqueiros, ou integrar os bandos mercenários, que tinham um status intermediário entre a ilegalidade e a legalidade. Todos, em conjunto, constituíram essa zona marginal da sociedade feudoburguesa, que não encontrou novas alternativas na reorganização do mundo que se constituía. Assim, aumentou a esperança de emigrar para as cidades, nas quais parecia haver lugar para todos dentro de um padrão de segurança e bem-estar.
I. Os Senhores em seus Senhorios
Membros da antiga estirpe nobiliária, os antigos senhores achavam que o comando rural era seu. O mesmo sentimento abrigavam os abades e priores das grandes abadias e mosteiros, e com dupla razão, visto que eram geralmente nobres e gozavam, além disso, das prerrogativas que lhes outorgava sua condição de senhores de um grande senhorio eclesiástico. E, nesse seu mundo, estavam acostumados a viver no ócio digno daqueles que dedicavam a sua vida aos mais elevados fins do mundo secular, uns, e do mundo espiritual, outros. Defensores e oradores, chamavam os textos que enumeravam, de braços da sociedade. E uns e outros deviam deixar transcorrer sua existência desinteressados pelos baixos misteres da vida cotidiana, que seus administradores se encarregavam de cumprir, e abaixo deles, os lavradores, servos ou homens livres.
A estes últimos era encomendada a produção da riqueza de que os senhores desfrutavam e a realização gratuita dos trabalhos que requeriam não só o seu bem-estar, mas também esse luxo que sua grandeza obrigava. Em compensação, os senhores leigos cuidavam do governo e da guerra, compartilhavam o tempo de paz com as damas e os nobres vassalos, distraiam-se durante sua folga com as caçadas e os torneios e alegravam suas horas com a companhia de trovadores e jograis. Os senhores eclesiásticos, por sua vez, cumpriam seus deveres religiosos: liam os textos sagrados, meditavam, oravam nas horas canônicas, celebravam os ofícios, prestavam auxílio espiritual aos senhores leigos, aos quais ouviam em confissão e a quem administravam os sacramentos; talvez ocupassem o seu tempo livre em entretenimentos cavalheirescos.
A guerra fazia parte do ócio dos senhores. Não era um trabalho, mas uma atividade livre, sem outra finalidade a não ser os altos interesses do gênero humano. Também não era um trabalho a política praticada através das conversações entre pares e, às vezes, apresentando seu conselho aos reis no elevado nível dos mais altos pensamentos de justiça e lealdade. Do mesmo modo, a meditação e o exercício do culto faziam parte do ócio nobre do alto clero. Essa era a concepção senhorial de ócio, vigente sem contradições durante muito tempo e arraigada tão vigorosamente nos espíritos das classes nobres, que persistiu como um esquema de vida inalterável e idealizado quando as circunstâncias mudaram e as obrigaram a abandonar a sua aristocrática postura.
A rigor, o ócio dos nobres significava somente desinteresse pelas atividades econômicas, baseado em que os outros, que eram subjugados por eles, deviam proporcionar-lhes a riqueza abundante. Mas a crise destruiu esse esquema de vida, e os senhores tiveram que diminuir o tempo de folga para dedicá-lo a certas atividades antes desprezadas; a um trabalho com objetivos concretos e imediatos no qual apareciam cada vez mais os repugnantes sinais da competição desenfreada e pareciam necessários os mecanismos da astúcia, antes considerados desprezíveis. Talvez, com repugnância – no início e em alguns casos – os senhores tivessem que esforçar-se pela conquista da própria riqueza.
A crise nos campos introduziu novos senhores de origem burguesa, de cujas tradições não faziam parte, precisamente, nem o ócio nem o desdém pelas atividades econômicas. Mas, além disso, introduziu um conjunto crescente de pequenos proprietários que aumentaram suas propriedades quando houve oportunidade e que, como os novos arrendatários, produziam para o mercado; todos esses começaram a alcançar certo status social sem que por isso pudessem descuidar nem por um instante dos bens. Tudo, tanto as circunstâncias quanto a rivalidade, contribuiu para que os antigos senhores tivessem que modificar as suas formas de vida, alternando o ócio com o trabalho e, às vezes, sacrificando aquele quando a escassez aumentava. Assim surgiram as contradições profundas que as formas de vida da nobreza rural acusaram.
Para alguns, a escassez derivou da inocultável pobreza e tiveram que emigrar para as cortes ou para as cidades em busca de alguma ocupação que lhes permitisse sobreviver. Mas muitos permaneceram nos campos e continuaram sendo os senhores do castelo. Este era por vezes uma mole imponente construída nos tempos de esplendor do tronco nobiliário e, outras vezes, era mais modesto e menor. Às vezes, sua magnitude continuava se refletindo na época da crise, e ainda depois, a extensão das terras que senhoreava; mas, outras vezes, o poderoso castelo permanecia quando as terras do senhor já haviam diminuído, e, com elas, o seu poder e riqueza; e, ao contrário, o castelo modesto dominava uma extensão produtiva e crescente capaz de oferecer uma renda isenta de descontos. A influência e a riqueza, a grandeza do castelo, antes sinais inegáveis de poder, deixaram de sêlo quando o deslocamento do sistema mudou a condição econômica dos senhores.
Pela persistência e intensificação de situações conflitantes – e também da tradição dos barões – o castelo continuou sendo um centro de vida militar. Preparado para a defesa e para a proteção da tropa do senhor, recuperou cada vez maior importância à medida que o deslocamento do sistema exacerbou as tensões internas das classes nobres e provocou grande número de pequenas contendas feudais, que algumas vezes se transformaram em prolongadas guerras civis com alcance político. Então, o castelo foi a base de operações, e a vida cotidiana encheu-se de atividade guerreira. Os homens de armas e os peões que os auxiliavam ocupavam os postos de combate e as dependências onde se alojavam, tanto que, para a família do senhor restavam apenas os seus aposentos privados. O jogo da guerra podia forçar a tropa a desdobrar-se e a defender o castelo se fosse sitiado por um inimigo. Uma nova etapa começava então, na qual podiam não faltar privações e na qual se exigia de todos o máximo esforço militar para superar o perigo. Mas, outras vezes, era a tropa que tomava a ofensiva e preparava a sua saída do castelo. E não era só para lutar contra outro senhor segundo as antigas regras cavalheirescas. Imediatamente, o senhor convertia-se em zeloso defensor dos seus interesses e saía para castigar seus colonos desatentos ao pagamento da pensão devida, ou para subjugar os que mostrassem alguma rebeldia, ou simplesmente para saquear as choças e aldeias campesinas, apoderando-se até das míseras economias que eles ocultavam nos cantos. A vida militar degenerou, em algumas ocasiões, em franco banditismo, e o castelo transformou-se em sórdido esconderijo onde se preparavam os saques e os assaltos nos caminhos. Os próprios senhores podiam organizar e dirigir essas operações; mas os castelos, por vezes, alojaram bandos de guerra de composição social mista, contendo desde senhores que haviam declinado social e moralmente, até malfeitores vulgares. E por causa dessa co-participação – que podia repetir-se na tropa que um senhor preparava para a guerra presumivelmente cavalheiresca – o castelo adquiria fisionomia suspeita e má reputação.1
Mas, ao mesmo tempo, o castelo começou a ser um centro cada vez mais ativo de vida econômica e administrativa. Sempre o havia sido, visto que nele os villicus ou os ministros recebiam o pagamento em espécie, o dinheiro que os colonos e arrendatários deviam ao senhor. Mas, à medida que foram mudando as relações de produção e aumentando a atividade dedicada ao mercado, o sistema econômico deixou de ser rotineiro e exigiu que o principal interessado – o senhor – além de vigiar o cumprimento das obrigações de seus dependentes, intensificasse o seu engenho para descobrir em cada conjuntura como não perder o que tinha e, sobretudo, como aproveitar novas oportunidades para melhorar suas posses. Eram decisões difíceis, visto que introduziam o senhor em atividades que ele antes desprezava. Quando os senhores ingleses começaram a optar pela criação de ovelhas para exportar a lã, eles se viram convertidos em administradores das suas fazendas e em promotores da comercialização dos seus produtos. A complexa conta da exploração, que os novos senhores de origem burguesa levavam sem maior dificuldade, transformou-se em uma preocupação, incomum para os antigos senhores acostumados ao ócio cavalheiresco. Algo como uma oficina comercial começou a esboçar-se no castelo senhorial, no qual o senhor tinha que dedicar cada vez mais tempo aos seus negócios se quisesse defender e salvar sua posição, visto que o mordomo, os guardas-florestais, os ministros, todos os que até então trabalhavam para ele defendendo os seus interesses eram cada vez mais tentados por sua própria aventura pessoal, graças ao estímulo da economia de mercado. O dinheiro havia estreitado as margens da antiga e forçada fidelidade e fazia de cada um dos antigos dependentes um presumível competidor, que vislumbrava as possibilidades de aumentar os próprios benefícios. Sem percebê-lo, muitos antigos senhores começavam a viver como os novos proprietários rurais de origem burguesa, vigiando seus interesses e especulando sobre o que mais convinha para defendê-los.
Assim, as novas circunstâncias deformavam as antigas formas senhoriais de vida baseadas na concepção do ócio nobre e nas tradições dos barões. Contudo, estas subsistiam e pareciam plenamente recuperáveis, em parte devido à incompreensão do alcance e da profundidade das mudanças que aconteciam e, em parte, devido ao feliz resultado que algumas vezes conseguia a obstinada persistência de um senhor resoluto a não deixar de ser o que havia sido. Porém, as antigas formas de vida senhoriais não apelavam somente à tradição dos barões, já decadente e só valiosa quando era idealizada. Também apelavam à tradição das cortes, que há tempo tendia a transformar o castelo militar em um ambiente mais refinado, em uma pequena corte. E ainda que fosse difícil consegui-lo sempre, sobretudo em regiões distanciadas das grandes cortes que pudessem servir como modelo, ou onde o ambiente rural não o favorecia, a vida familiar e cotidiana do castelo continuou regendo-se pelas normas elaboradas para uma vida de ócio.
Certamente, havia zonas obscuras na vida cotidiana do castelo rural. Mas, quando se saía delas, recuperava-se esta preocupação com a dignidade senhorial, que se exteriorizava no vestido suntuoso, em um mobiliário que se modernizava, em uma mesa ricamente abastecida. A mulher assumia cada vez mais importância na vida do castelo, e a concepção – talvez burguesa – de família se impunha pouco a pouco, sem impedir que a sociabilidade cotidiana se estendesse a parentes e favoritos, a vassalos e escudeiros. Logo, quando se podia gozar do ócio tranqüilo e a estação era propícia, o senhor costumava sair para caçar e participava das festas dos campesinos, talvez se misturando com eles sem perder a distância que os separava, exceto quando se tratava de seduzir a campesina.
Mas, dentro dessas linhas gerais, foi muito diferente a vida do senhor rural poderoso, dono de um castelo imponente e com rendas sólidas, daquela do pequeno senhor ou do senhor empobrecido. Da vida do primeiro, Gutierre Díez de Games, cronista do conde castelhano Pedro Menino, deixou uma vivaz descrição com o motivo da visita que o conde fez em 1405 ao almirante da França, Renaud de Trie em seu castelo da Sérifontaine: quase uma corte, que ultrapassava amplamente as possibilidades do comum dos senhores rurais.2 Os outros, os pequenos senhores ou os que haviam caído na miséria, habitavam os pequenos castelos, que às vezes nem mereciam esse nome, mas apenas o de casas fortes, como se costumava chamá-los em Castela. E a vida neles era conforme com o tamanho da moradia.
Também o tamanho e a qualidade da arquitetura das abadias e mosteiros rurais costumava indicar a riqueza, o poder e a influência de que gozavam. O abade costumava pertencer a família nobre e se comportava como os senhores leigos de alta categoria. Porém, os senhorios eclesiásticos mostraram-se muito mais rígidos e conservadores que os leigos. Quando a crise começou, resistiram à libertação dos servos e mantiveram inflexivelmente as relações tradicionais de dependência com as correspondentes cargas de prestações pessoais, de pagamentos em espécie e do dízimo tradicional. Também resistiram mais do que os senhorios leigos a arrendar terras e conservaram a administração direta do domínio, como o vinham fazendo desde há tempos, com mais eficácia e melhor rendimento que aqueles.
Além disso, as abadias e mosteiros continuavam aumentando seus domínios por meio de doações ou por compra, quando a maioria dos senhorios se mudava e seus senhores empobreciam. Houve, certamente, uma progressiva diferenciação entre os senhorios leigos e os eclesiásticos, que se manifestou cada vez mais ao longo da crise. Enquanto declinavam os primeiros, fortaleceram-se estes últimos. A atividade econômica foi neles muito intensa e todos mostraram uma marcante avidez por riquezas. Tudo isso foi o que atraiu as violentas críticas de outros setores do clero e o ódio profundo dos campesinos.3
A assídua vigilância do trabalho e a administração do domínio constituíam uma preocupação fundamental do senhor eclesiástico, que tinha a ajuda de um pessoal numeroso e experiente. Porém, a abadia era um centro de vida religiosa e essa era – ou devia ser – a atividade principal. A regra beneditina, de fato única nos mosteiros rurais de data antiga, havia perdido, no entanto, parte da severidade que as reformas promovidas por cluniacenses e cistercienses haviam introduzido no século XI. O alto clero se deixara conquistar pelos costumes cavalheirescos, tanto os dos barões como os das cortes. Contudo, a abadia vivia ajustada às horas canônicas fixadas para a oração. Os ofícios religiosos cumpriam-se geralmente com o devido decoro, às vezes na presença dos senhores da comarca, sobretudo quando se tratava de festividades importantes. Também acorriam em busca dos ofícios ou para receber os sacramentos e talvez conselho e conforto em circunstâncias difíceis. A abadia também acolhia forasteiros de qualidade que animavam a vida cotidiana, talvez peregrinos, e praticava caridade dando esmolas e oferecendo as sobras de comida da comunidade aos pobres.
Não faltavam, sem dúvida, nos mosteiros e abadias, monges de vocação ascética cuja existência transcorria em meditação e penitência, os de vocação intelectual que ocupavam suas horas no estudo dos textos sagrados, dos Padres da Igreja ou de seus Doutores, ou também das vidas dos santos. Mas boa parte do alto clero monástico participava mais do espírito senhorial do que de uma profunda vocação religiosa. A política os tentava, e muitos deles seguiam atentamente o seu curso, movidos pela ambição de serem chamados a altos destinos nas cortes. A vida cotidiana costumava agitar-se devido às lutas feudais, às intrigas da política regional e suas projeções sobre horizontes mais extensos. Então o mosteiro se convertia em um mentideiro onde se trocavam notícias, se juntavam vontades e, às vezes, se conspirava.
Quando havia tempo para o ócio, o alto clero comportava-se como a classe nobre. Não desdenhava a guerra e costumava trocar o hábito pela armadura. Gostava dos prazeres da caça, das longas cavalgadas nas quais se alternava com os senhores leigos, dos torneios cavalheirescos. Amava o luxo no traje e nos ornamentos e ostentava pedras preciosas nos anéis e nas cruzes. Mas o hedonismo monástico manifestou-se, sobretudo, na mesa de todos os dias e, mais ainda, na que ofereciam nas grandes festividades. O melhor que se produzia nos seus domínios e o que surgia no mercado chegavam à mesa monástica, sobre a qual flutuava a sombra da gula. Chaucer acreditou que tinha que falar da correção dos seus modos à mesa para caracterizar a prioresa Madame Eglentyne e de manjares saborosos fez falar ao abade da Danza de la muerte,4 Uma crescente sensualidade invadia a vida dos mosteiros, onde o pecado da luxúria não parecia ser um pecado capital.
Foi o Arcipreste de Hita quem assinalou a relação entre a condição do senhor e sua morada. Dizia:5
Senhor, pequena morada não presta para grande senhor;
E logo acrescentava:
A um grande senhor convém grande palácio e grande terreno semeado.
Herdados dos seus antepassados, os castelos e casas fortes mais revelavam a antiga condição da família do que a situação real do senhor quando começou o deslocamento da sociedade feudal. Mas tanto a muralha forte das melhores fortalezas como a torre pobre que defendia um castelinho representavam a atitude daqueles que, por pertencerem às classes nobres, se sentiam chamados sobretudo ao exercício da guerra. Às vezes, os burgueses ricos que queriam investir seu dinheiro nas zonas rurais compravam os castelos, grandes ou pequenos. Mas sua intenção não era combater e, menos ainda, verem-se arrastados pelas contendas que os senhores desencadeavam ou pelas lutas contra os campesinos rebeldes. Não foram aos campos com espírito senhorial, mas com espírito mercantil. E, se imitaram algo dos senhores, foi mais o gênero de vida. Geralmente não podiam abandonar seus interesses comerciais na cidade; e, embora se ufanassem de ser senhores de um domínio – cujo título podiam comprar e, às vezes, usar, deixando-se levar pelo costume – só passavam em seus castelos os meses de verão, quando o tempo era propício, a natureza mostrava-se acolhedora e bela, celebravam-se as festas campesinas e as lidas rurais entravam na etapa que mais convinha observar de perto. O castelo não foi normalmente para eles uma sede militar e política, mas apenas uma casa de temporada, talvez para eles a melhor temporada do ano, visto que podiam revezar-se com pessoas de qualidade, desdobrar sua riqueza em um ambiente superior em que ela era apreciada e fazer alarde do luxo e refinamento, enquanto vigiavam de perto a marcha da exploração.6
Disseminadas e distinguindo-se das choças campesinas, ficavam as casas dos arrendatários prósperos e dos pequenos proprietários; casas, simplesmente, para viver, muitas delas novas e sem pretensões senhoriais. Mas começavam a assemelhar-se às casas burguesas pelas comodidades que possuíam e pelos móveis e utensílios com os quais as dotavam. O pequeno proprietário não tinha casa herdada de antepassados distantes nem mais pretensão do que viver do seu trabalho, que enchia quase todas as horas da sua vida, fosse cultivando a terra ou criando animais. Homem do campo, sabia gozar as coisas que o campo lhe oferecia; e, se a sua prosperidade se acentuava, desfrutava folgadamente dos prazeres da mesa e legava aos filhos uma posição honrada que lhes prometia um futuro melhor que o do pai. Talvez um cargo municipal o arrancasse do anonimato. Mas o importante era que consolidava uma fortuna feita com a exploração da terra para intervir no mercado; era, pois, uma fortuna em dinheiro. Não era, certamente, um senhor, embora conservasse uma servidão, que podia não ser pessoal, mas que estava adscrita à sua terra. Porém, no deslocamento do sistema tradicional, sua ascensão econômica assegurava-lhe pouco a pouco uma condição respeitável, sobretudo porque enquanto ele subia, muitos pequenos senhores caiam. Assim se constituía, não sem retrocessos e sobressaltos, uma classe social campesina que, por ser intermediária, atentava surdamente contra a velha estrutura dual da sociedade rural e introduzia nela conflitos inéditos. Por trás desse processo, estavam o mercado e a nova economia.
II. O Campesinato
A crise despertou o campesinato, que até então havia sido uma massa inerte e submissa. Situações que havia suportado mansamente durante séculos tornaram-se intoleráveis em muito pouco tempo ao aparecerem as primeiras fissuras no sistema econômico e, sobretudo, os primeiros sintomas do desacerto das classes senhoriais, que provocaram ou estimularam algumas transformações importantes na vida campesina. Houve fatos econômicos e sociais decisivos, mas não foi menos decisivo que o campesinato tomasse consciência, ao mesmo tempo, tanto da sua situação tradicional como das novas perspectivas que se abriam para ele.
Em pouco tempo, a figura do campesino adquiriu uma importância inusitada. O jacques francês, que aparecia nos fabliaux com tão desvanecida personalidade e ao qual os nobres davam esse nome – ou o de Jacques Bonhomme – em tom de troça e desprezo,7 transformou-se num rival dos seus senhores no manejo dos interesses rurais, ainda que tivesse que apelar à astúcia e à dissimulação para levar alguma vantagem. Mas foi conseguindo as vantagens pouco a pouco e, quando os campesinos se rebelaram em 1358, sua personalidade foi definindo-se ainda que com traços considerados odiosos e desprezáveis pelos nobres. Sua violência e sua capacidade de rebeldia mostraram-no como ser humano – ainda que às vezes sua conduta fosse desumana – e não como um bem semovente equiparável ao adquirido. Quando Alain Chartier o faz discutir com o cavaleiro e o clero, nos princípios do século XV, o campesino já é, não só um ser humano, mas também um ser social, ao qual parece se reconhecer considerável gravitação na vida do reino.
Quando, nos fins do século XIV, Johannes von Tepla escolheu um interlocutor para o diálogo com a Morte, o escolhido foi um lavrador da Boêmia que, ao queixar-se de que aquela lhe havia arrebatado sua mulher, desenvolvia um rico quadro da sua vida interior, dos seus sentimentos e da sua felicidade perdida. O lavrador pode ser imaginado não só como um homem, mas também como um homem profundo e reflexivo.8 Assim aparece também o plowman inglês na visão que, na mesma época, compôs supostamente William Langland. Saturado de espírito religioso, suas queixas sobre sua trabalhosa vida não eram simples lamentos pelos males que cada lavrador sofria individualmente, mas invocações movidas por um sentimento de justiça e por uma indignação universal pela violação das normas cristãs que os autores dos seus males, seculares e especialmente eclesiásticos, diziam acatar. O lavrador sofria, mas pensava e julgava.9 Figura semelhante tinha nas “danças da morte” mais ou menos contemporâneas ou em outras aparições ocasionais como no Sachsenspiegel.10
À medida que tomavam consciência da sua situação, os campesinos sentiam que sua vida era mais dura. E assim o foi, sem dúvida, pela crescente violência que exerceram contra eles não só seus senhores naturais, ávidos para recompor suas rendas, mas também os homens de armas que se tornavam donos da situação por onde passavam. Mas, no cotidiano rotineiro da vida, o campesino continuava sendo o mesmo que antes, e muitos deles melhoraram de condição. Mas as duras lidas rurais lhe pareciam cada vez mais insuportáveis, precisamente se via seu vizinho progredir e, sobretudo, se reparasse nas possibilidades que a crise começou a lhe oferecer.
Sua vida cotidiana – e quase toda a sua vida – consistia em realizar um trabalho duro que, além do mais, era apenas em seu próprio proveito. O campesino, que “nunca tirou a mão da relha… arando as terras para semear pão”, podia ser caracterizado mais rudemente ainda, recordando que “havia levado muitas carretas de esterco na sua vida”.11 Suas ocupações eram muitas e diversas conforme arasse a terra ou criasse animais, como a serrana de Arcipreste de Hita.12 Mas a rotina, a fadiga, o esforço para resolver as mil dificuldades de trabalho e da vida diária sempre o angustiavam. Algo idealizadas, algumas miniaturas representaram as fainas do campo que, com mais realismo, seriam pintadas por Brueghel, o Velho, chamado justamente “Brueghel dos campesinos”, herdeiro legítimo dos pintores flamengos do século XV.13
Com freqüência, o campesino morava em uma choça ou cabana feita de troncos e com teto de palha. A vida era um pouco dura quando se vivia em uma aldeia rural, pequena aglomeração de vivendas, nem sempre contíguas, nas quais ao menos se contava com o apoio e como o sustento do pároco rural. Se este, às vezes, era demasiado zeloso na cobrança dos dízimos, muitas outras compartilhava da pobreza do campesino, compreendia suas angústias, socorria os pobres e os enfermos e oferecia a todos seu auxílio espiritual, como fazia o bom pároco de Chaucer.14 Havia mais de trinta mil paróquias no que era a França nos princípios do século XIV, algumas das quais desapareceram com o tempo.15 As vezes, o pároco podia ser tão simples quanto os campesinos, que o eram muito mais e pareciam ser a causa do seu isolamento e de seus costumes primitivos.16 Mas a vida religiosa, tão rotineira e elementar quanto pudesse ser, constituía uma janela pela qual o campesino via outras preocupações diferentes das que lhe trazia o trabalho cotidiano e até lhe oferecia a distração das festividades que se celebravam com um pouco mais de movimento do que os ofícios regulares.
Nesses dias, o campesino vestia-se o melhor que pudesse e também assistia ao festejo regalando-se com uma comida excepcional: carne fresca de ovelha ou peixe frito, conforme as regiões, talvez coelho e, algumas vezes, codorna ou perdizes senhoriais, fruto de suas habilidades de caçador furtivo. Um pouco de vinho ou cerveja “de a penique” podiam acompanhar o modesto festim, que substituía o toucinho e as comidas cotidianas.17
Todavia, melhor ocasião para romper a rotina do trabalho eram as festas campesinas, nas datas destinadas pela tradição e as tarefas rurais, e em que às vezes se misturavam os senhores. Os campesinos aprendiam algo do mundo observando os vestidos e os costumes das pessoas de condição diferente da sua. Porém, aprendiam mais quando se mostravam nos caminhos por onde circulavam pessoas de guerra e também gente de paz, que abalavam a tranqüilidade aldeã difundindo as novidades de um mundo turbulento que se agitava e criava situações inusitadas. Na taberna – se houvesse – reuniam-se ocasionalmente os forasteiros com as pessoas do lugar e a conversa ia e vinha. Porém, o que introduzia uma distração substancial na vida do campesino era a confluência. Marchando pelo caminho, talvez unido a um grupo que fazia a mesma viagem, já começava a aventura rompendo o isolamento da choça ou da aldeia. Uma vez no mercado, enquanto tratava de vender produtos ao melhor preço e comprar o que necessitava regateando com astúcia e tenacidade, o campesino entrava no ambiente promíscuo da cidade, grande ou pequena. Ali entabulava conversação com pessoas variadas, trocava opiniões, recolhia notícias, captava as novas atitudes que se adaptavam à nova sociedade e, desse modo, semana após semana, ia formando uma ideia do confuso mundo cujas mudanças profundas se manifestavam em inusitados episódios cotidianos.
Muitos desses episódios lhe diziam diretamente respeito. A proximidade de um exército real ou senhorial ameaçava a paz, a segurança e os poucos bens dos campesinos, tanto como os bandos de foragidos que os saqueavam sistematicamente. A vida rural foi se tornando cada vez mais amarga e cada um reagia a seu modo. Enquanto tratavam de melhorar sua posição, muitos pensaram em responder à violência com violência. Porém só se decidiram quando algum fator aglutinante os tirou de sua inércia: um fato insólito ou vozes respeitadas que os convocavam à ação, como foi a dos clérigos que apelavam aos princípios igualitários do Evangelho.
Alguns pensaram em mudar de lugar, buscando outras terras onde começar de novo sua vida de lavradores. Quiseram ser livres e quiseram ser proprietários, para o que estavam dispostos a empenhar sua vida em um esforço sustentado e laborioso, que podia dar seus frutos, se não para quem o houvesse iniciado, talvez para os seus descendentes. Mas muitos começaram a sonhar em abandonar os campos e emigrar para as cidades. Foi a grande tentação. Um poeta de Champagne dizia que os campesinos “desejam as cidades… as festas, os mercados, o teatro”.18 Esse desejo levou muitos a tentar sua sorte: alguns trabalhando em um novo ofício ou no comércio; e os espíritos mais aventureiros tentando a sorte em atividades diversas, lícitas ou ilícitas, como ficou simbolizado nas variadas aventuras que a lenda atribuía a Till Eulenspiegel em diferentes cidades alemãs.19
Mas Till não se aventurou apenas, de acordo com a lenda, pelas cidades. Filho de campesinos da Saxônia, atreveu-se uma vez a chegar até a corte do rei da Dinamarca fazendo-se passar por cortesão. A lenda é significativa. O campesino que buscasse novos horizontes tinha duas opções: desligar-se do seu mundo tradicional, o da sociedade dual, e incorporar-se no novo mundo urbano, ou buscar o caminho da ascensão dentro do seu próprio âmbito e tratar de ser livre, arrendatário, talvez proprietário, e adquirir no mundo rural uma categoria que sequer tinha o perfume da condição senhorial. Talvez esta última fosse a opção que mais seduzia a muitos, pese o seu caráter quase utópico. Mas alguns observaram que essa tendência existia. Uma narrativa de Heinrich von Wattenwailer, escrita na Suíça na primeira metade do século XV, exibia um conjunto de campesinos que adotavam, de maneira ridícula, os costumes e as formas de tratamento das classes senhoriais. Talvez as reflexões de Alain Chartier sobre o uso de vestes alheias à própria condição social se referissem também a essa preocupação nascida nos ambientes rurais.20
De resto, os senhores haviam posto os olhos no campesino, vendo-o de outro modo. A medida que os campesinos melhoravam de condição e muitos deles firmavam sua condição livre, começaram a ser considerados como pessoas, individualizáveis por seus próprios traços. Certamente, quem mais depressa despertou a curiosidade do senhor não foi o campesino, mas a campesina. Um pequeno senhor da Baviera, Neidhart von Reuental, havia composto no século XIII alguns poemas dedicados a exaltar seus amores pelas aldeãs que admirava por sua beleza e nos quais maltratava os aldeãos que disputavam com ele as suas prediletas. Se seus êxitos foram fáceis, parece que não o foram os do Arcipreste de Hita quando “foi provar a serra” e se encontrou com serranas prevenidas contra os senhores que pretendiam seduzi-las. As serranas converteram-se em símbolos da feminilidade fresca e espontânea, própria de ambientes não contaminados pelo artifício das cidades e das cortes. Os poetas descobriram seus encantos, talvez idealizados, e alguns deles, Carvajales e o marquês de Santillana, fizeram seu elogio em verso castelhano e testemunharam indiretamente sobre sua virtude e sua resistência à sedução, um pouco elementar, dos senhores.21
Porém, nessa imagem idealizada das serranas havia algo mais do que o entusiasmo erótico. Começava a aparecer uma idealização da vida campesina em contraste com os ambientes túrbidos nos quais os senhores atuavam: cortes e cidades. Philippe de Vitry e mais tarde o marquês de Santillana idealizavam a vida campesina, julgando-a feliz e livre de atribulações. O campo verde, o leite puro, as frutas frescas de que o campesino desfrutava pareceram invejáveis ao cortesão, que sentia cada vez mais o peso de suas cadeias de ouro, esquecendo os trabalhos que acompanhavam seu gozo.22 Mas não faltaram as vozes que lhe recordaram como a realidade era diferente dessa idealização, e, sobretudo, a áspera voz de Villon.23 Mas na idealização ficava o testemunho de que algo mudava na imagem que a nova sociedade tinha do campesinato. Dono da sua vida, o campesino não só começava a viver a seu modo, firmando suas próprias normas, mas rompia os esquemas tradicionais e forçava aqueles que antes o desprezavam a reconhecê-lo como um ser humano, como um elemento indispensável da vida social e como um caráter individualizado e individualizável. Outra tinha que ser, portanto, a atitude dos senhores diante deles.
III. Mendigos, Rebeldes e Bandidos
A intensidade e, principalmente, a rapidez das mudanças que se produziam nas áreas rurais, tanto quanto à condição das pessoas como quanto às formas de cultivo e uso da terra, provocaram em muitos casos tremendos desajustes que alteraram profunda e às vezes definitivamente o destino de indivíduos isolados ou de grupos inteiros. Quem saía da posição que ocupava e não conseguia achar outra, caia em uma espécie de marginalidade que em geral se acentuava com o tempo e terminava por precipitar-se numa situação desesperada. A crise tornou-se tão profunda que cada um decidiu pensar somente em si mesmo e deixar que, dos demais, se salvassem aqueles que pudessem. Romperam-se os vínculos que protegiam os mais fracos, falharam os escassos mecanismos de ajuda aos necessitados à medida que seu número foi aumentando, e aquele que caísse social e economicamente descobria que sua queda não provocava nada além de um sentimento de indiferença e rejeição.
Sair a mendigar foi a primeira resposta que muitos deram às suas necessidades, para conseguir o sustento de cada dia. Os caminhos povoaram-se de desenraizados, sem casa nem família, talvez refugiados em uma cabana abandonada ou dispostos a perambular sem teto. De vez em quando podiam receber uma esmola. Porém, a miséria causava horror ao que conseguia não cair nela, e o horror estimulava o egoísmo, de modo que o mendigo recebia pouca ajuda e era muito mais rejeitado pelos que poderiam oferecê-la. E sua sorte ainda podia piorar se uma enfermidade se apoderasse dele. As epidemias acentuaram o horror e o egoísmo daqueles que escapavam delas, e o antigo desterro do leproso tornou-se ainda mais duro para aquele que caísse vítima da peste; ninguém queria aproximar-se dele a quem, no fundo, todos desejavam uma morte rápida. O desespero do pobre e do enfermo costumava impulsioná-los ao roubo. Tal era a situação desses marginais, mansos e humilhados no princípio e talvez logo levados pelo desespero à violência, que começou a produzir-se com a crise dos primórdios do século XIV e que, com altos e baixos, se prolongou durante longo tempo. Tomas Morus a descreveu com traços dramáticos ao começar o século XVI.24
A progressiva deterioração das condições de vida despertou em alguns um forte sentimento de rebeldia: acreditaram que deviam lutar antes de se entregarem vencidos. Porém, contra quem? Quaisquer que fossem suas condições naturais, o campesino era ignorante e estava, além disso, embrutecido por um trabalho rotineiro e angustiante. Sem dúvida, desconhecia os mecanismos econômicos e sociais que haviam desatado a crise, coisa nada estranha, visto que ninguém os conhecia bem e cada um resolvia os seus problemas pragmaticamente. Porém, além disso, era-lhe vedado conhecer os mais elementares mecanismos da crise que o afetava, diferentes em cada lugar e em cada circunstância. Contra quem lutar, constituía um problema difícil de resolver para o campesino, e o sentimento de rebeldia, só em certas ocasiões, canalizou-se para fins definidos, tanto que, na maioria das vezes, se transformou em uma repentina erupção de cólera ou na satisfação de uma vingança.
De fato, todo fugitivo da terra com a qual estava vinculado era um rebelde: pacífico, quando se limitava a fugir em busca de outros horizontes, e, sobretudo, se os achava e logo conseguia se esquivar às reivindicações do senhor, com freqüência impotente frente a outra jurisdição judicial que não fosse a sua própria. No entanto, essa rebeldia pacífica aprofundava a situação conflitante e o deslocamento do sistema, e as classes nobres sentiam-se atacadas por ela nas próprias bases dos seus privilégios. Contudo, foram impotentes contra essa rebeldia na qual, além disso, só costumavam ver um fenômeno ocasional e isolado.
A rebeldia tornou-se patente – e perigosa – quando adquiriu certo grau de violência. Contra quem se exercitou em cada caso foi resultado da sorte, e a vítima podia ser o último anel da cadeia dos espoliadores, só por ser ele quem se apresentava. Outras vezes, como na violência desencadeada em 1381 contra os mosteiros ingleses de Bury, St. Edmunds, St. Albans, Chester e Peterborough, os campesinos – por vezes os próprios servos da abadia – atiraram-se contra o prior e os monges, responsabilizando-os mancomunadamente pelas exceções que sofriam ou a obstinada oposição em conceder-lhes a liberdade.25 E a rebeldia alcançou sua máxima periculosidade quando aglutinou vastas massas que venceram suas inibições ancestrais e se lançaram com fúria sanguinária contra os senhores, leigos ou eclesiásticos, na França, na Inglaterra, na Boêmia ou na Alemanha.
A vida do rebelde foi um momento na vida do campesino. Talvez tenha morrido durante a repressão, não menos sanguinária, com que os senhores responderam ao ataque. Mas, se sobreviveu, foi para voltar à sua antiga condição, endurecida nos primeiros tempos como conseqüência da derrota. Outros talvez passaram a engrossar as fileiras dos mendigos e outros, fugitivos ou rebeldes, descarregaram seu ressentimento colocando-se resolutamente à margem da lei. Houve bandidos individuais, que cometiam sozinhos suas malfeitorias nos caminhos ou nos limites das aldeias. Porém houve bandos organizados para o roubo e o saque, com conseqüentes assassinatos quando as circunstâncias os exigiam ou quando o ódio buscava a satisfação da vingança. Nem sempre os bandos se compunham de simples campesinos. Senhores ou filhos de senhores caídos na miséria podiam tomar parte deles, ou talvez chefiá-los. Mas alguns campesinos e antigos soldados, hábeis no manejo das armas, podiam ser suficientes para formar um grupo aguerrido de foragidos capaz de manter uma comarca aterrorizada. “Saíam pelos caminhos e roubavam, e tomavam tudo o que podiam obter, e matavam os homens pelos caminhos, e forçavam as mulheres, e faziam muitos outros males.”26 Sem dúvida, os habitantes da comarca temiam ou odiavam os malfeitores, e aplaudiam o conde ou o rei que os livrasse de suas armadilhas. Mas é significativo que o inglês Geoffrey Chaucer, cauto e discreto, conservador e inteligente, pusesse na boca do manciple – ou administrador – estas reflexões sobre a importância que as mesmas ações adquiriam de acordo com a diferente condição social de quem as executava:27 “Eu sou homem franco e o que digo é isto: entre uma mulher de alta linhagem, mas desonesta em seu corpo, e uma menina pobre, não existe na verdade outra diferença senão esta (se é que as duas agem mal): que a nobre, por sua condição superior, será chamada de dama pelo seu amante; e, porque a outra é uma mulher pobre, será chamada de sua manceba ou sua querida. E Deus sabe, amado hospedeiro, meu irmão, que os homens colocam uma tão baixo como a outra. De igual maneira, entre um tirano sem título e um proscrito ou um bandido famoso, declaro o mesmo: não há diferença nenhuma. Alejandro foi quem disse estas palavras: o tirano, por ter maior poder para matar de uma vez, graças à força da sua tropa, e para queimar casas e lugares, deixando tudo desolado, recebe o nome de capitão. E o rebelde, porque dispõe somente de uma pequena quadrilha e não pode causar danos tão grandes quanto aquele nem levar uma comarca a tamanha desventura, é chamado de rebelde ou ladrão.” O julgamento entranhava uma visão da nova sociedade.
À medida que se foi saindo da crise, a ação senhorial e, sobretudo, a das monarquias, cujo poder aumentava, começaram a pôr ordem nas áreas rurais. Sem dúvida, em defesa dos senhores, mas aproveitando a tendência à estabilização que os novos livres, os novos arrendatários, os novos proprietários impulsionavam. A sociedade rural, abalada pelos conflitos internos, encontrou, no entanto, nas novas situações sociais e econômicas a melhor contribuição para sua organização dentro de certo equilíbrio entre os grupos sociais tradicionais e os que foram gerados pela crise.
Notas
1. Crónica de Fernando IV, cap. XVI; Crónica de Alfonso Onceno, cap. LX; Hernando del Pulgar, Claros varones de Castilla, Rodrigo de Villandrando; Froissart, Chroniques, I, clxvii; III, viii; xv-xvii; Olivier de la Marche, Mémoires, I, iv; Pius II, Commentarii, I, i (ed. F. A. Gragg, p. 69) para a Hungria. Ver Itália supra, segunda parte, segundo cap. III, e as notas correspondentes; Franco Sacchetti, Novelle, CXLVI, oferece um exemplo quase caricato.
2. Gutierre Díez de Games, El victorial, cp. LXVIII.
3. Piers Plowman, The Vision of Reasons Sermon. Ver G. G. Coulton, Medieval village, manor and monastery, Nova York, 1960.
4. Geoffrey Chaucer, The Canterbury tales, The prologue; La danza de la muerte (castelhana), “Dise el abad”. Ver Eileen Power, Medieval people, cap. IV; H. Denifle, La désolation des églises, monastéres et hôpitaux en France pendant la guerre de cent ans, Paris, 1897-99.
5. Arcipreste de Hita, Libro de buen amor, 1249-1250.
6. Erasmo, Coloquios, VI.
7. Jean de Venette, Continuatio chronici Guillelmi de Nangiaco, ed. Géraud, t. II, p. 238.
8. Der Ackermann und der Tod, atribuído a Johannes von Tepla, conhecido também como El labrador de Bohemia.
9. Pier Plowman, passim.
10. Der Sachsenspiegel, I, III, 45; La danza de la muerte (castelhana), “El labrador”-, La dance macabre, atribuída a Jean Gerson, “Le labourer”.
11. La danza de la muerte (castelhana), “El labrador”; Chaucer, loc. cit.
12. Arcipreste de Hita, op. cit., 997 e ss.
13. Piers Plowman, The Vision of Piers Counsel to the Pilgrims of Truth e The writers life. Cenas da vida campestre encontram-se nas miniaturas: Livre des prouffitz champêtres de Pierre de Crescens, Les très riches heures du duc de Berry, Les grandes heures de Rohan, Les heures de Charles d ‘Angoulême, Le livre de heures d ‘Anne de Bretagne de Jean Bourdichon, e mais tarde – mas conservando a imagem tradicional – na obra de Pedro Brueghel el Viejo, especialmente na Boda de aldeanos e na série dos Meses.
14. Chaucer, loc. cit.; em sentido contrário, Erasmo, Elogio da loucura.
15. Cf. F. Lot, L’état des paroisess et de feux de 1328, 1929. Numerosas referências sobre vários países podem ser encontradas em Villages désertés et histoire économique , SEVPEN, Paris, 1965.
16. Les Cent nouvelles nouvelles, LXXXIX.
17. Piers Plowman, The Vision of Piers Counsel to the Pilgrims of Truth; La danza de la muerte (castelhana).
18. Cf. J. Calmette e E. Déprez, La France et l’Anglaterre en conflit, Paris 1937, p. 335.
19. Till Eulenspiegel, passim.
20. Heinrich von Wattenweiler, Der Ring, passim; Alain Chartier, Le quadrilogue invectif, ed. Droz, pp. 40-41.
21. Arcipreste de Hita, op. cit. ,950 e ss.; Carvajales, no Cancionero de Stúniga; Marquês de Santillana, Serranillas; Gil Vicente.
22. Marquês de Santillana, Comedieta de Ponça; Philippe de Vitry, Dicts Franc Gontier.
23. Les contredictz de Franc Gontier, atribuído a Pedro d’Ailly; com o mesmo título e alcance mais restrito, a balada de François Villon.
24. Tomas Morus, Utopia, I.
25. Thomas Walsingham, Historia anglicana, I, 470-84; II, passim.
26. Crónica de Alfonso Onceno, cap. XCIV; Enguerrand de Monstrelet Chroniques, ed. Douet d’Arc, t.III, pp. 282 e ss.
27. Chaucer, op. cit., The maunciplez tale.
CAPÍTULO VIII
A Vida Cortesã
A antiga nobreza, possuidora da terra e herdeira de uma tradição secular, era o único grupo social que, em meio à crise, podia ostentar um estilo definido de classe, cuja manifestação explícita foi sua forma de vida. Elaborada espontaneamente quando ninguém podia se atrever a disputar-lhe a hegemonia em nenhum terreno, essa forma de vida havia sofrido diversas transformações: em primeiro lugar, foi baronial, depois cortês e, pouco a pouco, tornou-se cavalheiresca, precisamente quando começou a reagir frente à presença e à ação indireta de outras formas de vida elaboradas e praticadas pelos novos grupos sociais em ascensão. Esta última foi, precisamente, a que se acentuou e aprofundou, desembocando em uma concepção cortesã.1
Se antes havia sido espontânea a criação de uma forma de vida nobre, agora foi cada vez mais deliberado e consciente o ordenamento de sua nova transformação. A vida cortesã foi plasmando-se como uma obra de arte, para intensificar os traços que a diferenciavam das outras formas de vida: a dos diversos estratos das burguesias, as das classes populares urbanas, a dos grupos rurais radicados mas sem tradição senhorial. Fixaram-se as suas formas exteriores, mas também os pressupostos e conteúdos da vida da corte. Purificaram-se e estilizaram-se as tradições nobres para constituir com elas, depois de sua idealização, uma doutrina capaz de sustentar o modo cortesão de vida. E essa obra de arte, que como tal tinha um vigoroso componente estético, continuou aperfeiçoando-se através do esforço dos mais delicados, empenhados em fixar sutilmente os mais finos detalhes da arte da convivência nobre, que era também uma arte da existência, uma ars vivendi, que pretendia ser pura de toda contaminação.
Não o foi, no entanto. As influências do confuso e complexo contorno social filtraram-se nela, às vezes imperceptivelmente, outras, abertamente pela deliberada decisão dos mais cínicos, isto é, daqueles que defendiam tenazmente as formas de vida da corte, mas não acreditavam em suas formas hipotéticas. Novos interesses e novos valores seduziam muitos dos que compunham as cortes senhoriais, mas que não ignoravam o mundo que se agitava fora delas. E não podendo resistir aos conflitos que essas tentações suscitavam, levaram ao extremo seu zelo para encobri-las, ao mesmo tempo em que cediam a elas. Foi um esforço tenaz que só conseguiu consagrar a hipocrisia como uma regra indispensável da vida das antigas elites pouco decididas a aceitar o novo papel que a sociedade lhes oferecia.
As novas cortes, certamente, tiveram uma fisionomia equívoca, e sua existência testemunhou a estrutura peculiar da sociedade feudoburguesa, com seus grupos heterogêneos justapostos em processo de lenta e difícil interpenetração. Houve um espírito das cortes, que se elaborou fundamentalmente nas de tradição senhorial. Mas as cortes feudoburguesas que se constituíram na Itália descobriram a contradição que aquele entranhava e compreenderam que podiam imitar seus traços externos e as formas de vida que havia inspirado, sem deixar de manter seus próprios valores, menos nostálgicos e mais realistas. Por isso chegaram a converter-se nos modelos válidos da vida cortesã e adquiriram prestígio e influência – talvez mais que as senhoriais – à medida que o tempo passou e a nova sociedade se consolidou.
Durante certo tempo, foi perceptível a diferença entre umas e outras, entre a dos duques de Borgonha e a dos Visconti ou os Sforza, derivada da diversidade de tradições e de objetivos. Porém, pouco a pouco, as diferenças começaram a se desvanecer pelo progressivo declínio das tendências anacrônicas e pelo fortalecimento daquelas outras que expressavam mais genuinamente as situações reais.
I. O Espírito das Cortes
As cortes sempre existiram ali onde se encontrava um foco de poder. Ao redor de quem o exercia, agrupavam-se seus parentes, seus vassalos e um mundo variado de indivíduos que cumpriam diversas funções, públicas ou privadas, desde as mais altas até as mais humildes. Porém, somente a partir de certa época, entre os séculos XII e XIII, as cortes nobiliárias começaram a adquirir um ar singular. O que antes era somente um foco de poder militar e político transformou-se em um pequeno universo social no qual, junto com as obrigações que cada um devia cumprir, se exercia um tipo de convivência cada vez mais diferenciada da do resto da sociedade. A rigor, esse pequeno universo social começou a criar uma nova forma de vida na qual o ócio e o gozo foram se transformando em valores cada vez mais importantes e significativos. Essa combinação dos deveres missionários, por um lado, e o abandono das satisfações da sensualidade, por outro, caracterizou cada vez mais a forma de vida nobiliária, que se elaborou e aperfeiçoou nas cortes. Mas, a partir da crise do século XIV, e como resposta às novas situações sociais, adquiriu características peculiares que definiriam a vida cortesã. O que Castiglione definiu em 1514 como um tipo representativo da sociedade – il cortegiano – havia começado a assumir um perfil dois séculos antes.
Criação original das classes nobiliárias, a forma de vida cortesã foi então o resultado de um desígnio claro: delimitar um âmbito onde pudessem manter-se separadas do resto da heterogênea sociedade que se constituía, acentuar sua fisionomia de classe e as diferenças que as separavam dos demais e alimentar metodicamente suas tradições para que não sumissem na confusão que predominava ao seu redor. Refúgios e baluartes, as cortes localizaram no espaço – um castelo, ou, às vezes, um acampamento militar – uma maneira de entender a existência e um desígnio denodado de impor sua superioridade sobre seu ambiente.
Uma minúscula sociedade se alojava nas cortes, como se fosse uma ilha no seio da sociedade global. Quando esta última transbordava de todos os quadros tradicionais, a sociedade cortesã os recriava e fortalecia para continuar inscrita neles. Quando uma se tornava cada vez mais fluida pela repercussão que a economia monetária tinha sobre a mobilidade social, a outra procurava manter-se fechada e só entreabria suas portas ao que soubesse esperar, cumprisse um longo aprendizado e provasse estar resolvido a acatar fielmente as regras preestabelecidas. E, enquanto as relações estáticas que antes predominavam no conjunto da sociedade se inquietavam, as das cortes endureciam o sistema hierárquico que ligava os seus membros a partir da mais alta dignidade.
A minúscula sociedade cortesã diferenciava-se de fato e inegavelmente do resto. Porém, era desígnio de seus membros acentuar as diferenças e torná-las ostensivas. Queriam revelar que tanto sua riqueza como sua condição nobiliária eram antigas, isto é, que nada tinham que ver com os grupos burgueses, nem sequer com aqueles que haviam conquistado poder e fortuna e formavam parte do patriciado de suas cidades. E sem exibir pergaminhos que atestassem sua condição, coisa desnecessária, nem apelando aos cronistas encarregados de redigir a história de cada coisa destinada à posteridade, aspiravam que a diferença entre eles e os demais ficasse demonstrada de fato, a cada dia, unicamente com a sua presença, ou melhor, apenas com a sua existência, quase sempre vedada aos olhares vulgares e manifestada publicamente só em circunstâncias excepcionais, nas quais a ostentação e a distância contribuíam para torná-la tão surpreendente que chegava a ser um verdadeiro espetáculo.
O espírito das cortes foi uma criação senhorial que se elaborou lentamente, mas do qual se tomou consciência exata apenas desde a segunda metade do século XIV. Desde então, papas, reis, grandes senhores, tanto leigos como eclesiásticos, e ainda senhores de significação apenas local acostumaram-se a cultivar a convivência nobre. Porém, foi uma criação cada vez menos espontânea. Na verdade, foi uma resposta a um ambiente social que provocava nas antigas classes nobres um sentimento de surpresa, e talvez de repugnância e desprezo. A criação de uma forma de vida cortesã – e seu constante aperfeiçoamento e renovação – não foi somente um entretenimento caprichoso em uma vida de ócio, mas adquiriu características de uma nova missão, ao lado das missões militares, religiosas e políticas que as classes nobres julgavam como específicas e fundamentais. Consistia em perpetuar uma tradição que pouco a pouco tornava-se anacrônica, que se via ameaçada em meio a um mundo que se distanciava dela. Por isso, conservá-la transformou-se em uma missão que era como uma batalha contínua entre o passado e o presente, defendida cada dia lutando contra a corrente e acentuando, às vezes até um grau grotesco, a maneira artificiosa com que a ostentava. E quando era necessário transigir com algo do que o ambiente impunha – sempre relacionado com o poder do dinheiro – incorporava-o nas formas de vida cortesã mascarado com os sinais de um refinamento sábio e sutil. No entanto, não se devia aceitar nada que comprometesse esse esquema formal que constituía o espírito das cortes. As regras eram rigorosas e inflexíveis e todos reconheciam, graças a um instinto certo, o que se ajustava ou não a elas. Sanções tácitas condenavam aqueles que as infringissem, talvez marginalizando-os, ou ao menos castigando-os com a severa pena do ridículo.
Contudo, o espírito das cortes acusava algumas contradições. O que mais sutilmente havia se infiltrado nele das tendências do ambiente social foi, precisamente, essa profanidade que o novo realismo burguês trazia consigo. As missões que as classes nobres concebiam como próprias – a militar, a política e a religiosa – tinham seus fundamentos na sua tradição de classes dirigentes durante muito tempo indiscutíveis como tais. Mas na crise começaram a ser questionadas, e, à medida que prescindiam da sua missão religiosa, herança do espírito de cruzada, a posição das classes nobres enfraqueceu-se e começaram a ser consideradas simplesmente como um fator de poder. Sua vocação profana e sua inclinação para o gozo de um ócio sensual corroboraram esse juízo, que as privava do consenso geral favorável à sua posição hegemônica. Enquanto caíam para uma concepção profana da vida cortesã, muitos dos seus membros acusaram uma inquietação profunda com relação aos fundamentos da sua posição privilegiada.
Decididamente tocadas pelo pragmatismo burguês, as classes nobres inglesas, portuguesas ou aragonesas, ativeram-se aos seus interesses imediatos sem ceder às outras preocupações. A nobreza castelhana, alemã e francesa e, em maior grau, a borgonhesa, sentiram-se chamadas mais de uma vez pelos antigos ideais de defesa do cristianismo. E, embora elaborassem um modelo do perfeito cavaleiro profano,2 reconheceram que fazia parte dos seus deveres sair de encontro aos infiéis que haviam começado a invadir o leste da Europa. As batalhas de Kosovo e Nicópolis, e depois a queda de Constantinopla, reviveram o espírito de cruzada. Porém, o ímpeto se desvaneceu em meio às festas, como a do “Voto do faisão”,3 nas quais as atitudes profanas prevaleciam sobre as intenções missionárias. A renovada afirmação do modelo do cavaleiro cristão que Erasmo oferecia em 1503 no Enchiridion não foi suficiente para deter essa tendência.
Talvez não fossem demasiado profundas as tendências que levavam as classes nobres a defender suas tradições cada vez mais anacrônicas. E talvez essas tendências estivessem, de modo paradoxal, eivadas de um realismo singular que consistia em refugiar-se em uma concepção irreal da vida para proteger as classes nobres dos embates da realidade. Defendendo sua posição de preeminência, ameaçada pelo processo de mudança, quiseram subtrair-se das suas peripécias envolvendo-se em um halo de irrealidade atemporal. Sua forma de vida devia delatar sua ascendência, sua superioridade, seu direito legítimo de continuar sendo a classe superior. Um amplo espetáculo oferecido a partir das cortes para os setores que pretendiam disputar-lhes seus privilégios devia servir para ocultar a crise dos fundamentos tradicionais em que se apoiavam, e para ajudá-las a buscar outros de inequívoco caráter social. E nisso concordaram as cortes senhoriais e as cortes feudoburguesas.
Nas cortes importantes, a pequena sociedade inicial foi crescendo em magnitude e diversificando suas funções. Assim como a cidade em suas origens havia imitado o castelo, a nova corte senhorial foi seguindo os passos do desenvolvimento urbano tanto na sua estrutura física como na sua composição social. Os servidores dos senhores multiplicaram-se, porque aumentavam as necessidades em seus diversos escalões; mas, além disso, porque crescia a pressão dos que queriam incorporar-se às cortes para formalizar a sua ascensão social; e, sem dúvida, conseguiam-no somente pelo fato de serem admitidos em uma delas, ao atravessar o fosso que separava a sociedade cortesã do resto e oferecerem-se aos olhos dos demais como membros do núcleo cortesão. Rapidamente, aqueles que se agregavam assimilavam o espírito das cortes, inclusive os mais modestos, que mostravam fora delas uma soberba que não correspondia à sua condição anterior, mas à categoria dos senhores. Assim, diferenciaram-se diversas atitudes: a dos senhores, a dos cortesãos e essa outra, que se chamaria de lacaiesca. Cada uma expressou uma faceta do espírito das cortes e se manifestou como uma variante desse estilo de vida convencional que se elaborou nelas.
Porém, os matizes que se manifestaram no seio das cortes senhoriais não foram os únicos com que se desenvolveu o espírito das cortes a partir da crise. Aderidas a ele – mais do que impregnadas dele – as cortes feudoburguesas que se instauraram em muitas cidades italianas imitaram as formas externas da vida senhorial, que tomaram como modelo, mas começaram, por sua vez, a criar seu próprio estilo. Por entre as tramas das formas externas filtravam-se suas atitudes originárias, que revelavam sobretudo a impaciência daqueles que obtida a ascensão social, o poder e a riqueza, procuravam obter um consenso favorável e uma legitimação de tudo o que haviam alcançado. Mas não é só isso. Também revelavam suas convicções profundas, seu naturalismo constitutivo, seu firme apego à realidade sensível e sua compenetração com suas leis imanentes, nas quais acreditavam de maneira espontânea, mais do que no ordenamento sobrenatural. Por isso, o espírito das cortes tinha, nas que se constituíam em um ambiente burguês, um matiz de maior artificialidade e inconsistência. Não era difícil descobrir entre o espírito das cortes senhoriais e o das cortes feudoburguesas esse contraste que se manifesta entre o modelo e sua imitação, entre um sistema de vida e de pensamento no qual a exacerbação dos traços segue fluidamente uma linha de coerência interna e outro no qual aquele era provocado deliberadamente adotando os sinais que se desejava ver percebidos pelos demais.
No seio dessas minúsculas sociedades corteses – senhoriais ou feudoburguesas – a vida adquiriu características que quase sempre aparecem nos grupos compactos e reduzidos. A obstinada competição pelo favor do senhor, a necessidade da adulação, a vigilância recíproca para impedir que um dos demais obtivesse vantagens e, sobretudo, os antagonismos e as lutas de facções criavam um ambiente de tensões tremendas que fazia dos cortesãos – felizes triunfadores vistos de fora – vítimas de uma constante incerteza e protagonistas de uma existência inquieta e artificial. A vida das cortes se transformaria em um tema de meditação: sua vaidade, suas angústias, suas ilusões, suas grandezas e suas misérias provocaram reflexões sutis em alguns contemporâneos. Uma, muito curta mas lapidar, foi posta por Chaucer na boca de um cavaleiro: “Assim, meu irmão, não esqueças que na corte do rei cada um cuida de si mesmo e nada mais.”4 Não muito depois, a antítese entre a vida da corte e a vida da aldeia se converteria em um topos literário.
II. As Cortes Senhoriais
A tendência que se observava desde o século XII em algumas regiões, de cercar de ostentação as cortes dos reis e senhores e de estabelecer certas formas de convivência que destacaram o caráter aristocrático dos seus membros, acentuou-se no século XIV, porém seguindo uma linha diferente. Se se acentuou, foi porque cada vez pareceu mais necessário destacar claramente a condição de elite do grupo cortesão; e, ainda que o grupo pudesse tornar-se socialmente híbrido em alguma medida, as cortes senhoriais só admitiram aqueles que, por vocação ou por cálculo, aceitavam a tradição que as nutria e as sutis variações que começavam a introduzir-se nelas para aprofundar e manter sua vigência.
Mas a sociedade feudoburguesa não se havia constituído como resultado de um enfrentamento total entre as classes senhoriais e as burguesias. Estas últimas só haviam exigido, em cada lugar e em cada momento, as franquias e liberdades que suas atividades requeriam e a segurança pessoal de cada um dos seus membros. Houve, sem dúvida, confronto de grupos e atitudes. Porém, as classes nobres conservavam incólume o seu prestígio social, e embora se reprovassem seus abusos, gozavam da admiração e do respeito de todos os estratos sociais. Por isso, o modo de vida que as cortes senhoriais elaboraram constituiu-se em um modelo aceito como o mais elevado e, na medida do possível, digno de ser imitado, guardadas as devidas distâncias.
Umas mais do que as outras, as cortes reais costumavam ser itinerantes. Seus membros seguiam o rei de castelo em castelo conforme as necessidades políticas ou suas decisões arbitrárias. Contudo, certas residências os acolhiam mais tempo, geralmente ali onde estava instalado o aparato burocrático do poder. Westminster, perto da amuralhada cidade de Londres, mas separada dela no espaço e por estritos princípios jurídicos, era a sede histórica do poder real inglês, e, quando o rei se instalava nela, a corte alcançava seu maior brilho. Assim ocorreu desde os tempos de Eduardo III e na época dos Lancaster. Mas Westminster não teve o caráter que teve a corte francesa de Paris, onde o palácio de Saint Paul ou o Louvre estavam integrados à cidade e constituíam um foco cortesão dentro dela. Na época de Carlos V e de Carlos VI e em meio a situações que alcançaram características gerais de tragédia, a corte real manteve-se compacta entre o ir e vir dos grupos cortesãos que substituíam uns aos outros. Mas o espírito da corte se mantinha e se expressava através de cambiantes tendências e atitudes, como aconteceu na corte aragonesa – em Saragoça ou em Barcelona – e na de Nápoles e Palermo. Mudaram as dinastias, sucederam-se os reis, mudaram-se os costumes seguindo a corrente das influências predominantes, mas o espírito das cortes acentuou os traços com uma coerência que se sobrepunha à renovação dos usos, visto que se enraizava no desígnio de definir as características da elite. Diversas influências introduziram modificações sensíveis na corte afrancesada de Buda, desde a época da Hungria até a de Matias Cornivus, e na corte de Praga, sensível às influências alemãs a partir da época de Carlos IV. Mais conservadora das suas próprias tradições, a corte imperial de Viena definiu sua fisionomia durante o longo reinado de Frederico III, com traços semelhantes aos das cortes principescas que adquiriam, pouco a pouco, relevo crescente. Lisboa foi a sede inequívoca da corte real portuguesa, com marcante influência inglesa, mas com vigorosa personalidade própria a partir do reinado de João I de Avis e durante a época dos seus sucessores. Itinerante, a corte castelhana, abalada pelas lutas feudais, passava de castelo em castelo, embora Toledo conservasse o seu antigo prestígio e outras cidades, como Sevilha, Valladollid ou Burgos, tenham servido como marco adequado para o desenvolvimento da vida cortesã que alcançou características tão trágicas como brilhantes na época de João II e Henrique IV. Mais periféricas, a corte polaca, no tempo dos Jagelones, e as dos países bálticos conservavam, no entanto, um ar fortemente baronial.
De tradição mais antiga, a corte pontifícia de Roma havia organizado um tipo de vida singular derivado da condição de seus membros e, em particular, por não contar com a influência que as mulheres haviam começado a exercer nas cortes leigas. Porém, refinamentos e convenções semelhantes foram estabelecendo-se nela. O cerimonial era estrito e de antiga data; o cosmopolitismo era condição própria do seu papel político e religioso e a riqueza era abundante e segura. Por isso prosperou em Roma o espírito cortesão, com muitos traços locais e outros incorporados pelas influências concorrentes. Porém, prosperou mais quando a corte pontifícia se instalou em Avignon, especialmente na época de Clemente VI. E o cosmopolitismo eclesiástico incidiu também nas cortes dos príncipes – arcebispos que, como os de Wurzburgo, Liège, Estrasburgo ou Colônia – possuíam ricos domínios e ampla influência.
As cortes dos grandes senhores eclesiásticos diferenciavam-se pouco das dos grandes senhores leigos. Ao redor de uns e outros reunia-se uma sociedade semelhante, visto que os primeiros exerciam um poder político análogo ao dos segundos, e estavam rodeados de seculares. Se existiram diferenças nas cortes senhoriais, foi em relação a seu poder ou influência. Poucas foram tão ricas e influentes como as dos príncipes franceses de sangue real na época de Carlos V. Os quatro duques de Berry, Anjou, Borgonha e Bourbon constituíram o centro de outras tantas cortes cujo luxo e refinamento encheram os seus contemporâneos de admiração. João de Gent, duque de Lancaster, morava alternativamente em seus numerosos castelos, mas mostrava seu maior esplendor cortesão no de Savoy, a meio caminho entre Westminster e Londres, competindo com a corte real. No castelo de Orthez brilhava o conde de Foix, em Jaén o condestável Miguel Lucas de Iranzo, em Paris, durante a regência, o duque de Bedford, na cidade epônima o duque de Braunschweig. E a corte era, a seu modo, a dos cavaleiros da Ordem Teutônica no castelo de Marienburg.
As cortes podiam ser sociedade difusas, nem sempre compostas das mesmas pessoas em cada ocasião, quando se deslocavam. Mas sempre havia um setor inseparável do senhor, que constituía o séquito militar cortesão e o pequeno mundo dos servidores de diversas categorias. “Na guarda da sua pessoa – escrevia o cronista de Henrique IV de Castela –5 trazia grande multidão de gente, de modo que sua corte sempre se mostrou com muita grandeza; e o estado real, muito poderoso. Os filhos dos grandes, os generosos e os nobres, e os de menor estado, com os pagamentos do seu soldo se sustentaram com honra.” E acrescentava adiante: “Teve muitos servidores e criados, e daqueles fez grandes senhores.”
A comitiva que acompanhou o imperador Carlos IV quando visitou a França em 1377 era grande e ele foi recebido em sua corte parisiense pelo rei Carlos V; ou a comitiva trazida por Isabel da Baviera a Paris em 1389; ou a que seguia o rei Carlos VI da França em sua excursão ao Languedoc; ou a que entrou com Luís XI em Paris em 1461; ou a que o imperador Frederico III levou consigo em 1442 quando se encontrou em Besançon com o duque de Borgonha. “Vinha – relata Olivier de la Marche referindo-se ao imperador – grandemente acompanhado dos senhores e da nobreza da Alemanha; e cavalgavam em grande ordem, com sua nobreza e todas as suas gentes, que levavam lanças, escudos, bestas, das quais tinham um grande número; e cavalgavam longe dele conduzindo um grande estandarte com brasão no centro, no qual havia uma grande águia; e todos se mantinham em excelente ordem.”6
Mas onde as cortes brilhavam com todo o seu esplendor, era nos castelos ou palácios onde ficavam com mais freqüência, talvez como os que representam as miniaturas contemporâneas, ou como o que Alain Chartier descreve;7 “…um rico palácio… suntuosamente edificado, com torres altas, ordenado, que compreendia diversas e diferentes habitações, rodeado por artefatos feitos por artistas de destaque, enriquecido com esculturas, pinturas, armas e outras pequenas decorações agradáveis à vista…”. Neles, como no de Savoy ou no de Saint Paul, a corte levava sua existência regular e cotidiana, tão organizada como Olivier de la Marche apresenta a do duque de Borgonha, Carlos, o Temerário, ou como Christine de Pisan descreve a de Carlos V da França.8
A deste era – dizia a cronista – uma existência “pontifícia e honesta”, na qual o rei cumpria seus deveres públicos com método e dedicação, diferentemente, por certo, de outros que se afastavam deles e os deixavam por conta de seus favoritos. Assistia à missa, ouvia seu conselho, sentava-se à mesa com os príncipes de sangue e os prelados e concedia audiências às pessoas elevadas que, nas magníficas salas do palácio, haviam pedido para ser recebidas. Depois de comer, costumava ouvir música – talvez executada por Guillaume de Machaut – e, durante a tarde, entregava-se um tempo à vida de família, depois do que costumava contemplar os presentes que recebia e os objetos de arte que amava, e ainda achava tempo para ouvir a leitura de alguns livros pelos quais tinha preferência. Enquanto isso, a rainha, a quem seu esposo “mantinha em paz, com amor e em meio a contínuos prazeres”, levava sua vida privada “suntuosa e elegante” entre as damas que a rodeavam e nutriam a espiritualidade da corte. O rei apreciava o diálogo feminino e conversava com elas. Foi precisamente nesse ambiente que Christine de Pisan se educou; ela conservou uma lembrança muito profunda dessa corte com a qual não se parecia, certamente, aquela outra marcada pela tragédia, a de Carlos VI, na qual mais tarde lhe coube viver.
Uma imagem um pouco diferente, da mesma corte, foi dada por Guillaume de Machaut,9 que também a conheceu de perto. Se a vida dos reis era calma e serena, a sociedade cortesã que os rodeava procurava desfrutar a vida sem tanto recato. O final da missa marcava o começo de uma atividade febril dos servidores que preparavam as comidas, dos escudeiros, pagens e donzéis, dos músicos. E, enquanto os grandes senhores conversavam gravemente nos salões contíguos aos aposentos reais, reinava a algazarra no vasto mundinho que constituía o ambiente cortesão. A corte, como dizia Christine de Pisan, era a “cidade das damas”, visto que ali haviam não só conseguido introduzir a alegria, mas também a espiritualidade. “Por elas aproveitam as graças e se acabam e começam todas as gentilezas”, escrevia Diego de San Pedro.10 E era também a cidade dos donzéis que buscavam o gozo e os prazeres ao mesmo tempo que a carreira das honras, caindo nos perigos que a mesma Christine de Pisan apontava falando dos jovens nobres.11
Mas não era em todas as cortes que a vida transcorria tão placidamente como a descrevia a cronista do rei Carlos. Pero López de Ayala dava uma imagem muito mais amarga e, sem dúvida, muito mais realista da vida dos reis;12
Os reis e os príncipes, ainda que sejam senhores,
assaz passam no mundo de aflições e dores;
Sofrem cada dia mais que todos os seus servidores
Que os deixam zangados, até que venham suores.
E enumerava seus trabalhos, as solicitações que recebiam, a falta de intimidade pela qual passavam, os interesses divergentes a que estavam sujeitos. As cortes eram calmas ou tempestuosas, de acordo com as circunstâncias. E, no entanto, predominava nos cortesãos o desígnio de viver – ou fingir que viviam – uma vida feliz.
Talvez a felicidade, ou a aparência de felicidade, consistisse na artificialidade cada vez maior com que se desenvolvia a vida das cortes senhoriais. Um propósito deliberado evitava tudo o que fosse vulgar ou grosseiro, para dar lugar apenas aos sentimentos nobres, às atitudes dignas, às expressões elegantes. Ou talvez à aparência rebuscada de tudo isso, porque a artificialidade deliberada levava à supremacia das formas, que enobreciam e, ao mesmo tempo, encobriam a espontaneidade da convivência.
E, já no final do século XIII, a etiqueta era estrita nas cortes Provençais, na de Castela, talvez por influência muçulmana, e, sobretudo, na de Aragão, onde Pedro III havia promulgado uma Ordenación que regulava a vida da sua corte. Não foi em vão que um de seus sucessores – Pedro IV – mereceria não só ser chamado de “o do punhalete” mas também “o Cerimonioso”, por causa da rigorosa etiqueta que regia a vida de sua corte, especialmente no castelo da Aljafería, em Saragoça. Não o era menor nas cortes francesas. Na do rei Carlos V as formas corteses constituíram uma preocupação fundamental. O rei “sabia receber de uma maneira conveniente aos grandes, médios e pequenos”. Quando as festas eram solenes, “era uma maravilha ver o serviço e a ordem das mesas”. Nada ficava por conta da sorte: “Para manter sua corte em tal honra, o rei tinha com ele os príncipes do seu sangue e outros cavaleiros experimentados e peritos em todo tipo de cortesias: seu primo, o conde de Étampes, grande senhor honrado e jovial, de palavra fluente, agradável ao trato e que acolhia graciosamente a todo mundo. Algumas vezes, em certas ocasiões e em certos lugares, ele representava a pessoa do rei; era um dos mais brilhantes ornamentos dessa corte. No entanto, havia outros, e sobretudo o senhor Burel de la Rivière, grande cavaleiro que, por certo, sabia acolher de uma maneira generosa, amável e alegre aqueles que o rei queria festejar e honrar; transmitia de uma maneira graciosa e cortês as mensagens que o rei Carlos enviava por seu intermédio aos visitantes estrangeiros; ia vê-los freqüentemente em seu alojamento; dizia-lhes palavras agradáveis e lisonjeiras; saudava-os em nome do rei; convidava-os a fazer seus gostos e a não regatear nada; e outros discursos graciosos. Quando lhes oferecia presentes da parte do rei, jamais deixava de pronunciar palavras dignas e corteses, a cada um de acordo com sua categoria, pois conhecia todas as honras que devem ser observadas nas grandes recepções. Oferecia aos estrangeiros ceias e comidas em seu hotel, que era formoso, ricamente decorado e muito apropriado para esse tipo de reunião. Sua mulher fazia as honras: era bela, graciosa e boa e sabia receber tão cortesmente como ele. Ali eram convidadas todas as damas distintas de Paris: dançava-se, cantava-se e lhes era oferecida uma alegre acolhida. Tomava-se tanto cuidado com a honra e a fama do rei que todos os estrangeiros elogiavam o rei e o senhor.” Assim Christine de Pisan descrevia as formas refinadas de trato vigentes na corte.13 Era tão importante conhecer essas regras, que aprendê-las era a primeira preocupação de quem se dirigia a ela. “E posto em ação o meu caminho – dizia Diego de San Pedro em Cárcel de amor – 14 cheguei à corte e, depois que me instalei, fui ao palácio para ver o trato e o estilo da gente cortesã… E, buscadas todas as maneiras que me haveriam de ser úteis, achei a mais apropriada comunicarme com alguns mancebos cortesãos dos principais que via por ali. E como geralmente entre aqueles se costuma falar com cortesia, assim me trataram e deram guarida, que em pouco tempo já fui tão estimado entre eles como se fosse natural do seu país, de forma que tive notícias das damas.”
Normas gerais presidiam as formas de tratamento; mas, dentro desse quadro, um conjunto variado de regras particulares fixava o comportamento conveniente em cada circunstância: as precedências, as distâncias, as saudações, as ofertas e agradecimentos, o diálogo e o colóquio, o comer e o beber, o cantar e o dançar; e não só nas grandes cerimônias, mas também no trato recíproco de cada dia, no qual as cortes senhoriais sempre tinham algo de cerimônia. Algumas vezes, um rei caprichoso, como Henrique IV de Castela, podia ousar desdenhar dessas normas, e os cortesãos bem que observavam isso.15 Mas o cortesão devia conhecê-las minuciosamente e aplicá-las com a maior exatidão, visto que o mais leve deslize podia comprometer seu prestígio e sua posição. E, além disso, tinha que vigiar o comportamento dos outros para consigo, porque era igualmente perigoso ser vítima de um tratamento descortês. O pároco de Chaucer chamava esse zelo de soberba:16 “a de quem espera ser saudado antes que o saúde, embora seja talvez menos digno que o outro; assim também como a de quem deseja sentar-se antes, ou marchar na frente no caminho, ou ser incensado, ou aproximar-se da oferta antes que o seu próximo, e coisas parecidas, que talvez vão contra o direito e que inclinam o coração e a atenção ao orgulhoso desejo de ser exaltado e honrado diante das pessoas”.
O cortesão também devia conhecer qual era a linguagem exata que devia usar na corte, de acordo com os usos e convenções vigentes em cada uma delas e em cada momento, e cuja ignorância podia acarretar-lhe o desdém dos iniciados. Distinguia-se entre as palavras lícitas e ilícitas; e eram tacitamente estabelecidas aquelas com que podiam e deviam designar certas coisas – e aquelas com que não se podia – sob pena de incorrer em vulgaridade ou grosseria, como o eram os circunlóquios que revelavam um pudor conveniente, as metáforas que demonstravam a buena crianza, os adjetivos sutis, os giros elegantes. Foi uma preocupação herdada da tradição provençal, na qual o hermetismo verbal do trobar ric se erigia em um sinal inequívoco de aristocracia. E esse amor veemente pela linguagem artificialmente refinada foi o que estimulou o cultivo da gaya ciencia. Para aprofundá-la, constituíram-se os Consistórios – o de Toulouse primeiro, o de Barcelona depois, fundado por João I de Aragão em 1393 – cuja atividade devia fortalecer e enriquecer essa linguagem rebuscada, cujos reflexos animariam a das cortes. Novas metáforas e giros incorporavam-se ao uso tradicional, com freqüência extraídos da literatura pagã, cada vez mais em voga. E com eles, certo sabor realista que se percebia por debaixo da máscara convencional.
As regras que regiam a vida erótica eram, talvez, as que melhor o cortesão devia conhecer. O amor era um jogo galante no qual não se devia cometer nenhum erro; e esse jogo começava, precisamente, com um duelo verbal, também herdado da tradição provençal. Modelos idealizados dessa linguagem eram oferecidos pelos poetas e escritores: Christine de Pisan, Guillaume de Machaut, Charles d’Orléans, os últimos minnesinger, o marquês de Santillana, Diego de San Pedro. A primeira oferecia um epistolário amoroso em Le dit des vrais amants, além de reflexões honestas sobre o amor e a mulher. Feminista ardente, havia empreendido uma defesa veemente do seu sexo contra a crescente tendência – realista – a apontar e acentuar seus defeitos, por parte daqueles, exatamente, que procuravam apagar a pura imagem feminina que a poesia lírica havia criado e que as cortes de amor alimentavam. Porém, esse sentimento era muito forte. As convenções cortesãs exigiam que se mantivesse essa imagem e que as formas da relação erótica se conservassem pulcra e rigorosamente codificadas. Eram regras que era necessário conhecer e aplicar. Mas, ainda nos mais delicados poetas, percebia-se que o naturalismo que havia modificado a concepção do homem alcançava, em geral, também a mulher. Por debaixo das convenções formais, o amor pagão, inspirado por Vênus, começava a impregnar também o amor cortês, algumas vezes conservando a herdada dignidade formal, como na poesia de Machaut – especialmente em Voir dit – ou na do marquês de Santillana, e outras vezes descendo até à grosseria, como em muitas das composições do Cancionero de Baena, que deleitavam os cortesãos de João II de Castela, tanto quanto as narrações escabrosas de Cent nouvelles nouvelles deleitavam aos da corte borgonhesa.17
O amor pagão foi concebido algumas vezes como pura sensualidade; nas cortes castelhanas se encarnou na exótica experiência que as relações eróticas de um cristão com uma moura significavam, como a que evoca Villasandino.18
Cada vez mais, as convenções cortesãs foram incapazes de ocultar a incontrolável força do amor feito paixão, que Dante Alighieri havia reconhecido e do qual o cavaleiro de Chaucer diria que “é a lei maior que o homem pode ter no mundo”, mas que ninguém exaltaria do modo que o fez o autor de La celestina. “É um fogo escondido, uma agradável chaga, um veneno saboroso, uma doce amargura, uma deleitável dolência, um alegre tormento, uma doce e intratável ferida, uma morte branda”.19 Indissolúvel mescla de exaltação poética e de paixão sensual, o amor foi reconhecido e aceito como tal, ainda que as formas convencionais do diálogo erótico adquirissem nas cortes cada vez mais as formas de um jogo de mascaramento da realidade destinado a manter as aparências de uma dignidade intemporal e desapaixonada.
O cortesão devia saber outras coisas mais, mas, sobretudo, aquelas que tinham relação com sua aparência, visto que seu ambiente passava cada vez mais para a superestima do aparato exterior, tanto da personalidade como das sociedades. E, se o traje é a primeira coisa que denuncia a qualidade das pessoas, a roupa devia ser uma das suas primeiras preocupações. Também sobre isso Chaucer opinava – por meio do seu pároco – como observador atento de uma sociedade na qual, por certo, ele quis e conseguiu ingressar. “Não se pode ver em nossos dias – perguntava – o pecaminoso e esplêndido luxo que há nas vestes, e assinaladamente seu supérfluo e seu preço excessivo e desregrado? Com respeito ao primeiro pecado, digamos que se assenta na superfluidade do vestido, tomando caro o prejuízo da gente, pelo custo do bordado, da renda primorosa, das riscas, dos debruados, entrançados e mosqueados. Semelhante gasto excessivo com panos é vaidade e, para culminar, tem acrescentado caros adornos de peles aos trajes. Além de tanto abrir botoeiras e de tantos recortes com as tesouras, depois vem a superfluidade no comprimento dos vestidos, que se arrastam embaixo na lama, tanto a cavalo como a pé, o mesmo acontecendo com o homem e a mulher, de modo que tudo o que se arrasta é, com efeito, gasto, consumido, roído e posto a perder com a lama, em lugar de ser dado ao pobre. Tudo isso redunda em grande prejuízo para a gente trabalhadora. E isso de várias maneiras, é um modo de falar, porque quanto mais complexo é o vestido, tanto mais custa para a gente por causa da escassez; e porque se se quisessem dar aos pobres essas vestes, crivadas e recortadas em bicos, não são feitas para que a gente humilde os use, nem suficientes para remediar sua necessidade, a fim de preservá-los da inclemência do céu. Por outro lado, falando da horrível e desordenada carestia do traje, digo que esses vestidos ou jibões curtos estão cortados de tal maneira que, por serem curtos, não cobrem as partes vergonhosas do homem, com depravada intenção. Alguns ostentam o volume de suas partes íntimas e seus repulsivos membros inchados, que se assemelham à enfermidade da hérnia, dentro de suas braguilhas. Além disso, suas nádegas, muito cingidas, parecem as nádegas de uma macaca, ou a lua cheia. E depois, os membros vis que se mostram através dos primorosos adornos, graças à divisão dos calções em branco e vermelho, se manifestam como se a metade das partes íntimas estivesse esfolada. E, se repartem os calções em outras cores, como branco e preto, ou branco e azul, ou preto e vermelho, parece então, pela diferença de cor, que metade das partes íntimas está infectada pela erisipela, ou pelo câncer ou por outro mal semelhante. Com respeito à parte traseira das nádegas, a coisa é muito horrível de ver, porque essa parte do corpo por onde se evacuam os fétidos excrementos se expõe orgulhosamente à gente, com desprezo pela modéstia em que Jesus Cristo e os seus cuidaram de acreditar na sua vida. Passando aos exagerados enfeites das mulheres, Deus sabe que, ainda que o semblante de algumas delas pareça muito pudico e bondoso, no entanto, nos adornos dos seus trajes, as mulheres anunciam a dissolução e a soberba. Eu não digo que o esmero no traje do homem ou da mulher seja inconveniente, mas que, na verdade, a superfluidade ou a viciosa pequenez do traje é reprovável.”
Com ou sem tantas considerações morais como as que o pároco de Chaucer desenvolvia – tão reveladoras, de resto, do conflito de sensibilidades que se manifestava na nova sociedade – falou-se muito na época sobre o luxo das vestes e sobre a abundância de objetos valiosos que predominava nas cortes, tanto que o tema se transformou em um tópico moral e social. O Roman de Jehan de París, composto nos fins do século XV com a recordação posta na corte de Carlos VIII, constitui um testemunho insubstituível dessa obsessiva paixão pelo luxo ostentoso que se apoderou das classes nobres e cujo principal cenário foram as cortes.20 A descrição minuciosa que Christine de Pisan havia feito dos ornamentos, vasilhas, mobiliário, dos finos panos e das ricas jóias que davam tão alta hierarquia à corte do rei Carlos V empalideceria um século depois ao lado da suntuosidade exibida por Jehan de París, o rei disfarçado de burguês que se divertia – ele, ou o autor do relato – em deslumbrar o rei inglês, que não conseguia compreender como um simples burguês mantinha tal luxo, próprio somente dos senhores.
Se a corte do rei Carlos VI e de Isabel da Baviera se tornou famosa pelo luxo, não foram menos célebres a do seu irmão Luis de Orléans e a dos seus quatro tios, os duques de Anjou, Berry, Borgonha e Bourbon, assim como as de seus descendentes. Ricos, influentes e poderosos, imprimiram às suas cortes um ar quase real, ostentando um luxo deslumbrante em seus palácios, ornados de ricas tapeçarias, providos de baixelas suntuosas e mobília rica, povoados de cortesãos e servidores. O que mais chamava a atenção das pessoas que não compartilhavam a vida da corte era a comitiva que os seguia e, sobretudo, as roupas que usavam, de tecidos riquíssimos, mas, além disso, de exagerada e rebuscada feitura e cores vivas.
Curiosamente, o cronista Jean de Venette considerou como notícia digna de ser consignada em sua crônica concisa a transformação que se operou na vestimenta da classe alta até 1340: “Nesta época, os homens começaram a usar roupas artificiosas, especialmente os nobres, os escudeiros e os do seu séquito, mas também alguns burgueses e quase todos os seus serventes. Suas vestimentas tornaram-se mais curtas, até chegar ao ponto de serem indecentes, o que era coisa estranha em pessoas que antes se haviam conduzido honestamente. Todos os homens começaram a deixar crescer longas barbas; e esta moda, que quase todos adotaram na França, exceto as pessoas de sangue real, provocou não poucas troças da parte da gente comum. Homens assim ataviados estavam mais dispostos a fugir frente ao inimigo, como os fatos provaram muitas vezes depois.”21 O cronista logo volta ao mesmo tema, referindo-se às vésperas da jacquerie, e leva os detalhes ao extremo: “Agora começaram a desfigurar-se, eles mesmos, de uma maneira contudo mais extravagante. Usavam pérolas em seus capuzes e em seus cinturões dourados ou prateados e se enfeitavam cuidadosamente com gemas e pedras preciosas. Adotaram todos esses luxos — dos maiores até os menores — até o ponto de as pérolas e as pedras preciosas alcançarem um preço altíssimo e dificilmente serem encontradas em Paris. Eu mesmo me recordo de ter visto duas pequenas pérolas que antes haviam sido compradas com oito moedas correntes e que foram vendidas nessa época por dez libras. Os homens também haviam começado a usar plumas de pássaro presas aos seus chapéus.”22
Os mesmos costumes apareceram na Inglaterra e motivaram os mesmos comentários, até o ponto em que Eduardo III achou oportuno sancionar leis suntuárias.23 Em Castela, Pero López de Ayala observou essa tendência no século XIV, ao longo dos reinados que lhe coube viver e historiar; mas foi no século XV que ela se extremou. O “Halconero de Juan II” incluiu na sua crônica diversas descrições das festas dadas na corte do seu rei, e descreveu reiteradamente o luxo das suas vestes. Na justa que João II ordenou em Valladollid em 1434,24 o rei apareceu “armado com seu arnês e vestido com um capote verde, e os panos do seu capacete e as cobertas do cavalo eram deste mesmo pano. E trazia um escudo dourado”. Seu condestável – dom Álvaro de Luna – apareceu no campo com trinta cavaleiros: “E a libré que ele e os cavaleiros traziam era verde e amarela; e quinze cobertos de verde e os cavalos cobertos com esse mesmo pano, e os outros quinze vestidos de amarelo e as cobertas eram desse mesmo pano. E os panos que traziam em cima dos capacetes eram verdes e amarelos. E vinham um após o outro, ordenadamente: depois de um que trazia roupa verde, vinha outro que se vestia de amarelo; e de modo semelhante vinham todos.” Antes, o ano de 1428 havia sido de grandes festas em Valladollid. O rei ofereceu uma; seus primos, os “infantes de Aragão”, Dom João e Dom Henrique, outras duas, das quais logo depois recordou o poeta Jorge Manrique sua fina – e efêmera – cortesia:25
O que fez o rei Dom João?
Os infantes de Aragão,
o que fizeram?
O que foi de tanta gala
o que foi de tanta invenção
como trouxeram?
As justas e os torneios,
paramentos, bordaduras
e capacetes,
foram somente devaneios?
O que foram senão verduras
das eras?
O que fizeram as damas,
seus toucados, seus vestidos,
seus perfumes?
O que fizeram as damas
dos fogos acesos
pelos amantes?
O que fez aquele trovador
das músicas de acordes que tangia?
O que se fez daquela dança
e daquelas roupas chapadas
que traziam?
E continuava recordando Henrique IV, aquele de quem seu cronista, Diego Enríquez del Castillo recordava o encontro que havia tido com o rei da França. Uma luxuosa comitiva seguia o rei castelhano:26 “Todos foram tão ricamente ataviados e vestidos como em nenhum tempo se pôde ver em Castela; tanto e de tal modo que os franceses ficaram maravilhados.” Mas Manrique refletia sobre ele:
As dádivas despedidas,
os edifícios reais
cheios de ouro,
as baixelas tão produzidas,
os Henriques e reais
do tesouro;
os aparelhos e cavalos
de sua gente e atavios
tão ricos,
onde iremos buscá-los?
Que foram senão orvalho
dos prados?
Nas cortes seculares, o luxo e a sensualidade ainda pareciam justificáveis. Menos o eram na corte de Roma, captada pela corrente que predominava entre os reis e senhores. E entre as mil críticas que suscitou, adquiriu particular significado a de Honoré Bonet, o prior de Salon, que fustigou o papa Bonifácio IX e os seus cardeais pela sua ostentação imoderada em L’apparicion maistre Jehan de Meun.27
A suntuosidade alcançava, certamente, seu ponto mais alto quando se celebravam festas como as que o “Halconero” lembra e relata. Porém, as festas não eram, somente, recursos ocasionais para ocupar as folgas das classes nobres. Se com freqüência nada mais eram do que isso, muitas vezes tinham um valor conveniente em relação aos fatos políticos que se pretendiam realçar para que se percebesse sua importância e para que ficasse patente a qualidade social dos seus protagonistas. A coroação de um rei devia enquadrar-se em um marco de regozijo; mas era importante que a festa revelasse não só o esplendor do poder real, mas também a consistência das classes nobres e o vigor da tradição cavalheiresca. Sem dúvida, nesses dias também reinava a alegria entre as classes populares e burguesas, mas o importante e significativo era o espetáculo que as cortes reais decidiam oferecer ao conjunto da sociedade. A coroação ajustava-se a um cerimonial rigoroso, saturado de simbolismo religioso e destinado a robustecer a majestade do rei. Porém, o contexto das festas mostrava o mesmo fim por outro caminho. Constituía uma afirmação da superioridade social do rei e das classes nobres. Afonso XI de Castela recorreu à antiga e abandonada tradição de ungir-se rei em solene cerimônia eclesiástica, mas o seu cronista esmerou-se em detalhar a magnificência do seu aparato e o dos seus cavaleiros:28 “E o dia em que ia coroar-se, vestiu seus panos reais lavrados de ouro e de prata com desenhos de castelos e leões, em que havia enfeites de aljôfar e que eram muito grossos, e muitas pedras, rubis e safiras e esmeraldas nos enfeites. E montou em um cavalo muito caro, que ele tinha para o seu corpo, e a sela e as rédeas desse cavalo em que cavalgou naquele dia eram de grande valor, pois os arções da sela eram cobertos de ouro e de prata em que havia muitas pedras; e as fraldas e as cordas da sela, e os estribos do freio eram de fio de ouro e prata, lavrados com tanta sutileza e tão bem, que antes daquele tempo nunca foi feita em Castela tão boa obra de sela, nem tão conveniente para aquele tempo.” Certamente, os cronistas dos seus antecessores tampouco se detiveram para descrever a magnificência do aparato real;29 porém fizeram-no seus sucessores, marcando assim uma diferenciação muito significativa. À cerimônia de coroação seguiu-se outra não menos importante; o rei conferiu a cavalaria a dezenas de homens ricos e cavaleiros conforme a norma tradicional, “cingindo a cada um deles a espada e dando-lhes um pescoção”; mas, concluído isso, “tiraram de si as armas e vestiram seus panos de ouro e de seda que o rei lhes havia dado”. No dia seguinte, os homens ricos armaram, por sua vez, a outros cavaleiros, e todos deram aos seus vassalos “panos e armas”. A cerimônia de coroação terminou em festa cavalheiresca; arremessaram-se lanças, houve tablados e justas, e todos se reuniram depois em um grande banquete presidido pelo rei. O cronista achou importante abalizar que o conselho da cidade de Burgos – onde se realizou a coroação em 1325 – havia fornecido as carnes “quatro vezes mais barato do que valiam na comarca”.30
Cada vez mais, embora só quando as circunstâncias o permitiam e predominavam certos desígnios, as cerimônias da coroação converteram-se, em certas cortes, em uma exibição do luxo aristocrático e em um alarde de coesão – ao menos aparente – das classes nobres e dos grupos que se agregavam a elas fugindo dos estratos inferiores. Assim, viu-se consolidada a frente feudoburguesa que respaldava a monarquia aragonesa quando se coroaram Pedro IV, o Cerimonioso, em 1336, e Fernando I, em 1414, ambos em Saragoça, ambos alojados no castelo da Aljafería, ambos consagrados na catedral, ainda que o primeiro – aragonês – recusasse a coroação das mãos do bispo, enquanto o segundo – castelhano – pedisse para ser ungido e coroado pelo arcebispo de Tarragona. Contudo, a exibição de riqueza foi a mesma — ou ainda maior no segundo caso – e semelhantes foram as festas senhoriais com que se celebrou o fausto acontecimento. Porém foram apenas semelhantes, não iguais. Mais tradicionais foram as de Pedro IV; as que se fizeram para a coroação de Fernando I tiveram alguns traços singulares. “E feita a coroação – diz o cronista –31 com grandes alegrias e muitos menestréis de diversos instrumentos, as festas duraram dez dias; nesse tempo o Rei mandou dar rações muito inteiras a todos os que vieram às festas; e sempre houve diante do palácio uma fonte, em que todos os dias jorrava de uma parte vinho branco e da outra, vinho tinto, de onde todos levavam o vinho que lhes agradava. E durante esses dias sempre houve justas e torneios, em que houve muitos encontros marcados, e houve alguns cavaleiros caídos, alguns com os cavalos, outros fora das selas, e fez-se um torneio de cem por cem, brancos ou coloridos, em que uns e outros fizeram três entradas, em que houve alguns cavaleiros caídos, e foi uma coisa muito bonita de ver.”
Como Afonso XI, também João I de Castela se coroou no Mosteiro de las Huelgas, em 1379, e depois também houve cerimônias cavalheirescas e, finalmente, “festas muito grandes na cidade de Burgos”.32 A coroação de Henrique IV da Inglaterra – eleito em 1399 depois da destituição de Ricardo II – foi suntuosa e, depois da cerimônia religiosa na abadia de Westminster, foi servido um esplêndido banquete, animado por numerosos músicos, ao qual se seguiram outras festas.33 A do seu sucessor, Henrique V, também foi brilhante, embora nevasse copiosamente; e quando o rei voltou da França acompanhado pela sua esposa, Catalina, a fez coroar solenemente em 1421 em uma cerimônia à qual se seguiu um banquete extraordinário composto de três serviços que constavam de doze pratos cada um.34 Com o tempo, as cerimônias iriam tornando-se cada vez mais espetaculares, como foi a da coroação de Francisco I da França e, sobretudo, sua entrada em Paris, seguida de festas e torneios cavalheirescos.35
Outras circunstâncias também deram ocasião para festas brilhantes nas cortes reais. Um cronista provençal de origem burguesa – Bertran Boyset d’Arles –36 descrevia com certa fruição o luxo, o regozijo e as festas senhoriais da corte angevina, especialmente as que se celebraram tendo por motivo as bodas de Yolanda de Aragão com o rei de Nápoles, Luís II, embora se desculpasse por não ser capaz de fazê-lo como devia. Outro burguês, John Paston, escreveu uma carta de Bruges para sua mãe, na Inglaterra, descrevendo as festas que ali se realizaram em 1468, quando celebraram as bodas do duque de Borgonha, Carlos, o Temerário, com Margarida de York. O relato sucinto permite perceber sua admiração pelo esplendor senhorial. Mas Olivier de la Marche, cronista da corte, esmerou-se na descrição dessas festas com extremada minuciosidade, porque “foram as mais belas bodas que conheci no meu tempo; e não posso deixar de colocar por escrito, e incorporar a estas Memórias, a pompa, a ordem e a maneira como foram feitas essas bodas”. As festas duraram dez dias e sua descrição ocupou muitas páginas das memórias do cronista, cuja experiência cortesã lhe permitia apreciar o refinamento e a suntuosidade de cada uma das cenas desse espetáculo sabiamente disposto.37
Festas reais foram também as que se celebraram com o motivo da elevação de algum personagem chegado à corte. A designação de Bertrand du Guesclin como condestável da França pelo rei Carlos V ou a de Miguel Lucas de Iranzo para o mesmo cargo por Henrique IV de Castela motivaram brilhantes festas cortesãs, ajustadas à rigorosa etiqueta, a que assistiram os mais altos personagens.38 A que se celebrou em Lisboa quando o rei João I elevou Pedro de Menezes ao marquesado de Villa Real congregou ao redor do rei, que estava “ricamente vestido, em uma sala adornada com ricas tapeçarias, colgaduras e brocados”, “o príncipe, o duque, os fidalgos, os nobres, todos vestidos como para uma festa. O marquês veio a pé desde o seu hotel, acompanhado de fidalgos de alta categoria e de boa nobreza, com trombetas, tambores, pífanos, trombones e muita gente das armas”.39 E na festa que ofereceram em Córdoba os Reis Católicos em homenagem ao conde de Cabra e ao Alcaide de los Donceles, houve pomposas cerimônias; “e a ceia durou grande parte da noite, pelo grande número de carnes que ali se ofereceram”. Houve também música e baile: “E depois os altos músicos da igreja começaram a tocar e os cavaleiros mancebos dançaram um longo tempo, cada um com uma dama.” No dia seguinte, a festa continuou; quando o conde e o alcaide chegaram, “a infanta saiu para a festa, e com ela vinte damas ricamente enfeitadas; e os músicos da igreja soaram alto, e começou-se a dança na forma das festas passadas. E ali bailou a infanta, e com ela a mesma donzela portuguesa; e com a rainha dançou uma filha do marquês de Astorga, e com o rei dançou Dom Fradique seu sobrinho, filho do duque de Alba”.40
Algumas das mais suntuosas festas cortesãs mostraram a curiosa confusão entre seus objetivos políticos e seus fins de exaltação cavalheiresca. Este é o caso do “voto de faisão”, a prodigiosa festa que o duque de Borgonha, João, o Bom, ofereceu em 1454 quando quis reunir ao seu redor a nobreza européia para empreender a reconquista de Constantinopla, que havia caído no ano anterior nas mãos dos turcos. Três grandes banquetes sucederam-se na cidade de Lille na primeira metade daquele ano, o último dos quais ultrapassou todas as expectativas. Diversos testemunhos conservaram a lembrança de seus variados episódios e, em geral, de sua extraordinária magnificência; mas foi Olivier de la Marche – um dos organizadores, junto com Jean de Lannoy e Jean Boudault – o que fez o relato mais sugestivo.41 Houve festejos inverossímeis compostos de numerosos serviços nos quais cada prato constituía não só um alarde de sabedoria culinária mas também de riqueza e de imaginação plástica e teatral; e os acompanharam justas cavalheirescas, música e canções, pantomimas e representações, cortejos nos quais tomavam parte os mais elevados personagens, tudo dentro de uma marca de beleza e luxo, graças à esplêndida decoração que numerosos artistas haviam introduzido, tanto na praça do torneio como no palácio de la Salle. Porém, da colorida descrição da festividade, ficava muito mais vivamente evidenciada a efusão do sentimento cavalheiresco e o desígnio de magnificar as formas nobres de vida do que o propósito enunciado de organizar uma campanha militar dirigida para um país remoto e contra um adversário tão temível quanto pouco conhecido. Era uma reminiscência do espírito de cruzada, mas quase desvanecido pela força do espírito cortesão, formal e protocolar, porém tocado por um sensualismo voluptuoso que em vão procurava disfarçar.
Quanto mais aguda era a crise, mais vigorosa era essa atitude, contra-réplica senhorial ao realismo burguês. Tudo punha em perigo o conjunto de fundamentos do disfarce. E, para evitá-lo, as fórmulas tornavam-se cada vez mais rígidas; as convenções mais prolixas, as regras mais exigentes. Antes de Olivier de la Marche, precisamente quando a crise socioeconômica e política mostrava seus traços mais ameaçadores e confusos, Christine de Pisan havia-se detido atentamente sobre o tema, não só para explicar minuciosamente como funcionava a corte que ela conhecia, mas imaginando uma corte idealizada e perfeita.42. Ali recolheu toda sua experiência, mas elaborando-a para acentuar sua perfeição e tirar dela um modelo extremado do qual a vida das cortes deveria tratar de aproximar-se quando manifestava seu maior esplendor. Esse momento cra o das festas cortesãs. Quando Jehan Regnier caracterizava o gênero de vida que cada grupo social levava nos bons tempos de paz, ele atribuía aos príncipes – e, por extensão, à nobreza em geral – a única obrigação de gozar nobremente o seu ócio. Em tempo de paz, dizia Regnier43 – “tinham formosa corte, na qual recebiam muita gente; os convidados estavam em festa; dançavam, cantavam e riam; e muitas vezes competiam sobre seus cavalos e exercícios nas armas; e montados sobre grandes corcéis, os falconeiros levavam falcões, gaviões, galgos, cachorros velozes e cachorros de caça, com os quais os cavaleiros e escudeiros costumavam divertir-se”. Divertir-se parecia ser a obrigação cotidiana do nobre, mas só se compreendia que, divertindo-se e brilhando como classe alta, cumpria uma missão, que consistia em sustentar esse ordenamento social ameaçado, no qual a existência e a hegemonia da nobreza pareciam ser a garantia de certa imobilidade e permanência. E, como Christine, outra mulher voltaria ao tema quando a crise começava a declinar se transformando numa outra ordem, na segunda metade do século XV: Alienor de Poitiers, educada na corte borgonhesa por sua mãe portuguesa, do séquito da terceira esposa de Felipe, o Bom.44 Muitas festas brilhantes haviam se desenrolado diante de seus olhos, e ela estava em condições de dizer qual era a melhor maneira de organizá-las e conduzi-las. Com a mesma preocupação de conservar intacto o mundo artificial em que se moviam, príncipes e cortesãos escreveram diversos tratados; e sensíveis miniaturistas colheram sua imagem, geralmente envolvida na sugestiva irrealidade do ouro e do azul.45
Porém, as festas cortesãs foram reais e intensamente vívidas, tanto as que eram estritamente desportivas como as que constituíam uma diversão despreocupada. Em princípio, também as festas desportivas podiam ser despreocupadas; mas de fato estavam relacionadas indiretamente com a guerra – concebida à maneira feudal – como explicava o cronista de Afonso XI:46 “Este rei Dom Afonso de Castela e de Leão, ainda que estivesse algum tempo sem guerra, sempre experimentava como se trabalhasse em ofício de cavalaria fazendo torneios, colocando tablados redondos, e fazendo justas; e quando não fazia algo, corria obstáculos. E igualmente, para que os cavaleiros não perdessem a habilidade de usar as armas, e estivessem atentos para a guerra quando fosse mister fazê-la, estando em Valladollid, mandou chamar por suas cartas os cavaleiros do Bando, e outros cavaleiros e escudeiros filhos de fidalgos do seu reino, para que fossem todos ter com ele naquela vila, no terceiro dia antes do dia da Páscoa, e que trouxessem todos para ali seus cavalos e suas armas.”
Torneios como esse foram celebrados em incontável número ao longo dos século XIV e XV, algumas vezes como simples exercício, outras como resolução de um confronto cavalheiresco, público ou privado, e outras como parte de uma celebração. Eram sempre dois grupos de cavaleiros, trinta contra trinta, como o que descreve Froissart,47 ou cinco contra cinco, como o que enfrentaram em Vannes cavaleiros franceses e ingleses em 138148, ou treze contra treze, como naquele em que se sobressaiu o cavaleiro Bayart.49 Em uma liça cuidadosamente preparada e diante dos olhos de um público cortesão no qual havia numerosas damas,49 os contendores mostravam sua força, sua destreza e seu valor não só para vencer a competição, mas também para merecer o elogio daqueles que os observavam. Sempre se ocultava um risco nessa exibição e alguém podia acabar ferido ou morto.
Maior era o risco que podiam correr os cavaleiros nas justas ou combates individuais. Eram às vezes exercícios desportivos; e, outras, verdadeiros duelos motivados por razões privadas ou públicas, mas, ainda nesses casos, a defesa da honra e a exibição de valor e destreza pessoal tinham um contexto social que – como no torneio – se relacionava com as regras inflexíveis às quais as classes nobres deviam sujeitar sua vida e cujo cumprimento as diferenciava do resto da sociedade. Um duelo mais cruel que desportivo foi o que Diego de San Pedro descreveu:50 “Pois deixando sua desventura para falar do seu desafio, depois que respondeu ao cartaz de Persio como estava escrito, sabendo o rei que estavam acertados na batalha, assegurou o campo e, assinalando o lugar onde fizessem e ordenassem todas as coisas que se exigiam nesse ato, conforme as ordenanças da Macedônia, posto o rei num cadafalso, vieram os cavaleiros cada um acompanhado e protegido como merecia. E, guardadas em igualdade as honras de ambos, entraram no campo; e como os fiéis os deixaram sós, atacaram-se um ao outro, onde a força dos golpes mostrou a virtude dos ânimos; e, quebradas as lanças nos primeiros encontros, pegaram em mãos as espadas, e de tal forma se combatiam, que qualquer pessoa tinha inveja do que faziam e compaixão do que sofriam.” O duelo aparentemente situado na Macedônia terminou quando um dos participantes cortou a mão do outro, e o rei lançou o bastão à liça para deter o combate.
Outros combates de pessoa contra pessoa tiveram natureza desportiva, como o que descreveu amplamente Olivier de la Marche entre o senhor dee Ternant e Galiot de Baltasin, mantido na praça do mercado de Arras “a pé e a cavalo”, e que se prolongou ao longo de vários assaltos. As regras foram zelosamente respeitadas e o espetáculo foi brilhante. Mas as regras não eram sempre as mesmas. Para o torneio que se realizou em Valladollid em 1434, estabeleceram-se cuidadosamente as condições que os juizes teriam que fazer respeitar.51 E no lance de armas que manteve Suero de Quinõnes perto da ponte de Órbigo em 1434 – chamado de Passo Honroso –52 o cavaleiro propôs ao rei, enquanto seus cortesãos dançavam em sua presença, os 22 capítulos nos quais constavam as condições a que se ajustaria a empresa. Outorgada a licença real, organizou-se a contenda, que foi seguida passo a passo pelo escrivão real, que depois escreveu extensa e detalhada crônica do alucinante episódio, presenciado não só por “muitos grandes senhores”, porque também foi muita gente comum que acorreu para gozar de tão marcantes cavalarias”.
As festas que constituíam somente uma diversão eram, geralmente, despreocupados passatempos, e neles a música e a dança ofereciam o marco adequado para a sociabilidade nobre. Em uma escala reduzida, podia ser coisa de todos os dias: a sobremesa, a conversação, o galanteio, talvez a intriga ou o murmúrio de conseqüência imprevisível aconteciam sutilmente através da privadíssima festa, quase cotidiana, que reunia os cortesãos tanto nas grandes como nas pequenas cortes. Era uma maneira de superar o ócio, em um ambiente de maior ou menor opulência. Música e dança – algo vedado como distração cotidiana para todos os outros grupos sociais – proporcionavam às classes nobres o sentimento de possuir um mundo encantado e peculiar, no qual os sons e o leve e compassado movimento dos corpos se enquadravam em um ambiente de bem-estar e luxo. O calor das chaminés, a tíbia proteção das tapeçarias que ocultavam a pedra ao mesmo tempo deleitavam a vista, as luzes das velas, os móveis suntuosos, os objetos de arte, os criados numerosos, o bom vinho, os manjares delicados, tudo configurava, em contraposição com as condições em que se desenvolvia a vida dos outros grupos sociais, um mundo material que era exclusivo das classes nobres. Mas o conjunto de músicos que estava à sua disposição, em maior ou menor número para povoar esse ambiente de sons gratificantes, e o hábito de dançar entre pessoas da mesma seleta condição nesse ambiente aumentavam o sentimento de que esse mundo material, luxuoso e refinado era a prova e a justificativa suficiente para a superioridade social – ou talvez natural – daqueles que gozavam desses privilégios. Um baile, isto é, uma festa convocada para extremar esta cerimônia de sensualidade, refinamento e erotismo era, pois, a mais alta expressão do sentimento aristocrático.
De todos os bailes que se celebraram então, nenhum deixou uma marca tão profunda e significativa quanto “o baile dos ardentes”, que se celebrou no hotel de Saint Paul, em Paris, nos primeiros tempos do reinado de Carlos VI, e do qual Froissart deixou vivo testemunho.53 O baile de máscaras era um gênero de festas que, junto com outras exibições de luxuosa fantasia, se agregou naquele tempo ao repertório de diversões cortesãs. Desta vez, os cortesãos representavam o papel de selvagens, com disfarces de estopa e plumas aos quais puseram fogo as tochas, provocando uma hecatombe. Foi como um símbolo da inesgotável sede de alegria e encenação que embargava a sociedade ociosa das cortes.
Um momento brilhante das festas cortesãs era o do banquete, que em oportunidades importantes alcançava o brilho dos festins legendários. Finos manjares, que compreendiam várias espécies de carne, complementavam-se com bebidas exóticas, como esses “vinhos da Gascuña e do Reno” que se consumiram em um banquete oferecido em York celebrando a chegada de Jean de Hainaut.54 Mas a concepção cortesã do banquete não se esgotava na qualidade do que o anfitrião oferecia, mas expressava-se na maneira de oferecê-lo. Talvez a mais esplendida descrição das ostentações da imaginação feitas para transformar o banquete em um espetáculo alucinante seja a que deixou Olivier de la Marche e que serviu de marco para o “voto do faisão”; mas foram muitos os que deixaram testemunho da impressão que causava em todos a agressiva tendência à ostentação que fazia do banquete quase uma cerimônia, sem dúvida destinada a exaltar o refinamento e o luxo das classes nobres. Espetáculo brilhante, suscitava certa alienação nos que participavam dele e eram, ao mesmo tempo, espectadores da sua própria grandeza. Algum – como Eustache Deschamps –55 adotava um ar cético diante dos demais, e outros uma atitude crítica e moralizadora.56 Porém o festim cortesão não era só para os que participavam dele, mas também para aqueles a quem chegava direta ou indireta notícia de seus incríveis e portentosos detalhes, exagerados de boca em boca, como acontecia com os bailes e torneios. Transformadas em lenda, as festas cortesãs contribuíam para formar a auréola com que as classes nobres procuravam se enfeitar, em busca de uma justificação social da sua superioridade.
Sem dúvida, nem tudo era encenação e passatempo banal na vida das cortes senhoriais. As vezes, o passatempo alcançava certa profundidade e levava à leitura atenta dos autores sagrados ou profanos que tonificavam o espírito. Houve cortes literárias nas quais, além das preocupações convencionais da perpetuação de um estilo poético convencional, se exercitou o gosto e se estimulou o conhecimento da boa poesia. Não haveria outro modo de o marquês de Santillana acumular tanto saber literário e receber tão variadas influências, como o revela em sua carta ao Condestável de Portugal.57 Na corte de Carlos V da França cultivaram-se as ciências e as letras, e dela saíram traduções de autores antigos que tinham notável influência. Não era banal a preocupação literária e musical de Guillaume de Machaut, nem as inquietações plásticas dos miniaturistas e pintores que receberam estímulo de reis e príncipes. Os humanistas, que se voltaram apaixonadamente para o estudo dos clássicos latinos e gregos, tiveram acolhida favorável em algumas cortes e, pela proteção que acharam, puderam constituir a academia Pontaniana em Nápoles ou a que mantiveram viva em Roma Platina e Pomponio Leto. E na corte dos Anju, as artes, as letras e o pensamento moral encontraram essa boa acolhida que fez de um deles, o rei René, um mecenas quase legendário. Astrólogos, alquimistas e médicos costumavam compor, ao redor dos senhores, um estranho âmbito que competia com os religiosos quanto às preocupações com o curso do universo e da vida humana.
De resto, as cortes eram, no fundo, centros vitais de atividade política, e, sob a aparência de uma frivolidade versátil, costumava-se viver uma atmosfera de tensões violentas. Sinistras foram as intrigas que, em momentos dramáticos, se teceram em muitas cortes, nas quais na luta pelo poder se enfrentavam personagens e facções que conviviam cotidianamente, e que buscavam ferozmente o instante apropriado para resolver a contenda, geralmente por meio do punhal ou da espada, se não mais brutalmente, pela pancada com o maço empunhado pelo soldado, armado com a besta, executor de ordens superiores. O desígnio de eliminar os favoritos dos reis provocou não só intrigas, mas fatos de sangue nas cortes da Inglaterra ou de Castela. A disputa entre os aspirantes à regência de um rei incapacitado ou menor de idade envenenava a vida palaciana, como ocorreu na França, em Castela ou na Inglaterra. E a solução de um problema político refletido em uma questão dinástica podia canalizar, através dos caminhos tortuosos das conjurações, até decisões dramáticas como as que decidiram o destino de Portugal quando o Mestre de Avis condenou o conde Juan Fernández à morte.58
Algumas vezes, um senhor aproveitou a ocasião de uma festa ou um banquete para fazer a justiça que entendia lhe corresponder. Nesse dia a corte mostrava uma dupla face: uma convencional, presidida pelo espírito tradicionalista de uma classe em retrocesso, e outra realista, inspirada por uma monarquia que buscava na política realista sua transmutação e permanência.
III. As Cortes Feudoburguesas
Vivificadas por um vigoroso desenvolvimento mercantil e burguês, as cidades do centro e do norte da Itália experimentaram intensas agitações sociais e políticas não muito depois de começar sua expansão e enriquecimento. Foram sociedades muito instáveis, tanto ou talvez mais do que as das cidades dos Países Baixos ou da Hansa. Porém, sua politização foi maior que a destas últimas; e ainda que talvez fosse igual à das outras cidades alemãs ou dos Países Baixos, o contexto em que sua vida política se desenvolveu foi diferente, por causa sobretudo da presença permanente do poder do Papado, do reino de Nápoles e do Império. Esta presença manifestava-se a cada certo tempo e suscitava expectativas e conflitos nos quais se renovava a antiga hostilidade entre guelfos e gibelinos, traduzida pouco a pouco em novos termos; desvanecida a possibilidade de que a Itália se ordenasse sob a autoridade do papa ou do imperador, subsistiu, no entanto, a sombra dessa rivalidade, e as novas e sucessivas facções políticas conservaram o sentimento de adesão ou de oposição aos antigos poderes de tradição feudal cristã.
Mas as cidades do centro e do norte da Itália já eram substancialmente burguesas e aspiravam consolidar regimes burgueses. Sem dúvida o conseguiram. Porém, entregues a uma intensa atividade econômica, e apesar de estarem estimuladas pela paixão das lutas facciosas pelo poder, ou pelas necessidades de defesa, ou pela aspiração da conquista de novos territórios, não conseguiram formar exércitos de cidadãos que fossem a expressão das democracias comunais. Todos os incentivos levaram, ao contrário, à utilização de exércitos mercenários, constituídos geralmente, por rebentos de pequenas famílias de tradição senhorial e, logo depois, por estrangeiros que encabeçavam bandos armados. Assim, ao aprofundar-se a crise econômica e social em fins do século XIII, algumas comunas já se encontravam sujeitas ao poder dos condottieri cujos serviços haviam contratado, e o regime dos signori começou a se mostrar como o inevitável fim das convulsões sociais e políticas que se acentuavam com a crise. Poucas cidades, como Veneza e Florença, escaparam a esse processo. A maioria teve que renunciar a toda aparência de democracia republicana e buscar sua nova ordem institucional dentro dos marcos de um poder forte, de base militar, e mantido, sem dúvida, por setores sociais definidos ou por ocasionais facções políticas.
Desse modo, enquanto se conservavam em Veneza, em Florença e em outras poucas cidades certos ressaibos da antiga ordem comunal, na maioria delas aparecia um poder unipessoal, absoluto e arbitrário, que dispunha de toda a autoridade e que impunha às cidades – antigas comunas – um novo tipo de convivência cujos focos eram as cortes dos novos senhores. Muitos deles constituíram dinastias familiares, com freqüência arraigadas em uma cidade; mas seu poder foi de extensão variável e, assim como às vezes perderam até a sua originária, em muitos casos conseguiram estender sua autoridade sobre outras cidades, organizando verdadeiros estados territoriais mais ou menos efêmeros. Foi na crise com que se abriu o século XIV que essas formações políticas singulares definiram sua fisionomia, em meio a guerras e tensões constantes que alteravam continuamente seu padrão geográfico. Frente aos estados do papa e do rei de Nápoles, Veneza e Florença ofereciam o quadro de uma organização republicana resistente, embora, em Florença, a “primazia urbana” dos Medici conformara, desde fins do século XIV, um regime sui generis, com traços de signoria pessoal e familiar. Siena e Gênova oscilaram durante essa época entre o exercício do governo republicano e a sujeição aos senhores locais ou estrangeiros, e até Milão teve seu efêmero despertar republicano por ocasião da morte de Filippo Maria Visconti em 1447. Porém, os regimes predominantes foram senhoriais em inúmeras cidades.
Milão conheceu o longo domínio dos Visconti e depois o dos Sforza; Ferrara o dos Este, Mântua o dos Gonzaga, Verona o dos Scali, Rimini o dos Malatesta, Urbino o dos Montefeltro, Pádua o dos Carrara, Perusa o dos Baglioni, Bolonha o dos Bentivoglio, Pavia o dos Baccaria, Forli o dos Ordelaffi, Pesaro o de um ramo dos Sforza, Faenza o dos Manfredi. Mas, em muitas delas, o poder trocou de mãos mais de uma vez, e uns senhores sucederam a outros. O poder senhorial, no entanto, consolidava-se fosse quem fosse quem o exercesse, porque essas sociedades urbanas – setorizadas e muito instáveis – haviam perdido a capacidade de se autogovernar e porque a esfera do poder transitou dentro da estrutura militar mercenária que se constituiu na estranha constelação política em que as cidades italianas se moviam.
Por isso, as cortes dos signori adquiriram um caráter tão singular. Encabeçadas geralmente pelo rebento de alguma família de origem cavalheiresca, que em muitos casos havia desembocado em condottieri, pretendiam conservar alguns vestígios da tradição senhorial. Mas, ao longo de várias gerações, eles mesmos já se haviam ajustado ao ambiente burguês, e sua personalidade reunia todas as atitudes e tendências predominantes nas cidades que senhoreavam. Chamados por alguma das facções que disputavam o governo ou erigidos em autoridade por força do seu poder militar, os signori respondiam em todos os casos a situações sociais e ambientais que estavam impregnadas do espírito burguês. Eles só podiam conservar seu prestígio e sua autoridade se fossem capazes de assumir a representação dessas sociedades, sem prejuízo de darem rédeas soltas à sua fantasia cavalheiresca, até onde lhes permitiam seus recursos e seu poder, nas cortes que constituíam sua base de operações militares e políticas. Até os burgueses alimentavam essas fantasias, orgulhosos do ar senhorial que a cidade adotava, e sempre que lhes resultasse em alguma vantagem prática. E mesmo então, não faltou o sorriso zombeteiro dos que sopesavam os alcances dessas ostentações heróicas daqueles que costumavam ser – ou haviam sido – soldados a soldo.
Mas nem todas as cortes dos signori combinavam os componentes cavalheirescos e burgueses na mesma proporção. Solidamente assentadas, as cortes dos Visconti em Milão ou dos Gonzaga em Mântua não eram encabeçadas por condottieri ativos. Ao contrário, esses signori – como os Medici ou os doges venezianos – já se sentiam chefes políticos dos seus estados, arraigados neles e quase soberanos legítimos, acima das obrigações militares. Quando precisaram fazer a guerra – e o necessitavam sempre – recorreram aos serviços de capitães mercenários, que algumas vezes, por certo, eram senhores de outras cidades. Esse foi o caso de Frederico de Montefeltro, dos Malatesta, dos Ordelaffi, dos Carrara, que competiram com os chefes de bandos militares – verdadeiros exércitos – italianos ou estrangeiros, no mercado do que poderia chamar-se de mão-de-obra militar: Alberico da Barbiano ou Guidoriccio de Fogliano, John Hawkood ou Guarnieri d’Urslingen, Carmagnola ou Colleoni, Nicolau de Tolentino ou Gattamelata. Calmos e sensuais, os Visconti, os Gonzaga ou os Medici procuravam gozar os bens que a fortuna lhes havia proporcionado e consideravam a guerra como uma peripécia acidental que interrompia desgraçadamente a placidez cotidiana. Mas os negócios, as festas ou a vida das cortes interessavam-nos, o que em algo se assemelhava à vida da família burguesa, estendida a um amplo e heterogêneo conjunto que a rodeava: há poucos testemunhos tão significativos dessas cortes feudoburguesas como o que deixou Mantegna da dos Gonzaga em Mântua, refletido nos afrescos da Camera degli sposi.59
Certamente, como o mostra Mantegna, a corte compunha-se, em primeiro lugar, da família do senhor: uma família grande, às vezes quase patriarcal, à qual se agregavam os filhos bastardos e os favoritos remotos que se recolhiam à proteção do senhor. Para todos havia um ritmo de vida conveniente, talvez pensões abastadas e muitas vezes funções públicas no governo, ou privadas no manejo da casa do senhor. O primeiro círculo cortesão era composto pelos homens de confiança do senhor que exerciam funções importantes. Os homens de armas, tanto os que compunham seu séquito pessoal como os que ocupavam as primeiras categorias no exército que tinham a seu serviço, compartilhavam a vida do palácio, que às vezes era uma fortaleza. Um senhor, como os da família dos Este em Ferrara ou dos Malatesta em Rimini, sempre estava pronto para responder às solicitações de quem pedisse seu auxílio militar e, para isso, precisava manter os quadros de suas companhias. Mas os homens de negócios não eram menos importantes e se infiltravam nas câmaras senhoriais em busca de favores ou para satisfazer as solicitações do senhor, sempre atento aos seus interesses. Funcionários de alta categoria que atendiam aos mais delicados assuntos de estado conviviam com o senhor. Todos eram cortesãos, sem dúvida. Porém, ainda havia os que eram especificamente cortesãos e cumpriam na corte missões secundárias relacionadas com a grandeza e o aparato que o senhor queria ostentar. Havia cavaleiros que serviam somente ao seu prestígio, damas distintas, pedagogos para as crianças, astrólogos e médicos e, sobretudo, poetas e sábios, que davam um toque de distinção à corte feudoburguesa, que não queria ser só um centro de poder político e militar, mas também um âmbito de refinada cultura estética e intelectual. E, por baixo, movia-se um amplo conjunto de servidores e domésticos de categorias diferentes, desde os que atendiam às pessoas da família senhorial, sua mesa, suas roupas, até seus cavalos, suas cozinhas e suas adegas. No total, na corte de Frederico de Montefeltro em Urbino havia “cinqüenta bocas ou mais, às suas custas”,60 e o conjunto constituía uma pequena sociedade compacta e integrada, que girava ao redor da pessoa do senhor, onipotente e despótico.
Na aparência e por alguns traços exteriores, as cortes feudoburguesas assemelhavam-se às cortes senhoriais. Mas, no século XIV e até princípios do século XV, as diferenças eram muito profundas. As cortes senhoriais continuavam a antiga tradição feudal e cortês através de um processo fluido e contínuo, no qual mudanças tênues constituíam adaptações quase imperceptíveis às novas situações sociais que, no nível da vida cortesã, somente tinham uma repercussão fraca. Porém, as novas cortes feudoburguesas que se constituíram nas cidades do centro e do norte da Itália nasceram e evoluíram de modo muito diferente. Talvez Uguccione della Fagiuola pudesse crer, nos primórdios do século XIV, que sua corte gibelina de Pisa era uma corte senhorial. Mas, pouco a pouco, todas acusaram a penetração de outras tendências, mais arraigadas na sociedade, e se separaram do modelo feudal e cortês, deixando-se seduzir pelo brando encanto dos gozos burgueses, sobretudo quando os humanistas foram iluminando as sombras do mundo antigo e revelando os fundamentos de certas formas de vida que não se baseavam nem na concepção ascética nem na concepção heróica. Era do que necessitava a mais elevada acepção da vida burguesa para sentir-se justificada. O ócio nobre e o gozo refinado dos antigos pareceram o modelo do seu próprio ócio e do seu próprio gozo. E, ainda que às vezes tivesse que celebrar algum torneio ou cavalgar nos campos ao som dos cornos de caça, os cortesãos das cortes feudoburguesas pouco necessitavam para revelar que seus interesses estavam em um mundo menos exaltado, mais realista e sensual.
Nada podia ocultar o segundo plano burguês das cortes feudoburguesas italianas: nem os esporádicos arrebatamentos cavalheirescos, nem o luxo que desenvolviam, nem o formalismo imposto em seu sistema de vida. Ninguém deixava de ver que nelas cada um era filho de suas obras e não da excelência da sua linhagem. O cortesão valia pelo que era e, sobretudo, por aquilo para o que podia servir. Se era acolhido com respeito, era porque se valorizava seu esforço para alcançar uma posição social que só reconhecia como fundamentos a sua capacidade e o seu mérito. Ninguém questionava a sua origem, e todos sabiam que se triunfasse alguma vez, alguém se incumbiria de legitimar sua ascendência e sua carreira, não poucas vezes embaciada. E parecia que pouco se devia perguntar a quem havia alcançado uma fortuna tão grande.
A riqueza era, fora e dentro das cortes, um valor indiscutível; e não deixou de sê-lo nas cortes feudoburguesas, nas quais o dinheiro era insubstituível, talvez porque nunca era bastante para o exercício de uma política que se baseava apenas na eficácia. O dinheiro era necessário para comprar a força militar que defenderia o Estado, e às vezes, para comprar estados, porque muitas cidades foram compradas. Nas cortes feudoburguesas o dinheiro pareceu – como na antecâmara do negociante – o instrumento adequado para a conquista do poder: dessa maneira o conseguiram os Medici. Nada podia substituir, para um senhor que só podia confiar em sua eficácia de cada dia, o dinheiro que talvez ele não tivesse, mas que tinham aqueles que o rodeavam e aqueles a quem ele oferecia segurança e ordem em meio a uma sociedade conflitante. Se tivesse algo a vender para consegui-lo, o próprio senhor estava na posse de algo que se podia comprar: seus próprios serviços militares, que ele podia oferecer em um mercado singular no qual cada condottieri tinha seu preço, negociável em cada ocasião não só de acordo com o valor que lhe atribuía por sua capacidade, mas também segundo as regras da oferta e da procura. Com tais chefes, a guerra assumiu um caráter convencional, muito distante do estilo heróico: cada um deles cuidou da vida dos seus homens – que tinham um preço e deviam ser repostos ao morrer – e com freqüência as contendas eram resolvidas com hábeis movimentos táticos que podiam acabar em pactos entre os rivais. O conde Francesco Carmagnola, que havia servido longo tempo a Filippo Maria Visconti, colocou-se a serviço dos venezianos, inimigos dele, quando caiu em desgraça com aquele, por um substancioso salário de doze mil ducados. Imediatamente empreendeu a guerra contra seu antigo senhor, que confiou sua defesa a outros condottieri: Guido Torello, Niccolò Piccinino e Francesco Sforza. Sucessivas vitórias de Carmagnola significaram importantes anexações territoriais para os venezianos. Porém; imprevisivelmente, Carmagnola devolveu ao duque de Milão todos os prisioneiros que havia feito quando conseguiu sua mais importante vitória, graças ao que este pôde reconstituir sua força militar. Veneza suspeitou de uma traição, ou de um pacto entre os condottieri, e decapitou Carmagnola como réu de alta traição. Dessa vez o jogo da guerra convencional terminou em tragédia; mas o normal era que a guerra fosse parte de um jogo transacional, como correspondia a uma concepção realista e pragmática da política.
Essa concepção política era a da burguesia, e os condottieri e os signori participaram dela, como requeria o segundo plano das cortes feudoburguesas. Esse segundo plano era burguês, e burguesa era a moral que as regia. Adivinhava-se através do sorriso descrente que acolhia as explosões de heroísmo desinteressado, a atmosfera de anacronismo que rodeava a criação de Mateo Maria Boiardo, o poeta de Ferrara, a aquiescência que mereciam em Florença as burlas de Luigi Pulci. Agora predominava nas cortes feudoburguesas, como nos ambientes burgueses das cidades, a moral do êxito, trasladada a redistribuição dos prestígios conforme cânones irreversíveis. O soldado de fortuna ou o mercador afortunado eram como o cortesão triunfante, embora sua ascensão se devesse à sua extrema capacidade para a adulação e a intriga. A corte era o cenário mais deslumbrante que se oferecia para a corrida desesperada pela ascensão social daqueles que não podiam nem queriam esperar para fazer seu aprendizado cortesão, daqueles que queriam gozar o presente, de acordo com o preceito horaciano, porque não sabiam o que os esperava amanhã. E por esse propósito sacrificavam tudo, temerosos de chegar tarde para a partilha, e jogando tudo nessa cartada que, se perdessem, destruiria de uma só vez todas as esperanças postas na roda da Fortuna, uma estranha convicção de tradição romana. Porque romano era o estilo de vida que as cortes feudoburguesas escolheram, de acordo com o exemplo suscitado pelo descobrimento dos autores latinos feito pelos humanistas.
A condição feudoburguesa das cortes italianas evidenciava-se, precisamente, pela estranha combinação de elementos pagãos e cristãos. Se a moral no fundo era pagã, também o eram as tendências, os modos de vida. Muitos também suspeitaram se não o seriam as crenças; e, talvez em alguns casos, a suspeita fosse fundada. Porém, só excepcionalmente aparecia à vista a indiferença religiosa, e mais excepcionalmente a incredulidade. O ostensivo respeito pelas formalidades do culto talvez encobrisse fraquezas da fé ou uma descrença profunda; porém deixava a salvo a suspeita de quem se atinha a elas. De resto, houve nas cortes – como em outros setores sociais – espíritos muito piedosos, para os quais seu gênero de vida não parecia incompatível com a leitura assídua das vidas dos santos ou dos Padres da Igreja. Tampouco acharam muitos que a fé cristã fosse incompatível com as crenças astrológicas. O movimento dos astros com relação à conduta e ao destino humano foi uma preocupação generalizada, que teve apaixonada acolhida nas cortes. As opiniões dissidentes que iam se insinuando no seio das burguesias se entrelaçavam com as arraigadas crenças cristãs, como se entrelaçavam as leituras dos clássicos do paganismo com os autores sagrados. Cenários destacados do entrelaçamento das tendências mais vigorosas da sociedade, as cortes feudoburguesas deixavam entrever, por debaixo das ostentações cavalheirescas, como as que Pulci ridicularizava, o plano burguês que nutria suas formas de vida e de mentalidade.
Porém, outra coisa mostrava ainda mais a fragilidade interna e a instabilidade das formas de vida das cortes feudoburguesas. Pairava sobre elas a sombra da ilegitimidade e da precariedade do poder, que logo se projetava sobre todo o âmbito do senhor. Ainda que seus antepassados mais ou menos remotos houvessem adquirido o domínio do Estado, a presença de outras famílias que lhes disputavam o poder ou a subsistência de uma tradição oligárquica ou democrática que o sistema republicano reivindicava colocavam os senhores em situação de instabilidade virtual, apenas respaldada pela força. Mais se percebia esse sentimento de instabilidade e ilegitimidade quando o senhor comprava seus estados ou parte deles, ou quando sua conquista era negociada. Todo o âmbito cortesão refletia esta condição do senhor. Recém-chegados ao favor senhorial em uma corte que só subsistia em estado de perpétua guerra frente a inimigos e pretendentes, o sentimento predominante era de que, a qualquer momento, toda aquela cerimoniosa convivência podia desaparecer depois da dispersão e da fuga apressada de todos os seus membros. Foi o que aconteceu muitas vezes, mas era o que muitos sentiam que podia ocorrer a qualquer momento ao se desencadearem certas circunstâncias, imprevistas porém imagináveis: derrotas, mortes, menoridade, sucessões disputadas, demências e tantas outras eventualidades capazes de afetar a titularidade do poder. Esse sentimento dava às cortes feudoburguesas um ar de aventura que as mostrava sujeitas aos vaivéns da fortuna.
Foi o acaso o que normalmente conferiu a cada um sua posição nas cortes feudoburguesas. Por isso, à insegurança das cortes agregava-se a insegurança de cada um dos seus membros. Enquanto o cortesão senhorial continuava sendo quem era, mesmo depois de ter perdido o favor real; o das cortes burguesas voltava a ser pouca coisa se alguma circunstância o fizesse cair da posição que havia alcançado; só o que o seu dinheiro significava, se é que a sua desgraça não fosse tão grande que não pudesse conservá-lo. E essas circunstâncias podiam ser diversas, começando pela arbitrariedade do senhor, mais de uma vez freqüente e sem limites. Certamente, a arbitrariedade era o que outorgava dignidade e riquezas, e era natural que também as tirasse. Porém, a vontade do senhor podia ser movida pelas constantes e numerosas intrigas que se tramavam na corte, na qual competiam e lutavam facções contra facções, grupos contra grupos, pessoas contra pessoas, todos disputando o favor e os favores do senhor enquanto procuravam aniquilar o adversário. E mais além da disputa pela preferência ou pela simpatia pessoal do senhor, facções, grupos e pessoas podiam estar comprometidos com uma política, e era inevitável a sua queda se em determinado momento não coincidisse com a preferida pelo senhor.
Tanto a sombra da ilegitimidade do senhor como a instabilidade dela derivada criaram nas cortes feudoburguesas uma inquietação que se orientou, particularmente, para as fontes de legitimidade. Para elas se voltaram os senhores e cortesãos uma e outra vez; e as sucessivas aparições dos imperadores – Henrique VII, Luis IV, Carlos IV, Ruperto, Segismundo – trouxeram consigo, para alguns, a ansiada legitimidade ou o sonhado enobrecimento. Caso extremo e singular foi a concessão do título ducal a Gian Galeazzo Visconti pelo imperador Wenceslao ao preço de cem mil florins de ouro. O senhor de Milão possuía agora legitimamente 25 cidades, mas de sete delas tinha uma posse discutível. Era chegada a hora da consagração do seu poder e do poder de sua dinastia. Porém, ainda teve que suportar a revogação do novo imperador Roberto da Baviera, e teria ficado nu, sem as suas tropas, ao mando do célebre condottieri Alberico da Barbiano, se não houvesse derrotado as do imperador em 1401. Antes, no grotesco jogo de toma lá dá cá entre o imperador e os signori, Carlos IV da Boêmia havia arrebatado a outro Visconti não só o vicariato imperial, mas até a condição de cavaleiro, que algumas vezes o imperador outorgava sem escrúpulos mediante um estipêndio estabelecido. Frederico III concedeu designações imperiais em Ferrara até sua mão cansar-se de assinar diplomas.61 Por isso, estes testemunhos de legitimidade do poder e da condição social careceram de valor estável e reconhecido. Diria Francesco Vettori, com sua habitual sinceridade:62 “A investidura por um homem que vive na Alemanha, e que de imperador só tem o nome, não pode converter em verdadeiro senhor de uma cidade a um fascínora.” Não tiveram mais valor os retratos dos grandes pintores, as biografias e as histórias compostas pelos humanistas, ou as tumbas luxuosas com que se pretendeu imortalizar a memória dos senhores: um golpe do acaso podia desbaratar em pouco tempo toda sua criação política, e com ela o âmbito privilegiado dos que rodeavam o senhor.
Mas, ao mesmo tempo, os cortesãos viviam tão alegremente como podiam, contentes de estarem vivos e de possuir ainda o poder, a riqueza e a ascensão social que lhes proporcionava o fato de viver à sombra do senhor. O centro da cortesania, como nas cortes senhoriais, era o palácio, ainda que não fosse sempre o castelo centenário e carregado de antigas glórias. A rigor, era castelo, porque o senhor feudoburguês tinha mais a temer dos seus inimigos do que o rei ou o duque; de castelo tinha as torres e as muralhas, talvez os calabouços, como os que imaginava Leão Battista Alberti, ou os que efetivamente Galeazzo I Visconti fez construir no de Monza em 1325. Porém, todo o âmbito cortesão queria que o castelo tivesse um ar de palácio.63 E o foi, apesar de sua aparência severa, o que os Visconti levantaram em Milão, começado por Mateo I e refeito depois por Galeazzo II; ou o que Galeazzo II construiu em Pavia; ou o castelo Estense de Ferrara, e mais ainda o palácio Schiafanoia; ou o que fez construir Frederico de Montefeltro em Urbino; ou o Arx Sismundea, erigido por Segismundo Malatesta em Rimini. Casa do senhor, o palácio gozava dessa ordem burguesa estrita e racional que convinha a um amo que cuidava de sua fazenda; media sua generosidade e exigia a todos o devido serviço, como acentuavam as instruções de Frederico de Montefeltro para a administração de sua corte em Urbino.64
Do mesmo Frederico de Montefeltro, seu biógrafo, Vespasiano da Bisticci, descrevia a vida cotidiana.65 No dia de mercado ia à praça e se misturava com os campesinos que ali se congregavam para comprar ou vender, inteirando-se de passagem do que se passava em sua cidade e conversando alegremente com eles. “E, assim, sua humanidade contentava a todos, tanto aos grandes como aos pequenos”. Depois cavalgava pelas suas terras “acompanhado de poucos, algumas vezes, e de muitos, outras vezes, sem que levassem armas, nem ele, nem nenhum dos seus acompanhantes”; e ao regressar assistia a missa e depois se sentava à mesa para comer e dava audiência a quem quisesse que o escutasse. As vezes, fazia com que lessem durante a comida obras piedosas durante a quaresma e profanas nas outras ocasiões. Logo era a hora da justiça, e falava sem apelação nas causas que seus juizes lhe apresentavam, retirando-se depois para sua câmara para ocupar-se de seus assuntos privados. E uma vez ou outra concedia audiências para atender a questões públicas; e depois de visitar algum convento onde discutia temas piedosos com monjas e monges, voltava para seu palácio para presenciar como se exercitavam nas armas os jovens cavaleiros, até que chegasse a hora da ceia. Então, o senhor “retirava-se à sua câmara com seus principais senhores e fidalgos e falava com eles muito familiarmente”. Havia chegado a hora da espiritualidade.
Certamente, nem todos os senhores foram parecidos com Frederico de Montefeltro nem todas as cortes se assemelharam à de Urbino. O entusiasmo de Vespasiano da Bisticci pela vida patriarcal que transcorria nela talvez proviesse do seu caráter excepcional. Outros senhores, em outras cidades, se comportavam de outra maneira. Muitos – entre os quais Filippo Maria Visconti foi um caso extremo – viviam encerrados em seus castelos, cercados de guardas, limitando-se a freqüentar o círculo áulico que os rodeava, no qual conviviam os filósofos e os poetas com os soldados mercenários e os mercadores aventureiros. A hipocrisia e a dócil submissão eram regras de ouro para o trato cortesão, e até o pulcro Castiglione achou oportuno incluir em seu manual um capítulo sobre a melhor maneira de obter os favores do senhor. Para muitos, essa maneira consistia principalmente em tecer complicadas intrigas das quais podia resultar não só o desterro de um rival mas também a sua morte. As vezes, a convivência cotidiana permitia alguns lapsos de distração para discorrer sobre os elevados temas do espírito, mas, no ambiente incerto das cortes feudoburguesas, até os cortesãos mais refinados compartilhavam a condição dos soldados mercenários e dos políticos oportunistas: a ambição e a cobiça assomavam à flor da pele, porque tinham urgência em acumular quanto antes honras e riquezas. Uma suspeita fundada de que o acesso à corte constituía uma oportunidade efêmera, que era preciso aproveitar rapidamente e até onde fosse possível, configurava e desfigurava a personalidade e o comportamento do cortesão das cortes feudoburguesas , improvisadas e instáveis.
Foi na corte de Urbino, depois da morte de Guidobaldo de Montefeltro, que Baltasar Castiglione idealizou seu manual de II cortegiano, escrito em 1514 e publicado pela primeira vez em 1528. Não era, sem dúvida, um reflexo das cortes dos signorie italianas do seu tempo, e menos ainda das cortes dos dois séculos anteriores. O mesmo assinalou reiteradamente que a corte de Urbino era “excelente acima de todas as outras” e que, na prática, constituía uma exceção.66 O autor tampouco queria dar a entender que esse cortesão que descrevia podia ser encontrado nas cortes do seu tempo, se não fosse ele mesmo, como alguns disseram e Castiglione negava tibiamente. Era um manual para a educação daqueles que viviam nas cortes, concebido a partir de um ideal de perfeição. Porém, no conjunto de seus preceitos, ficou oculto um quadro das situações reais que ilustra sabiamente essas minúsculas sociedades que se haviam constituído à sombra de um príncipe mais ou menos estrangeiro, que sonhava em parecer-se com os grandes dinastas que deslumbraram o mundo com o brilho de suas cortes.
A imagem das grandes cortes da França, da Inglaterra e da Espanha estava presente no espírito de Castiglione, grande viajante. E, sem dúvida, o mundo cavalheiresco, ao qual pertencia por tradição familiar, o atraía. Por isso aspirava a que o cortesão das cortes italianas fosse um bom cavaleiro, zeloso da sua palavra e da sua honra, destro nas artes do combate singular; “estimo que a principal e verdadeira profissão do cortesão deva ser a das armas”, dizia.67 Porém, quem o dizia era o mesmo que raciocinava como alcançar os favores do príncipe e, sobretudo, o que criticava os franceses porque acreditavam que essa devia ser sua única preocupação. Castiglione era, tanto quanto um cavaleiro, um homem de letras, e queria que o bom cortesão também o fosse, “porque penso que o verdadeiro e principal ornamento do ânimo de qualquer pessoa são as letras”. E não somente as letras, mas também a música, a pintura e a escultura, a tudo o que o cortesão devia ser, ao menos, um aficionado inteligente.68 Porém, não era tudo. O cortesão devia saber também conversar amavelmente e vestir-se com elegância; e devia saber amar com dignidade e ser capaz, finalmente, de descobrir o mais alto amor, o amor divino.
Poucos dos que rodeavam os Malatesta, os Scali, os Carrara, os Visconti, os Sforza ou os Gonzaga se aproximavam do ideal cortesão com o qual Castiglione sonhava. Talvez a corte de Alessandro Sforza em Pesaro ou, durante um tempo mais longo, a dos Este em Ferrara ou a dos Gonzaga em Mântua conheceram a calma e a estabilidade na qual podiam equilibrar-se as paixões, acalmar-se os espíritos e moderar-se as ambições. Antes que Castiglione elaborasse os seus preceitos para alcançar a qualidade de cortesão perfeito, os Gonzaga haviam confiado a educação de seus jovens cortesãos a Vittorino da Feltre, e os Este haviam chamado Guarino Guarini com o mesmo propósito. Ambos humanistas de sólida cultura clássica, tinham ideias claras acerca da educação que convinha aos jovens nobres, fundadas na tradição dos autores latinos. As armas e as letras, as artes, o decoro pessoal e também as maneiras e os costumes que haviam conseguido impor-se nas cortes mais exigentes constituíram preocupações desses mestres que, no fundo, lutavam nas cortes feudoburguesas entre os ideais cavalheirescos e os ideais burgueses, entre os princípios cristãos e os valores do paganismo. Cada situação, cada atitude, cada juízo, revelavam naquelas seu caráter transacional e controvertido.
Um desenvolvimento da ostentação e do luxo devia realçar o papel da corte. Ao compasso da moda generalizada em toda a Europa ocidental, desde meados do século XIV, desencadeou-se nas classes de alto poder aquisitivo um afã desmedido de adquirir bens de uso cuja ostentação significasse superioridade social. Talvez nas cidades italianas a aparição dessa preocupação fosse anterior à das outras partes, porque nelas havia sido precoce o desenvolvimento das manufaturas e do comércio. Porém, as burguesias haviam se mostrado moderadas até que, no ritmo da crise, se desencadeou, nas classes altas, uma veemente tendência à ostentação do luxo. E, naturalmente, foram as mais ricas e as mais refinadas as que mais o exibiram.
Como em outras cortes, também na de Milão pareceu a algum cronista que merecia registro o fato de que os costumes haviam mudado. Na época de Azzone Visconti, senhor desde 1329, Galvano Flamma assinalava que o palácio ducal tinha sido adornado com ricas pinturas; e, na dos seus sucessores Luchino e Giovanni, destacava a introdução de novos costumes: “Agora, no entanto, na idade presente, os antigos costumes agregaram-se de maneira irritante a outras muitas coisas com prejuízo da alma; porque as vestes estão cobertas em todas as partes de adornos supérfluos, agregam-se, tanto às dos homens como às das mulheres, ouro, prata e pérolas. Grandes ornamentos são acrescentados aos vestidos. Bebem-se vinhos estrangeiros e de países do além mar; e todas as comidas são suntuosas e os mestres da arte da cozinha recebem altos salários.”69 Essa tendência foi intensificando-se e nada havia de estranho em que, muito tempo depois, Isabel D’este solicitasse, de Mântua, à sua agente em Paris que lhe enviasse os artigos que estavam em moda na corte francesa.70
Como nas cortes senhoriais, também as cortes feudoburguesas, seduzidas pelo exemplo daquelas, quiseram brilhar por meio das grandes festas principescas. Diferentemente das festas populares urbanas, de tradição comunal e burguesa, as antigas reminiscências dos triunfos romanos agregaram-se às celebrações organizadas pelos senhores, cada vez mais rebuscadas e nas quais adquiriram uma importância cada vez maior. E quando a celebração tinha algum significado político – relacionado com o afã de afirmar o sentimento dinástico para consolidar o poder do senhor, mais ou menos estrangeiro ou ilegítimo – a suntuosidade do marco no qual a festa se celebrava adquiria seu maior esplendor. Milão e Florença distinguiram-se por essa preocupação. Os Visconti esbanjaram imaginação e dinheiro para prover sua casa de prestígio internacional. Organizaram-se torneios à francesa para celebrar as bodas dos sobrinhos do arcebispo Giovanni, seus sucessores Bernabò e Galeazzo; e, quando o imperador Carlos IV chegou à cidade, os festejos foram dignos do hóspede, que pôde contemplar o desfile de seis mil cavaleiros, “senhorialmente equipados” de acordo com o cronista, que sabia falar as palavras que afagavam o seu senhor. Mas nenhuma celebração alcançou então o brilho da que se realizou em 1395 quando Gian Galeazzo Visconti foi consagrado duque por designação imperial. Um banquete suntuoso coroou a festa, que durou vários dias. Bernardino Corio71 estendeu-se na descrição daquele banquete, que vale a pena comparar com as descrições de Olivier de la Marche. Foi servido no Broletto Vecchio, antiga corte dell’Arengo, e começou apresentando água para as mãos, destilada com perfumes preciosos; depois seguiu a apresentação dos pratos acompanhada por trombetas e vários outros instrumentos; o primeiro dos serviços foi maçapães e “pignocate” dourada (torta doce), com o escudo do sereníssimo imperador e do novo duque, em taças de ouro, com vinho branco; depois franguinhos novos com condimento “paonazzo”, um por escudela, e pão dourado; depois dois grande porcos e dois bezerros igualmente dourados. Depois introduziram grandes bandejas de prata e, em cada uma, dois peitos de bezerro, quatro pedaços de cordeiro castrado, dois “sem sal”. Dois cabritos inteiros, quatro frangos, quatro galos castrados, um presunto, uma “fieira” de salchichas, condimento branco para a sopa e vinho grego.
Depois foram introduzidas outras bandejas de tamanho semelhante com quatro pedaços de vitela assada, dois cabritos inteiros; duas lebres inteiras, seis borrachos grandes e quatro coelhos. Depois quatro perus, cozidos e revestidos (com sua própria pele), dois ursos, dourados, com molho de marmelo. Depois foram levadas outras bandejas, de prata do mesmo tamanho, cada uma com quatro faisões recheados; e a estes seguiram-se enormes tigelas com um cervo dourado inteiro; um gamo igualmente dourado e dois cabritos com gelatina. Depois bandejas como as anteriores com muitas codornas e perdizes, com condimento verde; depois tortas de carne dourada com peras cozidas. Mais tarde se trouxe água para as mãos, com delicados perfumes, e imediatamente, outra vez, “pignocate” prateadas em forma de peixes. Depois pães prateados, limões em calda de açúcar em taças de prata, pescado assado com condimento vermelho em escudelas de prata, pastéis prateados de enguias. Depois, trouxeram-se grandes bandejas de prata com lampreias e gelatina prateada, grandes trutas com condimento negro e dois esturjões, prateados. Mais tarde trouxeram-se grandes tortas verdes, prateadas, amêndoas frescas, vinho leve, malvasia, pêssegos e confeitos de formas diversas.
Os Sforza foram ainda mais ostentosos e brilhantes que os Visconti, como correspondia à sua época. Cinco dias duraram as festas – cortesãs e populares – com que Milão celebrou em 1450 a entrada do novo senhor, Francisco Sforza, e sua coroação. Sua corte tornou-se famosa tanto pelo seu luxo como pela generosidade do senhor. Porém, mais famosa ainda se tomou por sua ostentação e seu esplendor a do seu sucessor Galeazzo Maria, embora sua tirania e crueldade lhe desse um ar quase tenebroso. A sua morte, em 1480, Ludovico, o Mouro, assumiu o governo como tutor do seu sobrinho menor de idade e, dessa forma, exerceu plenamente o poder. A corte de Milão adquiriu então um acentuado ar cavalheiresco, como até então só havia tido a corte de Ferrara, seguindo o modelo da França. Festas suntuosas foram as bodas de seu sobrinho Giovanni Galeazzo com Isabel de Aragão em 1489 e a sua própria, dois anos depois, com Beatriz D’Este. Pouco depois, Ludovico conseguiu que o imperador Maximiliano lhe conferisse – e não ao seu sobrinho – o título ducal e, de 1494 até 1499, em que teve que fugir ante a ofensiva francesa, sua corte foi uma das mais brilhantes e luxuosas da Europa, da qual participavam, junto aos homens de armas, aos experimentados funcionários e aos novos e velhos fidalgos, os mais notáveis pintores e humanistas da Itália. Porém, a sombra da ilegitimidade pairava sobre ela, e o próprio duque tremia pensando em seu futuro. Um dia teve que fugir de Milão e toda a corte se dissolveu para deixar lugar à que instaurou o rei da França Luis XII.
Talvez menos espetacular, Florença também foi uma corte feudoburguesa no século XV, sobretudo à medida que se foi fortalecendo o poder de Cosimo de Medici. “Tão alta era sua posição – pois esteve quase trinta anos à cabeça da cidade – sua sabedoria, sua riqueza e sua magnificência, que talvez nenhum cidadão privado, desde a decadência de Roma, tenha gozado de uma reputação como a que ele teve”, escrevia Guicciardini.72 Tanto ele como seus descendentes Piero e Lorenzo exerceram um poder difuso não institucionalizado, mas incontrastável. Cada um deles foi em seu tempo o primeiro cidadão de Florença, e nessa condição aglutinou ao seu redor não só uma ampla clientela política, mas também uma plêiade de artistas, poetas e humanistas que alternavam como eles tanto em seu palácio da Via Larga, que Cosimo fez edificar, como em sua vila de Careggi. Estas foram as sedes da corte medicéia, providas de extraordinária biblioteca, ornadas por obras de arte inestimáveis e prestigiadas não só por serem os verdadeiros centros do poder em Florença, mas também os focos da mais refinada cultura. Mecenas generosos e espíritos refinados, acolheram aos homens de valor que renovavam as artes e o saber com o seu gênio e com a introdução de novas tendências. Torneios com ostentação cavalheiresca e festividades suntuosas aumentaram o prestígio dessa corte informal. Quando o concílio se reuniu em Ferrara em 1438 para considerar a união das igrejas do Oriente e do Ocidente, Cosimo conseguiu trasladá-lo para Florença no ano seguinte. Nessa ocasião alojou em seu palácio da Via Larga – obra de Michelozzo, acabada em 1460 – o papa Eugênio IV, o imperador de Constantinopla João VII Paleólogo e o patriarca de Constantinopla, José. A corte informal do velho banqueiro, ambicioso e prudente ao mesmo tempo, alcançava nesse momento o ponto mais alto do seu esplendor, porque não havia memória de que um burguês florentino, fiel à sua condição e precavido em suas ostentações, tivesse visto sua casa convertida em sede de tão imponentes poderes. E não foi a única vez, pois em 1499, além de haver alojado o papa Pio II, reuniu em certo momento dois dos maiores senhores da Itália, Galeazzo Maria Sforza e Pandolfo Malatesta; foi então que se celebrou com mais brilho do que nunca o Calendimaggio, com uma justa cavalheiresca na praça de Santa Crocce e uma caçada às feras na Plaza de la Signoria.
Lembrança da suntuosidade de que a cidade foi testemunha durante o concílio de 1439 foram os afrescos que Benozzo Gozzoli pintou no palácio da Via Larga vinte anos depois. O cortejo dos Reis Magos desenvolveu, enriquecido, todas as imagens que os florentinos guardavam dos séquitos que trouxeram os seus hóspedes, culminadas por traços exóticos. Revestidos de roupas fora de uso, apareceram nas pinturas da capela os retratos de vários dos membros da família Mediei e de alguns favoritos. Menos luxuosas, as roupas que vestiram no Callendimaggio de 1459 revelavam as moderadas veleidades cavalheirescas da família que exercia o principado burguês em Florença.
De 1469 a 1492 exerceu esse principado Lorenzo, a quem se deu o apelido de “o Magnífico”. Mais firme em seu poder, a família exerceu um governo estável, agora por obra de Lorenzo. O banco mediceu estendia suas ramificações por toda a Europa e parecia em pleno esplendor; e a riqueza que o banco – e os inumeráveis negócios colaterais – produzia, outorgava ao Magnífico um vasto poder de manobra na política italiana. Tanto a externa como a interna consumiam a maior parte de suas horas. Porém, a fruição do gozo sensual requeria e obtinha seu tempo. Era o amor, a contemplação estética, a criação poética e, sobretudo, a conversação refinada sobre os mais elevados temas do espírito. A Academia Platônica que Marsilio Ficino presidia oferecia a ocasião para os mais árduos esforços intelectuais. As armas, que Lorenzo amava tão pouco como seu avô, Cosimo, desvaneciam-se frente ao texto sutil, talvez recém-descoberto, que ele e seus favoritos liam e comentavam com unção: uma unção quase religiosa que se manifestava, sobretudo, nas cerimônias do 7 de novembro e nas quais se celebrava o aniversário de Platão. A hora da espiritualidade era para eles talvez mais longa do que para os outros senhores da época, porém menos condicionada pela paixão pelo poder, pelo dinheiro, pelo gozo sensual. Banqueiros, os Medici construíram a mais brilhante, a mais delicada corte feudoburguesa, sem jamais se deixar seduzir, então, pela tentação de transmudar seu espírito excedendo-se na exaltação de certas formas cavalheirescas de vida que os fazia sorrir interiormente, talvez com mais fruição que a que punha por escrito o próprio Pulci.
Notas
1. Ver como termo de comparação, José Luis Romero, La revolución burguesa en el mundo feudal, primeira parte, capítulo III.
2. Ver Très-joyeuse et récreative histoire des faicts, gestes, triomphes et prouesses du bon chevalier sans pour et sans reproche, gentil seigneur dee Bayart, composta por um “loyal serviteur” e publicada em 1527, e o Panégiryc du chevalier sans reproche, Louis de la Trémoille, escrito um pouco mais tarde por Jean Bouchet. Importância semelhante têm as biografias e crônicas, geralmente reais, compostas pelos humanistas italianos do século XV e citadas nas notas 32, 33 e 34 do primeiro capítulo da primeira parte, assim como outras semelhantes.
3. Olivier de la Marche, Mémoires, I, xxix-xxx.
4. Geoffrey Chaucer, The Canterbury tales, The knightes tale. Reflexões sobre a vida nas cortes senhoriais em Pero López de Ayala, Rimado de Palacio, 422 e ss.; Aaneas Silvius, De curialium miseriis epistula; Hermano del Pulgar, Letras y Glosa a las coplas de Mingo Revulgo.
5. Diego Enríquez del Castillo, Crónica del rey Enrique IV, cap.I.
6. Olivier de la Marche, op. cit. I, cap. vii. Para os outros episódios, sucessivamente: Christine de Pisan, Le livre des fais et bonnes moeurs du sage roy Charles V, III, caps. xxxiii e ss.; Froissart, Chroniques,III, i; La chronique du bon duc Loys de Bourbon, cap. LXXI; Jean de Troyes, Chronique scandaleuse, 1461.
7. Alain Chartier, Le quadrilogue invectif, ed. Droz, p. 9.
8. Olivier de la Marche, L’estat de la maison du duc Charles de Bourgogne dit Le Hardy; Christine de Pisan, op. cit., i ,xvi e xx. Sobre a corte borgonhesa , ver O. Cartellieri, La cour des ducs de Bourgogne, Paris, 1946.
9. Guillaume de Machaut, Remède de fortune, 3908-4012; Alusões coincidentes sobre a atividade cortesã: Anônimo Romano, Vita di Cola di Rienzo, I, x; Chaucer, op. cit. The Prologue, e The squires tale; Les cent nouvelles nouvelles, LIV.
10. Diego de San Pedro, Cárcel de amor, ed. Gili e Gaya, p. 201.
11. Christine de Pisan, op. cit. I, caps. ix-xi; Juan Rodríguez del Padrón, Triumpho de las donas.
12. López de Ayala, op. cit., 476 ss.
13. Christine de Pisan, op. cit., III, xxxii.
14. Diego de San Pedro, op. cit., p. 126.
15. Enríquez del Castillo, op. cit. cap. I.
16. Chaucer, op. cit., The persones tale.
17. Guillaume de Machaut, Voir dit, chamado Dit de verité; Marquês de Santillana, Serranillas. o Cancionero de Baena recolhe uma vasta produção poética dos últimos anos do século XIV e da época de João II de Castela, em cuja corte foi recompilado.
18. Alfonso Álvarez de Villasandino, número 31 no Cancionero de Baena
19. Fernando de Rojas, La celestina, ato X.
20. Le roman de Jehan de Paris, ed. Pléiade, p. 612 et passim.
21 .Jean de Venette, Continuatio chronici Guillelmi de Nangiaco, ed. Géraud, p. 185.
22. Ibidem, p. 185.
23. John of Reading, Chronica, ed. Tait, pp. 88 e 167; Eulogium historiarum, ed. Haydon, II, pp. 230 e ss.; Statutes of the Realm, Edward III, caps. 3 e 8.
24. Crónica del halconero de Juan II, cap. CLXIV.
25. Op. cit., caps. III, V e VI; Jorge Manrique, Coplas por la muerte de su padre.
26. Enrique del Castillo, op. cit., cap. XLIX.
27. Manrique, Coplas, versos 859-865; Honoré Bonet, L’apparicion maistre Jehan de Meun.
28. Crónica de Alfonso XI, cap. C.
29. Crónica de Alfonso X, primeiro capítulo; Crónica de Sancho IV, primeiro capítulo; Crónica de Fernando IV, primeiro capítulo.
30. Crónica de Alfonso XI, cap. C e Cl.
31. Para Pedro IV, Chronique catalane de Pierre IV d’Aragon III de Catalogne, ed. Pagès, segundo capítulo, pp. 74-78; para Fernando I, Crónica de Juan II (de Castilla), ano 1414, caps. primeiro a quinto.
32. Crónica de Juan I, 1379, cap. I.
33. Chronicon Adae de Usk, ed. Maunde Thompson, p. 120.
34. Para a coroação de Henrique VI da Inglaterra, The cronicle of John Strecche, ed. Taylor, p. 146; para a de Catarina da França como rainha da Inglaterra, A chronicle of London from 1089 o 1483, ed. N. H. Nicolas, pp. 162-165.
35. Fleurange (Robert de la Mark), Histoire des choses mémorables advenues du reigne de Louis XII et François I, cap. XLVII.
36. Bertran Boysset d’Arles, Chronique. Cf. A Coville, La vie intellectuelle dans les domaines d’Anjou-Provence, de 1380 1435, Paris, 1941, pp. 498 e ss.
37. The Paston Letters, ed. Warrington, 276; Olivier de la Marche, op. c/f., II, iv.
38. Anciens mémoires du XIVe siècle… de la vie du fameux Bertrand du Guesclin, ed. Michaud et Poujoulat, cap. XXXI; Pedro de Escavias, Hechos del condestable Dom Miguel Lucas de Iranzo, primeiro capítulo.
39. Garcia de Resende, Chrónica de el rei D. João II, cap. LXXIX.
40. Diego de Valera, Crónica de los Reyes Católicos, cap. LII.
41. Olivier de la Marche, Mémoires, II, cap. xxix-xxx. Ver O. Cartellieri, op. cit., nota 1 do cap. Vii.
42. Christine de Pisan, Le dit des vrais amants.
43 . Jehan Regnier, Les fortunes et adversites, Lay “Quant en France paix aviez”.
44. Aliénor de Poitiers, Les honneurs de la cour.
45. Gaston Phoebus, Traité de la chasse; René d’Anjou, Le livre du cueur d’amour espris; Le mortifiement de vainu plaisance; Traicté de la forme et devis comme on fait les tornois.
46. Crónica de Alfonso XI, cap. CXLI
47. Froissart, Chronique, V.
48. La chronique du bon duc Loys de Bourbon, cap. XLIV.
49. Très joyeuse et récréative histoire… du gentil seigneur de Bayart, cap. XXIII. Uma descrição idealizada da liça em que se desenvolve o torneio, em Chaucer, op. cit., The knightes tale. Sobre a presença e a atitude das damas, Anciens mémoires… du fameux Bertrand du Guesclin, cap. II.
50. Diego de San Pedro, op. cit. p. 151.
51. Crónica del halconero de Juan II, cap. CLXCIV.
52. Pedro Rodríguez de Lena, Libro del passo honrosso citado conforme resumo de frei Juan de Pineda, publicado em 1588.
53. Froissart, Chroniques, XI.
54. Jean le Bel, Chronique, cap. VIII.
55. Eustache Deschamps, Balade (Un banquet).
56. Nicolas de La Chesnaye, La condamnation de banquet.
57. Carta quel marquês de Santillana envió al condestable de Portugal com las obras suyas.
58. Femão Lopes, Crónica de El-Rey D. João, 1a parte, ed. Saraiva, pp.
186 e ss.
59. Andrea Mantegna, afresco da “Camera degli Sposi”, Palazzo Ducale, Mântua.
60. Vespasiano da Bisticci, Vita di nomini illustri del secolo XV, Federico duca d’Urbino, XXXIV, ed. Angele Mai.
61. Diario ferrarense, em Muratori, R.I.S., XXIV, col. 215 e ss.
62. Francesco Vettori, Sommario della storia d ‘Italia dal 1511 al 1527,
VI, 293.
63. Leon Battista Alberti, De re aedificatoria, V, 3. Cf. Pietro Verri, Storia di Miiano, Florença 1963, I, 354.
64. Vespasiano da Bisticci, op. cit., XXXIV.
65. Ibidem, xxxvi.
66. Castiglione, II Cortegiano, I, iv-v; II, i-iv; III, i.
67. Ibidem, I, xvii.
68. Ibidem, I, xlii-liii.
69. Galvano Flamma, Opusculum de rebus gestis ab Azone, Luchino et Iohanne Vicecomtibus, Rer. Ital. Script. XII, col. 1034. Cf. Verri, op. cit., I, 39.
70. Cf. Joseph Calmette, Textes et documentes d’histoire, II, Moyen Age, 1937, p. 202
71. Bernardino Corio, Patria historia, 1395.
72. Guicciardini, Storia fiorentina, I.
Pessoas e Fontes Citadas
A
Acciaiuoli, os
Acciaiuoli, Alamano
– II tumulto dei Ciompi, ver Caponi, Gino
Ackermann und der Tod, der (atribuído a Johannes Tepla)
Adam de Bremen
Aeneas Silvius, (ver Piccolomini, Aeneas Silvius)
Afonso XI de Castela
Afonso V de Aragão, o Magnânimo
Afonso, bispo de Ávila
Agostinho, Santo
Albany, duque de
Alberti, Leon Battista
-I libri della famiglia
-De Re aedificatoria
Alberto de Brandemburgo
Albornoz, cardeal
Alcayde de los Donceles
Aliènor de Poitiers
-Les honneurs de la cour
Alighieri, Dante
-Commedia
-De Monarchia
Amadis de Gaula
Anciens mémories du XlVe siècle sur Bertrand du Guesclin
Andalò, Brancaleone degli
Anjou, os
Annales Gandenses
Anônimo Romano
– Vita di Cola di Rienzo
Anshelm
Antonello de Messina
Arcipreste de Hita
-Libro de buen amor
Arcipreste de Talavera
-El Corbacho
Ariosto, Ludovico
-Orlando furioso
Aristóteles
Armagnac, os
Artevelde , Felipe van
Artevelde, Jacques van
Atenas, duque de (ver Brienne, Gualtieri di)
Ausculta, fili (Bula)
Avis, João de (ver João I de Portugal)
Awans, os
B
Baccaria, os
Baena, Juan Alfonso de
-Dezir “Para rei tan excelente”
Baglioni, os
Baltasin, Galliot de
Ball, John
Ballionibus, Ludovico de
Barbiano, Alberico da
Bardi, os
Baroncelli, os
Bartolus de Sassoferrato
– Tractatus de tyrannia
Basin, Thomas
-Histoire de Charles IX
Bayard
Becket, Tomas
Bedford , duque de
Belle Heaulmière, a
Bentivoglio, os
Berry, duques de
Boccacio
– Decamerone
Boccanegra, Simon
Bodin, Jean
Boeris, Gérard de
Boiardo, Matteo Maria
Bonarli, arcebispo
Bonet, Honoré
– Arbres des batailles
– L‘apparicion maistre Jehan de Meun
Bonfini, Antonio
– Decades III rerum Ungaricarum
Bongarden, Anichino di
Bonifácio VIII
Bonnaccorci
Borgonha, duques de
Bosch, Jheronimus, el Bosco
Boucicaut
Bouchet, Jean
– Panégirique du chevalier sans reproche, Louis de la Trémoille
Boudault, Jean
Bourdichon, Jean
– Le livre de heures d ‘Anne de Bretagne
Bourbon, duques de, 307, 315 Bourbon, Luis de (arcebispo)
Bourbon, Luis de (duque)
Boysset d’Arlès, Bertran
– Chronique
Bracciolini, Poggio
– Facézie
Brancacci, os
Branda, cardeal
Brants, Sebastian
– Das Narrenschiff
Braunschweig, duque de
Brember, Nicolàs
Brezé
Brienne, Gualtieri di, duque de Atenas
Brueghel, o Velho,
-Boda de aldeanos
-Meses
Bruni, Leonardo
Burel de la Rivière
Buren, Godeman Van
Buridan
C
Cabra, conde de
Cacciaguida
Cade, Jack
Caetani, os
Cancionero de Baena
Cancionero de Stúñiga
Caponi, Gino
– II tumulto dei ciompi
Capranica, cardeal
Carlos IV da Boêmia, imperador
Carlos V
Carlos V da França
Carlos VI
Carlos VIII
Carlos de Navarra, o Mau
Carlos, duque de Borgonha, o Temerário
Carmagnola, Francesco
Carrara, os
Carvajales
Casale , Ambrogino da
Casimiro IV, Jagelão
Castagno, Andrea del
Castiglione, Baldessar
– II cortegiano
Castillo, Diego Enriques del
– Crónica del rey Enrique IV
Castracani, Castruccio
Catalina de Inglaterra
Celestina, La (atr. a Fernando de Rojas)
Cent nouvelles nouvelles, les
Certaldo, Paolo di messer Pace da
– Il libro di buoni costumi
Cervantes, Miguel de
Cesarini
Clemente VI
Clericis laicos (Bula)
Coeur, Jacques
Cola di Rienzo
Colonna, Egidio (Egidio Romano)
-De regimini principum
-De ecclesiasticapotestate
Colleoni
Commynes, Philippe de
-Mémoires
Contredictz de Franc Goutier, les (atr. a Pedro d’Ailly)
Corio, Bernardino
– Patria historia
Corsini
Corvino, Matias
Cristian II
Crivelli, Lodrisio
– De vita et gestis Francisci Sfortiae Vicecomitis, ducis Mediolani
Crónica de Alfonso X, 344
Crónica de Alfonso el Onceno
Crónica de Fernando IV
Crónica de Juan I
Crónica de Juan II (de Castela)
Crónica de Lübeck
Crónica de Sancho IV
Crónica del halconero de Juan II
Crónica del rey don Juan segundo
Chacon, Gonzalo
-Crónica de don Alvaro de Luna
Chartier, Alain
-Le quadrilogue invectif
Chastellain, Georges
-Chronique des choses de ce temps
Chaucer, Geoffrey
-The Canterbury Tales
Chesmaye, Nicolas de la
-La condamnation de banquet
Chiarini, Giorgio
-Libro che tracta di mercantie et usanze de paesi
Chigi, os
Chronica Heinrici Svrdi de Selbach
Chronicle of John Strecche, the
Chronicle of London from 1089 to 1483, a
Chronicon Adae da Usk
Chronicon Angliae
Chronique artésienne
Chronique catalane de Pierre IV d ‘Aragon, III de Catalogne
Chronique des règnes de Jean II et Charles V
Chronique du bom Duc Loys de Bourbon, la
Chronique rimée des troubles de Flandre
Cipião Africano
D
Dame à la licorne, la (tapiz)
Dampièrre, Gui de
Dance macabre, la (atr. a Jean Gerson, “Le labourer”)
Dandolo, Andrea
-A finales
Danza de la muerte (anônimo espanhol)
Datini, Francesco di Marco
David, Gérard
Deschamps, Eustache
-Balade
Despencer, os
Detmar
-Lübiscber Chronik
Diario ferrarense
Dinant, Henri de
Disputatio inter clericum et militari
Dlugosz, Jean (Longinus)
-Historia polonica
Donatello
Doria, os
Doria, Andrea
Douglas, os
Duarte de Portugal
-Leal conselheiro
Dunois
Duns Scotus
Dubois, Pierre
-De recuperatione terrae sanctae
Durero, Alberto
E
Eduardo I da Inglaterra
Eduardo II
Eduardo III
Eglentyne, Madame
Eneas Silvio (ver Piccolomini, Eneas Silvio)
Enguerrand de Moustrelet
– Chroniques
Erasmo
-Coloquios
-Elogio de la locura
-Enchiridion
Escavias, Pedro de
-Hechos del condestable don Miguel Lucas de Iranzo
Este, os
Este, Beatriz de
Este, Isabel de
Étampes, conde de
Eulogium historiarum
Eyck, Jean van
F
Fadrique
Faginola, Uguccione della
Faliero, Marino
Falstof, John
Felipe IV da França , o Formoso
Felipe VI
Felipe II, duque de Borgonha, o Atrevido
Felipe III, duque de Borgonha, o Bom
Felipe de Leyden,
-De cura reiei publicae ac sorte principantis
Fenin, Pierre de
-Mémoires
Fernández, Juan
Fernando I de Aragão
Fernando I de Portugal
Ferrante de Nápoles
Flamma, Galvano
– Opusculum de rebus gestis ab Azone, Luchino et Johanne Vicecontibus
Flamma, Giovanni
Flamma, Luchino
Fieschi, os
Fleurange (Robert de la Mark)
-Histoire des choses mémorables advenues du reigne de Louis XII et François I
Fogliano, Guidoriccio da
Folengo, Gerolamo
-Orlandino
Fortescue, John
-De landi bus legum Angliae
-De natura legis naturae
Francesca, Pierro della
-Retrato de Federico de Montefeltro, duque de Urbino, e da duquesa Battista Sforza
Francisco I da França
Francisco, bispo de Córdoba
Franzesi e Biccio Musciatto
Frederico I, imperador, Barba Ruiva
Frederico II
Frederico III
Frescobaldi, os
Frescobaldi, Berto
Frias, Pedro de
Froissart, Jean
-Chroniques
Fugger, os
Fugger, Jakob
G
Gabaston, Pierre de
Games, Gutierre Díez de
-El victorial
Gándara e Ulloa, Felipe de la,
– Armas e triunfos de Galicia; hechos heroicos de los hijos de Galicia
Garcia de Resende
-Chronica de El Rey D. João II
Gattamelata
Gent, João de, duque de Lancaster
Gerson, Jehan
Gerson, Juan
-De unitate ecclesiae
-De auferibilitate papae
-De potestate ecclesiastica
Giano della Bella
Gil Vicente
Giotto
Gonzaga, os
Gonzalez de Clavijo, Ruy
-Embajada a Tamerlán
Goes, Hugo Van der
Gómez Manrique
Gower, John
– Vox Clamantis
Gozzoli, Benozzo
-Adoración de los Reyes Magos (Palácio Ricardi, Florença)
Grandes heures de Rohan, les
GregórioVII
Gregório XI
Grimaldi, os
Grosse Margot, a
Gualterotti, os
Guarini, Guarino
Guesclin, Bertrand du
Guevara, Antonio de
-Menospreáo de corte y alabanza de aldea
Guicciardini, Francesco
– Istoria d ‘Italia
-Ricordi
-Storia fiorentina
Guillaume de Machaut
-Remede de fortune
-Voir dit
Guilherme IV, conde de Holanda
Guilherme de Occam
-Dialogus
-Octo quaestionus decisiones superpotestate et dignitate papali
Guilherme de Nogaret Guillaume de Juliers
H
Habsburgo, os
Hawkwood, John
Henrique IV, imperador
Henrique V
Henrique VII
Henrique II, de Castela, de Trastamara
Henrique III
Henrique IV, o Impotente
Henrique II, da Inglaterra
Henrique IV
Henrique V
Henrique VII, Tudor
Henrique de Herford
-Uber de rebus memorabilioribus sive Chronicon
Hemricourt, Jacques de
-Li patron delle Temporaliteit
-Heures de Charles d ‘Angoulême, les
Historia Bohemiae
Historia del Cavallero de Dios que avia por nombre Cifar
Hompys, Joseph
Hove, Gilbert uten
Hugo de Reutlingen
– Weltchronick
Hugo de Saint-Victor
Hunyady, Juan
Hus, Jan
I
Infantes de Aragão
Iranzo, Miguel Lucas de
Isabel I de Castela
Isabel de Baviera
Isabella de Aragão
Iván lII
J
Jacoba, condessa de Holanda
Jacopo de Viterbo
– De regimine christiano
Jagelones, os
Jaime III, da Escócia
Jan de Zéliv
Janov, Matías de
Jean de Beau
– Chronique de Richard II
Jean de Hainaut
Jean de Hocaem
– Chronicon
Jean de Lannoy
Jean de Troyes
– Histoire de Louis XI (Chronique scandaleuse)
Jean de Venette
– Chronique
– Continuatio chronici Guillelmi de Mangiaco
Jean le Bel
– Chronique
– Melusine
Jehan de Paris
-Tractatus de potestate régia et papali
Joana, a Beltraneja
João XXII, Papa
João VII Paleólogo, imperador
João I de Castela
João II
João I de Aragón
João I de Portugal (Mestre João de Avis)
João II
João, duque da França
João, duque de Borgonha, sem Medo
João Manuel, Infante dom
-Libro de los estados
-Libro de la caza
-Ubro del Caballero et del Escudero
-Tractado sobre las armas
João sem Medo
John of Reading
– Chronica
José, patriarca
Journal d’un bourgeois de Paris
Jouvenal des Ursins, Jean
– Histoire de Charles VI
Juan de Salisbury
– Policraticus
K
Kirkstall chronicle, the
Korner, Herman
-Uibischer Chronik
L
Ladislau II, Jagelão
Lancaster, os
Lando, Michele di
Langland, William
Lammoy, Guillebert de
-Pèlerinages de Syrie et D’Egipte
Le Bouvier, Gilles
-Le livre de la description des pays
Lecog, Robert
Leonardo
Livre des faicts du Mareschal de Boucicaut, le
Livre du chevalier de La Tour Landry, le
Lopes, Fernão
-Crónica de el rey D. Juan
López de Ayala, Pero
– Rimado de Palacio
– Cronicas
Lorenzetti, Ambroggio
-Il buon governo e il mal governo
Luis IV da Baviera, imperador
Luis XI da França
Luis XII
Luis II de Nápoles
Luna, Álvaro de
Lutero, Martinho
M
Malatesta, os
Malatesta, Cario
Malatesta, Segismundo
Mâle, Louis de, conde de Flandres
Malory, Thomas
-King Arthur (Le morte d ‘Arthur)
Mandeville, Jean de
– Voyage and Travayles
Manfredi, os
Manrique, Jorge
– Coplas por la muerte de su padre
Mantegna, Andrea
-A fresco da “Camera degli Sposi” no castelo de Gonzaga em Mantua
Maquiavel, Nicolau
– Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio
– Il Principe
– Ritratto delle cose della Magna
– Ritratto di cose di Francia
– La vita di Castruccio Catracani da Fucca
– Historie Fiorentine
– Dell’arte della guerra
Marcel, Etienne
March, Pere
– C’est qui so fay d ‘on li deu seguir dan
Marche, Olivier de la
-Mémoires
-L’estat de la maison du duc Charles de Bourgogne, dit le Hardy
Margarida, condessa de Flandres
Margarida de Flandres, duquesa de Borgonha
Margarida de York
Margarida, regente da Dinamarca
Mark, Adolfo de la
Mark, Robert de la (ver Fleurange)
Marsilio de Padova
-Defensor pacis
Martini, Simone
Martorell, Joanot
-Tirant la Blanc
Masaccio
Matías de Neuenburg
-Chronica
Maximiliano I, imperador
Mayronis, Francisco de
Medici, os
Medici, Giovanni di Bicci
Medici, Lorenzo de
Medici, Piero de
Medici, Salvestro de
Meire, Walter van der
Meisterlin, Sigismond
– Chronographia augustensium
– Nioronbergensis cronica
Memling, Jan
Menezes, Pedro de
Menino, Pero
-Livro de Falcoaria
Mestre Pierre Pathelin
Mézières, Philippe de
-Epître lamentable
Michelozzo
Milid, Juan
Molina, lic.
-Descripcion del Reyno de Galicia
Molinet, Jean
-Continuación de la crónica de G. Chastellain
Montefeltro, os
Montefeltro, Federico de (duque de Urbino)
Montefeltro, Guidobaldo de
Montefeltro, Nicolò de
Morus, Tomas
-Utopia
-La pitoyable vie du roi Edouard V et les cruautés horribles du roi Richard III
Morte Arthur, le
Mullenheim, os
Muntaner, Ramón
-Crónica
Munzer, Tomás
N
Nevers, Luis de, conde de Flandres
Nicolàs de Cusa
-De concordantia catholica
Niño, Pero
Notke, Bernt
O
Orcagna, Andrea
Ordelaffi, os
Ordenamiento de menestrales (1351)
Ordonnance cabochienne, le
Oresme , Nicolàs de
-Traitie de la première invention des monnoies
Orléans, Charles d’
-Complaintes
Orléans, Luis de
P
Pacioli, Luca
-Summa de arithmetica
Pallavacino, Gaspar
Passavanti, Jacopo
-Specchio della vera Penitenza
Paston, os
Paston letters, the
Paternostermaker
Pazzi, os
Pedro I de Castela, o Cruel
Pedro III de Aragão
Pedro IV “o Cerimonioso”
Pedro I de Portugal
Pedro, infante de Portugal
Pedro de Ailly
Pegolotti, Francesco Balducci
-La pratica della mercatura
Pérez de Gusmán, Fernán
-Generaciones y semblanzas
-Loores de los claros varones
Peruzzi, os
Petit, Jean
-Justification
Petrarca
– Italia mia
-Adltaliam
-Unguinus Italiam
Petrus Cyrnaeus
-Commentarius de bello ferrarienzi
Phoebus, Gaston, conde de Foix
– Traité de la chasse
Piccinino, Niccolò
Piccolomini, Eneas Silvio
-Commentari Pii Secundi
-Tractatus de ortu et autoritate Imperii Romani
-De rebus Basileae gestis
-Comentarii de gestis Basiliensis concilii
-De curialum miseriis epistula
Pierre de Crescens
– Livre des prouffitz champêtres
Piers Plowman (atr. William Langland)
Pilgram, Anton
Pio II (ver Piccolomini)
Pippo Spano
Pisan, Christine de
-Le livre des fais et bonnes moeurs du sage roy Charles V
-Le dit des vrais amants
Platina (ver Sacchi, Bartolomeo)
Plantagenet, os
Platão
Podiébrad , Jorge
Pole, Michael de la
Polo, os (irmãos)
Polo, Marco,
-Il Milione
Pomponio Leto
Portinari, os
Portinari, Beatrice
Portinari, Folco
Portinari, Tommaso
Pulci, Luigi
-II morgante
Pulgar, Hernando del
-Crónica
-Libro de los claros varones de Castilla
-Letras
-Glosa a las coplas de Mingo Revulgo
Q
Quinze joyes de mariage, les
Quiñones, Suero de
R
Rabelais, François
Raoul de Presles
-De potestate et pontificali et imperiali sui regia
Regnier, Jehan
-Les fortunes et adversites
René d’Anjou
-Traicté de la forme et devis comme on fait les tornois
-Le mortifiement de vaine plaisance
-Le livre du cueur d’amour espris
-Heures
Reuental, Neidhart von
Revelour, Perkin
Reis Católicos, os
Ricardo II da Inglaterra
Ricardo III
Richental, Ulrich von
-Das conciliumbuch zu Constanz
Rinuccini, os
Roberto de Anjou
Roberto da Baviera
Rodríguez de Lena, Pero
– Libro del passo honrosso
Rodríguez del Padrón, Juan
-Triunfo de las donas
Rolin, Nicolàs
Rolls of Parliament
Roman de Jehan de Paris, le
Roman de Renart, le
Ruccelai, os
Ruperto del Palatinado (imperador)
S
Sabellicus
Sacchetti, Franco
-Novelle
Sacchi, Bartolomeo, Platina
-Historia urbis Mantua
Sachs, Hans
-Das Stàndebuch
Sachenspiegel, der
Salutati, Coluccio
-De tyranno
San Pedro, Diego de
-Tractado de amores de Arnalte e Lucenda
-Cárcel de amor
Santa Maria, Afonso
Santa Maria, Pablo
Santillana, Marquês de
-Comedietta de Ponça
-Doctrinal de privados
-Serranillas
-Carta… al condestable de Portugal
Sarnow, Karsten
Scali, os
Scala, Can della
Scrovegni, os
Scheurl, Christoph
-Concerning the Polity and Government of the Praiseworthy City of Nuremberg
Sigismundo, imperador
Selbach, Heinrich Taube von
-Chronik
Sforza, os
Sforza, Alessandro
Sforza, Francesco
Sforza, Galeazzo Maria
Sforza, Giovanni Galeazzo
Sforza, Ludovico, o Mouro
Simon Le Coutelier (Caboche)
Simonetta, Giovanni
-Rerum gestarum Francisci Sfortiae, libri XXXIII
Sipontino, bispo
Soler, Calcerán de Requesens
Songe du vergier, le
Spinola, os
Statute of labourers
Statutes of the Realm
Sterz, Alberto
Stitny, Tomás de
Strozzi, os
Stuart, os
Syrlin, Jörg
T
Tani, Angelo di Jacopo
Téllez, Leonor
Tello, bispo
Teodorico II, arcebispo
Tepla, Johannes von, o camponês da Boêmia (ver Ackermann und der Tod, der)
Ternant, senhor de
Tiffi, Scaglia
Till Eulenspiegel
Tolentino, Niccolò de
Tomás de Aquino, Santo
Torello, Guido
Torquemada, João de
Torre, los della
Trastamara, os
Très-joyeuse et récreative histoires de faicts, gestes, triomphes et promesses du bom chevalier sans paour et sans reproche, gentil seigneur Bayart
Très riches heures du duc de Berry, les
Trie, Renaud de
Tyler, Wat
U
Ucello, Paolo
Unam sanctam (Bula)
Urbano V
Urbino, duque de (ver Montefeltro)
Urgel, conde de
Urslingen , Guarnieri d’
Usani
Uzzano, Giovanni di Antonio da
-Pratica della mercatura
V
Valdés, Alfonso de
-Diálogo de Mercurio y Carón
Valera, Diego de
-Crónica de los Reyes Católicos
-Memorial de Diversas Hazañas
Valois, os
Valia, Lorenzo
-Historiarum regis Aragoniae libri III
Vasco de Aponte
– Relación de algunas cosas y linajes del reino de Galicia
Vasques, Fernando
Vere, Robert de
Vergil, Polydor
-Anglicae historiae
Verrocchio
Vespasiano da Bisticci
– Vite di uomini illustri del secolo XV
Vettori, Francesco
-Sommario della storia d’Italia dal 1511 am 1527
Viana, príncipe de
Villandrando, Rodrigo de
Villani, Giovanni
– Crónica
Villani, Matteo
– Crónica
-Historia
Villasandino, Alfonso Álvarez de
Villena, Henrique de
-Arte de trovar
-Arte cisoria o Tractado del arte de cortar del cuchillo
Villon, François
-Le grand testament
Visconti, os
Visconti, Azzone
Visconti, Barnabò
Visconti, Filippo Maria
Visconti, Galeazzo I
Visconti, Galeazzo II
Visconti, Gian Galeazzo
Visconti, Giovanni (arcebispo)
Visconti, Mateo I
Vitae paparum avenionensium
Vitry, Philippe de
-Dicts Franc Gontier
Vittorino de Feltre
W
Waldemar IV da Dinamarca
Waal Dhauser, Conrado
Walsingham, Thomas
-Historia anglicana
Waroux, os
Wavrin, Jean de
-Anciennes chroniques d ‘Angleterre
Wattenwailer, Heinrich von
-Der Ring
Weiden, Van der
Wenceslao, imperador
Wettin, príncipes de
Winterthur, Johan von
-Chronica
Wittelbach, príncipes de
Wulflam, os
Würtemberg, príncipes de
Würtemberg, conde de
Wycliffe, John
Y
Yolanda de Aragão
York, os
Z
Zizka, Juan
Zorn, os