ÍNDICE
APRESENTAÇÃO, por Afonso Carlos Marques dos Santos
PREFÁCIO, por Luis Alberto Romero
INTRODUÇÃO
1. A AMÉRICA LATINA NA EXPANSÃO EUROPÉIA
1. A primeira expansão européia para a periferia
2. O papel das cidades na expansão para a periferia
3. Atitudes senhoriais e atitudes burguesas
4. Os ajustes da sociedade feudo-burguesa
5. A segunda expansão européia para a periferia
6. As sociedades que criaram os impérios
1. As cidades e as funções preestabelecidas
2. Os grupos urbanos originários
3. O ato fundador
4. A mentalidade fundadora
3. AS CIDADES FIDALGAS DAS ÍNDIAS
1. A formação de uma sociedade barroca
2. Os processos políticos
3. Fidalguia e estilo de vida
4. Do projeto incipiente à cidade edificada
5. Da mentalidade conquistadora à mentalidade fidalga
1. A velha e a nova economia
2. Uma sociedade criolla
3. A nova fisionomia urbana
4. Reformas e revoluções
5. As burguesias criollas: ilustração e mudança
1. A cidade e o campo
2. Burguesias e patriciados
3. A luta pelas ideologias
4. Panorama da cidade
5. Uma convivência acriollada
1. Transformação ou estagnação
2. A mobilidade das sociedades urbanas
3. O exemplo de Haussmann
4. A cotidiana imitação da Europa
5. Tensões e enfrentamentos
6. O apogeu da mentalidade burguesa
1. A explosão urbana
2. Uma sociedade dividida
3. Metrópole e favelas
4. Massificação e estilo de vida
5. Massificação e ideologia
APRESENTAÇÃO
CIDADES COMO IDÉIAS
Afonso Carlos Marques dos Santos
Professor Titular de Teoria e Metodologia da História da UFRJ
O arquiteto Aldo Rossi, ao tratar da memória coletiva no livro clássico A arquitetura da cidade, cuja primeira edição italiana é de 1966, considerou que “as grandes idéias percorrem a história da cidade e a conformam”.1 José Luis Romero, ao publicar, dez anos depois, Latinoamérica: las ciudades y las ideas,2 buscou não apenas compreendê-las no universo circunscrito das ideologias, mas também identificar seu papel na história da América Latina. O processo histórico tinha, para ele, um fio condutor de difícil apreensão, dentro de um quadro aparentemente confuso, tarefa que, no entanto, precisava ser enfrentada. E as cidades, como lugar das mudanças, poderiam oferecer as chaves interpretativas para um fenômeno que esteve à mercê tanto dos impactos externos quanto das idéias nelas produzidas, idéias que corresponderam a “importações” sucessivas, mas que também eram o resultado das peculiaridades de cada estrutura urbana.
Romero estava disposto a ultrapassar a história política tradicional, que reduzia a história das cidades aos aspectos factuais do exercício do poder e na qual o fenômeno urbano permanecia incompreensível em sua complexidade. Sua proposta era a de “estabelecer e organizar o processo da história social e cultural das cidades latino-americanas”, exigência que pode ser compreendida nas indicações de Luis Alberto Romero, no Prefácio a esta edição, sobre o lugar que o autor reservara para a história da cultura na sua trajetória de historiador social. Além disso, a síntese histórica sobre o fenômeno urbano no continente deveria dar conta da sua inserção contraditória na cultura ocidental: da expansão européia do final do século XV à massificação das cidades no capitalismo do século XX. A realização deste projeto, entretanto, só se tomou possível na pena de um historiador da cultura ocidental com a erudição e o rigor de José Luis Romero.
A publicação da tradução brasileira desta obra, quase três décadas após o seu acidentado lançamento pela editora Siglo Veintiuno Argentina, faz parte de um conjunto de esforços para a divulgação mútua de autores argentinos e brasileiros nos dois países. É a tentativa, retomada por várias gerações, e interrompida durante as ditaduras, de estabelecer o diálogo, eliminar preconceitos, descobrir identidades e inaugurar novas formas de colaboração intelectual. Lá, como aqui, os golpes militares foram desastrosos em todos os níveis da existência humana. No nosso caso particular, o da vida universitária e da produção do conhecimento histórico-social, as destruições e as perdas deixaram marcas profundas, interrompendo projetos e eliminando profissionais e práticas institucionais. É hora de reverter esse processo de desconhecimento mútuo e de romper com a tradição perversa dos nossos bovarismos nacionais.
Com todas as ressalvas necessárias, América Latina: as cidades e as idéias é uma espécie de lugar da memória do melhor pensamento produzido nesta parte do Novo Mundo, tanto pelas qualidades intelectuais e características pessoais do autor, quanto pelas referências históricas e culturais que elencou. José Luis Romero, num livro sem notas de pé de página e sem se deixar seduzir por questões datadas, nos legou uma obra na qual as idéias, confrontadas com as complexas realidades sociais do continente, são trabalhadas por um historiador que não distinguia entre seu compromisso com o rigor e a possibilidade de intervir no presente histórico vivido, como atestam as utilíssimas informações biográficas que seu filho, o historiador Luis Alberto Romero,3 nos oferece no Prefácio.
Uma avaliação do papel historiográfico do grande historiador pode ser encontrada no estudo de Tulio Halperin Donghi, “José Luis Romero y su lugar en la historiografia argentina”, publicado originalmente na revista Desarrollo Económico e inserido posteriormente num conjunto de ensaios de Donghi.4 Quem desejar conhecer também o conjunto da obra de J. L. Romero e a bibliografia sobre ele até 1998 pode consultar o artigo de José Omar Acha, da Universidade de Buenos Aires, intitulado “José Luis Romero (1909-1977): bibliografia comentada para una historia intelectual”.5 O mexicano Alexander Betancourt Mendieta publicou recentemente o estudo historiográfico Historia, ciudad e ideas. La obra de José Luis Romero.6 Em dezembro de 2001, na conceituada revista de cultura Punto de Vista, três importantes autores, motivados pela nova edição argentina de América Latina: as cidades e as idéias, também comentaram, de forma instigante e diferenciada, a importância da obra.7
Recomendo ainda, para se conhecer o projeto historiográfico de José Luis Romero, a leitura de seu livro recentemente reeditado na Argentina, Crisis y orden en el mundo feudoburgués, que conta com uma “Advertencia”, por Luis Alberto Romero; uma “Presentación”, por Jacques Le Goff; e “Un estudio preliminar”, por Carlos Astarita.8 Jacques Le Goff, o grande historiador medievalista francês a quem a historiografia produzida no século XX deve tantos avanços temáticos e metodológicos, chama a atenção para o fato de que “arte e literatura são expressões e testemunhos privilegiados das sociedades históricas” e observa que José Luis Romero foi um dos historiadores mais cultos de seu tempo, tendo dado “aos testemunhos artísticos e literários um lugar particularmente impactante, em contraste com o relativo silêncio dos medievalistas açambarcados pelas fontes jurídicas (que não desdenha)”.9 Destaca, também, que um dos melhores textos de outro livro de Romero, Ensayos sobre la burguesia medieval, trata de “Dante Alighieri y el orden del mundo”. Para Le Goff, nesse ensaio de 1961, o uso do termo “espírito” anuncia o de mentalidade e define o “espírito burguês”.10 Le Goff observa que é a sociedade concreta o que atrai Romero, que, por sua vez, considera o ofício de historiador como algo que abrange uma face realista e uma face imaginária da história. Romero seria o pioneiro de uma história das representações e do imaginário (e isso sem empregar diretamente esses termos, que emergiram na historiografia pouco depois do seu desaparecimento).11 Outra observação de Le Goff é que
a concepção fundamental da evolução histórica para José Luis Romero é a de uma perpétua mudança – palavra onipresente na sua obra –, que ocorre em etapas, do surgimento inicial de novidades, passando pelo desenvolvimento de crises e finalmente ocorrendo a revolução. Surge daí uma visão otimista da história, mais acabada e mais rica que a idéia de progresso, em crise na época em que escrevia, e que não o atraiu.12
Le Goff conclui sua apresentação ao livro de 1980, reeditado recentemente na Argentina, aludindo ao parentesco das idéias de Romero com as de seus contemporâneos dos Annales, observando que “a imagem, a nova imagem que lhe apareceu no coração do fenômeno burguês e, por conseguinte, da reflexão e da paixão do historiador, é a do homem. José Luis Romero foi um grande pioneiro da antropologia histórica”.13
O grande historiador argentino Tulio Halperin Donghi, por sua vez, considera que é em América Latina: as cidades e as idéias, neste livro “admirável e tardio”, que Romero assume explorar o sentido da trajetória histórica latino-americana como tarefa legitimamente sua.14 Para Donghi, este é um livro maior não apenas no conjunto da obra de Romero, mas na própria historiografia latino-americana, sendo marcado por uma visão própria do passado e do presente desta parte do continente.15 Ao comentar o índice de autores citados, chama atenção para a sua especificidade, uma vez que relaciona primordialmente fontes, sobretudo testemunhais, como aquelas que aprendeu a desentranhar magistralmente em seus estudos medievais. Duas outras características são ainda observadas: a presença da literatura disputando lugar com testemunhos mais diretos e o fato de ter prescindido de inteirar-se do “estado da questão” na historiografia. Romero preferiu “entrar na história urbana da América Latina quase como um explorador em terra incógnita”.16
José Luis Romero trouxe sua experiência com os estudos do medievo europeu17 para a história urbana latino-americana, contribuindo também, na expressão de Donghi, com “o seguro domínio de um estilo de reconstrução histórica”. E, neste deslocamento de experiência, revela uma “consciência muito viva da diferença profunda entre o fenômeno urbano na Europa medieval e pós-medieval e na América Latina”. Para Donghi, é essa consciência “que permite a Romero dar conta das peculiaridades e da originalidade da trajetória histórica das cidades latino-americanas”.18 E no estudo da etapa colonial que Romero indica as diferenças de origem e finalidade das cidades, visto que não surgem de nenhum processo social espontâneo, mas da dominação política e da exploração econômica das populações conquistadas, fato que afeta todos os aspectos da vida urbana. Ao colocar o dado colonial no centro da sua análise das cidades fidalgas e crioulas, Romero, como destaca Donghi, estaria preparando uma imagem da mudança trazida pela independência, recusando as interpretações que teimam em diminuir o alcance da ruptura. Na história urbana latino-americana, a independência seria, para José Luis Romero, a fronteira entre a cidade crioula e a patrícia.19
O crítico literário Noé Jitrik,20 que conheceu José Luis Romero, tenta ordenar as idéias que uma leitura atual da obra poderia suscitar, e encontra três razões para reafirmar a grandeza do livro: a primeira, o fato de tratar-se de um livro de recorte latino-americano, um tipo de abordagem que não era usual na Argentina de então, quando Romero o idealiza e escreve – a América Latina era vista como distância, e as diferenças eram postas acima das semelhanças. Não era essa a posição de Romero, pois buscou as proximidades, compreendendo a questão pela via da história, uma história de vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, uma história de força, porém uma força sempre detida, sempre frustrada. A segunda razão que Jitrik registra é a qualidade da “escritura”, um relato histórico, cuja escrita, no entanto, é dotada da respiração necessária para que as idéias e o aparato funcionem, propondo ou postulando entidades de conhecimento de outro nível. A terceira razão residiria no próprio enfoque de caráter histórico, dirigido à entidade ou à estrutura da cidade. Este núcleo único, ao organizar a pesquisa, daria conta de um processo mais amplo: o entendimento do processo de criação, instalação e desenvolvimento das cidades na América Latina viabiliza a compreensão desta parte do continente, tanto em sua grandeza propositiva como em sua miséria conflitiva. Este procedimento, observa Jitrik, comportaria uma teoria da história e da historiografia que sintetiza avanços da chamada história social e permite medir seus resultados.21
Noé Jitrik propõe que nos detenhamos neste aspecto do livro de Romero: a escolha do tema da cidade para fazer história. Por detrás do tema, estariam os ecos de várias tradições, especialmente a de Sarmiento, com todo o seu potencial conflitivo para o caso argentino.22 As cidades na obra de Romero surgiriam, na percepção de Jitrik, em diapasão com o campo e se explicariam por uma dialética de fundo marxista que não precisa explicitar-se como tal nem sustentar as felicidades do método de Marx. Campo e cidade são apresentados como âmbitos conceituais encarnados em imagens procedentes da narrativa literária. Com isso Romero se afasta de ortodoxias discursivas e constrói um discurso próprio, apto, como considera Jitrik, para entender a dramaturgia da conformação latino-americana e, sobretudo, para entender que o discurso historiográfico é também um fato narrativo e de escrita.23 As cidades, como sugere José Luis Romero, surgem também por metáfora, como conseqüência de uma necessidade de designação que toma a forma de uma rede sobre a qual se assenta o pensamento de um império colonial.
Romero vai da descrição à interpretação, e Jitrik faz notar que, se a descrição não é minimalista, mas essencialmente cenográfica, a interpretação das monstruosas concentrações da riqueza e da propriedade, num rastro de apropriações desmedidas e num quadro de ferozes desigualdades e injustiças, se dá por pinceladas, por vezes irônicas. Numa última avaliação, Noé Jitrik afirma:
A reaparição do livro de Romero, tantos anos depois, é um acontecimento: pois conserva os alcances de sua proposta e, eventualmente, aqueles que não puderam ser percebidos quando do seu lançamento, mas conserva também a sedução do seu gesto intelectual. Isso, precisamente nestes momentos em que esta categoria está tão dissolvida, propõe uma reconcentração, um voltar a pensar mais além de urgências discursivas que bem podem ser puro ruído, o que, classicamente, não leva a nenhum lugar.24
O historiador Carlos Altamirano25 lembra que José Luis Romero introduziu a história social no âmbito dos estudos universitários na Argentina – a história social tal como se configurou ao longo de trinta anos e tal como foi conhecida no mundo. Para aí apontava a bibliografia trabalhada por Romero em sua cátedra, de Marc Bloch a Pierre Vilar, entre muitos outros, assim como o uso da idéia de uma “história total”, como a utilizada pelos Annales e proposta por Lucien Febvre. Altamirano afirma, no entanto, que, mesmo com os dados fornecidos pela trajetória de Romero e com suas explicitações no livro em questão, não se sente seguro para incluir este livro de difícil classificação na vertente da história social. Muitos de seus temas pertenceriam, sem dúvida, à história social, porém outros se inscreveriam nos domínios da história política, da história das idéias e da história urbana. Contudo, é justamente a mediação entre esses temas que constitui uma das qualidades do autor na composição de América Latina: as cidades e as idéias. Diante destas dificuldades e sendo necessário escolher, Carlos Altamirano prefere situar a obra em outro quadro, o da história cultural, considerando que Romero nos legou um ensaio de história cultural da América Latina através de suas cidades, o que é coerente com suas iniciativas anteriores, como a publicação que dirigiu, entre 1953 e 1956, Imago Mundi, cujo subtítulo era Revista de História da Cultura, antes de assumir a cátedra de História Social na Universidade de Buenos Aires, e a direção de um centro de História da Cultura na Universidade de Montevidéu. Contudo, indícios na mesma direção podem ser encontrados em vários títulos de sua obra, nos quais se fazem presentes expressões como “contatos culturais”, “imagens”, “idéias” e “ideologias”.26
Nos textos que Romero dedicou à natureza da sua disciplina, como os que foram reunidos no livro La vida histórica,27 declara sua dívida com pensadores que, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, sobretudo no âmbito da cultura alemã, se propuseram dar fundamento às ciências do mundo histórico – as chamadas ciências do espírito, por oposição às ciências da natureza. Para Romero, as bases epistemológicas do saber histórico haviam sido estabelecidas por autores como Windelband, Rickert, Croce e, sobretudo, Dilthey. Deles é que extraíra as premissas de seu enfoque historiográfico, que faz das culturas e dos grupos sociais o objeto próprio do conhecimento histórico.28 Altamirano acredita que foi sobre esta base culturalista que se operou a recepção da história social em Romero.
Mesmo levando em consideração que a história da América Latina é, por sua vez, urbana e rural, a cidade é o foco dinâmico dessa história, como observa Romero, que reconheceu o fato de a sua obra ter herdado a dicotomia do Facundo de Sarmiento, ainda que não tenha herdado o seu sistema axiológico.29 A cidade surge, no território que se constituiria na América Latina, como fruto de uma visão e instrumento de uma missão. Romero chamou de “cidade ideológica” ao núcleo urbano original do propósito de domínio sobre um território que o conquistador considerava culturalmente vazio. A história posterior será marcada pelo processo de diferenciação que atua sobre esse esquema inicial, próprio do ciclo de fundações, processo que se desdobra numa série de constelações urbanas: as cidades fidalgas, as cidades crioulas, as cidades patrícias, as cidades burguesas e as cidades massificadas.
Assim como a cidade, o campo também aparece como lugar de uma ideologia, e Romero, num caso e noutro, colocará a ênfase nos estilos de vida e na elaboração ideológica da experiência. A este raciocínio, acrescenta Carlos Altamirano duas observações: a primeira, o fato de o livro, reconhecido como um clássico pelas historiografias argentina e latino-americana, não ter deixado descendentes, com a exceção, talvez, de La ciudad letrada, de Ángel Rama;30 a outra refere-se ao estilo intelectual de Romero, marcado pela sobriedade, contenção e certa reserva irônica para evitar que a paixão cívica, que reivindicava para o seu trabalho historiográfico, se convertesse numa desculpa patética.31
Outra avaliação significativa, publicada por Punto de Vista, é a que fez Adrián Gorelik32 no artigo “Un optimismo urbano”, em que assinala que América Latina: as cidades e as idéias é
um livro que tem a rara virtude de ser cada vez mais atual, ainda que de uma maneira sempre peculiar: tanto […] quando foi publicado pela primeira vez e não se falava de nada chamado “cultura urbana latino-americana”, quanto agora, quando sob esse nome já se desenvolveu um pequeno boom dentro dos “estudos culturais”, o livro de Romero tem a peculiaridade de se manter, por diferentes razões, desajustado. De início porque surgiu numa conjuntura favorável à crescente importância da cidade e de sua história, desde os anos 1950, na América Latina. Porém, frente a uma historiografia basicamente monográfica, América Latina: as cidades e as idéias continua sendo o único empreendimento que procura abarcar a história cultural urbana do continente da colonização ao século XX. Uma tentativa só possível pelo enorme talento narrativo do autor, que organiza uma multidão de materiais, em sua maioria literários, em tomo de uma série de hipóteses, tão complexas quanto firmemente articuladas.33
Mas o que significa para Romero uma história cultural urbana, a não ser uma história ideológica das sociedades urbanas que é também uma história ideológica da América Latina? Gorelik atenta para o fato de que “ideologia deve entender-se como forma social: corpo de crenças, idéias, valores e estilos de vida que encarnaram em diferentes grupos sociais e em diferentes localizações sociais”.34 Gorelik observa que a cidade, como expressão autêntica do continente latino-americano, é, para Romero, desde o século XVI, uma
projeção do mundo europeu, mercantil e burguês, e as cidades são o âmbito em que essa projeção se realiza, os baluartes da fronteira daquele mundo europeu, os postos avançados que buscam organizar, à sua imagem e semelhança, o estranho, enorme e desconhecido território em que se incrustam. Neste sentido, a cidade é também uma ideologia e sua própria criação, por vezes tão original e tão pendente dos modelos que toma: uma forma urbana e mental de longa duração.35
Um dos temas centrais do livro, como acentua Gorelik, são os mecanismos pelos quais a cidade e a realidade que a circunda vão se modificando mutuamente, hostis ao ponto de chegar a conformar duas ideologias contrapostas. Toda a história social e política latino-americana, para Romero, seria definida por esse conflito perceptível nas cidades e que é basicamente cultural. Da homogeneidade à crescente diferenciação, tudo é visto por meio do entrecruzamento de dois tipos de processos de desenvolvimento: os heterônomos e os autônomos. Nos primeiros se dá o impacto das transformações econômicas e das correntes de idéias européias; e, nos segundos, surge a consciência sobre a região, a sociedade que a habita e suas formas ideológicas. Apesar de Romero ser mais rico no trabalho histórico do que no conceituai, seu objetivo é identificar, como observa Gorelik, “na história ideológica das sociedades urbanas latino-americanas, a convivência tensa entre representações e realidades: entre o que fica do desígnio, incompleto e desmentido, e a própria realidade que, em seu fracasso, chega a constituir”.36 Gorelik cita o exemplo da cidade fidalga como produto do desenvolvimento heterônomo: cidadela social e cultural que busca definir-se como uma Nova Europa. Contudo, de dentro desse desenvolvimento econômico (heterônomo), no seu interior, começa a surgir uma nova sociedade burguesa. E é a sociedade sui generis formada no campo que permite uma nova mentalidade rural, produto por antonomásia do desenvolvimento autônomo, o que vai robustecer a antiga sociedade fidalga em seu conflito interior com a burguesia. Tulio Halperin Donghi, em 1995,37 já havia observado que no livro de Romero a burguesia crioula aparece fugazmente para desaparecer, não porque tenha sido derrotada, mas porque se confunde imediatamente com as velhas e novas elites de base rural que darão o tom a essa nova cidade. São misturas análogas às que ocorrem nos anos 1930 na “cidade massificada”, o que remete ao tema da industrialização e à dificuldade que terão os setores tradicionais para conviver ao lado de um terceiro setor, populista, originário do aparecimento das massas e que se coloca em posição de as conduzir. Gorelik registra ainda para o fato de que essas massas levam no seu interior o conflito principal entre desenvolvimento autônomo e desenvolvimento heterônomo. Produto de uma nova “ofensiva do campo sobre a cidade”, reproduzem no plano urbano aspectos de sua cultura rural; porém, com isso, não fazem senão contribuir para o maior processo de heteronomização européia e norte-americana da cultura latino-americana, a industrialização.38
A análise recente do arquiteto e historiador Adrián Gorelik sobre o livro de José Luis Romero é, de fato, notável, pois trata-se de um pesquisador e intérprete do fenômeno urbano por excelência e que pensa a questão com grande densidade filosófica. Identifica em Romero o tema do conflito – cidade/campo, elites/massas – como um dos que lhe são caros, mas não tanto para alimentar a idéia de uma sociedade cindida – ainda que a história latino-americana seja bastante marcada por momentos de forte cisão –, e sim para mostrar a cidade como o resultado de contínuas combinações e compromissos das muitas facetas do existente com a difícil emergência do novo, cidade sempre diferente do projeto urbano inicial. Gorelik também estabelece nesse artigo uma correlação entre Romero e Martínez Estrada,39 pois em Romero a cidade se fundamentaria no medo diante do outro e no fracasso de sua tentativa de impedir a fusão decorrente da “ofensiva do campo”, idéia que pode ser equiparada à “vingança do outro” de Martínez Estrada.
Romero busca identificar as funções cambiantes do velho no novo, denunciando sua imutabilidade sob as marcas do progresso. Porém sem uma visão imobilista da história, ou que faça do conflito seu ponto de chegada. Gorelik indica que é ao conflito em si mesmo que a sensibilidade de Romero está atenta. O conflito que torna dinâmica uma sociedade deve ser buscado nas fronteiras culturais que sempre se produzem quando diferentes universos entram em colisão. Por isso, Gorelik considera que o período mais rico do livro é o dedicado ao século XIX, quando Romero identifica projetos em luta mais fortes e claros. Nas fronteiras culturais, aposta na possibilidade de que os conflitos encontrem uma via de conciliação, a ambicionada criação de uma “cultura comum”. E a cidade é o lugar onde isso pode acontecer.40
É esse “otimismo urbano” detectado por Adrián Gorelik que permite a Romero vincular sua perspectiva da cidade com os estudos urbanos de seu tempo. A história urbana latino-americana nasce nos anos 1950, paradoxalmente, como parte das políticas de desenvolvimento e modernização – nas quais a cidade ocupa um lugar central, recebendo delas algumas marcas notáveis. Gorelik lembra muito bem o nome de Jorge Enrique Hardoy, emblemático nessa peculiar combinação de curiosidade histórica, pulsão modernizadora e produção de instituições continentais. Boa parte das perguntas que organizavam a agenda historiográfica de então acompanha o próprio processo de modernização das cidades. José Luis Romero não esteve imune a esse processo e aos debates do período, ainda que o fato de privilegiar a sociedade civil, e não Estado, assinalado por Omar Acha, o tenha impedido de estar plenamente sintonizado com o clima planificador.41
Gorelik não deixa de sublinhar o fato de que todos os temas e problemas relativos ao planejamento estão presentes, como um tênue alinhavo, em América Latina: as cidades e as idéias. Por exemplo, as discussões sobre o caráter diferencial da cidade latino-americana em relação à européia, que supunham analisar a célebre caracterização de Henri Pirenne, invertendo o sentido da relação que traçava entre cidade e campo (cidade centrípeta européia versus cidade centrífuga americana). Num rápido balanço de tendências, Gorelik considera que é possível entender a fórmula autonomia/heteronomia como uma posição singular de Romero diante das idéias de dependência e influência, centrais naquele debate.
Gorelik identifica, além dos temas encontrados por Romero na literatura argentina, as influências de autores que vão de Simmel e da Escola de Chicago à teoria da modernização, o que lhe permitiu encontrar algo de novo em Sarmiento, extraindo daí a firmeza de seu “otimismo urbano”, magnificamente retratado na reinterpretação que deu da antinomia entre civilização e barbárie como uma antinomia entre liberdade e necessidade: a necessidade como combinação de natureza e cultura – elementos dados; a liberdade como a ação humana criadora para se sobrepor a essas determinações. Para Gorelik, Romero estaria aí se remetendo a uma definição clássica, como a que registrou Hannah Arendt em sua leitura da pólis grega, na qual a liberdade é o público, a política e a cidade, ao passo que a necessidade é o privado, a economia e o mundo doméstico. O campo seria, assim, para o Romero que relê Sarmiento, a barbárie da necessidade e da liberdade, que, como possibilidade, só pode se aninhar na cidade. Tudo isso levaria a um recorte muito nítido nas maneiras alternativas de pensar a cultura urbana nos últimos anos.
Outro autor a ser considerado é Angel Rama e sua avaliação da “cidade letrada”, melhor sintonizada com o ânimo atual dos estudos culturais urbanos, em seu modo paradoxal de recorrer à cidade como bastião e ruína de uma modernidade opressora. Romero escreveria, em resposta, assumindo os valores da “cidade letrada”. Essa visão se basearia num programa reformista que aspira a incluir as massas nos benefícios da cultura letrada, não de um modo passivo, mas para que possam modificá-la e enriquecê-la.
Gorelik afirma que Carlos Altamirano já havia mostrado o valor ambíguo que assume a noção de “sociedade aluvial” em Romero, os profundos obstáculos que ele percebia nesse composto social heterogêneo para que se alcançasse a necessária coesão: a produção de uma cultura comum é muito complexa e, pelo menos no caso da sociedade argentina, Altamirano mostraria que Romero não tinha muita confiança de que se pudesse levar o desafio a cabo e com êxito.42 Adrián Gorelik, no entanto, conclui afirmando que, apesar da desconfiança de José Luis Romero na sociedade, “não acredita que seja necessariamente contraditório assinalar que manteve sempre, e este livro [América Latina: as cidades e as idéias] é o melhor exemplo, confiança na cidade, não como cenário para essa cultura comum, mas como motor imprescindível para a sua produção”.43
Promover a tradução e a publicação desta obra no Brasil é um desejo antigo, que a Editora UFRJ vem viabilizar, numa conjuntura de aproximação entre pesquisadores dos dois países irmãos que é, no entanto, atravessada por todas as dificuldades históricas de integração da Argentina e do Brasil em contexto latino-americano de maior alcance. José Luis Romero e seu livro se inscrevem nesse esforço de compreensão do continente. Sua singularidade e atualidade permanecem vivas, como mostram as avaliações mais recentes de sua obra. Poderíamos mencionar algumas particularidades na comparação entre a América espanhola e a portuguesa, pois aqui se verifica um fenômeno geopolítico que alterou profundamente a tipologia da autonomia política e o desenvolvimento da urbanização dos grandes centros. Trabalhamos esta questão em estudos como “Da colonização à Europa possível: as dimensões da contradição”, no texto “A invenção do Brasil: um problema nacional” e no livro No rascunho da nação,44 entre outros. A questão civilizatória e da modernização urbana no caso brasileiro tem surgido em ensaios como “A Academia Imperial de Belas-Artes e o projeto civilizatório do Império”,45 “O Paço da cidade: biografia de um monumento” e “Entre a forma e o ideal: um emblema da civilização”, publicado como introdução à reedição do livro de Pedro Calmon sobre o Palácio da Praia Vermelha.46 Devo mencionar também duas importantes publicações que expressam as tentativas bem-sucedidas de Monica Hirst, presidente da Fundación Centro de Estudos Brasileiros (Funceb), localizada em Buenos Aires, e que são o resultado dos produtivos seminários “Brasil-Argentina: a visão do outro”, realizados com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), sob os auspícios do Itamarati. São dois livros que documentam a aproximação entre brasileiros e argentinos e que exemplificam os esforços realizados e nos quais pudemos publicar o ensaio “A cidade do Rio de Janeiro: de laboratório da civilização à cidade símbolo da nacionalidade”, em diálogo com o texto de Eduardo Hourcarde, da Universidade Nacional de Rosario, intitulado “La historia de la ciudad de Buenos Aires y la constitución de representaciones de la identidad nacional argentina”,47 e o ensaio “A construção do Estado imperial no Brasil: soberania e legitimidade”, em diálogo com o texto de José Carlos Chiaramonte, da Universidade de Buenos Aires, intitulado “La cuestión de la soberania en la génesis y constitución del Estado argentino”.48
Há muita coisa para ser feita no que diz respeito às aproximações culturais entre os dois países e que passa, sem dúvida, pelas trocas editoriais. Importantes autores brasileiros, como Boris Fausto, da USP, e José Murilo de Carvalho, professor titular de História do Brasil da UFRJ, têm sido publicados em periódicos e livros na Argentina, especialmente na Universidade de Quilmes. Outros historiadores argentinos estão sendo traduzidos para o português e serão publicados por editoras do Brasil, como José Carlos Chiaramonte, Luis Alberto Romero, Carlos Altamirano, Fernando Devoto e Adrián Gorelik, isso para não falar da reconhecida ensaísta Beatriz Sarlo, que integra, há muito tempo, o catálogo da Editora UFRJ.
Notas
1. Aldo Rossi. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 198.
2. José Luis Romero. Latinoamérica: las ciudades y las ideas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Argentina, 1976.
3. Luis Alberto Romero, filho de José Luis Romero, é um dos mais importantes historiadores argentinos. Pesquisador senior do Conicet, é professor titular da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, do Mestrado em Ciências Sociais da Flacso e da Universidade Nacional de Tucumán. É autor, entre outros trabalhos, de Sectores populares, cultura e política: Buenos Aires en la entreguerra (com Leandro H. Gutiérrez, 1995); Qué hacer con los pobres. Elite y sectores populares en Santiago de Chile en el siglo XIX (1996); Volver a la historia (1997); Grandes entrevistas de la historia argentina (com Sylvia Saítta, 1998); Grandes discursos de la historia argentina (com Luciano de Privitellio, 2000); Argentina. Crónica total del siglo XX (2000); Buenos Aires, historia de cuatro siglos (co-dirigido com José Luis Romero, 1. ed.: 1983; 2. ed. ampliada: 2000); Breve historia contemporánea de Argentina (1. ed.: 1994; 2. ed. ampliada: 2001; 4. reimpressão: 2003). Foi diretor acadêmico da coleção “Historia Visual Argentina”, publicada pelo jornal Clarín, e da coleção “Los nombres del poder”, da editora Fondo de Cultura Económica.
4. A primeira divulgação deste texto foi em Desarollo Económico, v. 20, n. 78, jul.-set. 1980. A segunda, em Tulio Halperin Donghi. Ensayos de historiografia. Buenos Aires: Ediciones El Cielo por Asalto, 1996, p. 73-105.
5. José Omar Acha. José Luis Romero (1909-1977): bibliografia comentada para una historia intelectual. Revista Iberoamericana de Bibliografia, Washington, n. 2,1998, p. 409-436. Do mesmo autor, veja-se também: José Luis Romero como tradición. Para una discusión histórico-política. El Rodaballo, n. 6, 1997; e La trama profunda. Historia y vida en José Luis Romero, mimeo, 2001.
6. Alexander Betancourt Mendieta. Historia, ciudad e ideas. La obra de José Luis Romero. México: Universidad Autónoma de México, 2001.
7. Noé Jitrik. La virtud del escritor, p. 41-43; Carlos Altamirano. Reserva irónica y pasión, p. 44-45; Adrián Gorelik. Un optimismo urbano, p. 45-48. Punto de Vista, Buenos Aires, v. 24, n. 71, dic. 2001.
8. José Luis Romero. Crisis y orden en el mundo feudoburgués. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Argentina, 2003. A primeira edição em espanhol é de 1980, pela Siglo Veintiuno Editores, México, um ano após a reedição naquele país de La Revolución Burguesa en el mundo feudal.
9. Jacques Le Goff. Presentación. In: J. L. Romero. Crisis y orden en el mundo feudoburgués. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Argentina, 2003, p. x.
10. José Luis Romero. Ensayos sobre la burguesía medieval. Buenos Aires: Universidade Nacional de Buenos Aires, 1961. Trata-se aqui de comentários acerca do terceiro ensaio do livro.
11. Jacques Le Goff, op. cit., p. xi.
12. Ibid.
13. Idem, p. xii.
14. Tulio Halperin Donghi, op. cit., p. 85.
15. Idem, p. 101.
16. Idem, p.102.
17. Tulio Halperin Donghi. José Luis Romero: de la historia de Europa a la historia de América. Anales de Historia Antigua y Medieval, Buenos Aires, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, n. 28, 1995.
18. Tulio Halperin Donghi. Ensayos de historiografía, op. cit., p. 102.
19. Idem, p. 103.
20. Noé Jitrik, nascido em 1928, é um dos mais reconhecidos críticos literários argentinos. Esteve exilado na Europa e no México, entre 1974 e 1987. É autor de numerosos ensaios sobre literatura e história, crítica literária, teoria e narrativa, contos e novelas. Foi professor pesquisador em universidades de Buenos Aires, México e França. É, atualmente, pesquisador e diretor do Instituto de Literatura Hispanoamericana da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Dirige Historia crítica de la literatura argentina, que está sendo publicada, em 12 tomos, pela Editorial Sudamericana.
21. Noé Jitrik. La virtud de um escritor. Punto de Vista, Buenos Aires, v. 24, n. 71, dezembro de 2001, p. 42.
22. Há uma enorme bibliografia sobre este tema na Argentina como, por exemplo, em Alberto Julián Pérez. El Facundo: Sarmiento interpreta a su nación, capítulo 4 do livro Los dilemas políticos de la cultura letrada. Argentina: siglo XIX. Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 2002, p. 105-149.
23. Noé Jitrik, op. cit., p. 42.
24. Idem, p. 43.
25. Carlos Altamirano é outro importante historiador argentino voltado para a história das idéias políticas e com vários livros e artigos publicados. E, desde 1999, professor titular regular de Introdução ao Pensamento Social no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Nacional de Quilmes.
26. Carlos Altamirano. Reserva irónica y pasión. Punto de Vista, Buenos Aires, v. 24, n. 71, dic. 2001, p. 44.
27. José Luis Romero. La vida histórica. Ensaios compilados por Luis Alberto Romero. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1988.
28. José Luis Romero. Bases para una morfologia de los contactos culturales. Buenos Aires: Institución Cultural Española, 1944. Apud Carlos Altamirano, op. cit., p. 45.
29. Félix Luna. Conversaciones con José Luis Romero. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1986. Apud Carlos Altamirano, op. cit., p. 45. [A primeira edição deste livro, citada por Adrián Gorelik, é de 1976, por Timerman Editores, de Buenos Aires.]
30. A referência trata do ensaísta uruguaio Angel Rama (1926-1983). A primeira edição, em espanhol, do livro La ciudad letrada é de Hanover, New Hampshire: Ediciones del Norte, 1984. A edição brasileira é Cidade das Letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.
31. Apud Carlos Altamirano, op. cit., p. 45.
32. Adrián Gorelik é um dos mais brilhantes intelectuais de uma nova geração de argentinos, tendo nascido em Mercedes (Buenos Aires) em 1957. E arquiteto e doutorem História (com títulos da Universidade de Buenos Aires). E pesquisador no Programa de História Intelectual da Universidade Nacional de Quilmes e docente na mesma universidade. Coordena o Seminário de História das Idéias, os Intelectuais e a Cultura, no prestigioso Instituto Emilio Ravignani da Universidade de Buenos Aires, dirigido pelo historiador José Carlos Chiaramonte. Publicou numerosos artigos sobre temas de história urbana e crítica cultural da cidade e de arquitetura, e o livro La sombra de la vanguardia, Hannes Meyer en México 1938-1949 (em colaboração com Jorge Liemur). Buenos Aires: Proyecto Editorial, 1993. Sua tese de doutoramento foi publicada num livro de grande sucesso na Argentina e que deveria ser publicado no Brasil, tanto pela qualidade da pesquisa quanto pela originalidade da construção teórica e da interpretação. Trata-se do notável La grilla y el parque. Espacio público y cultura urbana en Buenos Aires, 1887-1936. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 1998.
33. Adrián Gorelik. Un optimismo urbano. Punto de Vista, Buenos Aires, v. 24, n. 71, dic. 2001, p. 45-46.
34. Idem, p. 46.
35. Ibid.
36. Ibid.
37. Tulio Halperin Donghi. José Luis Romero: de la historia de Europa a la historia de América, op. cit.
38. Adrián Gorelik, op. cit., p. 47.
39. A referência é ao argentino Ezequiel Martínez Estrada (1895-1964). E autor do ensaio clássico Radiografia de la Pampa, cuja primeira edição é de 1933. Há edições posteriores, sendo a sexta edição de Buenos Aires: Editorial Losada, 1968.
40. Adrián Gorelik, op. cit., p. 47.
41. Omar Acha. La trama profunda. Historia y vida en José Luis Romero, op. cit.
42. Carlos Altamirano. José Luis Romero y la idea de la Argentina aluvial. Prismas, Buenos Aires, n. 5, 2001. Nesse livro, também se desenvolve a vinculação de Romero com o vitalismo alemão.
43. Adrián Gorelik, op. cit., p. 48.
44. Afonso Carlos Marques dos Santos. Da colonização à Europa possível: as dimensões da contradição. In: Giovanna Rosso Del Brenna (org.). Uma cidade em questão I: Grandjean de Montigny e o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte/PUC-RJ, 1979. Veja-se também, para a especificidade do processo de construção de um pensamento autonomista no Brasil, Afonso Carlos Marques dos Santos. A invenção do Brasil: um problema nacional? Revista de História, USP, São Paulo, n. 118, jan.-jun. 1985, p. 3-12, e o livro No rascunho da nação: inconfidência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
45. Afonso Carlos Marques dos Santos. A Academia Imperial de Belas-Artes e o projeto civilizatório do Império. In: Sonia Gomes Pereira (org.). 180 Anos da Escola de Belas-Artes. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 1997, p. 127-146.
46. Afonso Carlos Marques dos Santos. O Paço da cidade: biografia de um monumento. In: Lauro Cavalcanti (org.). Paço Imperial. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999, p. 52-117; Entre a forma e o ideal: um emblema da civilização. In: Pedro Calmon. O Palácio da Praia Vermelha. 2. ed. revista e ampl. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, p. 9-14.
47. Ver os textos de Afonso Carlos Marques dos Santos, de Eduardo Hourcade e dos demais ensaístas brasileiros e argentinos em A visão do outro: seminário Brasil-Argentina. Brasília: Funag, 2000. Como fruto dessas aproximações, publicamos também o artigo: Ciudad, civilización y proyecto en Río de Janeiro (1808-1906). Revista Estudios Sociales, Universidad Nacional del Litoral, Santa Fé, Argentina, v. 11, n. 21, 2° semestre de 2001, p. 55-68.
48. Os novos textos de Afonso Carlos Marques dos Santos, José Carlos Chiaramonte e dos demais ensaístas encontram-se em Carlos Henrique Cardim e Monica Hirst (org.). Brasil-Argentina: a visão do outro – soberania e cultura política. Brasília: IPRI/ Funag, 2003.
PREFÁCIO
Luis Alberto Romero
Em junho de 1976, dois meses depois do golpe que iniciou na Argentina a última e sangrenta ditadura militar, apareceu em Buenos Aires a primeira edição de América Latina: as cidades e as idéias, de José Luis Romero. A editora que o publicou, Siglo Veintiuno Argentina, acabava de ser arrasada pelos militares; vários de seus diretores foram presos e outros deixaram o país, e finalmente a editora foi fechada. Em setembro de 1976 apareceu no México uma segunda edição. Em dezembro do mesmo ano, foi publicado o livro Conversas com José Luis Romero, uma coletânea de entrevistas realizadas alguns meses antes pelo historiador Félix Luna; o editor do livro, o jornalista Jacob Timerman, “desapareceu” alguns meses depois, vítima da repressão militar. Em que pese o clima opressivo, meu pai aguardou com grande expectativa ambas as publicações: achava que, no duro ciclo que se iniciava, sua palavra e sua presença podiam ajudar a salvar alguma coisa do muito que começava a ser destruído. Poucos meses depois, em março de 1977, morreu subitamente, em Tóquio, durante uma reunião da Universidade das Nações Unidas. Faltavam poucos dias para que completasse 68 anos.
A repercussão inicial de América Latina: as cidades e as idéias foi fraca. Na Argentina, as salas universitárias estavam vazias e aqueles que podiam ler este livro com interesse estavam mortos, exilados ou presos em suas casas. Também o mundo acadêmico internacional não se interessou por ele: praticamente não houve comentários nos Journal, talvez porque o livro não obedecesse aos cânones formais, não tinha notas de pé de página nem tratava das “questões em debate”. Tal publicação foi-se conhecendo lentamente: Tulio Halperin Donghi assinalou sua excepcional qualidade; Richard Morse, Jorge Enrique Hardoy, Angel Rama e Leopoldo Zea fizeram seus alunos lê-lo, e Rafael Gutiérrez Girardot encetou uma tarefa quase missionária de difusão, que redundou anos depois em uma edição clandestina, feita em Medellín por um grupo de seguidores seus, ávidos leitores que não podiam ter acesso a um exemplar de uma obra quase secreta. Pouco a pouco o livro abriu seu caminho: por gestão de Ruggiero Romano foi traduzido na Itália, e pela de Juan Carlos Torchia Estrada, nos Estados Unidos; depois foi reeditado na Colômbia e agora chega ao Brasil, pelo empenho de outro dos bons e fiéis leitores, o professor Afonso Carlos Marques dos Santos. Felizmente, América Latina: as cidades e as idéias não é apenas uma interpretação sugestiva da história da América Latina, mas também uma das obras mais exitosas de um historiador notável e singular.
O jovem historiador
José Luis Romero nasceu em Buenos Aires em 1909. Seus pais e seus sete irmãos eram espanhóis, recém-chegados à Argentina. Alguns anos depois morreu o pai, e “o menino” ficou sob os cuidados do irmão mais velho. Francisco Romero era militar, engenheiro, e também um dos mais destacados filósofos da Argentina; transmitiu para José Luis o gosto pela história, os romances, a filosofia e o meccano, um jogo de peças metálicas com o qual pontes, barcos ou casas podiam ser construídos. Juntos freqüentavam a casa de Alfredo Palacios, o conhecido político socialista, que morava muito perto de sua casa, na velha Palermo. Na adolescência, José Luis, que estudou na Escola Normal Mariano Acosta, adotou um novo hábito, o boxe, e desenvolveu um físico vigoroso e rijo. Aos vinte anos era um apaixonado pela música moderna – que Ernest Ansermet trouxe a Buenos Aires pela ópera e a pintura; com dois amigos, Horacio Coppola e Jorge Romero Brest – que seriam, respectivamente, um excepcional fotógrafo e um excelente crítico de arte –, editou em 1929 uma revista de humanidades, arte e literatura, Clave de sol.
Na época, Francisco – reformado do Exército e professor da Universidade de La Plata – levou-o para lá a fim de estudar história. Ele não se entusiasmou muito com seus professores, cultores do documentalismo erudito, a não ser com Pascual Guaglianone, orientalista, humanista e um pouco anarquista. Com ele, e depois com Clemente Ricci em Buenos Aires, voltou-se para a história antiga e doutorou-se finalmente em 1939, com uma tese sobre os irmãos Graco e a crise da República Romana. Nesse período, a cidade de La Plata possuía uma intensa vida intelectual, em que brilhava Alejandro Korn, filósofo, professor de seu irmão, e em torno dele, um amplo círculo de jovens intelectuais, partidários da Reforma Universitária e do socialismo. Ali, José Luis fez amizade com Arnaldo Orfila Reynal – mais tarde fundador da Editorial Siglo Veintiuno –, e converteu-se em discípulo de Pedro Henríquez Ureña, destacado intelectual e humanista dominicano, de quem recebeu, nas viagens de trem a La Plata, duas vezes por semana, as mais variadas lições sobre as humanidades e a vida.
Francisco Romero e Pedro Henríquez Ureña foram os dois mestres reconhecidos pelo jovem historiador, que em 1933 se casou com uma platense formada em filosofia, Teresa Basso. No final de 1935 o casal empreendeu uma longa viagem pela Europa: no navio, José Luis ouviu a soprano Claudia Muzio – uma de suas paixões – que cantou para os passageiros; em Paris relacionou-se com todo o mundo intelectual e político, inclusive com o socialista Leon Blum; ali, na Alemanha, Bélgica, Inglaterra e Espanha, começou a entrar em contato com o que seria seu grande tema de estudo: a cultura ocidental. Pouco depois de regressar, deu na Universidade de Santa Fé uma conferência sobre A formação histórica, que hoje pode ser lida em um de seus livros, A vida histórica. Como assinalou Tulio Halperin Donghi, o jovem de 27 anos formula na obra seu projeto completo de historiador, que desenvolveu quase pontualmente ao longo dos quarenta anos seguintes.
O projeto
O projeto consistia no estudo do “mundo ocidental”: o núcleo original, centrado no âmbito do Império Romano em desagregação, e nas sucessivas áreas incorporadas durante suas consecutivas expansões, desde a inicial, do século XI, com as Cruzadas, até a mais recente, dos séculos XIX e XX. A do século XVI incluiu na órbita do mundo ocidental a América Latina e a Argentina, e as fez parte desse processo, com muitas características comuns e outras tantas específicas: em um jogo de iluminações recíprocas, estudar o núcleo europeu central permitia-lhe entender o argentino e o latino-americano, e vice-versa.
O núcleo inicial do projeto constituiu-se na crise do Império Romano, que recolhia e reelaborava os legados do mundo clássico, do germânico e do cristianismo para dar origem a algo novo: o mundo ocidental. Ao adotar esta periodização, José Luis Romero também traçava uma linha entre seu período inicial de historiador da Antiguidade greco-romana e este novo, no qual durante muito tempo se definiu como medievalista, antes de identificar-se como historiador das burguesias e do mundo urbano.
Na chamada Idade Média distinguiu o longo processo de conformação, estabilização e ordenação do mundo feudal – a “ordem cristã-feudal” –, e um novo processo de gênese, crise e “revolução”: o surgimento do mundo burguês, nas novas ou renascidas cidades amuralhadas, a formação de uma sociedade profana e de uma mentalidade dissidente no que tange à ordem cristã feudal. No momento inicial da emergência – tal é o sentido que dava a essa “revolução” – obedecia ao longo processo de acomodação do velho e do novo no quadro da sociedade feudo-burguesa e depois dos Estados absolutistas, onde a nova mentalidade – eixo central das preocupações de José Luis Romero – permanecia latente ou “encoberta”.
A terceira crise de transformação que estudou abarca o século XVIII e culmina com o triunfo pleno, no núcleo europeu, do mundo burguês e capitalista e da nova mentalidade, que se formula em termos claros e diferentes com a Ilustração e o liberalismo: humanismo, sociedade contratual, vontade popular, ciência empírica e legal, em um arco que une Goethe a Darwin. A última crise, que já correspondia com a sua experiência pessoal, era a do mundo burguês, anunciada pelo romantismo e desencadeada com o término da Primeira Guerra Mundial. Em meio à caducidade de muitos valores do mundo burguês, o socialismo aparecia como uma alternativa que, antes de negá-los, conduzia-os até suas últimas conseqüências.
Juntamente com este projeto de investigação e de interpretação, ao qual seria fiel durante as quatro décadas seguintes, o jovem José Luis Romero formulava em 1937 as bases de uma teoria de seu objeto de estudo, a “vida histórica”, que em sua opinião devia ter uma entidade epistemológica similar à de “natureza” no mundo das ciências naturais. É possível reconhecer ali a influência de muitas leituras: Dilthey, Weber, Simmel, Marx, Durkheim, Cassirer, Ortega y Gasset, assim como de muitos historiadores, de Huizinga a Bloch ou Curtius. Mas era sobretudo uma teoria “empírica”, nutrida na experiência do historiador. Nela se sublinha o caráter total da realidade histórica, a qual, em princípio, nenhuma experiência humana era alheia. José Luis Romero chamou de “cultura” esse âmbito de integração, e definiu-se como um historiador da cultura. Depois assinalou sua complexidade, sua organização em diversas instâncias e principalmente a peculiar dialética, que constituía o cerne da vida histórica, entre o que chamava de “ordem fática” e a “potencial”, entre o processo criador e o criado, entre a realidade, sempre mutável, e as diferentes imagens que os atores constroem dela.
Ao contrário das ciências sociais restantes, que atendem sobretudo ao criado – estruturas, instituções, formas de organização e por isso desenvolvem um enfoque sistemático, a história devia fincar-se na própria vida histórica, na permanente construção e reconstrução desses sistemas. Sua concepção era absoluta e radicalmente historicista. Talvez por isso o apaixonasse, sobretudo, o momento da criação. Historiador das crises – desde a da República Romana até a crise do mundo burguês –, perseguia em cada uma delas – como assinalou Ruggiero Romano – o instante da emergência do novo por entre os resquícios do mundo constituído, o momento de tensão entre o criado, consolidado em estruturas irrevogáveis, e o impulso criador da ação humana.
Apesar de fazer do rigor a própria base de sua tarefa profissional, José Luis Romero não compartilhava a confiança em uma suposta objetividade, que era naquela época – muita água correu desde então – habitual entre os historiadores. Submersa na vida histórica, a ciência histórica não podia aspirar a um conhecimento objetivo segundo o paradigma das ciências naturais. O rigor é condição essencial do saber histórico, tanto na busca de dados quanto em sua análise, mas a compreensão implica necessariamente uma dose de subjetividade e compromisso, implícita em toda consciência histórica.
José Luis Romero começou a procurar esta chave na análise do pensamento historiográfico, ao atender principalmente às mutáveis modalidades da consciência histórica. Saber histórico, dos profissionais, e consciência histórica, da sociedade, convivem em um producente conflito. A consciência histórica, mais ou menos apoiada em um saber rigoroso, é a que dá ao sujeito histórico – um grupo, uma classe, um povo – as respostas a respeito do mundo em que vive, de sua própria identidade e também do futuro por construir, pois captar a historicidade da realidade e descobrir suas tendências constituía para José Luis Romero o passo inicial da ação – a inexcusável ação, costumava dizer – com a que o futuro se moldaria. Dessa convicção acerca da capacidade dos homens para construir seu futuro – ainda que sem saber exatamente como o fazem – surgia seu radical otimismo a respeito da inteligibilidade do processo histórico e de seu próprio sentido.
O trabalho de um artesão
Ruggiero Romano dizia que as pessoas comuns têm muitas idéias, e as mudam com facilidade; os “pequenos mestres” possuem cinco ou seis idéias em sua vida, e os grandes mestres uma única. José Luis Romero foi historiador de uma idéia, que desenvolveu, aprofundou e enriqueceu ao longo de toda a vida. Desde princípios da década de 1940, começou a desenvolver seu programa, alternando estudos monográficos sobre a história medieval – aproveitando a presença e os ensinamentos do grande historiador espanhol Claudio Sánchez Albornoz, exilado em Buenos Aires – com algumas obras de síntese: O ciclo da revolução contemporânea, de 1948, A Idade Média, de 1950 e A cultura ocidental, de 1953. Por meio de monografias sobre diferentes historiadores e, sobretudo, em seu livro De Heródoto a Políbio, de 1952, sobre historiografia grega, desenvolveu e aperfeiçoou sua idéia sobre a vida histórica. Também começou a incursionar na história argentina e latino-americana, e em 1946 publicou um de seus livros clássicos: As idéias políticas na Argentina.
Artigos ou livros, amiúde feitos sob encomenda, eram em seu projeto geral as peças de um quebra-cabeça. Este foi amadurecendo em sua primeira grande obra, A revolução burguesa no mundo feudal, um estudo sobre as origens da burguesia e as novas mentalidades entre os séculos XI e XIV. Começou a trabalhar nela por volta de 1950 e terminou-a em 1967; ao longo desses anos escreveu muitas outras coisas, e teve ativa participação em questões públicas, mas em nenhum momento deixou de avançar em um trabalho em que o extremo rigor profissional se ajustava com o desenvolvimento do grande projeto traçado em sua juventude.
Em 1967, quase chegando aos sessenta anos, já aposentado como professor universitário, e em sua plenitude intelectual, traçou um plano para aproveitar os vinte anos de vida útil que esperava ainda ter. Em primeiro lugar, queria continuar o caminho, iniciado com A revolução burguesa no mundo feudal, com outros três livros que completariam a saga do mundo burguês até o século XX. Depois, um livro sobre a América Latina centrado nas cidades e no mundo urbano, e outro sobre cidades européias. Finalmente, dois livros de natureza teórica: uma Estrutura histórica do mundo urbano e uma Vida histórica. No começo de 1977 havia publicado América Latina: as cidades e as idéias, e havia quase concluído Crise e ordem no mundo feudo-burguês, uma obra publicada depois de sua morte, que desenvolvia os temas de A revolução burguesa até meados do século XVI.
Os outros livros estavam em diferentes graus de desenvolvimento – de A vida histórica só faltava a redação mas, pelo que me lembro, tudo já estava em sua cabeça, claro e diferente, ao mesmo tempo. Trabalhava neles com um estilo artesanal, que era o adequado tanto a sua personalidade quanto às circunstâncias profissionais em que lhe coube viver. Tulio Halperin Donghi assinalou sua situação quase constitutivamente marginal no meio historiográfico argentino. Europeísta, interessado na história da cultura e das idéias, era visto por seus colegas argentinos, eruditos documentalistas, mais como um “filósofo” que como um historiador. Em termos profissionais, quase nunca teve um emprego estável. Quando ainda não tinha um posto permanente na universidade, foi afastado dela em 1945, com o advento do peronismo. Pouco depois conseguiu um posto na Universidade da República, no Uruguai, e viajou semanalmente a Montevidéu até 1953, quando o governo peronista proibiu estas viagens. Depois da queda de Perón em 1955, foi designado em 1958 professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e organizou o Centro de Estudos de História Social. Foi o único período de normalidade profissional que conheceu, apesar de ter sido afetado por sua designação como decano da faculdade, entre 1962 e 1965. Nesse ano renunciou ao cargo de decano e ao de professor, aposentou-se e concentrou-se em sua casa de Adrogué, onde vivíamos desde 1948, e em seu gabinete.
Na realidade, toda a sua vida de historiador desenvolveu-se nesse gabinete, com uma janela para o jardim, onde trabalhava com método e disciplina. Visto à distância, assombra-me a relação entre a vastidão de seu projeto, quase desmesurado, e a precariedade de seus meios. Mas encontrou uma forma de combinar ambas as circunstâncias. Carente de boas bibliotecas – as bibliotecas públicas, como muitas outras coisas, entraram em decadência na Argentina após 1930 foi formando a sua, que era tudo de bom que pode ser uma biblioteca particular, e acostumou-se a acomodar-se com o que estava ao alcance de sua mão. Desde sua juventude, já tinha lido bem toda a filosofia, toda a literatura e os clássicos da historiografia. Depois, em suas viagens abastecia-se de livros novos; progressivamente foi-se desinteressando das novidades, à medida que suas idéias iam adquirindo forma e o absorviam, e não se interessava pelas discussões acadêmicas nem pelas “questões” em debate: lembro a surpresa de um jovem historiador, que freqüentava sua casa, ao tomar conhecimento de que meu pai não se preocupava com as revistas acadêmicas.
Por outro lado, a informação o obcecava, bem como os dados e as referências que lhe permitiam desenvolver e dar forma às suas idéias. Possuía uma boa coleção de fontes éditas sobre o período medieval, muitas delas microfilmadas durante uma estada na Biblioteca Widener de Harvard, em 1950. Disposto a arranjar-se com o que tinha à mão, organizou um vasto arquivo de recortes, ordenado segundo os temas dos livros que pensava escrever. A medida que as cidades e o mundo urbano foram convertendo-se no centro de suas preocupações, acrescentou a esse arquivo uma ampla e heterogênea coleção de planos e de imagens de cidades. Nos últimos anos, recorria permanentemente a um Dicionário Larousse em dez volumens, editado no século XIX.
Mas na realidade, para José Luis Romero, tudo o que fazia parte de sua experiência era uma “fonte”, não só porque sabia o que procurava como porque havia desenvolvido um talento especial para explorar cada coisa e tirar-lhe o sumo adequado para alimentar seu projeto. Eu diria que interrogava o mundo permanentemente. A literatura, em primeiro lugar, desde Dante até um filme ou um romance policial lido em uma noite de insônia, mas no qual apareciam marcadas as referências aos bairros pobres de Nova York ou Chicago. Depois, as cidades: viajou muito, pela Europa e pela América Latina, percorreu palmo a palmo mais de cem cidades – tinham-as catalogadas – e as explorou literalmente, ajudado pelos Guias Michelin, que lhe eram tão úteis como o Larousse: informação pura, sem idéias.
Nada ilustra melhor este formidável empreendimento heurístico, mantido desde o princípio até o fim de cada dia, que sua relação com os amigos e conhecidos. Meu pai era muito sociável, gostava de conversar e encantava os que o ouviam. Mas escutava atentamente as pessoas mais diversas, e tomava nota de formas de pensar, valorizar ou expressar, que – dou-me conta agora – ia localizando em seus escaninhos. Lembro-me em especial das longas conversas com dois pedreiros, italianos e comunistas, que faziam reparos na casa de Adrogué, e com outros dois, italianos e fascistas, que construíram a casa de Pinamar, junto ao mar, onde passava boa parte de seu tempo. Também lembro uma ficha, das poucas que usou para escrever América Latina, em que dizia simplesmente “Prudencio”; perguntei-lhe para que lhe podia servir isso e explicou-me que se tratava do filósofo boliviano Roberto Prudencio, com quem havia compartilhado uma longa espera em um aeroporto. Ali, em meio a uma garrafa de whiskey, Prudencio lhe expusera suas idéias sobre a América Latina, que meu pai me explicou detidamente, ou pelo menos a parte que lhe havia interessado para entender o que o preocupava.
Sua perícia de historiador transformava este conjunto díspar e heterogêneo de informação em história de primeira qualidade. Partia de uma idéia geral e a desenvolvia em sucessivos esquemas, subdividindo-a em partes e subpartes; ao mesmo tempo, acrescentava aos esquemas provisórios os dados e referências concretos – um nome, uma cidade, uma obra, uma prática social – que iluminavam e davam substância ao pensamento em desenvolvimento. Fazia e refazia os esquemas com “obstinado rigor”, sua fórmula favorita para caracterizar o ofício de historiador. Gradualmente iam-se desenvolvendo, até que a realidade tivesse sido esmiuçada a sua partícula mais elementar. Então estava pronto para escrever.
Fazia-o com grande disciplina, sem transbordamentos, calculando exatamente quanto queria desenvolver cada ponto. Com esse extremo rigor, conseguia no ato de escrever o pequeno milagre de recuperar a “vida histórica” em toda a sua vitalidade. Creio que havia outro milagre, que se pode apreciar muito bem em América Latina: escrever com extraordinária clareza, precisão e elegância, e ao mesmo tempo desenvolver idéias sumamente complexas, dessas que só se vão revelando em leituras sucessivas.
Em resumo, o trabalho de um artesão. José Luis Romero o era também em outro sentido: nos intervalos de seu trabalho intelectual era carpinteiro e jardineiro, ou, mais exatamente, paisagista. Não era especialmente hábil ou requintado em seu trabalho: a carpintaria era de parafuso e um pouco de engrenagem; não se entusiasmava pelas flores, e sim, sobretudo, pelas árvores, os cercados e os arbustos. Mas tudo era vigoroso, sólido e de perfil definido. Desde 1948 arrumou sistematicamente sua casa de Adrogué e em 1958 construiu a de Pinamar. Então – não tinha dinheiro para comprar móveis – fabricou o mobiliário básico – cinco camas, duas mesas, vários bancos e luminárias – com um desenho modular que se parecia com o meccano da infância. Freqüentemente havia em seu gabinete desenhos destes móveis, concebidos nas pausas de sua tarefa, com a mesma precisão analítica de seus trabalhos de historiador. A casa de Pinamar estava na ponta de uma duna que durante os verões ele transformou em um parque. Com um mínimo equipamento: uma pá, um ancinho e um carrinho de mão construído com um velho triciclo, e ajudado às vezes por um filho não muito predisposto, moveu massas enormes de areia, fabricou declives e terraços, fixou dunas, plantou, semeou e regou. E depois, descansou.
Aqui também desenvolveu um “grande projeto”, sempre inconcluso: terraços, caminhos, cercados, um chafariz e muitos lugares para sentar-se durante a tarde – trabalhava só de manhã e fumar seu cachimbo, tomar seu whiskey, olhar, planejar o que faria no dia seguinte, e também pensar na história. Um dia li sua explicação sobre o modo em que a mentalidade burguesa elabora, nos séculos medievais, uma nova relação entre o homem e a natureza: o distanciamento do meio natural, sua transformação em paisagem ordenada e racional, a contemplação e o desfrute estético, de uma janela ou um terraço, sua fixação em um quadro, de Giotto a Corot. Então percebi que jamais deixava de pensar na história, de integrar permanentemente o que fazia, o que via ou o que lia, dentro de uma única, imensa e variada explicação.
O historiador militante
Essa explicação chegava com naturalidade até o presente, pois José Luis Romero estava vitalmente convencido não só de poder explicá-lo a partir da história como de que a própria legitimidade do trabalho do historiador residia na possibilidade de dizer alguma coisa sobre o presente. Alguns de seus últimos textos referem-se a fenômenos culturais contemporâneos, como o inconformismo, ou aos problemas da Argentina de 1975, como o capítulo acrescentado à última edição de As idéias políticas na Argentina ou um breve artigo, “Antes de desagregar-nos”, em que examina a conjuntura argentina à luz de toda a história anterior. Isto era algo mais do que uma postura intelectual. José Luis Romero costumava definir-se como um cidadão comprometido com um projeto para a sociedade, em que se potencializavam algumas das linhas de desenvolvimento que o historiador percebia. Era socialista, porque estava convencido de que o socialismo implicava a realização plena dos valores da cultura ocidental – a liberdade, a igualdade, o humanismo – e agiu em conseqüência disso. Nessas ocasiões, o rigor reflexivo dava lugar à ação, e ali reaparecia o artesão, seguro de suas mãos, e também o boxeador juvenil, convencido de poder responder por suas opiniões com o corpo se fosse necessário.
Foi um militante, mas de conjuntura, quando acreditou que havia algo em jogo merecedor do sacrifício das horas de trabalho em seu gabinete. Quando jovem foi reformista e socialista; provavelmente adquiriu suas convicções freqüentando o círculo de Alejandro Korn, e a amizade com Arnaldo Orfila Reynal reforçou-as; com Reynal compartilhou o escasso entusiasmo pela direção do Partido Socialista, encabeçada na época por Nicolás Repetto. Daí sua simpatia socialista não se ter traduzido em militância, nem sequer em filiação. Reservas similares produzia-lhe o comunismo, então em voga em seu ambiente e entre seus amigos, ante o qual tinha sentimentos discordantes. Negava-se a identificar seu socialismo com o stalinismo, assim como se negava a alinhar-se no pujante mundo do anticomunismo.
Em 1945 decidiu que havia chegado a hora do compromisso e filiou-se ao Partido Socialista. Em 1946 finalizou seu livro As idéias políticas na Argentina com um epílogo que franqueava uma tentativa de compreensão do peronismo, distinguindo o dirigente das massas que o apoiavam. No mesmo sentido, escreveu o editorial de um dos números de El Iniciador, o jornal que Orfila editava e que se enfrentava com a posição oficial do Partido Socialista, antiperonista por excelência. A chave de suas idéias de então encontra-se em O ciclo da revolução contemporânea, de 1948: referindo-se genericamente ao fascismo faz a mesma distinção entre dirigentes e massas e utiliza o argumento das “astúcias da razão” para explicar como esses movimentos – e não vacilou em qualificar o peronismo de “fascismo” – contribuíam por caminhos laterais ao avanço do socialismo.
Em 1955, com a queda de Perón, começou uma década de ativa militância. Nesse ano foi designado – por imposição do movimento estudantil – interventor da Universidade de Buenos Aires e agiu com firmeza, e até com dureza, para deslocar os setores católicos integristas que haviam dominado a universidade durante o peronismo; em sua breve gestão – de apenas sete meses – pôs em marcha a brilhante experiência da universidade reformista, que se estendeu até o golpe de Estado de 1966. Em 1956, mal havia deixado o reitorado, um grupo de jovens socialistas, desejosos de renovar o atrofiado partido, levou-o à militância ativa. Tratava-se de abandonar o tradicional antiperonismo “gorila” e oferecer uma alternativa compreensiva e de esquerda para os trabalhadores. José Luis Romero acompanhou Alfredo Palacios e Alicia Moreau de Justo em um empreendimento que culminou na ruptura com a dirigência tradicional – Américo Ghioldi, Nicolás Repetto – e a divisão do partido. Também acompanhou os jovens socialistas no primeiro estágio de sua radicalização, até 1962, quando uma parte deles optou por integrar-se no peronismo e outra parte escolheu o caminho da luta armada.
Precisamente em 1962 foi designado decano da Faculdade de Filosofia e Letras e pôde contribuir com eficácia no projeto da moderna universidade reformista, rigorosa e atualizada. Ao mesmo tempo, viveu através de seu cargo os primeiros episódios da radicalização estudantil, que chegaria ao auge nos anos 1970. José Luis Romero já pertencia ao gênero dos “mestres de juventudes”, respeitado por sua autoridade intelectual e também pessoal: com freqüência teve de literalmente usar o corpo para evitar o exagero dos ativistas; ao mesmo tempo, tinha de enfrentar os setores mais tradicionais e reacionários, que reclamavam da intervenção da indócil faculdade, para acabar com a “subversão”. José Luis Romero representava nesse momento o equilíbrio instável entre modernização científico-cultural e radicalismo político, que haveria de romper-se depois de 1966. Em 1965 percebeu esse final inevitável; decidiu então renunciar e voltar a seu gabinete.
Junto a esta militância política conjuntural, José Luis Romero praticou a militância cultural, de maneira sistemática e ininterrupta. Na década de 1940 participou ativamente do Colégio Livre de Estudos Superiores, uma espécie de universidade paralela, e por volta de 1950, como professor da Universidade da República, organizou um grupo dinâmico e renovador dedicado à “história da cultura”. Em 1953 fundou Imago Mundi, revista de história da cultura. Ali reuniu o melhor do mundo intelectual na época excluído da universidade – começando por seu irmão Francisco – e um grupo mais jovem, que tinha vínculos com outra revista alternativa: Contorno. O propósito, ajustado a seu projeto de historiador, era contribuir a partir de Buenos Aires para a discussão da história da cultura do mundo ocidental, em suas mais diversas expressões. Mas, ao mesmo tempo, o grupo começou a constituir-se em uma alternativa no campo cultural, preparada para o fim do peronismo, e de fato a maioria de seus membros acompanhou José Luis Romero em sua experiência universitária de 1955.
Em 1958 ingressou na Faculdade de Filosofia e Letras e criou uma cátedra nova: História Social, à qual um centro de estudos logo se agregou. Cercou-o um grupo de jovens historiadores, e outros que vinham de áreas afins – a sociologia, a literatura, a filosofia, a economia –, atraídos pela perspectiva integradora da história social. Simultaneamente, Gino Germani organizava o curso de sociologia, e entre ambos os grupos surgiram estreitas relações, materializadas em um projeto de investigação sobre o impacto da imigração maciça, um tema que José Luis Romero havia proposto como crucial para compreender a “Argentina moderna”.
“História Social”, quer dizer, as pessoas da cátedra e o centro de estudos, converteu-se em um poderoso núcleo de transformação do campo historiográfico argentino, e das ciências sociais em geral, a ponto de a fórmula “História Social” – a rigor, um nome eventual, que José Luis Romero teria com prazer trocado por história da cultura – ter-se convertido em sinônimo de nova história. Ali entrecruzaram-se as influências da Escola dos Annales, as da sociologia norte-americana, a nova história econômica, influenciadas pelas idéias do desenvolvimento e modernização, e o marxismo, em voga entre os mais jovens.
Em seu curso de História Social Geral, José Luis Romero terminou de dar forma à sua proposta de interpretação do processo histórico da cultura ocidental, e em seminários reduzidos, dirigidos a jovens investigadores, soube abrir panoramas, propor temas e perspectivas e ensinar a indagar as fontes – as mais diversas fontes, segundo sua experiência –, ajudando cada um a encontrar seu tema e seu caminho. Não foi um chefe – desses com “discípulos”, um pouco amanuenses, um pouco escudeiros, como era hábito então –, mas um mestre.
Apesar de ser respeitado, na realidade, a maioria palmilhava na época por um caminho intelectual diferente. José Luis Romero não era um seguidor acrítico dos Annales, e suas coincidências com alguns dos historiadores franceses, com os quais dialogava de igual para igual, eram o resultado de trajetórias independentes. Tampouco era devoto da história econômica, nem “marxista”, nos termos em que então se entendia isto. Suas preocupações com a história da cultura pareciam a muitos coisa do passado, superadas pelas sólidas verdades da história econômica e de um marxismo duro e dogmático. Entre os estudantes e jovens graduados, e ainda entre aqueles que poderiam ser chamados de seus discípulos, era comum que se perguntassem se José Luis Romero era “marxista” – uma pergunta naquele tempo decisiva –, e a resposta costumava ser negativa: aqueles que o censuravam por não se comprometer suficientemente com a trajetória do grupo socialista mais radical criticavam sua maneira de fazer história, pouco economicista, escassamente determinista, pouco atenta aos modos de produção e demasiadamente preocupada com questões superestruturais. Isto também contribuiu para seu afastamento da universidade em 1965.
Ali encerrou um ciclo de militância cultural que, no entanto, não abandonou definitivamente, pois continuou dando cursos e conferências, como o havia feito toda a sua vida, por essa convicção, tão própria dos socialistas, da importância da divulgação cultural. Era um professor cativante, em qualquer lugar em que falasse: uma turma de duzentos alunos, um foro acadêmico ou uma conferência no centro socialista de uma pequena cidade. Suas aulas tinham uma combinação muito precisa de rigor e paixão, a mesma que seus leitores encontram hoje em seus livros. Essa notável capacidade pode ser percebida em seu livro Estudo da mentalidade burguesa, que é a transcrição de um de seus cursos e conserva muito do sabor da aula original. O desenvolvimento intelectual era impecável e a síntese de problemas complexos era clara, precisa, embora nunca banal. Além disso, tinha a capacidade de relacionar e unir tudo; sabia encontrar o registro de cada ouvinte e dar-lhe a referência exata – um fato, um episódio, uma obra de arte, um edifício, um nome – com a qual o que estava ouvindo convertia-se em parte de sua própria história, e quem o ouvia sentia-se co-partícipe de uma apaixonante aventura intelectual.
Mas além disso, o que cativava ao ouvi-lo era descobrir – em uma cerimônia quase mágica – que a história tinha um sentido. Não um sentido metafísico, mas humano, profano. Em suas palavras, todos entendíamos que a ação humana avançava na história em direção a certas metas, certos fins, que surgiam do próprio processo da sociedade, assim como – tensa combinação – da escolha do homem, de seus valores. José Luis Romero estava convencido de que a história avançava para o socialismo, só que por caminhos inescrutáveis, de tal forma que suscitavam a admirada curiosidade do historiador, assombrado pela inesgotável criação da ação humana.
Em 1965 voltou a seu gabinete e a seu jardim. Na época que se iniciava, de paixões revolucionárias e de negra reação, ninguém o considerou entre os seus, nem a esquerda, radicalizada e peronizada, nem a direita, naturalmente. Por volta de 1970 começou a trabalhar em América Latina, que conheci em sua primeira versão, em fins de 1974. Naquela época, eu não acompanhava muito de perto o que meu pai estava fazendo, e me surpreendi ao ver o livro terminado; quando o li, fiquei deslumbrado. Continuei descobrindo a enorme riqueza do livro depois de sua morte; quando o utilizei como texto em aulas ou seminários fui encontrando – como em seus outros livros – o enfoque precursor de muitas questões em voga nos anos 1980 e nos 1990, e particularmente as relativas aos problemas culturais.
América Latina: as cidades e as idéias é um livro singular. Sem acolher especificamente nenhuma das discussões acadêmicas, participa delas e oferece uma resposta original. Em primeiro lugar, uma interpretação de conjunto desse objeto esquivo que é a história da América Latina, a partir de uma proposta simples: a unidade do estímulo, derivada do fato colonial, e a diversidade das respostas. A interpretação, que nasce das preocupações de seu autor com a história do mundo ocidental, apóia-se nas cidades fundadas, primeira materialização do domínio colonial e projeção inicial em um novo continente da sociedade feudo-burguesa que o conquistou. Fundados, tão-somente, os núcleos originários iniciam uma complexa relação com a sociedade existente e com a que resulta do contato: a tese de Sarmiento aparece reformulada em tomo da tensão, conflito e integração entre a cidade e o campo, ao longo de diferentes momentos, desde a cidade fidalga do século XVII até a cidade de massas do século XX.
Nesse sentido, América Latina ocupa um lugar-chave dentro do projeto historiográfico de José Luis Romero. Pouco pode acrescentar-se ao que ele sintetizou na Introdução. Mas além disso, é uma exposição cabal, talvez a mais feliz, do que ele entendia pelo “ponto de vista histórico-cultural”, uma perspectiva que resulta de notável atualidade. Em cada um dos capítulos percorrem-se sistematicamente as áreas principais da vida histórica: a organização econômica, a sociedade, o governo e a política, as formas de vida, as mentalidades e as ideologias. Em cada caso, entretanto, a ordem é diferente, segundo o jogo das relações e as prioridades, pois o que o preocupava não era a taxonomia mas, sim, a articulação em um conjunto cujo desenho total nunca se perde de vista. As mais diversas questões teóricas sobre sujeitos, práticas, representações, dialéticas – que estava sistematizando em A vida histórica –, aparecem aqui em ação. Mas chega-se a elas em uma segunda leitura, analítica. Na primeira, e também na última, mostra sem dúvida a vida histórica viva: o quadro fervilhante das péssoas, tal como também se encontra em muitos dos romances que nutrem este livro. As vezes, parece-me que escrevia como Balzac, como Pérez Galdós ou como Jorge Amado. Creio que ele teria gostado da comparação.
América Latina. As cidades e as ideáis. 2004.
INTRODUÇÃO
Este livro tenta responder à pergunta sobre o papel desempenhado pelas cidades no processo histórico latino-americano. Diversificado, até o ponto de parecer caótico, esse processo tem, sem dúvida, um fio condutor. Por certo, é difícil achá-lo, porque certa homogeneidade originária se desvaneceu ao longo dos profundos conflitos que se desencadearam com as guerras de independência, porém certas constantes sugerem a possibilidade de que se encontre oculto atrás de alguns dos fatores que intervêm no processo. Para um historiador social não há dúvida de que o caminho a ser seguido para encontrá-lo é aquele que percorrem as sociedades latino-americanas, através das singulares circunstâncias em que se constituem, bem como de outras, múltiplas e, às vezes, obscuras, em que se opera sua constante diferenciação. E nesse caminho, o papel que as cidades desempenham – isto é, as sociedades urbanas e sua densa criação – parece oferecer alguma chave em meio a um quadro muito confuso.
Certamente, a cidade não teve o mesmo papel em todos os lugares. O Brasil representa um caso extremo, no qual os processos sociais e culturais passam fundamentalmente pelas áreas rurais durante os primeiros séculos da colonização. Em menor escala, ocorre a mesma coisa em alguns segmentos da área hispânica, onde a presença de grandes haciendas1 oriundas do sistema de encomienda2 assume caracteres de destaque. Entretanto, mesmo nessas zonas, as cidades chegaram a alcançar com o tempo a significação que tiveram desde o próprio começo da colonização em outras áreas hispânicas, talvez porque a América Latina tenha se constituído a partir do século XVI em uma projeção do mundo europeu, mercantil e burguês. Importantes centros de concentração de poder, as cidades asseguraram a presença da cultura européia, dirigiram o processo econômico e, sobretudo, traçaram o perfil das regiões sobre as quais exerciam sua influência e, em conjunto, sobre toda a área latino-americana. As sociedades urbanas foram as que desempenharam esse papel, algumas desde o primeiro dia da ocupação da terra e outras, após um processo em que submeteram e moldaram a vida espontânea das áreas rurais.
A história da América Latina é, naturalmente, urbana e rural. Mas, se buscarmos as chaves para a compreensão do desenvolvimento que conduz até o seu presente, será provavelmente nas suas cidades, no papel que tiveram as suas sociedades urbanas e as culturas que criaram, onde urge procurá-las, dado que o mundo rural foi o que se manteve mais estável, e as cidades foram as que desencadearam as mudanças, partindo tanto dos impactos externos que receberam quanto das ideologias que elaboraram com elementos próprios e estranhos. Essa é a busca que este estudo se propõe realizar, estudo que é, em princípio, uma história, mas que pretende oferecer mais do que habitualmente se pede à história.
Sem dúvida, costuma-se pedir à história somente o que pode oferecer e dar a história política: é uma velha e triste limitação tanto dos historiadores quanto dos curiosos que procuram resposta para o enigma dos fatos desarticulados. Entretanto, este estudo se propõe a estabelecer e organizar o processo da história social e cultural das cidades latino-americanas, e a esta história pode-se pedir muito mais, precisamente porque é ela que articula os fatos e descobre a sua trama profunda. Talvez nessa trama profunda estejam as chaves para a compreensão da história das sociedades urbanas e, indiretamente, da sociedade global.
Se no Brasil predominou, durante certo tempo, a sociedade eminentemente rural, a nova sociedade, originariamente constituída na área hispânica, foi desde o início, um conjunto de sociedades urbanas, junto às quais as sociedades rurais constituíram instrumentos econômicos dependentes das comunidades congregadas nas cidades, cujos setores predominantes eram os beneficiários da exploração do mundo rural. E dar ênfase a esse tipo de sociedade não foi um desígnio arbitrário da Espanha: dependia de uma concepção de cidade que tinha velha tradição doutrinária e que se havia fortalecido com a experiência dos últimos cinco séculos que precederam à chegada dos conquistadores à América. A cidade – a rigor, a sociedade urbana – era a forma mais elevada que a vida humana podia alcançar, a forma “perfeita”, conforme havia defendido Aristóteles, e frei Bartolomé de las Casas lembrava, em meados do século XVI, em sua Apologética Historia Sumaria, com grande riqueza de antecedentes pagãos e cristãos. Para esse ideal, parecia tender o mundo mercantilista e burguês que era, cada vez mais, um mundo de cidades. Talvez por isso, tenha-se acentuado na América Latina a tendência urbana que se esboçaria desde a conquista e que se conseguiu fazer chegar finalmente às áreas que haviam nascido sob outro signo.
Em geral, a América indígena foi um mundo predominantemente rural e vastas áreas mal conheceram a vida urbana. Houve, por certo, no âmbito das culturas superiores, algumas grandes cidades, como Tenochtitlán e Cuzco, e também numerosas cidades menores, que despertaram em diferente escala a admiração dos espanhóis, sobretudo de Cortés e Cieza de León. E Las Casas baseou precisamente na existência de cidades sua defesa da capacidade racional dos índios. Porém a principal corrente da vida fluía pelos campos e pelas aldeias rurais, como rurais foram os caracteres básicos de sua cultura. As Antilhas e o Brasil não conheceram centros urbanos. Os povoados não foram baluartes da defesa contra os invasores e se Cortés decidiu destruir Tenochtitlán não foi porque a temesse como baluarte, mas, sim, por sua extraordinária significação simbólica: era nesse lugar e não em nenhum outro que deveria ser fundada a capital hispânica da Nova Espanha, da Espanha das Índias.
Se os espanhóis destruíram Tenochtitlán, os próprios indígenas destruíram Cuzco, e as outras cidades e povoados foram incluídos nos repartimientos 3 sem que quase não se levasse em conta a sua condição de centros urbanos. Apenas a sua favorável localização geográfica atraiu os conquistadores, que com freqüência se instalaram neles, refundandoos e reorganizando sua vida, de acordo com os modelos da conquista. Assim, surgiram Tlaxcala e Cholula, Bogotá, Huamanga, Quito e, em especial, México e Cuzco, como núcleos populacionais espanhóis. Povoados e cidades indígenas ficaram imersos no mundo novo dos conquistadores.
O propósito destes foi apagar os vestígios das velhas culturas indígenas, e o realizaram implacavelmente, talvez porque estivessem convencidos de que era justo fazê-lo com os infiéis. Se em muitas regiões os conquistadores só encontraram culturas primitivas – como na costa brasileira ou no rio da Prata em outras depararam com culturas de alto nível que os surpreenderam. Entretanto, em todos os casos, um inabalável preconceito levou-os a operar como se a terra conquistada estivesse vazia – culturalmente vazia – e povoada apenas por indivíduos que podiam e deviam ser arrancados de sua trama cultural para serem incorporados ao sistema cultural dos colonizadores por meio da catequese religiosa, mas mantidos fora do sistema econômico por eles implantado. O aniquilamento das velhas culturas – primitivas ou desenvolvidas – e o deliberado desconhecimento de seu significado constituíam o passo imprescindível para o propósito fundamental da conquista: instaurar sobre uma natureza vazia uma nova Europa, a cujos montes, rios e províncias uma cédula real ditava que lhes fossem dados novos nomes como se nunca os houvessem tido.
Espanha e Portugal tiveram diferente concepção dos métodos que deviam ser utilizados. Este último confiou a tarefa aos senhores que receberam as terras próprias para a agricultura, onde não só começou-se a produzir açúcar, fumo e algodão, como também surgiram as plantações e os engenhos, unidades econômicas e sociais sobre as quais se organizou a vida da colônia. Consideradas centros administrativos, as cidades, durante longo tempo, foram simples feitorias pelas quais fluía a riqueza que era embarcada para a Europa. Foram os senhores da terra que esboçaram o primeiro perfil do Brasil colonial, ao passo que as populações urbanas – artesãos e pequenos funcionários, clérigos e pequenos comerciantes – foram suplantadas. Até o século XVIII, só algumas cidades – Salvador da Bahia e, sobretudo, a Recife holandesa – insinuavam a sua capacidade de influir na poderosa aristocracia latifundiária, que amava a vida rural e residia em meio a suas propriedades.
A Espanha, por sua vez, imaginou seu império colonial como uma rede de cidades. Sem dúvida, em certas regiões prevaleceu a influência das grandes haciendas, ou melhor, dos velhos encomenderos que se fortaleciam em seus domínios rurais, mas, ao contrário de Portugal, atribuía à colonização uma transcendência que não se limitava à exploração econômica. De modo vago algumas vezes, muito categoricamente em outras, a Espanha ratificava uma missão que um grupo compacto devia realizar, uma sociedade nova que mantinha seus vínculos e zelava pelo seu cumprimento. Era uma missão que ultrapassava o objetivo individual de enriquecimento e a existência pessoal do encomendero. Todos deviam cumpri-la, e o instrumento que se colocou em prática para alcançar este propósito foi a cidade.
Desde a sua própria fundação, a cidade tinha este papel determinado. A fundação, mais que erguer a cidade física, criava uma sociedade. E a essa sociedade compacta, homogênea e militante correspondia moldar a realidade circundante, adequar seus elementos – naturais e sociais, autóctones e exógenos – ao objetivo preestabelecido, forçá-los e constrangê-los, se necessário fosse. A sociedade urbana – compacta, homogênea, militante – era moldada por uma ideologia e impelida a defendê-la e impô-la a uma realidade que se julgava inerte e amorfa. Tratava-se de uma velha concepção das possibilidades que constituíam as cidades e as sociedades urbanas: a que Alexandre Magno e os diádocos, os procônsules romanos, e os adelantados4 do núcleo europeu medieval que iniciou a expansão em direção à periferia, desde o século XI, haviam elaborado e posto em prática. Havia no fundo dessa concepção uma teoria da sociedade e da cultura e uma experiência prática que a Espanha traduziu em uma política.
O pressuposto da capacidade virtual da cidade ideológica para moldar a realidade apoiava-se em duas premissas: uma era o caráter inerte e amorfo da realidade preexistente; a outra era a decisão de que essa realidade suscitada por um desígnio preconcebido não chegasse a ter – não devia ter – um desenvolvimento autónomo e espontâneo. Minuciosamente especificada, traduzida em prescrições que pretendiam prever todas as circunstâncias possíveis, a política social e cultural espanhola parecia descartar por completo a possibilidade de qualquer contingência inesperada, como se a sociedade que se constituísse sob os auspícios de um desígnio do poder estivesse protegida de qualquer mudança, de qualquer processo de diferenciação. A rigor, aquela decisão pressupunha a percepção do risco, notório demais na experiência espanhola, do contato com a cultura muçulmana. Era o risco da mestiçagem e da aculturação. E para prever tal risco, mais ainda o de possíveis rebeliões, pareceu eficaz constituir a rede de cidades, de sociedades urbanas compactas, homogêneas e militantes, enquadradas dentro de um rigoroso sistema político rigidamente hierárquico e apoiado na sólida estrutura ideológica da monarquia cristã, tal como se havia constituído com o apoio da Igreja, primeiro nas lutas contra os muçulmanos e depois nas lutas contra a Reforma.
A rede de cidades devia criar uma América Hispânica, européia, católica, mas, sobretudo, um império colonial no sentido estrito do vocábulo, isto é, um mundo dependente e sem expressão própria, periferia do mundo metropolitano, ao qual devia seguir e refletir em todas as suas ações e reações. Para que constituísse um império – um império entendido à maneira hispânica –, era imprescindível que fosse homogêneo e, sobretudo, monolítico. Não só era imprescindível que o aparelho estatal fosse rígido e que o fundamento doutrinário da ordem estabelecida fosse totalmente aceito, tanto em suas raízes religiosas quanto em suas conseqüências jurídicas e políticas. Era também fundamental que a nova sociedade admitisse sua dependência e vetasse o espontâneo movimento para sua diferenciação; porque somente uma sociedade hierárquica e estável até a imobilidade perinde ac cadaver, segundo a fórmula inaciana, assegurava a dependência e sua instrumentalização para os fins superiores da metrópole. Tratava-se de uma ideologia, mas de uma ideologia extremada – quase uma espécie de delírio – que, a princípio, aspirava a adequar plenamente a realidade. Entretanto, a realidade – a realidade social e cultural – da América Latina já era caótica. A audácia do experimento social e cultural desencadeou desde o primeiro momento inúmeros processos que se tornaram incontroláveis, e o desígnio foi-se frustrando.
Esse não foi o propósito de Portugal e, por isso, no âmbito da colonização portuguesa, o processo foi mais pragmático, quase absolutamente pragmático. A sociedade agrária fez seu ciclo completo e delineou uma área na qual os senhores aceitaram a formação espontânea de uma nova sociedade e, pouco a pouco, de uma nova cultura. Esse delineamento só foi alterado pela progressiva pressão do mundo mercantilista e burguês, no qual o Brasil – como toda a América Latina – estava incluído como uma zona periférica. Quando essa pressão cresceu, as cidades e as sociedades urbanas – com suas burguesias progressivamente vigorosas – começaram a ter uma significação crescente, como não haviam tido nas primeiras etapas da colonização. O desenvolvimento econômico e a diferenciação social provocaram, independentemente dos vínculos políticos, uma crescente autonomia de fato que se manifestou ao longo do século XVIII por intermédio da formação das burguesias locais. Então, as cidades deixaram de ser os precários centros administrativos do princípio, povoados por sociedades urbanas de parcos recursos e escassas aspirações, e começaram a crescer e se revigorar até adquirir, no século XIX, uma significação semelhante à que naquele tempo tinham na área hispânica.
Nesta área, o processo foi, naturalmente, mais visível. Fundadas e mantidas para assegurar a homogeneidade e a dependência do mundo colonial, as cidades começaram a assumir plenamente o papel ideológico que lhes havia sido designado, não para serem somente as intermediárias da ideologia metropolitana, mas para criar novas ideologias que significaram respostas adequadas à situação que se fora espontaneamente constituindo em cada região. As cidades deixaram de ser pouco a pouco arremedos das cidades espanholas – repetindo até mesmo seus nomes – e começaram a perder o caráter genérico.
Certamente, continuaram sendo os focos sensíveis da influência exterior. A elas chegavam e nelas repercutiam os impactos do mundo hispânico e também do agitado resto do mundo que nunca renunciou a integrar a América Latina no vasto âmbito do sistema mercantilista. Entretanto, começaram a questionar esses impactos e logo se notou que começavam a elaborar respostas que não provinham do monolítico sistema imperial, mas de uma prudente análise das circunstâncias em que cada uma delas operava. As cidades mantiveram e ainda acentuaram seu papel ideológico, mas o exercitaram proporcionando à sua área de influência uma imagem do mundo, uma explicação da conjuntura e, sobretudo, um projeto adequado às expectativas que em cada área ia-se delineando.
Sem dúvida, os quadros dessas ideologias que as cidades começaram a elaborar por sua conta estiveram sempre marcados em alguma medida pelos impactos externos: o da estrutura socioeconômica das metrópoles, o da estrutura socioeconômica do mundo capitalista, mercantil e burguês, bem como o das grandes correntes de novas idéias que entranhavam versões ideológicas da realidade, explicativas algumas e em projeto outras, e ambas em diversos sentidos. Sempre partiram da imagem de uma América europeizada, da América como uma nova Europa, imersa no sistema de relações criado pela mesma Europa e por ela dirigido. Mas, mesmo dentro desses marcos e muito lentamente, as ideologias foram encontrando o seu próprio caminho e, sob os enquadramentos gerais, começaram a adquirir certa autonomia. Logo poderiam manifestar-se como respostas espontâneas e definições concretas diante das situações reais.
Uma definição concreta foi a que se referia à posição real de cada cidade no vasto e diferenciado âmbito continental. A cidade formal da época das fundações – a da ata e do escrivão, da espada e da cruz – começou a descobrir que era uma cidade real, pequena e quase sempre miserável, com poucos habitantes e muitos riscos e incertezas. Começou a descobrir que estava em um lugar real, rodeada de uma região real, ligada por caminhos que levavam a outras cidades reais através de zonas rurais reais, tudo com características singulares que escapavam de qualquer generalização curial. Começou, então, a descobrir que de tudo isso advinham seus verdadeiros problemas e dependiam suas possibilidades futuras. Assim, as cidades tornaram-se reais, tomando consciência da região em que estavam inseridas.
Entretanto, a cidade real tomou também consciência de que constituía uma sociedade real, não a dos primeiros habitantes mas, sim, a dos que, afinal, permaneceram nela, ergueram sua casa ou se instalaram em casa alheia ou, não podendo, resignaram-se à mísera moradia que consagrava a sua marginalidade, os que viveram de seu trabalho na cidade e povoaram suas ruas e suas praças, os que lutaram pelos pequenos problemas cotidianos ou pelos mais graves, que encerravam decisões acerca do destino da cidade, e depois os herdeiros daqueles e os que lentamente foram-se agregando até se incorporarem. A cidade real tomou consciência de que era uma sociedade urbana composta por seus integrantes reais: os espanhóis e os criollos,5 os índios, os mestiços, os negros, os mulatos e os cafuzos, todos unidos inexoravelmente apesar da sua organização hierárquica, todos unidos em um processo que conduzia, também inexoravelmente, à sua interpenetração e à incerta aventura desencadeada pelos imprevistos da mobilidade social. Assim, cada sociedade urbana tomou consciência de que era uma sociedade sui generis, diferente, em geral, das sociedades urbanas das cidades espanholas e, em particular, das outras cidades latino-americanas, das remotas e até das próximas, cada uma delas presa a seus próprios problemas e submetida à singular e irredutível equação que regia as relações entre seus elementos sociais. Conscientizou-se, afinal, de que havia começado a ter uma história da qual não podia prescindir, cujo peso se fazia presente em cada situação real e em cada momento em que era necessário tomar uma decisão: uma história comprometida com a sociedade urbana composta de gerações sucessivas encadeadas de algum modo à mesma estrutura e ao mesmo gênero de situações. Tomar consciência da peculiaridade de cada sociedade urbana foi, para cada uma delas, esboçar outra definição concreta que se integrava no quadro de sua ideologia.
Por fim, foi uma definição concreta precisar qual era a função real da cidade. Sem dúvida, compartilhavam todas as cidades a mesma função básica que a política colonial espanhola lhes havia imposto: assegurar o domínio da área, ser baluartes da pureza racial e cultural do grupo colonizador e promover o desenvolvimento da região em que estavam inseridas. Entretanto, cada uma delas havia recebido uma função específica: eram portos, ou redutos militares, ou centros mineiros, ou empórios mercantis. Eram funções muito delimitadas que se relacionavam com o funcionamento geral do sistema. Porém, uma cidade e uma sociedade urbana não são fundadas em vão. Ao cabo de algumas gerações, cada sociedade urbana havia ultrapassado os limites da missão instrumental que lhe haviam designado e esboçava o delineamento de sua função real, a que a cidade era obrigada a exercer, a que a cidade podia cumprir e a que a sociedade urbana – una e diferente através do tempo – queria exercer. Várias combinações apareceram entre estas diversas perspectivas e os diferentes grupos sociais deixaram entrever suas discrepantes tendências. Pouco a pouco, além das funções básicas que a cidade assumia, apareceram os estilos de vida do conjunto e de cada um dos grupos sociais, traçando a peculiaridade de cada cultura urbana.
Estas definições compreendiam uma interpretação do passado e um projeto para o futuro: constituíam as ideologias específicas com que cada uma das cidades ia substituindo pouco a pouco a ideologia genérica da colonização e, ao diferenciar-se, remodelavam o quadro do império originário – utopicamente homogêneo – e insinuavam a nova organização que viria mais tarde.
A nova reorganização começou a ser esboçada nas últimas décadas do século XVIII, quando o mundo latino-americano recebeu frontalmente o impacto da ofensiva mercantilista. Com isso, as cidades fidalgas das Índias que se haviam constituído a partir das fundações se diversificaram segundo as possibilidades que lhes oferecia sua situação e sua estrutura social: algumas – perpetuando a ideologia da cidade fidalga – mantiveram seu sistema tradicional, iniciando a marcha para um destino de cidades estagnadas, e outras – aceitando a ideologia burguesa – deram o salto para transformarem-se em ativas cidades mercantis, com uma vocação internacional que ultrapassava os limites hispânicos, presididas por novas burguesias que cresciam em vigor. Foi uma mudança profunda, acentuada por outros fatores que acelerariam a diversificação: algumas que, entre fidalgas e burguesas, preferiam manter-se dentro da área hispânica, e outras, decididamente burguesas, que entreviam as vantagens da independência política.
Foi como uma adaptação do mundo hispânico ao mundo internacional, mercantil e burguês. O novo ensaio social, econômico, político e cultural, que se iniciou com a independência, mobilizou as áreas rurais, mas repercutiu fundamentalmente sobre as cidades. As burguesias, que aceitaram o desafio de produzir uma mudança profunda na estrutura da área que as cidades controlavam, submeteram de alguma forma seus próprios interesses aos interesses comuns. Somaram-se às suas fileiras as novíssimas elites criadas pela ascensão dos grupos rurais e, juntas, assumiram a missão de dar um projeto político e uma orientação ao conjunto social. Assim se constituiu a nova aristocracia, profundamente comprometida com o destino nacional, embora seus membros tenham misturado indistintamente os interesses públicos com seus interesses particulares.
Por essa época, começou a ficar claro que as cidades latino-americanas seguiam em seu desenvolvimento um destino variado. As cidades estagnadas acentuaram seu isolamento, sem prejuízo de abrigarem em seu seio processos sociais muito complexos, e as ativas procuraram adequar-se às exigências do mundo internacional enquanto enfrentavam também os problemas suscitados pelas transformações de sua estrutura interna. A rigor, todas as cidades latino-americanas aceleraram a partir de então um duplo processo que já se havia iniciado desde a fundação. Por um lado, procuravam adequar-se ao modelo europeu seguindo suas linhas de mudança e, por outro, sofriam as transformações, derivadas de sua estrutura interna, que alteravam as funções da cidade e, além do mais, as relações entre os diferentes grupos sociais e entre a cidade e a região. Esse duplo processo – de desenvolvimento heterônomo e de desenvolvimento autônomo – continuou ao longo do período independente, acentuando-se cada vez mais. Os setores que foram ficando para trás durante a época colonial – em especial os setores rurais – irromperam na vida pública, exigindo sua parte no poder e buscando sua ascensão social, razão por que se incorporaram às sociedades urbanas novos grupos que lhe imprimiram um ar vernáculo. Assim se intensificou o processo de desenvolvimento autônomo. Contudo, nesse ínterim, um novo impacto externo – o da sociedade industrial – fez-se sentir sobre as cidades ativas nas últimas décadas do século XIX e forçou seu desenvolvimento heterônomo até incluí-las plenamente no sistema econômico do mundo capitalista, cada vez mais direcionado para uma política imperialista.
Desta forma, teve início, então, uma época menos agitada que a anterior. As burguesias, definitivamente constituídas e continuamente experimentadas, aceitaram a ideologia do progresso e procuraram acentuar o desenvolvimento heterônomo das cidades, contendo o desenvolvimento autônomo mediante o exercício de um poder forte. Sem dúvida tiveram êxito, e o mundo rural viu-se impelido a aceitar o projeto dos grupos intermediários, mas era inevitável que fracassassem ao final de algumas décadas. Aos fatores sociais que atuavam tradicionalmente em muitas das cidades ativas somaram-se outros novos, alguns de caráter étnico e social, como as migrações, e outros de caráter funcional, como o crescimento dos grupos ligados às atividades terciárias. Agravados pela alteração das relações entre o mundo urbano e o mundo rural, os problemas urbanos multiplicaram-se pelo crescimento demográfico, pela diferenciação social e, às vezes, pela diferenciação ideológica entre os grupos. O impacto da crise financeira de 1929 precipitou as mudanças.
Desde então, o processo de metropolização das mais importantes cidades ativas latino-americanas dimensionou a intensidade do processo de urbanização da América Latina e, em compensação, da crise do mundo rural. Lançadas pelo caminho do desenvolvimento heterônomo, as metrópoles adquiriram cada vez mais poder. As altas burguesias aderiram à ideologia da sociedade de consumo e procuraram impulsionar o desenvolvimento heterônomo das metrópoles, mas estas haviam suscitado uma extraordinária mudança social, somando às altas burguesias e, em geral, aos segmentos sociais integrados, uma vasta multidão de marginais que tornaram inseparável da imagem da metrópole moderna o cenário das favelas que a rodeavam. Era um desenvolvimento autônomo inesperado das cidades, que revelava a sua diversidade de funções e as variantes das relações entre a cidade e a região, mas que, sobretudo, inaugurava uma etapa de importantes mudanças na estrutura social, econômica e cultural das sociedades urbanas. As mudanças políticas não tardaram muito a manifestar-se.
Uma indagação minuciosa acerca da formação das sociedades urbanas e de suas mudanças, e das culturas urbanas – diversas dentro de cada período em cada cidade e diversas dentro dela, segundo os grupos sociais em épocas de intensa transformação –, levou aos resultados que expõe este livro. No fundo, quer pontuar como funciona o desenvolvimento heterônomo das cidades com seu desenvolvimento autônomo, entendendo que nesse jogo não se elaboram apenas as culturas e subculturas urbanas, como também as relações entre o mundo rural e o mundo urbano. É neste último que as ideologias adquirem mais vigor e enfrentam mais claramente o seu desafio – um jogo dialético – com as estruturas reais.
Notas
1. Haciendas: grandes propriedades provenientes da divisão das terras americanas conquistadas pela Espanha. (N. do T.)
2. Sistema de encomienda: regime de exploração legal do trabalho indígena. (N. do T.)
3. Repartimiento de indios: distribuição de um determinado número de índios que a coroa espanhola cedia aos colonizadores para premiá-los pela conquista; quota (voluntária ou obrigatória). Expressão usada com a mesma significação de encomienda. (N. do T.)
4. Adelantado: governador de província. (N. do T.)
5. Criollos: descendentes de espanhóis nascidos no continente americano. (N. do T.)
1.
A AMÉRICA LATINA NA EXPANSÃO EUROPÉIA
Até o final do século XV, as populações aborígines americanas haviam desenvolvido a sua própria cultura e constituíam um mundo autônomo. Porém, a partir da chegada dos europeus, o mundo autóctone foi dominado em sua totalidade, e começou para a América uma nova era, cujo primeiro sinal foi a formação de novas sociedades integradas pelos invasores e dominados, por europeus e aborígines.
O processo de formação dessas novas sociedades foi, ao mesmo tempo, um processo da história das sociedades aborígines e das sociedades européias. Mas foram estas que tomaram a iniciativa, que desempenharam o papel ativo e orientaram a seu favor o curso do processo. A aventura americana foi vivida pelas duas culturas, porém o processo foi desencadeado pela Europa, como um elo da profunda transformação que se vinha processando em seu seio há séculos e cujas conseqüências repercutiram em várias regiões até então alheias ao mundo europeu. Agora era a vez da América.
Mesmo quando o processo de formação das novas sociedades já se havia constituído em um problema americano, ainda continuava a ser, a partir de um outro ponto de vista, um problema europeu. Foi a sociedade européia que condicionou a invasão, imprimiu suas características aos protagonistas, fixou os objetivos da empresa, projetou para a América os seus velhos problemas. O mundo americano e suas sociedades nativas viram chegar os invasores sem entender o que acontecia, porque sua vinda e seu comportamento não tinham lógica dentro do processo americano: era uma força externa e atuava segundo sua própria lei. Para as sociedades européias, em compensação, a invasão de um mundo estranho estava dentro da lógica de sua própria transformação.
Esta dupla focalização do processo influiu em sua complexidade. A partir de certo momento, começou a manifestar-se como especificamente americano. O processo radicalizou-se e seus protagonistas principiaram a agir de acordo com a lei interna da nova situação. Porém, até então e durante longo tempo, esse mesmo processo havia feito parte da história das sociedades européias que, movidas por certas tendências incontroláveis, ultrapassaram os seus próprios limites e iniciaram uma era de expansão. E nesse processo de expansão européia que se inseriu o primeiro extremo do processo de formação da América Latina; e como a expansão foi apenas o resultado de uma longa série de mudanças, é nestas que se deve buscar a chave das atitudes que determinaram aquela formação.
1. A primeira expansão européia para a periferia
A rigor, a expansão oceânica do século XV é apenas uma segunda onda que repete, com um raio mais amplo, uma outra que havia começado quase quatro séculos antes. Porém, esta, do final do século XI, que dura até o princípio do XIV, está na gênese do processo de mudança e, por isso, revela de modo evidente a peculiaridade do processo expansivo.
O velho núcleo da Europa romana havia sofrido ao longo dos séculos sucessivas crises que modificaram sua fisionomia. Sua própria divisão interna deu inicio à destruição da vasta unidade na qual se enquadrava a economia mediterrânea; as invasões germânicas, primeiro, e o domínio dos muçulmanos no que havia sido o mar romano concluíram a obra. O sistema mercantil faliu, as cidades e a vida urbana entraram em plena decadência e, em pouco tempo, toda a área adquiriu uma fisionomia fortemente rural. É ali, no velho núcleo da Europa romana, e depois do fechamento do comércio mediterrâneo no século VIII, que se constituiu pouco a pouco a sociedade cristã-feudal – uma sociedade dual de milites et rustici –, na qual se ordenou a situação criada por tantas e tão profundas circunstâncias. O senhorio economicamente auto-suficiente foi a expressão de sua estrutura econômica, como a monarquia feudal, exercida por um rei que era primus inter pares, foi a expressão de sua estrutura política. Por volta do século XI, essa sociedade estava solidamente constituída.
Isolada e frágil, assentada na transcendência e desdenhosa da realidade, a Europa feudal, em plena impotência técnica, estava rodeada por uma periferia ameaçadora. Os muçulmanos, os normandos, os eslavos, os húngaros apareciam repetidamente sobre as suas zonas marginais para depredá-las e ocasionalmente para ali se instalarem, incursionando às vezes para o interior da região. Entretanto, a situação começou a mudar por volta do século XI. Os invasores da periferia perderam agressividade e, enquanto isso, densos grupos na Europa feudal começaram a tratar de restabelecer a atividade mercantil.
Talvez a mais espetacular das mudanças foi a que se produziu no Mediterrâneo. Divididos e exaustos, os muçulmanos cederam posições, e de diversas regiões cristãs ocidentais surgiram grupos que se propuseram a hostilizá-los até o fim. As cruzadas aceleraram e concluíram o processo, abrindo outra vez o tráfico mediterrâneo ao comércio entre o Levante e o Ocidente e, em muito pouco tempo, as conseqüências desta mudança patentearam-se.
A abertura do Mediterrâneo ao comércio dos reinos cristãos suscitou não só uma atividade intensa em suas margens, baseada no comércio de produtos de luxo, como também uma intensa atividade continental através das rotas principais – fluviais, em sua maioria – e, em seguida, através das secundárias que penetravam em todos os cantos. E não foram os artigos orientais os únicos que circularam; através das mesmas rotas do grande comércio começou a organizar-se a do pequeno comércio inter-regional: do sal, do vinho, do azeite, dos tecidos, das peles, das madeiras, da cera e, também, dos gêneros alimentícios e das pequenas manufaturas locais.
Entretanto, alguém devia ocupar-se de tudo isso. A partir do final do século X em algumas regiões, mas, sobretudo, a partir do século XI, uma nova classe começou a constituir-se: a burguesia, modesta, quase insignificante, no início, e cada vez mais próspera à medida que se organizavam os mercados e se regularizavam os negócios. Nem milites nem rustici, os burgueses foram a rigor homens inovadores; uma nova moral, uma nova idéia de vida, uma nova atitude diante da realidade os identificaria muito em breve como um grupo social de características totalmente novas. O seu contexto natural foram as cidades que eles vivificaram algumas vezes e, em outras, levantaram como cenário natural para as suas atividades e a sua forma de vida.
Houve uma verdadeira explosão urbana. Inúmeras aglutinações, pequenas talvez, embora pujantes, apareceram espalhadas pelos campos, nas margens dos rios ou do mar, à beira ou no cruzamento dos caminhos, ao lado das muralhas de uma abadia ou de um castelo. Também despertaram muitas antigas cidades adormecidas, povoando-as e associando-as às novas formas de atividade. No seio dos senhorios, as novas sociedades urbanas apresentavam de modo evidente uma atitude heterodoxa, mesmo quando não foram provocados de imediato enfrentamentos como os que ocorreriam mais tarde. Entretanto, a própria atividade era perigosa: iniciava a transformação dos laços de dependência econômica e social, abriam-se novas possibilidades para as novas gerações, acelerava a formação de uma economia monetarista.
Em compensação, a cidade não só satisfez certas aspirações dos novos grupos – a segurança, a liberdade –, como também pôs em funcionamento um mercado – um espaço livre onde se encontravam vendedores e compradores sob a égide de um poder – e logo pôs em funcionamento uma economia de mercado. A cidade, portanto, não foi apenas a forma de vida adotada pelas novas sociedades que se constituíam, mas demonstrou ser o mais importante instrumento de mudança do sistema de relações econômicas e sociais. E não só isso: o mercado que reunia vendedores e compradores transformou-se em um foro onde os membros da nova sociedade começaram a dialogar, a trocar opiniões, a uniformizar atitudes a partir da crítica do comportamento externo, a elaborar normas e idéias, a esboçar projetos. Um desses projetos poderia ser – e foi – o de ultrapassar os limites do mercado urbano para aumentar os lucros.
A rigor, estava na essência do novo estilo econômico uma evolução similar. O mercado apresentava o jogo da oferta e da procura e absorvia as possibilidades que surgiam em seu horizonte. Multiplicar o lucro requeria apenas estar presente em outros mercados.
Multiplicar o lucro era um objetivo econômico, próprio das novas burguesias. Porém, conquistar outros mercados podia ser uma empreitada superior às suas forças e, sobretudo, alheia às suas aptidões. Era uma conquista. Assim, muito precocemente, no final do século XI, ficou esboçado um quadro de confusas relações entre as burguesias e os senhores, que se responsabilizaram pela expansão do núcleo burguês europeu.
Sobre as rotas de conquista dos invasores, os senhores iniciaram o caminho da reconquista. Talvez as mais importantes tenham sido as do Mediterrâneo, onde se comunicavam entre si regiões bem conhecidas de economia complementar. A cruzada demonstrou que ele podia voltar a ser navegado e que nas costas do leste ficavam estabelecidos centros abertos ao comércio europeu. Os senhores desenvolviam reinos e ducados, mas atrás deles – ou com eles – chegavam os mercadores que inauguravam um ativo tráfico comercial. Pisanos, genoveses, normandos, ingleses, venezianos, tomaram-se fortes nas novas bases mercantis como Jaffa, Acre, Biblos, e na própria Constantinopla, após a mais extraordinária aventura de francos e venezianos, que recebeu o nome de cruzada.
Assim, o Mediterrâneo recuperou o papel econômico que tivera durante séculos. As velhas cidades despertaram de seu sonho senhorial para mobilizar os seus recursos e, à medida que surgiam, irrompiam como novas sociedades burguesas com irreprimível força criadora, que se manifestava tanto nos ousados projetos com os quais se lançavam para o exterior, quanto nas formas de vida que adotavam para si mesmas. Era como um renascimento romano ao qual, de certo modo, o mundo muçulmano da costa africana servia, complementando e diversificando suas possibilidades.
Mas a reativação do Mediterrâneo não se reduziu às suas costas. Delas partiam as rotas pelas quais eram transportados os produtos que iam ou vinham para os seus portos e, nesse comércio, inúmeras cidades, grandes e pequenas, acumulavam benefícios que ativavam seus próprios circuitos comerciais, bem mais restritos. De qualquer maneira, a área mediterrânea já não era a única que interessava a esse mundo que se havia constituído depois das invasões germânicas e que avançava em direção ao Atlântico e ao centro e norte da Europa.
Sobre as rotas de invasão dos normandos já haviam surgido inúmeros centros comerciais ligados entre si dentro do âmbito do mar do Norte e da costa atlântica. Era uma zona surgida e organizada na época carolíngia e na qual se deu a dissolução desse império, de modo que carecia de tradição romana. A produção, a circulação e o consumo de bens nela se desenvolveram de acordo com o jogo das novas circunstâncias e, dentro de pouco tempo, alcançaram intenso funcionamento em áreas muito extensas que chegavam não só até o norte da Alemanha, mas bem mais além, através do mar Báltico e de rotas que partiam de suas margens para o interior e adentravam a Rússia e a Polônia. Tal como a do mar Mediterrâneo, essa expansão foi um pouco espontânea – quando promovida por núcleos de mercadores – e também um pouco sistemática. Os senhores acompanharam o processo econômico e, enquanto a Hansa Germânica organizava o mecanismo do comércio internacional, dinamarqueses, ingleses e normandos deram os passos necessários para unificar politicamente a área, criando uma estrutura de poder dentro da qual se moveria a nova corrente econômica. Entretanto, a rede comercial da Hansa foi mais extensa que o campo de ação que os senhores conseguiram organizar politicamente, talvez por ter sido mais fluida, do mesmo modo que no Mediterrâneo não chegou a constituir-se nenhum poder político que abrangesse o movimentado sistema econômico das grandes cidades como Gênova, Barcelona ou Veneza.
Rumo ao leste, foram os senhores e os mercadores alemães que iniciaram a marcha expansiva para além do Elba. Chefes das regiões fronteiriças, cuja ocupação deveria ser garantida, os senhores fundaram cidades – Stettin, Lübeck, Rostock, Riga – e obtiveram o apoio da Igreja e dos imigrantes alemães que, mercadores em sua maioria, incorporaram-se, nessas regiões – e em outras, como Bohemia e Hungria –, às novas cidades e às já existentes como um grupo mercantil e talvez artesanal. Eventualmente, também ocuparam terras. E entre as zonas cujo desenvolvimento mercantil promoviam e as antigas cidades alemãs originou-se um intenso comércio que estendeu a enorme rede da nova Europa.
Enquanto isso, no extremo oposto, grupos cristãos obrigavam os muçulmanos a retroceder na Península Ibérica. Na costa mediterrânea, a expansão a partir da Catalunha liberava boa parte da costa leste; na costa levantina, ao mesmo tempo, Portugal recuperava-se; e, do pequeno reino de Astúrias, foram sendo ocupados e repovoados os vales do Douro e do Tejo até que Fernando III invadiu a Andaluzia e restringiu os muçulmanos ao reino de Granada. Esta fronteira viva entre cristãos e muçulmanos foi a única que subsistiu em uma Europa onde o tráfico mercantil havia alcançado uma grande fluidez.
2. O papel das cidades na expansão para a periferia
Neste processo de expansão para a periferia, as cidades desempenharam um papel ímpar, tão importante que se cristalizou em uma experiência destinada a ter ampla repercussão.
A onda expansiva foi contemporânea da explosão urbana e, a rigor, os dois fenômenos constituíram-se em um só. Uma tendência a ultrapassar os limites do mercado urbano acompanhou o crescimento demográfico das cidades e a sua reativação econômica. Foi necessário contar com os senhores que encabeçaram a empresa militar, mas todos compreenderam que, sem essas cidades ativadas pela burguesia, nem a empresa teria sido possível nem teria sentido. Somente a nova economia permitia contar com os elementos necessários para alcançar objetivos tão distantes e tão difíceis; porém, apenas a nova economia justificava esses empreendimentos que, graças a ela, se tornariam extremamente frutíferos. A expansão periférica foi a tarefa que as burguesias urbanas propuseram tacitamente às classes senhoriais, esboçando um acordo entre dois grupos que, a rigor, funcionavam de maneira diferente. Mas dali em diante, procurariam encontrar entendimento e, desta forma, constituiu-se uma sociedade feudo-burguesa.
No entanto, a cidade não foi apenas o instrumento que possibilitou a expansão para a periferia: foi também o instrumento que se decidiu usar para consolidar a expansão e para garantir seus frutos. O senhor e os seus guerreiros constituíam a vanguarda de uma coluna mista onde se entrecruzavam combatentes, comerciantes e eclesiásticos. A vanguarda chegava ao destino e cumpria a primeira parte da operação: Balduíno ou Bohemundo, Adolfo de Hollstein ou Henrique, o Leão, Afonso VI ou Jaime I. Conquistado o senhorio, iniciava-se uma vasta operação mercantil. Se a região conquistada era despovoada, a cidade surgia, fundada formalmente, como Lübeck ou Riga, ou repovoando-se as abandonadas, como Zamora ou Astorga, para constituir ao mesmo tempo um baluarte militar e uma feitoria. A muralha e o mercado eram os símbolos destas duas funções que a cidade começava a desempenhar. Se o combatente assegurava um tipo de relação entre a cidade e a região – o domínio militar e político –, o mercador garantia outro que consistia em organizar a economia regional em tomo do mercado urbano. E, enquanto isso, a cidade, rica e guarnecida, garantia a coesão e a segurança do grupo conquistador. Se, em compensação, a região conquistada era povoada, como no caso da Palestina, Ásia Menor ou Andaluzia, combatentes, eclesiásticos e comerciantes entravam nas cidades conquistadas. Os primeiros ocupavam os baluartes e as defesas, os religiosos, os templos, e os mercadores começavam a assumir o sistema de compra e venda, todos aproveitando a infra-estrutura existente para reverter seus efeitos, neutralizando a influência dos antigos dominadores e multiplicando a sua própria para assegurar a coesão, a segurança e os benefícios do grupo. Assim fizeram os cruzados na Palestina, confiando aos pisanos, genoveses ou venezianos a exploração dos negócios que se intensificavam em cada cidade e os que podiam ser fechados com as cidades ocidentais; o mesmo fizeram os conquistadores hispânicos que entraram em Toledo, Lisboa, Sevilha ou Córdoba.
A experiência dos que, tendo esquecido a estratégia militar antiga, só conheciam as formas de guerra senhorial confirmou – ou redescobriu – uma bem conhecida verdade dos antigos sobre o papel da cidade como vanguarda nas regiões conquistadas. A cidade foi para os cavaleiros como um castelo, com as suas muralhas e torres, seus fossos e suas portas, isto é, um baluarte; porém, além disso, foi para eles e para os comerciantes que os acompanhavam um recinto cercado dentro do qual funcionava um mercado e costumava haver diversas ruas onde se abriam lojas e oficinas, e talvez as moradias dos prestamistas que financiavam alguns arriscados e promissores empreendimentos. Aliás, para os homens da Igreja, a cidade era não só fortaleza e mercado, como também centro de catequese para os infiéis e centro de vigilância para a fé dos recém-chegados, sempre suscetíveis a fraquezas quando estavam fora do controle social a que estavam submetidos em suas terras de origem. A cidade era, portanto, um instrumento perfeito de dominação; naturalmente, para quem dominasse a cidade. E aqueles que dominaram as cidades estabelecidas, repovoadas ou ocupadas no período da primeira expansão do núcleo europeu em direção à periferia, entre os séculos XI e XIII – senhores, clérigos e burgueses –, multiplicaram sua eficiência devido à solidez do grupo e à concentração de forças que isso significava. Graças a isso, a primeira expansão permaneceu firme e, com algumas modificações, a área submetida e incorporada manteve-se definitivamente. Esta lição não seria esquecida.
3. Atitudes senhoriais e atitudes burguesas
O mecanismo da colaboração senhorial e burguesa, que começou a funcionar intensamente por causa da primeira expansão para a periferia, continuou aperfeiçoando-se com o tempo. Foi estabelecido nos fatos, sem teorias, como resultado das limitações que cada uma das classes via em suas possibilidades e com essa clareza que outorgam as etapas originárias dos processos, nos quais os fatos ainda podem ser discernidos com facilidade sem a interferência de interpretações ideológicas. Para lançar a expansão européia – que é o primeiro estágio no desenvolvimento do capitalismo –, as duas classes buscaram uma à outra para complementar-se, prescindindo do que cada uma representava e tratando de somar em um mesmo esforço as atitudes diversas e mesmo antitéticas.
Por certo, tanto a velha quanto a nova classe tinham suas próprias concepções de vida, ambas bem definidas, embora a da burguesia não estivesse, nesta época, tão bem formulada como a da classe senhorial. No fundamental eram antitéticas, mas constituíam uma antítese que, como todas as fundamentais, só se manifestava ao extremar a análise e atingir os últimos princípios e as últimas conseqüências de seus termos. Por sua vez, as atitudes pragmáticas permitiam amplas coincidências, e um dos traços da nascente sociedade feudo-burguesa – e da correspondente cultura feudo-burguesa – foi esquivar-se até onde fosse possível de uma análise profunda dos fatos para evitar um enfrentamento no terreno das questões últimas.
A classe senhorial tinha uma concepção transcendente da vida e acreditava no fundamento sobrenatural de todo o sistema de relações vigentes no mundo. Não foi sempre assim, por certo, mas chegou a sê-lo no período que transcorre entre a crise do império carolíngio e o século XI. Detentora do poder, era também possuidora da terra, um bem de produção, sem dúvida, mas cuja significação ultrapassava amplamente os limites de suas funções econômicas na sociedade feudal. O que caracterizou a ótica senhorial foi, precisamente, considerar a riqueza em terras como algo que o poder lhe outorgava por acréscimo: o poder primeiro e a riqueza depois, como efetivamente havia ocorrido dado que a posse da terra reconhecia como fundamento último o direito de conquista.
A classe burguesa, por sua vez, nascia com uma concepção imanente da vida ou, se se prefere, naturalística e profana. Marcadamente agnóstica, ela não se esforçou em declarar seu pensamento, e apenas os pensadores e os artistas que foram a sua consciência o fizeram de maneira eventual. Entretanto, a classe burguesa revelava isso nas suas atitudes, mesmo quando tentou dissimular os objetivos principais que perseguia com uma sábia hipocrisia. A classe burguesa não havia nascido no calor de uma grande aventura de conquista e poder como a classe senhorial mas, sim, no seio da estrutura feudal que esta criara; e surgiu aproveitando uma falha para escapar de seu total domínio, constituindo por sua vez uma subestrutura dependente, em princípio, mas que demonstrou fortes possibilidades de se independentizar. A alavanca para forçar a sua emancipação foi o dinheiro, e a subestrutura dependente que constituiu foi uma economia monetarista. Assim alcançou a riqueza, mas o que caracterizou a sua ótica foi ter se centralizado na riqueza e imaginado que o poder era algo que a riqueza podia oferecer como acréscimo, mesmo sem negar que pudesse ser obtido por outra via, como o demonstrava claramente a classe feudal. A burguesia pensou, portanto, que pelo menos para ela a riqueza viria primeiro e o poder depois, como na verdade constava de sua experiência devido ao que ocorria com as novas sociedades aristocratas.
No exercício da colaboração senhorial e burguesa através das campanhas da primeira expansão européia, ficou evidente que essas duas concepções confluíram sem maiores choques. As classes senhoriais propuseram os objetivos transcendentes: a missão religiosa, em primeiro lugar, e a glória que os guerreiros almejavam. Depois admitiram outras finalidades mais concretas: o poder, sob a forma de criação de novos senhorios, já impossíveis no núcleo europeu. Porém, quando a classe senhorial dizia “o poder” queria dizer “o poder e a riqueza”. Assim, constituiu os senhorios, apossou-se da terra e tratou de conseguir todos os benefícios que eram obtidos da terra feudal. Entretanto, não estavam sozinhos. Os burgueses concordavam com os objetivos transcendentes declarados e consentiam em colaborar para realizá-los. No entanto, eles sabiam que quando a classe senhorial dizia “o poder” queria dizer “o poder e a riqueza”, e apressaram-se em delimitar os seus papéis: apoiar a formação dos senhorios, deixar fluir a organização que o senhor gostaria de estabelecer na terra ocupada, intervir na criação e no desenvolvimento de toda essa outra riqueza que não era, em princípio, poder – a riqueza móvel, monetária –, cedendo aos seus aliados o imprescindível para que se sentissem beneficiários da empresa, mas explorando profundamente as possibilidades que os seus recursos lhes permitiam, isto é, os dessa subestrutura da economia monetarista, que naquela época a burguesia internacional montava através da vasta rede do mundo urbano.
A rigor, o capitalismo nasceu assim dos seguintes fatos: com a primeira expansão européia para a periferia e com o primeiro ensaio de complementação de objetivos e de aptidões da classe senhorial e da classe burguesa. Este esquema se tornará cada vez mais sutil e complexo, mas não variará em sua essência. As sociedades feudo-burguesas o consolidarão durante o período de retração dos séculos XIV e XV em que elas mesmas se consolidam. E quando começa a segunda expansão européia – a oceânica, do século XV –, o esquema voltará a funcionar como quatro séculos antes, cada vez mais sutil, cada vez mais complexo, mas, no fundo, o mesmo.
4. Os ajustes da sociedade feudo-burguesa
O primeiro ciclo de expansão da economia urbana vai do século XI até princípios do XIV. E um período de intensas mudanças econômicas e sociais. A burguesia faz sucessivas experiências: explora mercados, seleciona os produtos de cada setor de intercâmbio, estabelece diversos tipos de organização mercantil e financeira e, alternando os êxitos com os fracassos, acaba atingindo uma ordem econômica mais ou menos estabilizada. Nessas experiências, as burguesias das diversas cidades viram-se diante de diferentes alternativas. Grandes fortunas arruinaram-se e outras novas procuraram substituí-las, representadas sempre pelo grande triunfador do dia, talvez o derrotado de amanhã. Mas, como conjunto, a classe burguesa também foi-se organizando e estabilizando ao longo dessas experiências. Constituíram-se os patriciados locais, os grupos que precocemente acumularam riqueza e poder e aceitaram encabeçar a luta da nova sociedade contra a velha ordem jurídica e política, com o fim de alcançar o sistema de garantias e franquias necessárias para o exercício das novas atividades mercantis. A comuna, os foros, os estatutos e as cartas foram os objetivos perseguidos, às vezes através de verdadeiras revoluções que pressupunham idéias muito claras e muita força por parte dos pleiteantes, muita fragilidade dos demandados e, em todo caso, uma ruptura considerável na estrutura tradicional. Em geral, o patriciado obteve o que desejava, e se não o obteve através de enfrentamentos, alcançou-o por gratuita e interessada concessão do senhor ou talvez mediante o pagamento de uma grande quantia. Entretanto, à medida que obtinha riqueza e poder, conseguiu em quase todos os lugares o status jurídico que lhe convinha, por meio do qual reorganizou a nova sociedade urbana, garantindo nela posição de proeminência.
A partir dos primórdios do século XIV, houve certa retração, que se acentuou depois da peste negra, em 1348. Tudo se tomou difícil, começando pela obtenção de mão-de-obra artesanal. Houve fome, epidemias e carestias em todo o âmbito da Europa e do Mediterrâneo. Um processo de reajuste da nova sociedade e da nova economia começou então e manifestou-se em todos os segmentos da vida.
O próprio poder real entrou em uma grave crise. Buscando a centralização do poder, havia enfrentado as aristocracias, apoiado em geral nas burguesias; mas o processo complicou-se e os interesses em jogo — movendo-se entre as velhas e as novas idéias – suscitaram conflitos intermináveis: guerras dinásticas, lutas civis, conspirações palacianas. Entretanto, houve um traço em comum: a monarquia, tentando adaptar-se à nova sociedade, buscou o controle de todos os meios de poder. No fundo, havia uma tensão inevitável entre a burguesia e o grupo feudal, e as alternativas do enfrentamento manifestaram-se de muitas maneiras. Houve confrontos diretos, como o de Étienne Marcel e os Estados Gerais de Paris, em 1356, que delinearam prematuramente um modelo de estado moderno parlamentar. Porém, após os esporádicos conflitos frontais, burguesia e feudalismo trataram de aliar-se, sobretudo para conter a crescente mobilização social. Por volta do final do século XV, tinham alcançado esse objetivo em quase toda a Europa, sem prejuízo de que grupos de um lado ou de outro resistissem ao pacto. Assim ficou constituída a sociedade feudo-burguesa, aquela que ensaiará a segunda expansão européia além-mar no século XV, que constituirá a sustentação do mundo moderno até o século XVIII.
Sem dúvida, o patriciado continuou procurando o apoio das classes feudais para os seus grandes empreendimentos econômicos quando implicavam um problema territorial e político. E, sem dúvida, as classes senhoriais trataram de aproximar-se dos segmentos burgueses que intuíam os negócios, descobriam as oportunidades, imaginavam os meios, dispunham dos capitais. Cada negócio concreto – a partir da commenda – aproximava o rico e o nobre. Depois vinham as alianças matrimoniais, a senhorização deste ou daquele burguês, o aburguesamento deste ou daquele senhor. O luxo dispendioso do patrício enriquecido aproximou-o, pelo modo de vida, do nobre; a mediocridade econômica do aristocrata empobrecido o fez decair a uma modesta burguesia. E os degraus intermédios de tão sutil e complexa escala acabaram criando uma gama muito tênue no setor das classes altas, deixando talvez de lado certa grande nobreza cortesã.
Por baixo ficou toda uma vasta e diferenciada massa de classe média e classe popular, urbana e rural, que sofreu todos os embates dessa contração social e econômica da qual adveio o reajuste das situações sociais. Foi a que mais sofreu com as pestes, o flagelo da fome, a que pagava os gastos suntuosos, a que absorvia as perdas dos empresários, foi a que não conseguia participação política em nenhum nível ou que a perdeu rapidamente, se alguma vez chegou a tê-la. Essas classes rebelavam-se às vezes em grandes sublevações camponesas ou em grandes motins urbanos. Porém, eram implacavelmente vencidas e, no melhor dos casos, serviram de instrumento para a ascensão de afortunados aventureiros. A Europa dos séculos XIV e XV ofereceu o espetáculo da impotência das classes médias e populares que atingiu também os estratos inferiores e talvez as classes médias do bloco feudo-burguês.
Enquanto isso, também foram-se ajustando as relações econômicas. Os primeiros passos do capitalismo desembocaram em uma definida política mercantilista: era a concepção burguesa que conduzia ao pacto. Seu núcleo foi a convicção de que sem algum apoio da estrutura não se poderia lutar contra ela ou, dito de outro modo, a ampliação do horizonte econômico, com a previsível multiplicação dos lucros, implicava riscos e dificuldades que não podiam ser vencidos sem o apoio do poder político. Quando as burguesias urbanas quiseram integrar um mercado regional para estender suas possibilidades, descobriram que necessitavam do apoio de um senhor territorial que, eventualmente, enfrentasse uma guerra. E quando começaram a pensar em mercados ainda mais extensos, ali estava o monarca ou o grão-duque que se sentia feliz de dar proteção a tão lucrativa atividade. Os burgueses das comunas já não tinham importância: era necessário ser burguês do rei, isto é, do mercado nacional. Era uma troca de serviços que se complementavam: os Bardi, no século XIV, como os Fugger, no XVI, financiavam o poder real.
5. A segunda expansão européia para a periferia
A medida que se aperfeiçoavam os ajustes da sociedade feudo-burguesa, procurou-se levar ao extremo o aproveitamento de todas as possibilidades oferecidas pela área econômica constituída após a primeira expansão para a periferia. Entretanto, as possibilidades não eram infinitas nem inesgotáveis. Depois da explosão demográfica do século XI, o crescimento da população deteve-se, e houve em seguida uma acentuada retração a partir de meados do século XIV. As sociedades ficaram fixadas e os mercados limitados. Além disso, as crises políticas e sociais adquiriram uma enorme intensidade e tornaram as rotas inseguras ou impraticáveis, ao longo das quais os mercados se retraíram. Cada circuito local intensificou sua atividade, mas os grandes circuitos sofreram as conseqüências dos enfrentamentos entre as áreas que eram delimitadas penosamente ao longo de duras contendas. Organizar-se-ia por fim o Estado borgonhês? O reino francês dominaria a costa atlântica? A Inglaterra conservaria sua influência em Flandres? Os Estados do Báltico unificar-se-iam? O império alcançaria a unidade interna? Os reinos da Hungria, Bohemia ou Polônia prosperariam? Barcelona seria um principado independente? Castela e Aragão unificariam os seus interesses? Todo o mapa político da Europa vinha sendo questionado, mas por trás desse questionamento havia o dos grandes circuitos econômicos, o da possibilidade de se conquistarem novas áreas de influência, o de se controlarem certas rotas. A economia européia entrou em um período de estagnação.
A possibilidade mais promissora era a do comércio que negociava com os produtos orientais. Bem antes da primeira cruzada, os venezianos haviam descoberto a possibilidade de introduzirem-se no sistema do comércio oriental. Na realidade, foram os pioneiros da primeira cruzada, e, uma vez que os cruzados conseguiram estabelecer senhorios e controlar portos, esse comércio se multiplicou com base nos produtos naturais – exóticos para os ocidentais – e no refinado artesanato.
Pouco a pouco distinguiram-se duas noções. O Oriente significava, sobretudo, o luxo, segundo uma inextinta tradição que remontava à época romana, mas pouco a pouco iria perceber-se que o que chegava do Oriente não eram tão-somente objetos fabricados dentro do quadro de uma cultura refinada e diferente, mas também produtos que provinham de uma natureza estranha, desconhecida na Europa, como o açúcar e as especiarias. A partir da imprecisa e sugestiva noção que o mundo do Oriente evocava começou a formar-se a imagem do mundo tropical.
Ao longo do século XIII, esse comércio havia prosperado, e as ondas da sua expansão eram percebidas em toda a Europa. Era, na realidade, o grande comércio internacional. Convinha ativá-lo e, diante das notícias que chegavam a respeito das mudanças que haviam ocorrido na hinterlândia do mundo muçulmano, os venezianos – como os castelhanos mais tarde – procuraram fazer contato com o insuspeitado mundo dos mongóis, talvez possíveis aliados dos cristãos ocidentais e, em todo caso, senhores das regiões de onde vinham produtos muito cobiçados, entre outros, a seda. Marco Polo e seus irmãos fizeram esse itinerário até o coração da Ásia. Porém, os resultados não foram positivos. Fruto da agitação asiática foi a crise do mundo dos seljúcidas e o surgimento do poder ascendente dos otomanos que, já na primeira metade do século XIV, haviam dominado a Anatólia e posto, afinal, os pés em Galipoli, na costa européia dos Dardanelos.
Esse novo poder transtornou todo o sistema comercial do Mediterrâneo. Os otomanos venceram em 1360 o império grego, em Andrinópolis, e estabeleceram ali a sua capital esperando que Constantinopla caísse. Com a vitória de Kossovo, em 1389, garantiram o domínio de quase toda a península dos Bálcãs e, em 1396, venceram em Nicópolis aos cruzados do rei Segismundo da Hungria, apoiados pela nata da cavalaria francesa. Somente a ameaça de Tamerlão, que os perseguia, derrotando-os em 1402, em Ancara, pôde obrigá-los a deter o seu avanço para o oeste. Foi por esta época que Portugal – o mais ocidental dos países da Europa – concebeu a idéia de buscar o seu próprio mundo tropical e o seu próprio Oriente, explorando as ilhas ocidentais e a costa africana.
Na realidade, tudo começou a partir das profundas transformações sociais que Portugal sofreu depois de 1380, quando a dinastia modernizadora dos Avis chegou ao poder, impulsionada por um movimento burguês. Um país que não tinha podido fazer frente à frota castelhana quando esta sitiou Lisboa, em 1372, por falta de recursos navais, transformou-se em pouco tempo em uma grande potência marítima, sobretudo pelo propósito pertinaz de um dos filhos do fundador da dinastia, o infante dom Henrique, chamado o Navegador, que canalizou uma tendência da nova sociedade, consolidada com a mudança dinástica. Em seu castelo de Sagres, no Algarve, o infante acumulou e sistematizou a escassa experiência existente sobre a navegação ocidental, recompilou a cartografia, capacitou as tripulações, organizou o saber náutico e aperfeiçoou a indústria naval. Foi uma afortunada campanha sobre Ceuta, em 1415, que o levou à decisão de empreender esta tarefa, porque ao mesmo tempo em que o comércio entre o Mediterrâneo e o Atlântico havia sido liberado da ameaça dos piratas muçulmanos, ele havia tomado conhecimento das terras tropicais da Guiné.
Qualquer que fosse o lugar onde estivessem, as terras tropicais pareciam oferecer insondáveis perspectivas. Donos da ilha da Madeira por volta de 1420, os portugueses já tinham quatro estabelecimentos em meados desse século, quando se instalou o primeiro moinho para a manufatura da cana-de-açúcar. Poderosos capitais internacionais intervinham no desenvolvimento das plantações e dos engenhos, judeus e flamengos sobretudo, talvez genoveses. Já em 1456, apareceu o açúcar da Madeira no mercado de Bristol e, não muito depois, em Constantinopla, em Veneza, em Gênova e, sobretudo, em Amberes, que se transformaria no grande empório da nova riqueza de Portugal. As plantações de cana e a indústria açucareira estenderam-se depois ao arquipélago dos Açores, confiadas pelo governo português a capitalistas flamengos, em seguida às ilhas de Cabo Verde e, mais tarde, ao Brasil. Enquanto isso, um intenso comércio de escravos africanos tinha começado a desenvolver-se a partir de 1441, e três anos depois funcionava uma companhia para o comércio na cidade de Lagos, sob a direção do infante dom Henrique. Não muito depois, estabelecia-se em Lisboa, sob a jurisdição real, a Casa dos Escravos, enquanto Castela explorava o mesmo negócio em suas possessões das ilhas Canárias.
Os portugueses, porém, continuaram avançando pela costa africana. Alcançaram o cabo Bojador, em 1434, e, em 1441, chegaram ao cabo Branco, ao sul do qual ergueram, em 1448, o primeiro forte na baía de Arguim. Foi nessa área que iniciaram o tráfico escravista que tanta importância teria para o desenvolvimento das plantações. Em 1445, chegaram a Cabo Verde, de onde chegariam às ilhas de Cabo Verde. A morte do infante dom Henrique determinou uma pausa nas explorações, mas ao serem retomadas mais tarde os portugueses chegaram primeiro até a zona equatorial e a seguir, em 1488, com Bartolomeu Dias, até o extremo meridional da África. Uma imagem deslumbrante do mundo tropical – a que Camões elaboraria mais tarde em Os lusíadas – começou a influenciar a mente dos portugueses, que rapidamente associaram o tropicalismo, antes de mais nada, com o tráfico de escravos. Por essa via nasceram novas fortunas, reativou-se a agricultura portuguesa e tomou-se possível uma colonização em grande escala de algumas regiões com base na mão-de-obra escrava.
Os castelhanos tinham certa tradição marinheira no Atlântico, pois sua frota – nada desdenhável no jogo político e militar da Europa – operava em geral a partir dos portos da Galícia e de Astúrias. Na época dos descobrimentos portugueses, tinham conseguido chegar às Canárias, cuja conquista culminou com a ocupação de Palma, em 1490, e de Tenerife, em 1492. Mas há muitos anos haviam renunciado à competição com Portugal na área africana, como ficou acertado no tratado de Alcáçovas, de 1479. Foi assim que deram atenção a outros projetos e apoiaram o de Colombo, que culminou, em 1492, com o descobrimento do continente americano. Nos dez anos subseqüentes, os espanhóis continuaram explorando com afinco as costas do Caribe. Os portugueses, por sua vez, conseguiram dar a volta ao cabo da Boa Esperança e chegaram a Calicute, na Índia, em 1498, e, pouco depois, outra frota portuguesa, comandada por Pedro Alvares Cabral, que retomou o caminho recém-iniciado por Vasco da Gama, chegou às costas brasileiras, em abril de 1500. Os objetivos estavam definidos. Um vasto esforço econômico e militar permitiria em poucas décadas construir os dois grandes impérios coloniais, o português e o espanhol.
6. As sociedades que criaram os impérios
Mais que as conjunturas políticas e econômicas em que os impérios foram criados, importa perceber o tipo de sociedade que se constituía há tempos em cada um dos países imperiais, porque tanto Portugal quanto os reinos de Castela e Aragão haviam passado por graves crises nas remotas vésperas da empresa transoceânica, e o ímpeto expansivo teve muito a ver com elas.
Foi na segunda metade do século XIV quando se deu o desencadeamento dessas crises, e os processos que daí se originaram foram os que desembocaram fluidamente em uma atitude expansiva que não podia satisfazer-se nos caminhos já percorridos, mas sim nos incógnitos caminhos que eram oferecidos no alémmar. Foi então que os grupos sociais, as estruturas econômicas, os sistemas políticos e as ideologias começaram a adquirir as características que, amadurecidas, impuseram sua marca à expansão.
A dinastia borgonhesa naufragou em Portugal na enorme comoção social que durou de 1383 até 1385. Típica revolução burguesa, uniu toda a trama da crise da sociedade tradicional e inaugurou uma nova problemática tanto para as velhas quanto para as novas classes. Dessa sacudida surgiu com João I a dinastia de Avis, cuja política não poderia livrar-se das circunstâncias originais, dado que ela mesma encarnou o desejo de mudança. Foi, em conseqüência, uma dinastia modernizadora, disposta, sem dúvida, a satisfazer as aspirações da nobreza tradicional, mas canalizando-a dentro do esquema feudo-burguês que as novas classes propunham.
Bloqueado Portugal ao norte e no leste por Castela, não faltou, entretanto, quem quisesse tentar a expansão nesse sentido, aproveitando os melindres de uma acirrada luta dinástica. Porém, após duras e infrutíferas experiências, o tratado de Alcáçovas impediu essa possibilidade, em 1479. Outros segmentos, os que melhor representavam a mentalidade renovadora da revolução de 1383 e da dinastia de Avis, optaram por explorar as possibilidades oferecidas pelo caminho do Atlântico. Uma estreita aliança selada com a Inglaterra a partir de 1373 complementou-se com o fortalecimento das relações entre os portos portugueses e as cidades flamengas. Entretanto, essa ativação comercial só satisfazia os segmentos mercantis com uma ambição mais imediata. O Atlântico oferecia muito mais e, sobretudo, não apenas aos setores mercantis como também aos da nobreza ambiciosa, empobrecida ou a ponto de empobrecer, e especialmente da pequena nobreza – os fidalgos – que depositava suas esperanças na política renovadora da casa de Avis. Foram essas classes que souberam constituir a aliança feudo-burguesa que decidiu explorar o Atlântico, as ilhas ocidentais e, sobretudo, o continente africano.
Dom Duarte, o segundo rei da dinastia de Avis, reconheceu a existência de uma nova sociedade. Em sua obra O leal conselheiro, o rei português contrapunha à tradicional concepção tripartite, expressa reiteradamente na Espanha por essa época – segundo a qual estava composta de “oradores, defensores e lavradores” –, uma divisão da sociedade muito mais diversificada: oradores, defensores, lavradores, pescadores, ajudantes e artesãos. Porém, o importante é que cada uma dessas classes havia adquirido uma fisionomia nova e singular. A antiga nobreza empobrecida e esgotada foi sucedida por uma nova – que encarnava o condestável de João I, Nuno Álvares Pereira –, ávida de terras, honras e riqueza, que ameaçava a coroa, exigindo-lhe doações ou oportunidades de conquistar bens. E em seus últimos degraus havia uma infinidade de fidalgos mancebos, sem posses em virtude do princípio de primogenitura, receosos de empreender certas atividades para não comprometer sua condição nobiliárquica e que aspiravam a que a coroa lhes abrisse horizontes para ganhar as terras que não tinham.
Entretanto, as terras estavam em crise em Portugal. Um acentuado êxodo camponês deixava-as sem cultivo enquanto cresciam nas cidades não só uma próspera burguesia como também setores médios e populares quase miseráveis. Duas políticas esboçavam-se na primeira metade do século XV, representadas por dois dos filhos de João I: uma, a do infante Henrique, o Navegador, que procurava a expansão ultramarina de Portugal – “arruinando-o”, segundo diziam seus adversários – e outra, a do infante dom Pedro, regente de seu sobrinho Afonso V, que lutava por uma intensificação da agricultura e da pesca, do comércio marítimo, do tráfico de escravos, do comércio de metais e de especiarias. A primeira parecia atrair os nobres e a segunda, a burguesia. Mas as duas políticas tornaram-se coincidentes à medida que os estamentos inferiores da nobreza se aproximaram dos grupos mercantis – portugueses e internacionais – que avançaram na conquista e colonização das ilhas e das costas africanas. Não foi em Ceuta nem em Marrocos – conquistado por Afonso V – onde estes interesses paralelos conseguiram ser canalizados: foi nas ilhas do Atlântico, onde começaram as plantações e a indústria açucareira; foi na África, onde prosperou o comércio de escravos; foi no vasto império oriental erguido por Gama, Almeida e Albuquerque, onde se estabeleceram negócios fabulosos e efêmeros; mas foi sobretudo no Brasil, em especial depois de 1530, onde uma exploração metódica criou uma imensa riqueza por obra dos “senhores de engenho”, isto é, fidalgos transformados em empresários, sustentados com a contribuição do capital fornecido pelos intermediários flamengos e judeus que comercializavam sua produção.
Diferente foi o caso de Castela, Estado atlântico até meados do século XIII e a partir de então mediterrâneo também. Uma burguesia de certa relevância havia crescido desde o século XI em muitas cidades que, por sua vez, haviam recebido direta ou indiretamente o impacto da reativação comercial, graças à qual um comércio inter-regional e marítimo começou a se desenvolver. Entretanto, o vigor das velhas aristocracias era muito maior e crescia não só quando as necessidades de defesa diante dos muçulmanos obrigavam a coroa a convocá-las, mas também quando as crises internas – minorias ou guerras civis – as tornavam donas da situação. As burguesias não puderam sobrepor-se a elas nem mesmo quando seus vínculos com a monarquia se estreitaram, porque, embora se tenham fortalecido, influíram em sua estrutura interna não apenas o poder real, zeloso de sua ascensão, como também sua própria dinâmica interior, pois muitos de seus membros preferiram os bens de raiz e eventualmente as honras da cavalaria plebéia ou da fidalguia às aventuras mercantis.
A aliança com a monarquia fortaleceu o seu poder; entretanto, não foi isso o que importou em seu confronto com as velhas aristocracias. O grave foi que, mesmo com poder, as burguesias não tiveram um projeto capaz de atrair a aristocracia nem na linha de expansão cantábrica nem na mediterrânea. Nas duas áreas, a burguesia castelhana havia chegado tarde e só realizava operações de rotina, muito diferentes, por certo, das que a burguesia catalã ofereceu aos cavalheiros aragoneses quando se deu a união dos dois Estados, na primeira metade do século XII. Por isso, surgiu ali uma sociedade feudo-burguesa que, em Castela, demorava a constituir-se.
De qualquer maneira, o projeto era viável enquanto se mantivesse um certo equilíbrio entre a burguesia, apoiada pela coroa, e a aristocracia. Porém, deixou de sê-lo quando, pouco antes de triunfar em Portugal a dinastia modernizadora de Avis, ocorreu uma mudança inversa em Castela, ao cair assassinado Pedro I, em 1368, pela mão de Henrique de Trastamara, seu irmão bastardo aliado da França. Pedro I havia levado ao extremo a política antinobreza, apoiado pelos setores que tinham os mesmos adversários que ele. E a dinastia dos Trastamara serviu, em compensação, aos interesses da aristocracia e deixou que houvesse uma verdadeira restauração feudal: novas e reiteradas doações aos senhores enfraqueceram o erário real e transferiram numerosas cidades da realeza para o poder dos senhores.
A transformação foi radical porque desde então se deslocou ainda mais a política de um país – Castela – que estava obrigado a atuar no âmbito de duas economias, ambas em crise. Os Trastamara careceram de visão econômica e acompanharam o descompasso e a miopia de uma aristocracia que não entendia o mundo mercantilista em formação e que não estava disposta a dar lugar àqueles que podiam entendê-lo melhor: uma burguesia que, como ficou provado nas Cortes de Madrigal de 1438, parecia ter algumas idéias claras sobre a situação e os mecanismos operacionais que começavam a prevalecer. Porque abrir caminho para a burguesia era ceder uma parte do poder, e a aristocracia da época dos Trastamara demonstrou que era a única coisa que não estava disposta a fazer. Enfrentamentos entre grupos nobres, problemas dinásticos e as guerras civis e internacionais que derivavam de tais questões coincidiram com as preocupações latentes devido à presença dos mouros em Granada, para impedir qualquer tentativa que significasse uma abertura, fora da muito modesta das ilhas Canárias.
Os Estados do leste, nesse ínterim, haviam ido muito mais longe desde que o Estado territorial de Aragão fora unido à Catalunha, em 1137, na época de Ramón Berenguer IV. A comunhão de interesses da aliança feudo-burguesa facilitou a política agressiva das burguesias catalãs no Mediterrâneo, o que desembocou em vastos empreendimentos territoriais e mercantis: a conquista das Baleares, entre 1229 e 1235, a conquista de Valência, em 1238, a ocupação de Elche e Alicante, em 1266, todas regiões onde houve terras para os senhores e que ficaram incluídas na área cada vez mais ampla das operações comerciais que Barcelona presidia. Essa política não se deteve. Ao final do século XIII, Pedro III apoderou-se do reino da Sicília e, pouco depois, deslocavam-se os almogávares pelo Mediterrâneo oriental, fundando Estados cuja soberania seria reconhecida por Pedro IV de Aragão. E enquanto se debatia o problema da ocupação real da Córsega e Sardenha, Afonso V conquistou o reino de Nápoles, em 1432. Uma intrincada rede mercantil cresceu cada vez mais no Mediterrâneo ocidental. Foi a época de ouro da burguesia barcelonesa porque Barcelona era a principal beneficiária da intensificação do comércio dentro de um circuito que ela controlava. Ascendente em poder econômico e em prestígio interno e internacional, a burguesia barcelonesa almejou acentuar a autonomia que desfrutava no sistema político da coroa de Aragão e começou a pensar na independência do principado da Catalunha, ao morrer Afonso V, em 1458. A rigor, tratava-se de dissolver a aliança estabelecida três séculos antes por Ramón Berenguer IV entre as cidades marítimas e o reino territorial que formava a sua hinterlândia, ou seja, dissolver a aliança feudo-burguesa que estava na base da sociedade do âmbito político e econômico da coroa de Aragão. Catalunha – Barcelona, fundamentalmente – encabeçou a revolução separatista em 1462, mas a sociedade feudo-burguesa estava comprometida demais com a estrutura total do reino – tanto a territorial quanto a mercantil – e resistiu à tentativa de secessão. Quando a revolução foi definitivamente vencida em 1472, a aliança foi reconstituída, ou melhor, reconheceu-se o fato de que a aliança era irreversível no reino de Aragão; e o sistema político e econômico que integrava ficou consolidado, ao final do século XV, pela campanha de reunificação de Nápoles empreendida por Fernando, o Católico.
A união de Castela e Aragão, consagrada com o matrimônio de Isabel e Fernando, em 1469, parecia inaugurar uma nova etapa. Com as experiências das últimas guerras civis ainda vivas em ambos os reinos, Isabel e Fernando procuraram e conseguiram reduzir as tendências insurrecionais da aristocracia, ao mesmo tempo em que ordenavam juridicamente a situação das burguesias, às quais, aliás, se ofereceriam garantias e estímulos para o seu desenvolvimento. Em uma última tentativa decisiva, desencadeou-se a ofensiva contra Granada, que culminou com o aniquilamento do último reino muçulmano da península e a incorporação de seu território a Castela. No mesmo acampamento de Santa Fé, de onde a guerra havia sido comandada, foram assinadas as capitulações com Cristóvão Colombo para que iniciasse a sua viagem transatlântica. E pouco depois, segundo desejos expressos da rainha Isabel, o cardeal Cisneros iniciou a conquista do Magreb com a tomada de Orã.
Essa aristocracia que havia sido subjugada sem contemplações em Castela e que afinal havia recorrido à corte dos reis para obter seus favores já não era a mesma que havia sustentado a política feudalista dos Trastamara, que havia resistido e afinal vencido o propósito centralizador de Álvaro de Luna e que inclusive resistira, a princípio, aos reis católicos. Era, a rigor, uma aristocracia politicamente vencida, mas que conservava grande parte de seu poder social e econômico. Sobretudo, conservava seu prestígio como estrato social supremo, prestígio que a formação de grupos mercantis não havia podido minar, e que não havia sido alterado pela gravitação das novas formas de riqueza. Subjugada politicamente, continuou predominando quando a monarquia fez o ajuste das forças que a apoiavam, precisamente porque reprimiu as pretensões das burguesias, nas quais também desferiu um duro golpe quando expulsou os judeus e destruiu todo o sistema de conexões com a rede mercantil e financeira que operava na Europa.
Ainda restava à burguesia castelhana suportar os ataques de suas rivais de Flandres e da Alemanha, protegidas pela aliança dos reis católicos com os Habsburgo. Mas já estava provado que não podia insurgir-se contra a aristocracia. Sua imponente presença havia induzido vastos setores à terra, os quais em outras circunstâncias que não as da reconquista, ter-se-iam inclinado para as atividades mercantis e industriais e as teriam reforçado: eram os cavaleiros plebeus ou cidadãos, que há muito tempo haviam assumido em Castela o governo dos municípios. Porém, além disso, a aristocracia transmitia seu prestígio até seus mais baixos escalões, os fidalgos primeiro, os que conseguiam tornar-se fidalgos e talvez os que se faziam passar por tais. Pareceu não haver saída na estrutura econômica e social da Espanha precisamente para este setor. Não houve muitas benesses para os pequenos fidalgos da Estremadura, Castela, Leão ou da própria Andaluzia após a conquista de Granada, na qual as grandes famílias nobiliárias, verdadeiros poderes insaciáveis a quem a coroa domesticava, enriquecendo-as, tinham posto os vorazes olhos. Talvez a rainha Isabel tenha pensado nesses fidalgos quando formulou o programa de expansão da Espanha para o Magreb, iniciado pelo cardeal Cisneros. E talvez tenha pensado também nas classes populares, urbanas e rurais, que se comprimiam dentro de uma estrutura econômica rígida e sem horizontes.
O apoio ao projeto de expedição transoceânica insere-se nessa mesma linha. Os êxitos portugueses – econômicos, sociais – preocupavam a nova monarquia espanhola. Porém, preocupavam-na também os problemas sociais e econômicos já expostos, sobretudo em Castela, depois da recuperação final de todo o território espanhol. Momento difícil da economia, tanto na área atlântica quanto na área mediterrânea, as classes não privilegiadas – inclusive as que o eram apenas nominalmente – não tinham acesso à terra, monopolizada pelas grandes famílias. A indústria e o comércio ofereciam escassas perspectivas para as burguesias espanholas em um mundo que se fechava – o Mediterrâneo – ou em um mundo que estava regulado de maneira tenaz há alguns séculos e que avançava cada dia mais nesse férreo controle, como era o Atlântico. Mais uma vez, a expansão para a periferia parecia a única solução, e a Espanha encontrou-a como a encontraria Portugal, em um momento crucial de seu desenvolvimento.
2.
O CICLO DAS FUNDAÇÕES
Uma vez atingidas as costas americanas e reconhecido o litoral, os espanhóis primeiro, e depois os portugueses, começaram o processo de ocupação do território. A partir do estabelecimento da Isabela na Hispaniola, em 1493, e ao longo do século XVI, esse processo se realiza mediante a fundação de numerosas cidades, atos políticos que desde o primeiro momento se formalizam. O marco institucional é comum: apóia-se em uma legislação homogênea, em costumes muito arraigados e em prescrições práticas análogas, quando não idênticas. A princípio, portanto, os fenômenos urbanos são similares, tão similares quanto os textos das atas de fundação e os primeiros atos institucionais de divisão de solares1 ou de estabelecimento de cabildos.2 Precisamente, um dos aspectos mais importantes do desenvolvimento urbano na América Latina consiste na progressiva diferenciação de cidades e de processos urbanos que começaram por serem idênticos. Essa semelhança inicial constitui um fato básico para explicar os conflitos entre as condições impostas, a princípio, e as necessidades e possibilidades que apareceram depois em cada lugar e circunstância.
Por certo, o território e as populações americanas impuseram algumas características à ocupação, em um primeiro momento, e à colonização, depois. As distâncias, os acidentes geográficos, a surpreendente novidade da fauna e da flora, as particularidades climáticas e, sobretudo, os insuspeitáveis traços das culturas aborígines surpreenderam os conquistadores e impuseram-lhes certo tipo de conduta: os dois termos do processo contribuíram para atribuir-lhe uma fisionomia peculiar.
A maior surpresa dos conquistadores foi, sem dúvida, a que lhes propiciou o descobrimento do mundo tropical, pois nem toda a América, Ásia ou África tinha essa característica. Os conquistadores tinham obsessão pelo mundo tropicai – um âmbito econômico complementar da Europa temperada –, cujos produtos haviam chegado ao Mediterrâneo sem que os europeus pudessem conhecer durante muito tempo seus lugares de origem; e quando se depararam com as zonas tropicais da África, América e Ásia, identificaram o mundo colonial com o tropicalismo. Assim, a velha imagem do Oriente transmutou-se na de um mundo tropical. Nele, aprenderam a conhecer uma natureza surpreendente e úmida. Mas também aprenderam a conhecer um mundo que possuía outra escala. A magnitude dos acidentes geográficos – rios, montanhas, lagos, ilhas, selvas –, bem como as enormes distâncias que tinham de percorrer para alcançar seus objetivos, condicionaram sua ótica e suas reações: talvez por isso tenha aparecido um europeu colonial, um homem novo que levava ao extremo algumas das atitudes que tinham começado a surgir naqueles que participaram das cruzadas. Para muitos deles, o mundo europeu começou a parecer pequeno e monótono.
Nesse ínterim, o processo teve outros aspectos. Aqueles que aceitaram a missão de ocupar o território e de nele fixar cidades que lhes servissem de ponto de apoio não tiveram durante muito tempo uma idéia muito clara dos objetivos concretos que perseguiam. O apoderamento das coisas que encontraram ao alcance das mãos – o pau-brasil ou o ouro – engendrou uma atitude bem diversa da que tiveram de adotar quando descobriram que a verdadeira riqueza exigia trabalho organizado: a plantação e o processamento da cana-de-açúcar, a criação de gado, a exploração de minas. Durante muito tempo, aquela primeira atitude pareceu ser a mais adequada ao aventureiro que vinha para a América: apoderar-se da riqueza e voltar. Representou um enorme esforço reduzir essa atitude à do empresário que, para retornar com riquezas, necessitava produzi-las. Foi, entretanto, um esforço que se fez logo, mesmo quando as duas atitudes ficaram obscuramente entrelaçadas na consciência do europeu colonial, que não tinha certeza se era homem da Europa ou da América.
Talvez o que mais ratificou sua condição de europeu foi o gentio americano e sua cultura, tudo profundamente alheio a ele. A dominação das populações aborígines tinha muitos matizes e era necessário escolher uma conduta: submetêlas para que servissem como mão-de-obra no plano da produção de riquezas ou protegê-las e evangelizá-las. Eventualmente as duas, combinadas e justificadas com argumentos que acabaram por parecer-lhes válidos. Mas em última instância, nenhum europeu duvidou que fosse um conquistador, com todos os direitos que a vitória proporciona; e, neste caso, era uma vitória sobre infiéis, como as que antes havia obtido sobre os muçulmanos. A cidade foi européia em um mundo habitado por outros povos e com outra cultura.
Por isso, o conquistador adquiriu a certeza de que a luta não tinha trégua. O grupo que se instalava no território para dele tomar posse havia chegado através de caminhos desconhecidos e cortado o contato com a retaguarda. Todos queimavam os navios. Nessas condições, a única estratégia possível era a da luta desesperada até o fim. Daí, o tipo de poder que se estabeleceu após a vitória, no baluarte que a consagrava: a cidade fortificada.
A tomada do território foi total. Deu-se a ela uma fundamentação jurídica e teológica, construída sobre montanhas de argumentos; mas o conquistador viveu sua própria fundamentação, que era indiscutível porque se baseava em um ato de vontade e era, no fundo, sagrada. Tomou-se posse do território concreto onde se colocavam os pés e se assentava a cidade; mas, além do território conhecido, também se tomou posse intelectual de todo o território desconhecido, repartindo-o sem conhecê-lo, indiferente aos erros de centenas de léguas que pudesse haver nas concessões. Assim, as jurisdições foram instituídas de direito antes de que o fossem de fato. O estabelecimento foi sempre formal ao mesmo tempo que real; mas o formal superava o alcance do real. Tudo isso fez que a cidade fosse o núcleo do processo. A partir dela – já erigida ou ainda embrionária a virtualidade haveria de converter-se em realidade.
1. As cidades e as funções preestabelecidas
A partir do forte de La Navidad e da Isabela, as numerosas cidades fundadas pelos conquistadores espanhóis e portugueses constituíram núcleos destinados a concentrar todos os seus recursos com o fim de enfrentar não apenas a disputa pelo poder, como também a disputa étnica e cultural encetada com as populações nativas no âmbito da terra conquistada e por conquistar. As cidades foram formas jurídicas e físicas que tinham sido elaboradas na Europa e implantadas em terras americanas, praticamente desconhecidas. Pedro Mártir de Anglería chama-as de “colônias”, porque pareciam meros postos avançados da Espanha.
No momento de implantá-las, foi-lhes concedida uma função, ou melhor, foram implantadas para cumprir uma função preestabelecida. E começaram cumprindo-a, sem prejuízo de que seu desenvolvimento posterior as diferenciasse.
A cidade latino-americana começou, na maioria das vezes, sendo um forte. E não podia ser de outra maneira, visto que os conquistadores, além dos imensos e insuspeitados obstáculos naturais, tinham de enfrentar a hostilidade das populações indígenas e as lutas entre eles mesmos pela posse de certas regiões em disputa. Ao finalizar a Cuarta década, Pedro Mártir de Anglería escreve esta terrível frase: “Vou dizê-lo em poucas palavras, porque tudo isto é horrível e nada agradável. Desde que terminaram minhas Décadas não se fez outra coisa a não ser matar e ser mortos, assassinar e ser assassinados.”
Fortes foram, portanto, as primeiras fundações. Hernán Cortés diz na carta escrita ao imperador, em 1520: “Deixei na vila de Vera Cruz cento e cinqüenta homens, sendo dois a cavalo, construindo uma fortaleza que já tenho quase acabada.” Em termos semelhantes referem-se Ulrico Schmidl à primeira fundação de Buenos Aires, em 1536, e Ruy Díaz de Guzmán ao primeiro povoamento de Assunção, em 1537; entretanto, o testemunho mais expressivo é o de Pedro de Valdivia, em carta ao imperador, em 1545:
Ordenei que se fizesse um muro de um estado3 e meio de altura, formando um quadrilátero de mil e seiscentos pés, que levou duzentos mil tijolos de uma vara de comprimento por um palmo de altura, feitos pelas próprias mãos dos vassalos de V. M., e eu com eles, e com nossas armas às costas, trabalhamos desde o começo até que se acabou, sem hora de descanso, e quando havia ataque de índios nele se abrigavam as crianças e os equipamentos, e ali estava a provisão que tínhamos armazenada, e os peões ficavam na defesa, e os que estavam a cavalo saíamos a percorrer o campo e lutar com os índios, e defender nossos plantios.
A mesma coisa fez Martim Afonso de Sousa, em São Vicente e no Rio de Janeiro, em 1532; em Recife, onde os franceses já haviam erguido um forte, foi levantado outro pelos portugueses, ocorrendo o mesmo em Olinda e em Salvador, na Bahia, e mais tarde em Montevidéu.
A cidade-fortaleza foi a primeira experiência hispano-americana. Atrás dos muros, se reunia um grupo de pessoas armadas que precisava fazer a guerra para ocupar o território e alcançar a riqueza que acreditava estar nele escondida. Necessitava dos indígenas como intermediários, tanto para obter alimentos em meio a uma natureza desconhecida, quanto para encontrar o segredo da riqueza: as pérolas da costa venezuelana, o ouro e a prata, que antes de aparecer em grandes quantidades, mostraram-se promissoramente e aguçaram a cobiça dos conquistadores. Mas o conquistador necessitava dos indígenas dominados, ou melhor dizendo, subjugados e, ao mesmo tempo, benevolentes. Desta duplicidade, nasceu uma política de aculturação e de mestiçagem. A cidade-fortaleza foi o seu primeiro instrumento. Assim nasceram as cidades citadas e, antes delas, o forte de La Navidad. E depois, surgiram as cidades de fronteira na luta contra os índios, como Valdivia, Concepción e La Serena, no Chile; Santa Cruz e Tarija, na Bolívia. E igualmente as cidades de vanguarda, como as que se seguiram à fundação de Nueva Cádiz e Coro, na Venezuela, ou à de Baracoa e Bayamo, em Cuba. Em inúmeras cidades latino-americanas há um forte em suas origens.
Em outras ocasiões, a cidade latino-americana começou como um porto de escala, cujas funções de baluarte mercantil complementaram-se em alguns casos com as de mercado, convertendo-a em uma cidade-empório.
Ponto de chegada e de partida das frotas metropolitanas, a cidade ergueu-se sobre um porto natural, às vezes sem considerar as condições do terreno, do ponto de vista de seu potencial para o estabelecimento de uma população fixa. Santo Domingo, Portobelo, Havana, Panamá, Vera Cruz, Cartagena, Salvador, Recife nasceram e perpetuaram essa função. A política econômica da coroa consagrou a crescente importância de alguns portos, ao atribuir-lhes um papel fundamental no comércio marítimo com a metrópole. Esse foi o caso de Portobelo e Vera Cruz, a partir do momento em que se estabeleceu o sistema de frotas e galeões. Fato semelhante ocorreu com Acapulco, que concentrou o comércio com as Filipinas; com Panamá e Callao, que se transformaram nos dois terminais do transporte da prata pelo Pacífico para seu posterior trasbordo aos navios que atravessariam o Atlântico; bem como com Salvador e Recife, por onde saía a produção açucareira. Esta concentração de funções comerciais em alguns portos, destinada a assegurar o mecanismo monopolista e, sobretudo, o controle fiscal, estimulou o desenvolvimento de tais cidades, onde se reuniu o contingente militar de defesa, as indústrias navais de recuperação, os grupos mercantis, os escritórios administrativos governamentais e, naturalmente, toda a população subsidiária que um centro dessa natureza sempre atrai.
A cidade-porto, cheia de vida pela variedade de suas atividades e pelas múltiplas possibilidades que oferecia, e próspera pela concentração de riqueza que nela se observava, atraiu a cobiça dos piratas e corsários. Várias foram as que sofreram suas investidas – San Juan de Porto Rico, Panamá, Santiago de Cuba, Havana – e algumas, destruídas. Para evitar esse perigo, foram cercadas por muralhas e, algumas vezes, dotadas de um castelo ou fortaleza. Cartagena das índias ainda conserva sua poderosa muralha e suas fortificações e permanecem de pé as fortalezas de Havana e de San Juan de Porto Rico. Em tomo das cidades do Caribe, desenvolveram-se os refúgios de piratas nas ilhas desertas. Essas circunstâncias faziam das cidades-portos focos de intensa atividade militar e costumava haver mobilização de toda a população em caso de ameaça.
Algumas cidades-portos, porém, adquiriram outras características. O sistema monopolista estimulou um desenvolvimento paralelo do comércio ilegal. Buenos Aires, fundada pela segunda vez em 1580, teve uma situação de inferioridade econômica provocada pela diferença que a separava dos portos autorizados para a entrada de mercadorias européias, que somente ali chegavam através de Portobelo e Lima. A conseqüência foi o surgimento de um contrabando intenso e metódico que estabeleceu suas bases nas colônias portuguesas. Graças a ele, Buenos Aires prosperou e subsistiu. A rigor, havia nascido como resultado do impulso das regiões mediterrâneas do sul em busca de uma saída autônoma, que evitasse sua dependência dos portos do Pacifico e fosse uma “porta para a terra”, em relação direta com a Espanha através do Atlântico. E como porto adquiriu, afinal, uma função análoga à dos portos estabelecidos pela metrópole no Caribe e no oceano Pacífico.
Durante algum tempo, a cidade latino-americana foi originariamente apenas um ponto de passagem, um centro de reagrupamento de pessoas e coisas para assegurar o prosseguimento da marcha para regiões distantes ou perigosas.
Um caso muito característico foi o de Puebla de los Angeles, no México, fundada em 1531. A segunda Audiencia4 decidiu constituí-la para que servisse como escala segura no caminho entre o porto de Vera Cruz e a Cidade do México, em cujo percurso havia duas importantes cidades indígenas que também tinham essa função, Tlaxcala e Cholula. Mais significativo ainda foi o caso de Assunção, fundada em 1537 por Juan de Salazar em um lugar escolhido – segundo diz Ruy Díaz de Guzmán – “por parecer-lhe o porto bom e escala para a navegação do rio”.
Ali chegaram a partir do rio da Prata os que queriam dirigir-se para a suposta região das minas e chegaram também os sobreviventes da expedição de Álvar Núñez Cabeza de Vaca, depois de sua fabulosa caminhada a partir das costas do golfo de Santa Catarina através do Brasil; e dali partiram, nos tempos de Álvar Núñez e de Irala, as expedições que, como a de Juan de Ayolas, persistiam em abrir uma rota para o Peru. Fracassadas essas tentativas, a progressiva ocupação da região circundante e a estreita relação estabelecida com os guaranis garantiram o porvir de Assunção, que de “casa forte” e cidade de escala passou a ser cidade, em 1541, pelo desígnio das populações vizinhas que nela se estabeleceram.
De modo semelhante se deram as fundações realizadas no atual território argentino ao longo dos vales longitudinais da cordilheira dos Andes, como Jujuy, Salta, Londres, depois chamada de Catamarca, La Rioja, San Juan e Mendoza, ou as que marcaram o caminho do Alto Peru até o rio da Prata, como Salta, Tucumán, Santiago del Estero e Córdoba.
As longas distâncias e a hostilidade das populações indígenas exigiam estas fundações. Referindo-se a Loja, no Equador, Cieza de León diz:
A localização da cidade é a melhor e mais conveniente que se pôde dar para permanecer na região da província; e porque os espanhóis que percorriam o caminho real para ir a Quito e a outros lugares corriam o risco de ser atacados pelos índios de Carrochamba e de Chaparra, fundou-se esta cidade como já se disse.
A qualidade do lugar dependia de diversas circunstâncias. Uma posição alta e facilmente defensável nas regiões montanhosas – como aquela onde antes se instalara um pucará5 indígena – podia ser escolhida. Mas outras circunstâncias também podiam motivar a escolha. Um vau ou uma ponte eram pontos favoráveis, como o eram uma “aguada” – isto é, um lugar onde se faz provisão de água – ou um cruzamento de caminhos. No ponto favorável – simplesmente, no lugar franqueado – podia surgir uma capela ou uma posta e em volta desse núcleo surgia a cidade: primeiro o casario, depois a aldeia.
Em outras ocasiões, a cidade latino-americana foi erguida no lugar de uma cidade indígena. Destas cidades, poucas alcançaram certa importância, e duas delas – México e Cuzco – impressionaram fortemente os espanhóis. “A cidade é tão grande como Sevilha ou Córdoba”, escreveu Hernán Cortés falando de Tenochtitlán; e acrescentava mais adiante: “Tem outra praça tão grande como duas vezes a cidade de Salamanca, toda rodeada de portais, onde há diariamente mais de sessenta mil almas comprando e vendendo”, e cheio de admiração e surpresa continua a descrição. Entretanto, a cidade foi destruída e em seu lugar ergueu-se outra de estilo europeu. A nova Cidade do México foi projetada como um quadrilátero; consagrou-se o lugar do templo cristão mais ou menos no mesmo local onde havia estado o santuário indígena, e se lançaram as bases do forte; depois foram distribuídos os solares, e pouco a pouco começaram a ser levantadas as novas construções com as velhas pedras das monumentais edificações indígenas. A obra começou em 1523, conforme as ordens de Cortés.
No Peru – segundo informa Cieza de León – “em parte alguma se encontrou formato de cidade com nobres ornamentos salvo neste Cuzco, que era a cabeça do império dos incas e sua sede real”. A rica cidade indígena assombrou os conquistadores. “Deve ter sido fundada por gente de grande capacidade”, observa Cieza de León, e a descreve nestes termos:
Havia grandes ruas, embora estreitas, e as casas eram feitas de pedra pura, tão perfeitamente encaixadas que demonstra a antigüidade da construção, pois existiam pedras bastante grandes e muito bem assentadas. O restante das casas era todo de madeira e palha ou terrados, porque de telha, tijolo ou cal não vimos nem vestígios. Nesta cidade, havia em muitos lugares aposentos destinados aos reis incas, onde o inca que estava no poder celebrava suas festas. Ali também havia o magnífico e solene templo do sol, chamado Coricancha, que foi um dos mais ricos em ouro e prata que houve em todo mundo.
A cidade sofreu os estragos da guerra e, como diz Cieza, “foi reedificada e tomou a ser fundada pelo adelantado dom Francisco Pizarro, governador e capitão geral destes reinos, em nome do imperador dom Carlos, no ano de 1534, por volta de outubro”.
Ao contrário do que ocorreu em Tenochtitlán, a Cuzco espanhola conservou em parte o traçado da cidade indígena e, como no México, perpetuou o sentido tradicional de certos lugares. Sobre as ruínas do templo de Viracocha e aproveitando seus alicerces, foi erguida a catedral, ao passo que sobre o terreno do palácio de Huayna Capac se levantou a igreja da Companhia de Jesus. Ambas contornam a Plaza Mayor que é, apenas, a velha “Calçada do pranto” ou praça da velha cidade índia.
Além da cidade do México e de Cuzco, outras cidades latino-americanas foram construídas sobre pequenos povoados indígenas, situados em lugares propícios, ou próximo a eles: entre outras, Cholula, Bogotá, Quito, Huamanga, Chuquisaca, Mendoza, e de certo modo a própria São Paulo, no Brasil. Mas do antigo povoado não restou quase nada e, pouco a pouco, a planta regular da cidade e a edificação européia cobriram-no por completo, sem prejuízo de que surgisse ou subsistisse como subúrbio indígena, a exemplo de Piura, no Peru. Talvez o mercado se tenha mantido e, de qualquer maneira, perdurou a atração do lugar e, por causa dela, certa interdependência social que contribuiria para formar a fisionomia da cidade, espanhola, mestiça e indígena ao mesmo tempo.
A vigorosa atração das zonas mineiras provocou o aparecimento de um tipo de cidade latino-americana de características muito singulares. Obedecendo a essa atração, foram fundadas Taxco e Guanajuato, no México, e Vila Rica, no Brasil. Mas, sem dúvida, foi Potosí a cidade mais característica do gênero.
Fundada em 1545, pouco depois do descobrimento de Cerro Rico, Potosí tinha, oitenta anos depois, “em seus arredores quatro mil casas de espanhóis, e sempre tem de quatro a cinco mil homens”. Assim dizia o autor da Descrição do Peru, atribuída a “um judeu português” e escrita no princípio do século XVII. E acrescentava:
Parte deles, que se ocupam do benefício das minas, e outros que são mercadores, comerciando por todo o reino com suas mercadorias e outros com coisas de comer, e com velas de sebo de que se gasta uma quantidade infinita nas minas todos os dias, e outros que vivem de suas aventuras e jogos e de serem valentes.
A descrição acrescenta que
moram em volta da vila, em casas de palha, mais de quarenta mil índios, todos interessados em começar a trabalhar nas minas e vão todos os meses a seus ayllos6 que são províncias; os corregedores os enviam, e os governadores de índios os levam e vão às suas mitas7 de acordo com sua distribuição; assim vão trabalhar, e alguns vêm de mais de cento e cinqüenta léguas de distância.
Cieza de León destaca, pouco depois da fundação, a importância do mercado de Potosí e ressalta que
foi tão grande a comercialização, que somente entre índios, sem a participação de cristãos, vendia-se todo dia, na época em que as minas eram prósperas, de vinte e cinco a trinta mil pesos de ouro, e outras vezes, quarenta mil; coisa rara, e creio que nenhuma feira do mundo se iguala ao comércio deste mercado.
Também foi característica a cidade de Vila Rica de Albuquerque, a atual Ouro Preto, fundada em 1711, “atendendo às riquezas que prometiam as minas há tanto tempo exploradas nestes morros e riachos, e por ser o foco principal destas minas para onde converge o comércio e o lucro que delas brota para os demais”. Três anos depois da sua fundação, o município que havia sido instalado pelo governador Antônio de Albuquerque j á podia pavimentar as ruas e construir as pontes, erguer edifícios públicos e assegurar o abastecimento de água. Vila Rica já pagava seis arrobas de ouro ao Tesouro Real.
O crescimento das cidades mineiras seguiu o curso das explorações porque, em geral, o local escolhido não tinha outra vantagem senão sua proximidade das minas. Mas enquanto prosperaram, foi-se criando um centro de atração que deixou como lembrança duradoura a estrutura física de uma cidade grande e rica e um sistema econômico que tardou a desaparecer.
Como centro militar e político, a cidade latino-americana foi muitas vezes uma instituição, isto é, uma expressão física de uma situação legal e política. O conquistador que havia recebido certos direitos territoriais pela via de uma capitulação ou doação era obrigado a tomar posse de seu território. Este, porém, costumava ser desconhecido e sua descrição, bem como suas dimensões, eram puramente hipotéticas. Uma vez no terreno, o colonizador tinha que transformar em realidade essa hipótese. Para tomar posse necessitava produzir um fato, e este consistiu geralmente na fundação de cidades.
De determinado ponto de vista, a maioria das cidades latino-americanas do século XVI satisfizeram essas exigências das circunstâncias, começando por Santo Domingo, fundada em 1496. Caso semelhante foi o das cidades erguidas na Hispaniola e em Cuba, durante as primeiras décadas do século XVI, e o das assentadas pelos portugueses na costa brasileira a partir da fundação de São Vicente, em 1532.
Mas onde esta exigência se tomou mais evidente foi nas regiões em que apareceram conflitos jurisdicionais. Talvez o caso mais representativo seja o de Santa Fé de Bogotá, fundada em 1538 por Jiménez de Quesada e refundada no ano seguinte na presença dos três conquistadores que se haviam encontrado na planície: Quesada, Benalcázar e Federman. As fundações de várias cidades interioranas da Argentina atual tiveram características idênticas. Disputaram a região noroeste os homens que obedeciam diretamente ao governo de Lima e os que obedeciam ao governador do Chile, Pedro de Valdivia. Os primeiros fundaram a cidade de Barco, mas os segundos resolveram abandoná-la e fundar dentro de sua jurisdição a cidade de Santiago dei Estero, em 1553. Mais curioso ainda é o caso da cidade de Mendoza, que o governador do Chile, Garcia Hurtado de Mendoza, mandou fundar em 1561, para perpetuar seu nome às vésperas de sua anunciada substituição por um rival. Um ano depois, seu sucessor, Francisco de Villagra, ordenou a Juan Jufré que a fundasse de novo, como registra a ata da segunda fundação,
visto que o dito assentamento não estava de todo adequado, e para o bem, proliferação e permanência dos vizinhos e moradores que ali hão de ficar e residir; e porque convinha, por estarem instalados em um vale e sem acesso aos ventos, que se fazem necessários e convenientes para a salubridade dos que nela vivem e hão de viver.
A segunda cidade, quando a primeira praticamente não tinha começado a erguer-se, devia chamar-se
cidade de La Resurreicción; cujo nome exigia e exigiu que em todos os atos e escrituras públicas e testamentos, e em todos aqueles que se costuma pôr com dia, mês e ano, se pusesse seu nome como se tem dito, e não de outra maneira, sob pena do castigo em que caem e incorrem os que põem em escrituras públicas nomes de cidade não povoada em nome de Sua Majestade e submetida a seu domínio real.
Este ato aperfeiçoava a jurisdição da administração do Chile sobre a região transcordilheira que se conhecia com o nome de Cuyo.
Os povoados de indígenas foram em algumas regiões latino-americanas tão importantes como as cidades de tipo europeu. Dos antigos e autóctones povoados, alguns foram, até certo ponto, incorporados e reorganizados dentro do novo sistema colonial. Mas independentemente começaram a ser organizados novos povoados de índios já concebidos de acordo com esse sistema. Tal foi o resultado, sobretudo, das missões e reducciones8 que as diferentes ordens religiosas organizaram.
No México, o bispo Vasco de Quiroga desenvolveu um singular plano de proteção dos indígenas. Para evitar sua exploração e extermínio, estabeleceu em Michoacán um conjunto de comunidades cuja organização se inspirava tanto nas idéias de Erasmo e de Thomas More quanto em suas próprias observações acerca das tendências sociais e culturais próprias dos índios. A princípio, foram hospitais e asilos, mas logo tornaram-se povoados, e entre eles foi fundada pelo vicerei Mendoza a cidade de Valladolid, hoje Morelia. Organizados à maneira tradicional e dedicados aos trabalhos que lhes eram inerentes, os índios constituíram, entretanto, centros urbanos que se enquadravam dentro da concepção colonizadora. As formas de trabalho continuavam sendo as mesmas, mas as relações de dependência e a catequese religiosa atuavam lentamente sobre os índios, conduzindo-os a uma integração progressiva com os grupos espanhóis, ou melhor, a uma benévola aceitação da dependência.
Sentido análogo tiveram as missões dominicanas, capuchinhas, mercedárias e, sobretudo, franciscanas e jesuíticas. Estas últimas foram as mais numerosas e as mais bem organizadas dentro de um sistema bastante definido de idéias, tanto no plano político quanto no socioeconômico e no espiritual. Houve experimentos importantes em diversos lugares: México, Colômbia e Venezuela, Peru e Brasil. Mas assumem particular interesse as que se estabeleceram em Moxos e Chiquitos e no Paraguai. Nesta última região foram fundados trinta povoados de característica idêntica: um traçado em forma de tabuleiro de xadrez com uma praça no centro, em tomo da qual eram dispostos a igreja, o convento, o cemitério, as oficinas, a prisão e o cabildo. Dedicados ao trabalho agrícola, os povoadores – que chegaram a três mil – levavam uma vida cuidadosamente regulada dentro de seus povoados, mas em situação de total isolamento. Nesse ínterim, algumas vezes as reducciones de índios serviram também de base para novos povoados. Este foi o caso da reducción de Los Quilmes, ao sul de Buenos Aires, que se formou com um grupo indígena transferido do vale Calchaquí em 1669, depois de dominada sua terrível insurreição. Origem semelhante tiveram as cidades de Itatí, Jesús María, Río Cuarto e Baradero, todas na Argentina.
No Brasil ocorreu o caso mais notável de transformação de um centro missionário em uma grande cidade: o de São Paulo. A missão foi criada em 1554 pelos jesuítas por iniciativa do padre Manuel da Nóbrega, provincial do Brasil com sede em São Vicente. Foi instalada por treze religiosos, entre os quais logo se destacaria o padre José de Anchieta, na aldeia indígena de Piratininga, à qual se incorporaram os índios que acompanhavam os caciques guaianás Tibiriçá e Caiubi, “e a exemplo dos dois famosos índios, tantos foram os que vieram de seus povoados que já não cabiam na aldeia”.
O centro da nova fundação foi o colégio dos jesuítas e a igreja, e a sua volta ergueram-se as cabanas dos índios. Dois anos depois da fundação, novas construções de tijolo substituíram as originais e bastante precárias do colégio e da igreja, e começaram a aparecer algumas casas do mesmo material enquanto se construíam os muros e paliçadas para defender a nova população. Pouco depois, dirigiam-se a São Paulo núcleos populacionais diversos que alterariam o estilo original; os bandeirantes transformaram a cidade em uma base de operações para a caçada de índios que depois eram vendidos como escravos, razão por que São Paulo se converteu em importantíssimo mercado de “escravos vermelhos”; e homens de negócios – como Jorge Moreira e os Sardinha – amealharam um grande capital em todo tipo de empreendimento. Eram eles que predominavam na Câmara, órgão do governo municipal que começou a funcionar em São Paulo em 1560.
2. Os grupos urbanos originários
A implantação física das cidades constituiu um fato decisivo para a ocupação do território americano pelos conquistadores europeus. E não só relativo às zonas de influência de cada cidade como também ao conjunto, porque as cidades se organizaram como uma rede urbana por obra da autoridade centralizada das metrópoles. O sistema de comunicações entre as diversas cidades delineou o mapa unitário do continente, cujas regiões tinham estado até então incomunicadas. Mas o ato da ocupação foi o resultado da própria fundação das cidades. E com isto ficou patente um problema novo, dado que no território ocupado se instalava uma nova sociedade e um novo projeto econômico.
A implantação da cidade latino-americana significou, com efeito, o esboço de um problema socioeconômico novo na área continental, derivado, ao mesmo tempo, da situação de origem dos conquistadores e das perspectivas que se abriam no novo cenário onde começava a atuar o grupo urbano fundador. Este é o núcleo da nova situação. Se a cidade foi a protagonista da ocupação do território, o grupo urbano originário foi o protagonista da vida da cidade e de quanto esta operou a sua volta. Formado por aqueles a quem o fundador convocou, o grupo não era necessariamente homogêneo, ou melhor, não teria por que parecer homogêneo em seu país de origem; mas as circunstâncias o tornaram homogêneo, pois uniram seus membros diante de uma mesma situação. Talvez o grupo se comportasse como se fosse homogêneo; mas de qualquer maneira pesava sobre cada um de seus membros sua tradição originária e, sobretudo, os vestígios de sua inserção na sociedade da qual provinham.
Alguns textos ilustram este problema. No final do século XVI, o cosmógrafo e cronista das Índias, Juan López de Velazco, escrevia em sua Geografía y descripción de las Indias estas palavras sobre os espanhóis que vinham para as índias:
Os espanhóis naquelas províncias seriam muito mais do que são, se fosse permitido ir a todos os que o quisessem; mas porque habitualmente se decidiram a passar destes reinos para aqueles os homens inimigos do trabalho, e de ânimos e espíritos exaltados, e com mais ambição de enriquecer rapidamente do que de perpetuar-se na terra, não contentes em ter nela garantida a alimentação e a roupa, que a ninguém razoável empenho naquelas plagas pode faltar ao chegar a elas, sejam oficiais ou lavradores, ou não o sejam, esquecidos de sua condição arrogam-se parecer o que não são, e andam ociosos e vadios pela terra pretendendo ocupações e repartimientos; e assim estas pessoas tornam-se por demais inconvenientes para a tranqüilidade e o sossego da terra, e por isso não se dá licença para passar a ela mas, sim, o menor número possível, em especial para o Peru, onde estas pessoas foram bastante inconvenientes, como o demostraram as rebeliões e conflitos que naquelas províncias ocorreram, e assim apenas se permite entrar para aquelas regiões, com os criados e empregados que necessitem, os que vão com ofício de forma limitada, e os que vão para a guerra e para novos descobrimentos, e os mercadores e revendedores e seus feitores, a quem os oficiais de Sevilha dão licença por tempo limitado, que não passa de dois ou três anos, e isto levando os seus bens até certa quantia. E não se consente ir para as Índias estrangeiros destes reinos, nem portugueses para residir ou fazer comércio, nem destes reinos os que foram de casta de judeus ou mouros, ou condenados pela Santa Inquisição, nem os que sendo casados vão sem as suas mulheres, salvo os comerciantes e os que vão por tempo limitado, nem os que tendo sido frades, nem escravos berberes, nem levantinos, mas somente os do Monicongo e Guiné, embora, apesar da proibição e diligência que se põe para que não entre ninguém sem licença, vão para todas as partes sob o nome de comerciantes e de homens do mar.
Muito depois, fazendo o balanço de como na realidade os fatos tinham ocorrido, Antonio de Ulloa e Jorge Juan resumiam assim em suas Notícias secretas, publicadas em 1735, suas observações a respeito dos grupos originários:
Os europeus e chapetones9 que chegam àqueles países são em geral de uma origem humilde na Espanha, ou de linhagem pouco conhecida, sem educação nem qualquer outro mérito que os tome muito recomendáveis (…). Como as famílias legitimamente brancas são raras lá, porque em geral apenas as distintas gozam deste privilégio, a brancura acidental tem ali o lugar que deveria corresponder à maior hierarquia na qualidade, e por isto, sendo europeu, sem outra circunstância mais, julgam-se merecedores do mesmo favor e respeito que têm os outros mais distintos que vão para lá com seus empregos, cuja honra deveria distinguir o comum dos demais.
Estes textos confirmam a imagem que as crônicas dão dos grupos urbanos originários. Ali predominavam pessoas de condição humilde embora aventureira, ambiciosa e disposta a prosperar. A América foi, de fato, uma oportunidade para os que procuravam a ascensão econômica e social. Pessoas sem terras e sem nobreza buscavam ambas as coisas no Novo Mundo. Tal atitude era contrária à permanência definitiva e ao trabalho metódico e contínuo. O êxito na terra americana consistia para o novo povoador em alcançar uma posição social análoga à dos fidalgos peninsulares, para a qual devia servir de fundamento a riqueza adquirida com facilidade e a numerosa população indígena dominada. A medida que a colonização avançava, Espanha e Portugal procuraram dissuadir tais aventureiros de viajar para as Índias, e estimularam, em compensação, a via de artesãos e mercadores; mas esta política não teve êxito, e inclusive essas ocupações foram exercidas por pessoas que tinham motivos sociais ou individuais para desvincularem-se de seu país de origem. Apenas poucos fidalgos vieram para a América. Tudo isso contribuiu para caracterizar a atitude do grupo urbano originário.
Este grupo constituiu-se em cada caso de um número limitado de membros que, durante o processo de ocupação da terra, se fixou em um lugar, instalou-se e começou a procurar o prometido benefício que se esperava da conquista. O fundador os havia escolhido para assentá-los na cidade, e nela ficaram, por certo, somente alguns. Na ata de fundação foram-lhes destinados solares dentro da cidade apenas demarcada e ali deveriam erguer suas casas, de onde administrariam suas terras de produção ou suas minas, com os índios que lhes haviam sido encomendados. E se não tinham recebido terras e encomiendas, deviam desempenhar uma função pública ou talvez exercer o comércio ou algum ofício, geralmente mediante o trabalho físico dos índios.
Essas eram, em geral, as possibilidades dos novos fundadores. O importante é que gozavam de um privilégio já consagrado. Esse grupo constituiu o conjunto dos habitantes. Eram os povoadores por excelência, aqueles que tinham direitos. Mas tanto os direitos quanto os privilégios se referiam a certas perspectivas e às possibilidades efetivas de obter certo lucro econômico.
Mineiros, criadores de gado, plantadores, donos de engenhos, negreiros e grandes comerciantes relacionados com a exportação de produtos locais constituíram rapidamente a aristocracia urbana originária. Junto a eles situavam-se, naturalmente, os membros da mais alta hierarquia eclesiástica e administrativa, esta última integrada de modo oportuno por alguns fidalgos e nobres peninsulares. A sua volta surgiu desde o primeiro momento um grupo variado de povoadores que exerceram outras funções. Cidades importantes, como México ou Lima, demandaram um número maior de “oficiais”, ou, como diz López de Velazco, falando da primeira cidade, de “oficiais mecânicos”. Negociantes ou pequenos comerciantes apareceram também, e os funcionários de hierarquia média e inferior completavam o setor. E logo incorporaram-se à cidade os índios que vinham voluntariamente e os que pareceram úteis para o serviço doméstico e as funções mais modestas da vida urbana.
3. O ato fundador
Instrumento da ocupação territorial e da constituição de uma nova sociedade nesses territórios, as cidades latino-americanas da primeira época foram fundadas formalmente. Depois, apareceriam outras espontâneas, fruto de um processo interno. Entretanto, o primeiro impulso fundador é fruto de um processo externo, que se origina do desejo dos conquistadores. Por este motivo, a fundação foi um ato político. Os fatos repetiram-se muitas vezes de maneira semelhante. Um pequeno exército de espanhóis ou portugueses mandado por alguém que possuía uma autoridade formalmente inquestionável, e em geral acompanhado de certo número de indígenas, chegava a determinado lugar e, por escolha prévia mais ou menos cuidadosa do terreno, instalava-se nele com a intenção de que um grupo permanecesse definitivamente ali. Era um ato político que significava o propósito – apoiado na força – de ocupar a terra e afirmar o direito dos conquistadores. Por isso, aperfeiçoava-se o ato político com um gesto simbólico: o conquistador arranca um punhado de terra, com sua espada dá três golpes no solo e, por fim, desafia para duelo quem se oponha ao ato de fundação. Algumas vezes, o ato político podia ter outra finalidade: afirmar o direito eminente de um conquistador sobre outro, quando as capitulações ou doações eram duvidosas. Porém, a tomada de posse do território e a submissão da população indígena constituíram sempre os objetivos primordiais.
O ato político era completado de diversas maneiras. A celebração de uma missa – como as que consagraram a fundação de Bogotá ou de São Paulo – ou a entronização de uma imagem – como a de São Sebastião, no Rio de Janeiro acrescenta um elemento sagrado à fundação. Enquanto isso, redige-se uma ata de fundação “diante do presente escrivão e de testemunhas”, documento cuidadosamente escrito com todos os tipos de cuidados e formalidades notariais. Nele já costumam ser estabelecidas as normas da administração municipal, “porque segundo a lei, nas tais cidades além dos governadores e justiças mais altas, haverá alcaides ordinários para que façam e administrem justiça, e corregedores para o governo, e outros oficiais”. E no momento de traçar fisicamente a planta da cidade – em geral desenhada de antemão – erguem-se no centro do que será a praça principal uma picota ou pelourinho, símbolo da justiça.
O local não foi escolhido com o mesmo critério no Brasil e na América Hispânica. No Brasil, houve preferência pelos lugares altos e fáceis de serem bem defendidos, ao passo que na América Hispânica se optou em geral por lugares planos. Por isso, os esboços diferenciaram-se, pois embora no Brasil não tenha faltado certa tendência à geometrização ou, pelo menos, à regularidade, a topografia dos lugares altos impôs as suas próprias regras. A partir de 1580 — quando Portugal se uniu à coroa espanhola – levar-se-iam mais em conta as normas de regularidade que a Espanha impunha às suas colônias. Nestas, a regra foi o traçado em forma de tabuleiro de xadrez, em geral com quarteirões quadrados e com uma praça aproximadamente no centro da planta. A Plaza Mayor devia ser o núcleo da cidade; ao seu redor seriam construídos a igreja, o forte ou palácio para sede do governo e o cabildo ou prefeitura. Para as igrejas e conventos das diversas ordens eram reservados solares, e o resto era dividido aos colonos em lotes proporcionais.
O solar urbano exigia a construção de casa, modesta no começo, como os bohíos10 que os companheiros de Jiménez de Quesada construíram em Bogotá, mas cada vez melhor, em tijolo ou pedra, com o passar do tempo. O colono podia ter também à curta distância terras para o cultivo – as chácaras – e em locais mais afastados as haciendas ou estâncias. Estas últimas estavam já fora do limite urbano; e entre este e a zona rural circundante, era reservada à cidade uma área para possível expansão e uso comum – o rossio ou o ejido – e outra para propriedade municipal, termo ou propios,11 no Brasil e na América Hispânica, respectivamente. Fundada a cidade, restava transformá-la em uma realidade física, processo de duração variada.
No entanto, diversas circunstâncias permitiram introduzir alterações no projeto original. As ordens religiosas ou os proprietários particulares puderam mudar de terrenos e usar os espaços baldios para fins diversos. Entretanto, a mudança mais importante foi a do próprio local da cidade, como ocorreu em muitos casos.
De fato, a fundação foi quase sempre improvisada, feita com base em uma rápida apreciação de certas vantagens imediatas da situação geográfica – a costa, a altura, o rio – e sobretudo do local – a água, os ventos, os pastos, a lenha. Mas, de modo geral, a cidade foi erigida em território pouco conhecido, sem que houvesse experiência suficiente para prever vários inconvenientes que surgiriam em seguida. Talvez estivesse sempre na mente dos fundadores a idéia de que a fundação não tinha que ser definitiva. O certo é que, em muitas cidades, a experiência aconselhou uma mudança de local, que às vezes não passou de uma transferência de lugar geográfico. Tal transferência foi um curioso fenômeno, porque juridicamente a cidade era a mesma pelo fato de conservar o nome e manter-se dentro da própria jurisdição; mas o tempo diria se a cidade teria de ser ou não a mesma fundada originariamente, com as mesmas funções; ou talvez a pergunta carecesse de sentido.
Em alguns casos, como o de Vera Cruz, a cidade foi mudada duas vezes. Porém, em outros casos a incerteza foi mais prolongada. O exemplo mais extraordinário é, sem dúvida, o da instalação hispânica no vale de Catamarca, na Argentina, e os sucessivos traslados da cidade que recebeu o nome de Londres, fundada pela primeira vez em 1558, quatro anos depois do casamento de Felipe II com Maria Tudor. A cidade mudou de lugar tantas vezes que o cronista Pedro Lozano a caracterizou no início do século XVIII como a quase “portátil cidade de Londres, que não se consegue assentar em lugar algum”. O padre Lozano havia usado a mesma frase para referir-se à cidade de Concepción del Bermejo, fundada por Alonso de Vera em 1585, e sobre a qual o fundador escrevia três meses depois de ter recebido o poder das mesmas autoridades que ele acabava de instaurar “com o fim de mudar esta cidade para parte mais cômoda”. E valeu-se também da mesma frase para a cidade venezuelana de Trujillo.
Outras tantas cidades mudaram de lugar. Mem de Sá transferiu o Rio de Janeiro de sua posição original para o lugar que se chamou o Castelo, em busca de maior segurança. Santo Domingo, fundada por Bartolomé Colón, em 1496, foi destruída por um furacão e refundada do outro lado do rio Ozama, por Nicolás de Ovando, em 1502. Santiago de Guatemala, fundada em 1524 por Pedro de Alvarado, foi destruída por uma inundação em 1541 e transferida para uma légua de distância de sua anterior localização ao ser reconstruída; mas a cidade – hoje chamada Antigua – voltou a ser destruída por causa de uma erupção vulcânica, em 1717, e abandonada pela metade, erguendo-se a nova no atual lugar da Cidade da Guatemala. Panamá foi fundada em 1519 sobre o Pacífico por Pedrarias Dávila e, a rigor, pode ser considerada como resultado de um translado de Santa Maria la Antigua – fundada por Enciso y Balboa por volta de 1510-, que apesar de ter sido impulsionada pelo novo governador, foi abandonada depois da instalação do governo no Panamá. Cieza de León observava, trinta anos depois, que a cidade era insalubre e que deveria ter sido transferida de local; “mas como as casas têm alto preço porque custam muito para serem feitas, embora seja evidente o mal que todos sofrem por viver em um lugar tão ruim, não se mudou”. Entretanto, depois de sua destruição, em 1671, pelo pirata Morgan, a cidade foi transferida para a sua atual localização.
A procura de melhor lugar, Nombre de Dios foi abandonada, em 1596, e em seu lugar surgiu, bem perto, Portobelo. San Juan de Porto Rico e Quito foram deslocadas, como também, por diversas razões, La Victoria, Mariquita, Huamanga – hoje Ayacucho Arequipa, Santiago del Estero, Tucumán, Mendoza e Buenos Aires, entre outras.
A rigor, a mudança de local equivalia a uma nova fundação, visto que com freqüência o grupo urbano originário também variava. Em Buenos Aires, por exemplo, o grupo se havia renovado por completo já que transcorreram quarenta e quatro anos entre a primeira e a segunda fundação; e renovado parcialmente em Santiago de Guatemala, em 1717, porque nem todos os habitantes admitiram abandonar Antigua. Com a nova fundação a vida começava de novo.
4. A mentalidade fundadora
Posicionados em frente ao lugar escolhido, com a mão apertada na empunhadura da espada, o olhar fixo na cruz e os pensamentos direcionados para as riquezas que a aventura lhes proporcionaria, os homens do grupo fundador da cidade que já tinha nome, mas da qual nada existia sobre o solo, deviam experimentar a estranha sensação de quem espera o prodígio da criação surgida do nada. Eram europeus em um continente desconhecido, e a criação estava prefigurada em suas mentes. Porque esta façanha não era, na verdade, senão um passo a mais nessa ambiciosa aventura européia de expandir-se, iniciada quatro séculos antes. A terra que agora ocupavam – uma terra real, com rios e planícies, lagos e vulcões – devia ser uma extensão da terra que deixaram no dia em que embarcaram nos navios.
A rigor, esta atitude pressupunha a vigência inquestionável de uma concepção que agitou a Europa cristã desde o início de sua expansão: a Europa cristã constituía o único mundo capaz, em meio a mundos inferiores e submersos na escuridão. Tal concepção etnocêntrica não era única nem original: por certo, os muçulmanos a possuíram e, por isso, desencadearam a guerra santa; e a Europa cristã, que a sentiu arraigada à romanidade e a fortaleceu com sua fé, aprendeu no exemplo muçulmano que tinha direito de impingi-la aos mundos inferiores e sombrios. Desde as cruzadas – e não é por acaso –, a catequese concebida como mensagem espiritual, tal como a entendia inclusive Raimundo Lúlio, no século XIII, foi substituída pela guerra contra o infiel, presidida sempre pela vislumbrada imagem do apóstolo Santiago, antes mata-mouros e depois mata-índios. Era uma guerra sem trégua porque era a guerra do bem contra o mal e aqueles que a empreenderam estavam certos de que representavam o bem. O pio Motolinía chamava de “Templos do demônio” àqueles que os conquistadores destruíram no México.
A mentalidade fundadora foi a da expansão européia conduzida por essa certeza da absoluta e inquestionável posse da verdade. A verdade cristã não significava somente uma fé religiosa: era, a rigor, a expressão radical de um mundo cultural. E quando o conquistador trabalhava em nome dessa cultura, não só afirmava o sistema de interesses que ela representava como também o conjunto de meios instrumentais e de técnicas que a cultura burguesa havia acrescentado à velha tradição feudo-cristã. Com essas técnicas, o bem podia triunfar sobre o mal: com o cavalo obediente à rédea, com a catapulta, com o aço das espadas e as couraças, com os fortes navios prontos para a navegação em alto-mar. Os grupos fundadores expressavam essa interpenetração feudo-burguesa que na península ia ajustando as relações entre as classes e também entre os fins e os meios.
Graças àquela certeza, a mentalidade expansionista européia havia concebido o projeto de instrumentalizar o mundo não cristão de acordo com seus próprios interesses, e afirmou-se nessa convicção cada vez mais, à medida que os meios iam aumentando suas possibilidades: à maior superioridade técnica correspondeu uma maior certeza da validade de seus fins. Talvez a presença de novos infiéis no centro e no leste da Europa tivesse podido diminuir a confiança no destino supremo da cristandade. Entretanto, não passou de um breve eclipse. Os portugueses já haviam dominado as populações africanas e asiáticas, e enquanto se instalavam como dominadores em novas regiões cujos produtos obtinham para incorporá-los ao seu próprio comércio, intensificavam o tráfico de escravos e a sua utilização para a sua própria economia metropolitana e colonial. Os espanhóis, por sua vez, haviam enfraquecido o poder muçulmano em seu próprio território e se consideraram em condições de ultrapassar as suas fronteiras: em um primeiro momento, em direção à África muçulmana, e depois para a América, quando perceberam as imensas perspectivas que os novos territórios abriam. Uma experiência feliz propiciou a certeza do êxito da nova aventura.
Entretanto, a mentalidade fundadora adotou na América uma atitude inédita. Desde 1492 até o descobrimento das culturas mexicanas, trinta anos depois, os espanhóis e os portugueses conheceram apenas pequenas e rudimentares populações sobre as vastas superfícies que exploraram. Assim constituiu-se, com fundamentos, uma imagem das novas terras que teria importância decisiva daquele momento em diante. A América apareceu como um continente vazio, sem população e sem cultura. O vazio não era total com relação à população; porém dentro do sistema de idéias dos conquistadores, o escasso número e seu nivel de civilização significava um valor desprezível; e quanto à cultura, a sensação predominante foi decididamente negativa. Esta imagem do continente vazio harmonizou-se com a do tropicalismo para constituir um estereótipo indestrutível por muito tempo, mesmo depois de terem sido descobertas as culturas superiores dos planaltos e das zonas temperadas e frias do continente.
O estereótipo nasceu de uma primeira experiência real; porém não só foi sustentado pela inércia como também se consolidou devido às intenções dos conquistadores. A América continuou sendo um continente tropical, porque eram produtos tropicais os que os conquistadores tinham na imaginação, além do ouro e da prata imaginários que somente o acaso transformou em realidade. E continuou sendo um continente vazio porque o que encontraram foi desqualificado a partir daquela idéia da cristandade européia como único mundo válido. Quando a realidade surgiu diante dos olhos dos conquistadores, ou a negaram ou a destruíram. Tenochtitlán foi um símbolo. Deslumbrado por ela, Cortés destruiu-a implacavelmente; e quando o assombro começou a difundir-se diante das culturas americanas, Carlos V ordenou que não fossem questionadas, nem aprofundado o seu conhecimento. O continente vazio devia permanecer completamente vazio.
Assim constituiu-se essa tendência inédita da mentalidade fundadora. Baseava-se no nada, em uma natureza que se desconhecia, em uma sociedade que se aniquilava, em uma cultura que considerava inexistente. A cidade era um reduto europeu em meio ao nada. Dentro dela deviam ser conservados zelosamente as formas da vida social dos países de origem, a cultura e a religião cristãs e, sobretudo, os objetivos para os quais os europeus cruzavam o mar. Uma idéia resumiu aquela tendência: criar sobre o nada uma nova Europa.
Nova Lusitânia, Nueva España, Nueva Toledo, Nueva Galícia, Nueva Granada, Nueva Castilla foram nomes regionais que denunciaram essa tendência, assim como as cidades que se chamaram Valladolid, Córdoba, León, Medellín, La Rioja, Valencia, Cartagena, Trujillo, Cuenca, ou antepuseram ao velho nome indígena o nome de um santo: Santiago, San Sebastián, São Paulo, San Antonio, San Marcos, San Juan, San Miguel, San Felipe. O conquistador contemplava melancólico a paisagem, e regozijava-se ao encontrar alguma, aprazível e amena, que o lembrasse da terra natal, assim como recordava – diz-se – Gonzalo Suárez Rendón olhando pelas janelas de sua casa de Tunja a campina de Granada. E procurava não só alcançar a dignidade que desejara ter em sua pátria como também cercar-se de tudo aquilo – móveis, utensílios, roupas, pinturas, imagens – que a lembrasse. Essa atitude pessoal correspondia à atitude oficial. Não só por seu gosto, o fundador copiava o que havia deixado na península. Estava também instruído para que estabelecesse o sistema político e administrativo da Europa, os usos burocráticos, o estilo arquitetônico, as formas de vida religiosa, as cerimônias civis, de modo que a nova cidade começasse o quanto antes a funcionar como se fosse uma cidade européia, que ignora o que a cerca, indiferente ao desconhecido mundo subordinado ao qual se sobrepunha.
Sem dúvida, alentou a implantação da cidade européia na terra desconhecida essa certeza de que nada – nem sociedade, nem cultura – havia nela, ou melhor, nada válido, e a partir de tal certeza o fundador deduziu que tudo o que estabelecia e regulamentava estava destinado a perdurar tal como a sua vontade o determinara, sem admitir nem suspeitar que o contorno – isto é, a natureza, a sociedade e a cultura autóctones – pudesse voltar-se contra isso ou que, pelo menos, começasse uma lenta e sorrateira penetração dos elementos suplantados e ignorados.
Por certo, no início, a cidade não alcançou no Brasil a importância que teve na América Hispânica, desde o começo. Lá, até o fortalecimento das burguesias e das fundações intermediárias, já no século XVIII, a sociedade agrária impôs sua própria imagem da realidade. Entretanto, na América Hispânica – como no Brasil a partir do século XVIII – foi a cidade que idealizou, desde a sua própria fundação, a imagem da realidade circundante e o modelo operacional que guiaria a ação do grupo fundador. E de certo modo – tanto no Brasil quanto na América Hispânica – a cidade obteve o primeiro triunfo porque desenhou as primeiras coisas que era necessário criar: as áreas de influência das cidades, as relações entre elas, graças às quais se constituíram as redes urbanas, e, por fim, o próprio mapa do Novo Mundo com suas conexões continentais e marítimas, como nunca havia existido antes da conquista.
O ciclo das fundações é, de modo preciso, o período do desenho do novo mapa do Novo Mundo, um mundo urbano e intercomunicado, como nunca fora anteriormente. É também o da primeira ideologia criada por esse mundo urbano: a que negava a realidade de um universo sociocultural existente de modo inequívoco para propor a criação de um outro novo, segundo o modelo das metrópoles. Porém, se essa ideologia perdurou e ganhou importância foi porque introduziu no modelo variantes adequadas às novas situações. Entre os resquícios do império cristão, esboçou-se o esquema de uma sociedade dividida entre conquistados e conquistadores, na qual estes últimos constituíram um grupo natural de aspirantes à ascensão econômica e social. Moldada em uma situação inédita, a mentalidade fundadora elaborou uma ideologia confusa e contraditória apenas na aparência. A rigor, correspondia exatamente à nova sociedade feudo-burguesa que se constituía nessas Índias que queriam ser uma nova Europa, mas que, na verdade, eram somente fronteira e periferia da Europa velha.
Notas
1. Solares: terrenos baldios, descampados. (N. do T.)
2. Cabildos: câmaras municipais, órgãos legislativos e responsáveis pela administração local. (N. do T.)
3. Estado: medida longitudinal equivalente à estatura média de um homem usada para medir alturas ou profundidades. (N. do T.)
4. Real Audiencia: unidades administrativas que compreendiam as áreas mais colonizadas e exerciam as funções de tribunais judiciários. (N. do T.)
5. Pucará: fortaleza de sólidos muros construída nos territórios do antigo império inca. (N. do T.)
6. Ayllos: cada um dos grupos em que se divide uma comunidade indígena, com tendência endogâmica e direitos relacionados a um lote de terra. (N. do T.)
7. Mita: regime de trabalho forçado temporário ao qual os índios eram submetidos para a exploração das minas. (N. do T.)
8. Reducción: povoado indígena convertido ao cristianismo. (N. do T.)
9. Chapetón: espanhol ou europeu recém-chegado à América que ocupava altos cargos na administração pública colonial, na Igreja, no Poder Judiciário e no Exército. (N. do T.)
10. Bohío: pequena cabana, cuja única abertura consiste numa porta. (N. do T.)
11. Propios: grandes propriedades rústicas, geralmente compostas de terras para cultivo e pecuária; chácara; sítio; fazenda; herdade. (N. do T.)
3.
AS CIDADES FIDALGAS DAS ÍNDIAS
Após o ato fundacional, a cidade começava a viver. E com os projetos transcendentais mesclavam-se os problemas imediatos de cada dia. Urgia cumprir uma missão, mas era necessário sobreviver aos inimigos, às doenças, à fome. Como em todas as situações críticas, ali pôs-se à prova a difícil relação entre ideologia e realidade. O grupo fundador cresceu em alguns momentos e diminuiu em outros; o espaço físico começou a ser coberto com uma precária edificação que dava à cidade certo ar de realidade; as necessidades elementares começaram a ser satisfeitas rudimentária e metodicamente; o governo começou a funcionar; as agressões dos indígenas começaram a ser controladas. E, nesse meio tempo, era preciso decidir o que fazer com a cidade e definir a serviço de que era necessário colocá-la.
Era fácil transferir o projeto do papel para o terreno, mas não era fácil transformar uma ideologia em uma política. Cada cidade havia sido erguida de acordo com algumas teses gerais e em relação a algumas circunstâncias concretas. No entanto, a sua única instalação desencadeava um mundo de novos problemas, práticos e ideológicos, que eram resolvidos, ora com plena consciência, ora intuitiva e espontaneamente. Muitos fatores incidiam nas decisões: as vagas reminiscências do objetivo original, a peculiaridade da sociedade urbana que se constituía e se diferenciava geração após geração, as possibilidades previstas para o seu desenvolvimento; mas, talvez, o que mais influiu foi, precisamente, o progressivo descobrimento das novas possibilidades reais que a cidade e a região ofereciam, algumas das quais eram por certo muito promissoras mas exigiam uma mudança de atitudes. Assim, em muito pouco tempo, as sociedades urbanas descobriram que estavam diante de uma opção entre o sistema das suas metrópoles, um pouco marginalizadas, e o sistema da Europa mercantilista, que oferecia o variado espectro de suas tentações através do estreito visor que se abria na férrea concepção peninsular do que devia ser o império colonial, graças aos corsários, piratas e contrabandistas.
Foi o seu surgimento, junto com o perigo permanente das insurreições indígenas, o que perpetuou o caráter militar original de algumas fundações. Em termos gerais, a conquista estava assegurada; mas, em termos locais, o perigo de um motim dos índios manteve-se latente em muitas cidades e obrigou os seus povoadores a manter-se em pé de guerra, mesmo quando estivessem seguros da vitória final. Mais grave ainda foi o problema dos corsários e piratas que percorriam os mares, algumas vezes, à espera da ocasião adequada para roubar os galeões e, em outras, em busca da oportunidade para apoderar-se das cidades e saqueá-las. A cidade-fortaleza aperfeiçoou a sua organização militar, recebeu guarnições experientes e consolidou as suas defesas mediante importantes obras de engenharia militar que alcançaram a perfeição no século XVIII, quando acrescentaram aos morros e castelos fortificados as muralhas que protegiam a cidade civil. Contudo, nem sequer a cidade-fortaleza conservou essa função exclusiva; a vida urbana descobria e criava novas possibilidades, e até o experiente capitão, talvez o herói das guerras da Itália e de Flandres, movia-se sub-repticiamente em direção ao exercício do comércio legal ou do contrabando, escondido atrás da criadagem e da clientela que a sua posição lhe permitia ter. E essa diversificação das atividades fez da cidade-fortaleza apenas uma cidade.
Além disso, a bem tramada organização política, administrativa e eclesiástica das cidades desenvolveu outros planos da vida urbana. O governo colonial podia apenas ser responsabilizado, em virtude da distância das metrópoles, pela singular burocracia que nelas predominava e, sobretudo, pela complexidade dos problemas que todos os dias cada região do mundo colonial apresentava ao governo central. O funcionalismo exercia um estranho poder porque seus atos eram permanentemente vigiados por outros funcionários e ninguém sabia quem usufruía das graças da coroa. Um mundo de documentos era revirado entre intrigas e conspirações, e um mundo de personagens de diferente condição e aparência pairava ao redor de vice-reis, capitães gerais, ouvidores, bispos e corregedores. Nesse jogo, as grandes capitais – México, Lima, Salvador – diferenciavam-se de outras menores e quase aldeias, como Bogotá, Havana, Santiago, São Paulo e Buenos Aires; e todas elas, centros de poder, também se diferenciavam das cidades que não tinham outra preocupação senão os seus. problemas municipais ou aqueles que inquietavam os ricos proprietários de sua região. As primeiras não eram apenas centros de poder, mas também centros de atividade cultural, ou melhor, centros de criação de idéias: algumas vezes triviais e em outras relacionadas com o curso da vida da cidade. Ali estavam os arcebispos e bispos, que se dedicavam à catequese, e a Inquisição, que zelava pela conservação da ortodoxia. No entanto, havia também os pregadores que vigiavam a moral pública enquanto se ocupavam da administração dos sacramentos, os religiosos que impetravam misericórdia para os índios e para os negros escravos, os sisudos teólogos e os eruditos professores das universidades e dos colégios onde eram educados os filhos de fidalgos, em uns, e os filhos de caciques, em outros. Toda essa atividade, sumária nos primeiros tempos da fundação, havia crescido nas capitais, grandes ou pequenas; mas inclusive nas cidades interioranas, à medida que o tempo passava, começou também a aparecer de alguma forma.
Nesse ínterim, o que havia crescido era a atividade econômica. Assim, a cidade-empório, porto e mercado, também diversificou suas atividades e foi praça militar, algumas vezes, ou sede administrativa ou centro cultural. Porém, ao contrário da cidade-fortaleza, na qual a função primeira era progressivamente sobrepujada por outras atividades, a cidade-empório foi cada vez mais um centro comercial, exceto em alguns casos de declínio, como o de Santo Domingo; e, além disso, nos primeiros séculos da colônia surgiram outras novas cidades-empório, pois muitas que antes não o eram, passaram a ser. Por certo, todo o sistema da produção, tanto agropecuária como mineira, cresceu e organizou-se em volta da cidade. Mas sobretudo as atividades intermediárias intensificaram-se porque, de uma maneira ou de outra, a produção era canalizada através da cidade. Cresceu o volume da concentração de produtos para exportar, da atividade portuária e de toda a rede comercial que se relacionava por meio desses processos, combinados com os da importação de gêneros espanhóis ou de contrabando e sua variada distribuição através de amplas rotas. No entanto, cresceu também o mercado interno, simbolizado no mercado de cada cidade – o do México ou Cuzco, o de Recife ou Santiago, herdeiros alguns dos tianguis1 indígenas, mas não muito diferentes dos que se viam na toledana praça do Zocodover. Uma vasta concentração de produtos de consumo para a cidade e seus arredores, bem como os habitantes, os produtores rurais e os artesãos, uns para comprar e outros para vender, encontravam-se ali ao ar livre e em um ambiente colorido. E o que não se comercializava no mercado da praça, comprava-se nas barraquinhas que se comprimiam na própria praça, próximas à forca e à fonte – como as “barracas de ribeira” da Plaza Mayor de Lima, as “barracas de San José” ou o Parián,2 da praça do México – ou nas lojas da rua de los Mercaderes ou de San Francisco, um pouco mais bem acomodadas.
Vigorosas redes urbanas garantiam a fluidez da distribuição de produtos, segundo os níveis dos consumidores e as necessidades recíprocas. E uma diversificação das atividades permitiu a organização da rede financeira, movimentada por especuladores e agiotas, junto às casas comerciais as quais, por meio do seu poder econômico, aumentavam sua vendas no comércio atacadista sem desprezar as operações financeiras que lhes propiciavam capital de giro. Assim, ao diferenciarem-se as atividades, foram-se constituindo os grupos econômicos com que o destino da cidade iria comprometendo-se pouco a pouco.
Em conseqüência do progressivo desenvolvimento das diferentes atividades, as cidades foram perdendo a fisionomia primitiva e começaram a deixar de ser as aldeias originais; mas, além disso, foram adaptando às condições reais aquelas funções preestabelecidas que lhes haviam sido determinadas quando foram fundadas. Umas persistiram naquelas e outras as abandonaram ou as combinaram com outras funções que, às vezes, as enfraqueceram. Foi um longo processo de mudança que se desenvolveu de maneira tortuosa e confusa desde a fundação até a segunda metade do século XVIII. No mundo em que se estabeleceram, estavam destinadas a ser – como afinal o foram – cidades burguesas e mercantis. Porém, a força do projeto original constrangia-as a ser cidades marginalizadas do mundo mercantil. Assim se constituíram, contra a corrente, como cidades fidalgas porque os grupos dominantes que nelas se formaram quiseram ser fidalgos. E o foram enquanto puderam, embora dissimulando que estavam dispostos a ceder à tentação da burguesia.
1. A formação de uma sociedade barroca
Durante os dois séculos seguintes às fundações, novas sociedades formaram-se nas cidades das Índias, diferentes das que povoavam as cidades metropolitanas, com traços peculiares embora não fossem irredutíveis aos esquemas que primavam nestas últimas. A rigor, foram as únicas sociedades vivas, pois as que se organizaram nas zonas de produção, rurais ou mineiras, eram tão rígidas que tiveram poucas possibilidades de acomodação dentro do sistema e só puderam buscar pouco a pouco a sua própria organização fora dele, tentando irromper em um quadro no qual só havia lugar para a submissão regida pelos senhores.
E os senhores eram urbanos, ou talvez cortesãos, mesmo quando demonstravam preferência por viver nas zonas de produção, hacienda ou mina. Afinal, era a cidade – que eles concebiam como corte – que lhes garantia a consistência do grupo, a continuidade dos costumes e esse exercício da vida nobre que estava gravado em sua memória de emigrantes que abandonavam o singular mundo peninsular do século XVI. Nas cidades, construíram seus casarões tão ricos quanto puderam, e neles alguns viviam durante todo o ano, e outros, durante os meses em que podiam abandonar suas propriedades, procurando cercar-se da mais suntuosa ostentação que os seus recursos lhes permitiam.
Nas cidades, os senhores constituíram uma subsociedade paralelamente à que formavam os outros setores nos quais predominavam castas dominadas e algum europeu ou criollo marginalizado por mau comportamento ou falta de sorte. Por volta do final do século XVI, o poeta andaluz Mateo Rosas de Oquendo descrevia assim a sociedade limenha:
Um vice-rei com trinta alabardeiros;
por fanegas medidos os letrados;
clérigos ordenantes e ordenados;
vagabundos, escassos cavaleiros.
Jogadores sem número e coimeiros;
mercadores do ar levantados;
aguazis, ladrões muito cursados;
as esquinas tomadas de taberneiros.
Poetas mil de escasso entendimento;
cortesãs de honra sumida;
de papão e papãozinho mais de um conto.
De rábanos e couves cheio o rústico,
o sol turvo, pardo o nascimento;
esta é Lima e seu ordinário trato.
O conjunto foi, portanto, uma sociedade barroca, dividida em privilegiados e não privilegiados, em gente que mantinha um estilo de vida nobre e gente que não o mantinha, na qual estes últimos viviam sua inferioridade e sua miséria e aqueles ostentavam sua distinção e sua arrogância. Separados, a superioridade da fidalguia das Índias brilhava sem sombras. “Atrás há um gradeado de madeira, que divide a sala, a fim de que a gente baixa e vulgar não vá sentar-se com os demais”, diz Cervantes de Salazar descrevendo o salão da Real Audiência do México, em 1554. E talvez a grade fosse inútil, porque o fosso que separava socialmente os dois grupos era dificilmente franqueável; mas, por via das dúvidas, após o motim indígena de 1692 na Cidade do México, confirmou-se o plano de que ficassem separados os bairros dos espanhóis e os dos índios. Por certo, ao contrário do que ocorria nas cidades burguesas do mundo mercantil europeu, nas das índias constituíam-se algumas sociedades duais, sem classes intermediárias; e o processo social mais intenso que se desenvolveria subterraneamente nessas sociedades foi, de modo preciso, a silenciosa formação dos segmentos intermediários e burgueses que irromperiam no século XVIII. Nessa época, muitos fidalgos das Índias começaram a abandonar a sua peculiar concepção social, e muitos deles transformaram-se em burgueses embora conservassem resquícios de seu orgulho e, talvez, de suas convicções. Porém, durante os dois séculos subseqüentes às fundações, eles defenderam com veemência sua condição de privilegiados e seu estilo de vida. Um estilo de vida fictício, dado que a fidalguia foi, a rigor, uma ideologia do grupo fundador que era traída diante dos fatos, cedendo às exigências de seu propósito primário que era a riqueza, única via para a sua ascensão social. E por ser fictício, imprimiu às sociedades urbanas um ar cortesão e não burguês que contradizia a dura realidade. Teria bastado uma observação coerente e imparcial sobre a situação real para descobrir que a pulcra imagem que Cervantes de Salazar pretendia dar do México mal escondia uma sociedade explosiva, contida tão-somente pelo vigor da estrutura advinda da conquista.
Nessa sociedade urbana dual, a fidalguia indiana chegou a constituir uma oligarquia poderosa em cujo topo costumava haver, como dizia José Agustín de Oviedo y Baños, em 1723, falando de Caracas, alguns “títulos de Castela que a ilustram e outros tantos cavalheiros de conhecidas estirpes que a enobrecem”. No entanto, não conseguiu chegar a ser uma classe unida. A desatinada corrida de todos atrás da fortuna e do poder impediu que os grupos urbanos fundadores se consolidassem, e inclusive muitos dos seus membros, após receberem benesses, lançavam-se em outras aventuras mais promissoras, abandonando o seu solar. Contudo, em muitas cidades, seus herdeiros e, em especial, as herdeiras, geraram linhagens que obtiveram o reconhecimento de sua estirpe. Alguns poucos teriam podido alegar fidalguia espanhola ou portuguesa, como segundo gênito de famílias geralmente pobres, mas todos foram fidalgos das Índias, mais orgulhosos de seus pobres brasões do que de suas ricas façanhas. Desses troncos, nasceram rebentos criollos que tiveram de suportar a subestimação dos homens peninsulares que, em geral, pensavam como o cronista Pedro Marino de Lovera, para quem a peste que assolou o Chile, em 1590, foi clemente com os nascidos na Espanha e cruel com os nascidos nas Índias, por causa, como foi dito depois muitas vezes, do declínio que a raça sofria na América. E a eles juntavam-se os peninsulares recém-chegados, cada vez menos aventureiros e cada vez mais comerciantes, talvez porque a partir da metade do século XVI a emigração urbana tenha começado a predominar. Todos eles constituíram a fidalguia das índias, herdada em alguns casos ou concedida por cédula real, em geral como uma maneira de consolidar sua posição diante de um vasto mundo obscuro que, apesar das apelações à caridade, não tinha outra missão senão obedecer e trabalhar para os fidalgos. Porém, o título que Felipe II outorgava às “pessoas, filhos e descendentes legítimos daqueles que se comprometerem a fazer o povoamento e que o tiverem terminado e cumprido” era apenas “fidalguia das Índias”, a qual devia ser reconhecida “naquele povoamento e em quaisquer outras regiões das Índias”, mas que não deixava de provocar deboche ou raiva na Espanha, onde Lope de Vega retratava o “indiano” com as características de dom Bela, de La Dorotea.
Mesmo assim, nem todos os fidalgos das Índias eram iguais em tudo. Iguais eram, sim, na hora de proclamar sua condição; mas os fidalgos – já que ninguém disfarçava a aventura – dividiram-se, na verdade, em ricos e pobres. Ricos foram os que obtiveram minas e formaram as aristocracias de Guanajuato e Zacatecas, de Taxco e Potosí, de Popayán e Cáli, e muitos de seus descendentes edificaram as casas suntuosas não só dessas cidades como também as do México e Lima, onde muitos preferiram viver. Ricos foram os senhores de engenho de Pernambuco e da Bahia, os encomenderos que souberam explorar suas plantações e os pecuaristas que souberam aumentar seus rebanhos e estabeleceram-se em Caracas e Bogotá. E ricos foram aqueles que descobriram as possibilidades do comércio, legal ou ilegal, que multiplicava os lucros com menos esforço do que a produção exigia. Todos eles adquiriram a empáfia da sua condição de ricos, disfarçada de soberba fidalga. Esta foi a perspectiva do judeu português que deixou um testemunho inestimável dessa sociedade do começo do século XVII, tão barroca, tão rica em reminiscências da sociedade espanhola contemporânea descrita pelo romance picaresco. Para Pedro Marino de Lovera
são soberbos, presunçosos; presumem descender de grande nobreza e serem fidalgos por terem um solar conhecido. É tamanha a sua loucura que aquele que na Espanha foi pobre oficialmente, ao cruzar do pólo ártico para o antártico logo elevam-se os seus pensamentos e pensa merecer por sua estirpe juntar-se com os melhores da terra.
O mesmo cronista também considerava as mulheres presunçosas, porque como “são formosas e se julgam discretas, têm-se por mais nobres do que Cleópatra, rainha do Egito”. Vindas da Espanha ou filhas de conquistadores, adquiriram a autoridade que sua condição na nova sociedade lhes permitia. As vezes, foram encomenderas nos campos, e Quintrala provou no Chile a garra com a que eram capazes de defender seus direitos e propriedades. Nas cidades, procuraram criar o ambiente de distinção próprio das cortes e das cidades espanholas, rodeadas de escravos e de criados. Algumas deixaram-se levar pelo encanto dos casos amorosos, o suficiente para fazer da discreta limenha um arquétipo da sedução cortesã; e outras desviaram-se para os tormentosos dramas passionais, como os que recorda Rodríguez Freyle, em El Carnero, falando da sociedade bogotana do começo do século XVI, ou os que tiveram como protagonistas as mulheres da casa dos Lisperguer, em Santiago do Chile. Não faltaram exemplos de mulheres que aceitaram as grandes responsabilidades políticas, como a viúva do governador da Bahia, Jorge de Albuquerque, ou a do governador da Guatemala, Pedro de Alvarado. No entanto, o lugar que realmente ocuparam foi no âmbito da casa nobre, e sua preocupação fundamental foi consolidar e perpetuar a nova fidalguia da família constituída nas Índias. Poder-se-ia dizer talvez que, ao lado do varão aventureiro, seduzido sempre por novas possibilidades que melhorassem ainda mais as suas finanças ou a sua condição social, a mulher estabilizou as famílias das cidades e conseguiu criar uma tradição que, em muito pouco tempo, transformou algumas delas em linhagens aristocráticas. Uma casa de três gerações conhecidas era, em qualquer cidade latino-americana, um velho tronco cuja nobreza era insuspeitável.
Os grupos intelectuais que se formaram em muitas cidades também foram partícipes da condição fidalga, com maior ou menor brilho. Com certeza, muitos dos seus membros pertenceram ao clero. Amantes das letras ou propensos ao estudo, clérigos e leigos reivindicavam a melhor tradição da aristocracia intelectual. Eram vistos nas tertúlias e nos saraus, brilhavam como poetas cortesãos ou casualmente escreviam de forma bastante obscura. Contudo, apenas o domínio de uma sólida cultura revelada em obras, ou em conversas ou no ensino, servia como testemunho de superioridade que confirmava a sua condição fidalga.
Nos fidalgos de Lima, o judeu português descobriu os “pobres soberbos”, fidalgos pela concessão da cédula real, porém miseráveis e recalcados porque não puderam fazer fortuna, ou porque a perderam.
E também há os pobres soberbos que já que não podem morder, ladram, e andam sempre com a cabeça baixa, olhando onde podem arranjar alguma coisa, não querem sujeitar-se a nada nem há diálogo com eles. Estas pessoas são chamadas de soldados, não porque o sejam, mas porque são bem-aventurados que vão de um lado para outro, sempre com as cartas nas mãos, para não perder a chance de jogar com quantos encontrem no caminho, e se por acaso deparam com algum noviço ou chapetón que não seja hábil e atento à sua malícia, ou que não descubra a sua malícia com naipes falsos, lhes dão xeque-mate e lhes roubam o dinheiro e os bens, e às vezes os deixam a pé, porque ganham até os cavalos. Há muitas pessoas deste tipo andando pelo Peru. E todos, em sua grande maioria, são inimigos dos ricos e desejam novidades e mudanças e confusões no reino, para roubar e meter-se em assuntos que não podem opinar salvo com guerras e divergências. E uma gente que não quer servir. Todos andam bem vestidos porque nunca lhes falta uma negra ou uma índia e algumas espanholas – e não são das mais pobres – que os vestem e os sustentam, pois à noite as acompanham e de dia servemlhes de proteção. Aos velhos, que já por sua idade lhes faltam as forças e o brio, acomodam-se para servir de escudeiros, e vão com as senhoras à missa e as acompanham quando saem para as suas visitas. Há mais gente vagabunda no Peru do que acomodações e trabalho que se possa encontrar, pois são poucos os senhores que querem criados em suas casas, razão por que cada dia tentam em um lugar. E assim, todos se servem de negros, e os espanhóis vêm e cuidam de viver da melhor maneira que puderem.
Pobreza e fidalguia em um mundo efervescente, no qual a pobreza parecia patrimônio das classes dominadas, engendravam um tipo particularmente dramático de picardia que não se limitava à humilde e vergonhosa atitude daquele que cerzia as suas calças. Ambiciosos e violentos, os fidalgos sem fortuna foram o mau exemplo das cidades que procuravam impor uma ordem civil; e para afastá-los, foram induzidos a empreender novas aventuras. Assim ocorreu em Assunção com os “mancebos da terra”, criollos sem esperanças, que partiram para o sul e contribuíram para a fundação de Santa Fé e Buenos Aires, e em Lima, “onde todos os anos se reúnem pessoas para o reino do Chile. E os levam debaixo de suas bandeiras para lutar com os araucanos. E, em Lima, dão-lhes duzentos pesos para se vestirem”.
O que ficava abaixo do conjunto dos fidalgos – ricos e pobres, reais e virtuais – era a outra subsociedade. Nela havia brancos, europeus, geralmente ocupados com os assuntos financeiros ou com o pequeno comércio; não faltavam os judeus, que formavam um setor importante em Olinda, Salvador, Recife e também em Lima, Assunção e Buenos Aires. Existiam alguns artesãos brancos, porém começaram a aparecer no comércio e no artesanato os mestiços, que ascendiam graças ao apoio de sua família paterna, à sua destacada capacidade ou às suas negociações. Abaixo de todos, havia os grupos dominados, índios, negros, mestiços e mulatos comuns, que se ocupavam nas cidades de todo tipo de atividades, inclusive de trabalhos artesanais que realizavam em nome de seus senhores. Os mais afortunados foram os que fizeram parte da criadagem das casas fidalgas, e não só porque se beneficiaram com o sistema patriarcal que costumava nelas reinar como também porque adquiriram essa situação especial que o “criado” assumiu nas sociedades barrocas, nas quais penetrou e impregnou-se, diante dos olhos de seus pares, de alguns aspectos dos seus senhores. Outros, os demais, desfilavam sua miséria pelos subúrbios e a exibiam ocasionalmente no centro da cidade, nos dias de feira, ou nos chafarizes públicos, enquanto tentavam vender alguma coisa ou conseguir uma esmola. O desprezo dos fidalgos não necessitava, sequer, expressar-se.
Ficou muito claro o quadro da estratificação social quando as tropas de defesa pública se estabeleceram em Lima. A Descripción do judeu português, de 1625 aproximadamente, diz:
A cidade tem oito capitães de infantaria. Cada companhia destas tem cento e cinqüenta homens. A cavalo são seiscentos homens, e estes englobam tanto os da infantaria como os da cavalaria, que não são soldados assalariados, porque a cidade não tem presídio nem pessoas de guarnição; tampouco paga os que estão a pé, que são comerciantes, sapateiros, alfaiates e de outras profissões. Os a cavalo são arrieiros e chacareiros; estes são agricultores, com o nome de espanhóis, capatazes de chácaras e estâncias e de outros ofícios, mas não são tão bons como os que estão a pé. A cidade tem, quando muito, cem cavaleiros, que chamam de habitantes porque a maioria deles tem rendas que os índios lhes pagam. E a cidade tem também vinte e quatro regedores que entram na conta dos cem cavaleiros, porque todos os regedores são cavaleiros e são os mais importantes, pois são o governo da cidade.
Deste modo, as necessidades da defesa permitiam certa atração dos brancos sem posses à subsociedade dos fidalgos e dos ricos. Em geral, não faltaram caminhos ou atalhos por onde as duas subsociedades puderam aproximar-se. Os mestiços foram o elemento corrosivo da ordem formal da sociedade barroca das Índias, aquele que minaria a sociedade dual urbana. Marcadas por suas possibilidades e por suas limitações, as duas subsociedades pareciam girar dentro de suas órbitas sem interferir uma na outra. Porém, era uma situação instável. A mestiçagem conspirava contra ela, fortalecida e facilitada pelas sempre abertas possibilidades de ascensão econômica, aumentadas à medida que as cidades se estabeleceram, contra o projeto metropolitano, no mundo mercantil. E nesse mesmo processo adquiriu autonomia um setor criollo branco que descobriu o anacronismo da estrutura social elaborada nos dois primeiros séculos coloniais e como esse mesmo anacronismo representava um obstáculo para o seu desenvolvimento. Unidos, esses fatores precipitaram a crise da sociedade fidalga na segunda metade do século XVIII.
2. Os processos políticos
Uma sociedade urbana tão instável e fluida em sua essência, e tão rígida e hierarquizada na forma, só podia ter uma vida complexa e agitada, em que a coincidência em tomo de graves problemas não ocultava o jogo subterrâneo dos grupos e dos indivíduos. Essa coincidência assegurava a decidida ação do poder público, emanação do poder metropolitano, que não perdia de vista os problemas fundamentais do sistema colonial. A primeira preocupação de vice-reis, governadores e audiencias foi a segurança. Não deviam repetir-se fatos tão graves como os que haviam colocado em perigo algumas cidades pela ameaça da insurreição indígena: o cerco e a destruição de Cuzco em 1536, o sítio de Guadalajara em 1540, a destruição das cidades chilenas ao sul do Bío-Bío no final do século XVI. As cidades ameaçadas sofriam a preocupação com o perigo e quando se percebia uma conspiração das classes dominadas – como a que se descobriu no México, em 1638, ou em Lima, em 1750 – não só exageravam nas medidas para evitar que índios, negros e mestiços portassem armas ou realizassem reuniões suspeitas, como também aumentava a desconfiança no olhar de dominados e dominadores. Até a ama negra que criava o menino branco parecia suspeita. E mesmo quando a insurreição surgia nas regiões rurais, o medo era sentido nas cidades, onde pouco a pouco todo um mundo de serviços, de ofícios e de ocupações inferiores foi se constituindo em volta dos grupos privilegiados.
Mais intensa ainda foi a repercussão que tiveram as ameaças de piratas e corsários na vida das cidades. Os navios inimigos sulcavam o mar à espera dos galeões espanhóis, porém o melhor bocado podia ser o saque a uma cidade, na qual se pressupunha haver tesouros acumulados e bens infinitos. Após a tomada de Santiago de Cuba e de Havana pelos franceses, Francis Drake lançou-se sobre Santo Domingo e Cartagena, em 1586. Exigiu e obteve cento e sete mil ducados de ouro para não destruir Cartagena, além da quantia que fixou a cada proprietário para não incendiar sua casa: assim foi feito o inventário da cidade. Outras duas vezes Cartagena foi assaltada, em 1697 e em 1741; no mesmo período, La Guayra, Vera Cruz, Portobelo e, mais tarde, Havana haviam sido sitiadas ou ocupadas outra vez, em 1762. E quando, depois de 1616, o cabo Hom se transformou em caminho praticável, os portos do Pacífico conheceram a ameaça de ingleses e holandeses. Um deles, Panamá, foi ocupado em 1671 por Henry Morgan e seus piratas da ilha Tortuga, que haviam cruzado o istmo após tomar Portobelo: a cidade, uma das melhores e onde havia mais de mil casas, sem contar igrejas e conventos, foi destruída, e seus habitantes a abandonaram em busca de outro lugar. Anos antes, os holandeses haviam ocupado Olinda, Salvador e Recife, permanecendo nesta última durante cerca de duas décadas.
No entanto, a cidade que se defendia era também uma cidade que atacava. Enquanto esperava prevenida o inimigo, organizava novas expedições para ocupar o território circundante ou as regiões que estavam sob sua influência ou nas rotas que convergiam na cidade. A partir de Santo Domingo ocupou-se Cuba, e da primeira cidade cubana, Baracoa, tomou-se o território no qual se fundaram as novas cidades; de Santiago de Cuba conquistou-se o México, e do México, Guatemala. A cidade foi base de operações para novas expansões e nela divulgavam-se os objetivos, buscavam-se os capitães, alistavam-se os soldados, reuniam-se as provisões. Diego Losada trabalhou em El Tocuyo durante todo o ano de 1566 para organizar a expedição com a qual penetraria o vale de San Francisco, onde no ano seguinte fundou Caracas. Em Cuzco, Almagro e Valdivia, respectivamente, prepararam as suas expedições ao Chile. Em Assunção, Garay preparou a sua, com que fundaria Santa Fé e Buenos Aires. E de São Vicente partiram João Ramalho, primeiro, e o padre Anchieta, depois, para o que mais tarde seria São Paulo. As cidades descobriam os seus arredores e desenhavam com precisão o mapa da área de possível influência sobre o vago esboço que guiou as primeiras implantações. E nesse trabalho, a vida urbana agitava-se, os grupos populacionais originários modificavam-se, e as relações de interdependência entre umas cidades e as outras estabeleciam-se. Porém, enquanto isso, o poder trabalhava a cada dia para constituir e fortalecer a ordem urbana. Cinco anos depois de fundada Popayán, Benalcázar regressou da Espanha trazendo mulheres, da mesma forma como Pedro de Alvarado as levou para a Guatemala. Queriam constituir famílias assentadas, que levassem uma vida normal como em qualquer cidade espanhola, seguindo seus costumes, ocupando-se dos problemas da vida cotidiana, celebrando suas festas: e tudo isso imediatamente, quando ainda muito poucas casas haviam sido construídas. E trouxeram funcionários com experiência administrativa para montar a jovem burocracia, missionários e, sobretudo, utensílios, ferramentas, móveis e objetos variados que podiam ser necessários para colocar em movimento a vida da cidade. Tinham pressa de vê-la funcionando como se fosse antiga, com vida própria. O poder público dava o exemplo organizando a sua volta pequenas cortes, cujas tertúlias e saraus eram tema de animada conversa na vida diária; e na medida do possível, embora fossem poucas as possibilidades, procurava “enobrecer” a cidade para que deixasse de ser o quanto antes uma aldeia ou, apenas, a promessa de uma cidade.
A monótona sucessão dos fatos das vidas particulares, a que se misturavam as festas públicas, as touradas e as procissões, preenchiam a vida cotidiana da cidade. De repente essa monotonia era cortada pelo rumor de um caso passional ou de um terrível crime. Contudo, eram os assuntos públicos que subitamente agitavam a existência cotidiana. Algumas vezes eram os conflitos entre o governo civil e o religioso que podiam terminar em crises tão graves como a que comoveu o México entre 1621 e 1622, com a excomunhão do vice-rei, exílio do arcebispo, intervenção da cidade e motim popular, bem como o incidente de Cartagena, em 1683, quando o bispo pôs a cidade sob cessatio, do mesmo modo que, um século antes o frei Juan de los Barrios, o seu primeiro arcebispo, havia posto Bogotá. Em outros momentos, foram as brigas entre o vice-rei e a audiencia, ou outras, entre os bispos e as ordens religiosas. Os conflitos jurisdicionais, desencadeados às vezes por motivos sociais, promoviam a formação de bandos que se enfrentavam até chegar à violência. E não era raro descobrir que, com o pretexto de apoiar a um dos lados em conflito, se polarizavam grupos cujo antagonismo era anterior e tinha outros fundamentos: regionalismos, como os que colocaram frente a frente andaluzes e vascongados, no Peru do século XVII, ou conflitos econômicos.
Mas o que alterou mais profundamente a vida das cidades foram os episódios da luta pelo poder e pelos privilégios. Uma grave tensão derivou, por exemplo, da questionada situação de Cortés pelo vice-rei Mendoza; porém, se não teve maiores conseqüências, deixou uma semente que brotaria na chamada conspiração dos filhos de Cortés, a partir de 1565. Era uma expressão singular do choque inevitável entre os conquistadores, transformados em encomenderos ou mineiros, e o poder político disposto a estabelecer um sistema de direito público. A expressão mais grave do conflito se deu na Nicarágua, onde os Contreras, em Granada, se levantaram e tomaram o Panamá, em 1549, e sobretudo no Peru, onde as guerras civis alcançaram terríveis proporções. No início, foram fruto da rivalidade entre Pizarro e Almagro, pois este pretendia se fortalecer em Cuzco. Porém, pouco depois, o filho de Almagro enfrentou o enviado real Vaca de Castro e, afinal, os encomenderos liderados por Gonzalo Pizarro mobilizaram as cidades de Cuzco e Lima, nas quais constituíram poderes praticamente rebelados contra a coroa. Dominados, uma vez mais insurgiram em Cuzco, com Hernández Girón, em 1552; mas pouco a pouco os encomenderos foram reduzidos à obediência, ao longo de um processo de ajuste entre os direitos adquiridos pela conquista e o direito eminente da coroa.
Semelhante aspecto tiveram os conflitos que agitaram a cidade de Assunção a partir de 1541, onde se enfrentaram o governador Irala e o adelantado Álvar Núñez. Os colonos haviam transformado em cidade o que até então era uma simples “casa forte”, e desafiavam a política indígena estabelecida pelas Novas Leis. No entanto, a maior parte deles apoiou Irala até que, afinal, obteve a confirmação real no seu cargo de governador.
Tão rebelde como Assunção, pareceu ser em um momento a recém-fundada Santa Fé, na Argentina, onde os “sete chefes” criollos se sublevaram, em 1580. Em várias cidades, a calma aldeã se inquietou motivada pela ameaça do “tirano” Lope de Aguirre, revoltado contra as autoridades na Venezuela em tomo de 1564, como em 1560 havia se rebelado, em Nueva Granada, Álvaro de Oyón, que atacou a cidade de Popayán.
Outras razões colocaram frente a frente grupos econômicos antagônicos. Os senhores de Olinda, que não haviam hesitado em depor o governador Mendonça Furtado, em 1666, enfrentaram-se com os comerciantes de Recife, em 1710, na chamada Guerra dos Mascates. E os interesses locais provocaram conflitos contra as companhias monopolistas no Rio de Janeiro, ao rebelar-se Jerônimo Barbalho contra a Companhia Geral de Comércio do Brasil, em 1660, como o faria, em 1749, o capitão Juan Francisco León contra a Companhia Guipuzcoana, que monopolizava o comércio do cacau, em Caracas.
Apesar de seu aspecto provinciano – mesmo nas grandes capitais as cidades inquietavam-se por importantes problemas econômicos e políticos: atrás de cada um deles costumava-se entrever não só o conflito circunstancial, como também o plano que cada grupo alentava para o futuro.
3. Fidalguia e estilo de vida
Movidas por diversos estímulos, as sociedades urbanas dos dois primeiros séculos que sucederam às fundações caracterizaram-se pela predominância dos grupos fidalgos. Eles impuseram a sua própria concepção de vida e procuraram apagar as marcas de outras influências que outros setores sociais pugnavam por insinuar. As cidades fidalgas das Índias foram o resultado do desejo das suas classes dominantes de afirmar denodadamente uma ordem social em contraposição a uma situação econômica que, embora negada com igual denodo, constituía sua tentação constante.
Nas metrópoles, assim como em toda a Europa, as cidades tinham alcançado o seu esplendor original devido ao desenvolvimento mercantil e ao desenvolvimento de umas incipientes burguesias; e só um singular processo social havia exorbitado em algumas delas a diferenciação das classes e a formação dos senhorios nos mais altos setores burgueses. Assim constituíram-se na Espanha e em Portugal – mais em umas regiões do que em outras – as cidades barrocas, mais polarizadas do que em outras áreas européias e com menos perspectivas de resolver os problemas criados pela pressão do mundo mercantil. Porém, nas Índias, a conquista delineou um mapa social que prefigurava a situação das classes privilegiadas. O que na Europa era um setor marginalizado pelo processo da vida socioeconômica, encontrou na América seu similar em um setor dominado e marginalizado de uma só vez pela conquista. Os colonizadores então se viram de fato e instantaneamente acomodados a uma situação de privilégio que o patriciado das cidades européias teve de conseguir duramente através de um processo de assenhoreamento feudo-burguês. Por analogia, isto é, pela imposição de uma ideologia que traduzia e identificava a relevância de diferentes elementos sociais, desde o início, a conquista nas Índias constituiu sociedades urbanas homólogas às metropolitanas de seu tempo, ignorando ou descartando a primeira etapa do processo de desenvolvimento urbano que era inseparável da formação do mundo mercantil e das atitudes da incipiente burguesia que se formou após esse estímulo. O mundo mercantil prosperava, mas as cidades fidalgas das Índias fingiam ignorá-lo – tal como fingia, sobretudo, a Espanha. E embora atrás da ficção pulsasse certa tendência voraz de gozar os seus frutos, prevalecia na mentalidade dos grupos fidalgos o desejo de consolidar a situação de privilégio. Assim ficou implantada nas cidades hispânicas e lusitanas uma sociedade barroca das Índias, como uma imagem especular daquelas da Espanha e de Portugal, alterada apenas pela cor acobreada das classes não privilegiadas.
As cidades das Índias não demoraram muito em diferenciar-se. Devido à sua magnitude e à sua importância, as capitais de ampla jurisdição – como México, Lima e Bahia – distinguiram-se de forma acentuada das capitais menores: Guatemala, Bogotá, Santiago, Caracas, Havana, Buenos Aires, Santo Domingo, Olinda, Rio de Janeiro. O número de habitantes, a superfície edificada, os níveis de vida, a atividade econômica e o desenvolvimento cultural eram bem diversos. E mais notável ainda era a diferença em relação aos centros municipais, verdadeiras aldeias de vida lânguida e monótona, algumas das quais caíram na estagnação.
No entanto, mesmo entre as que mantiveram a sua importância ou a aumentaram, deu-se uma diferenciação que não foi apenas quantitativa, mas qualitativa também. Pois ao passo que algumas conservaram-se preferencialmente fidalgas, outras de modo rápido começaram a adquirir um ar mercantil. Entre as primeiras estiveram, antes de mais nada, as cortes vice-reais, as sedes de governo ou audiencias, mas, além disso, aquelas em que os encomenderos ou os mineiros ricos se apressaram em consolidar sua riqueza, adotando formas senhoriais de vida que lhes permitissem ostentá-la além de acentuar a separação entre as classes. E entre as segundas estavam, sobretudo, os portos e algumas cidades mineiras que, como Potosí, realizaram um processo de vigoroso desenvolvimento econômico estimulado pela aventura. Tanto umas como as outras criaram formas arquetípicas de vida e modelos sociais com diferentes mentalidades que impregnaram toda a vida da cidade, embora fossem próprias somente das classes dominantes. E esses modelos tornaram-se válidos para outras cidades, onde os fidalgos desprezavam os comerciantes e os comerciantes desprezavam – ou invejavam – os fidalgos.
As cidades predominantemente fidalgas, ou seja, aquelas em que o estilo da vida urbana foi determinado pelas classes altas que se fortaleceram em sua condição senhorial, foram sobretudo as cortes que se constituíram em tomo do poder. Casado com dona María de Toledo, o vice-rei Diego Colón instaurou a sua volta uma pequena corte aristocrática da qual faziam parte os orgulhosos encomenderos, fustigados pelo frei Antón de Montesinos, em 1510; o bispo Alejandro Geraldini elogiou em latim humanístico a ínclita e senhorial cidade na qual ò vice-rei havia erguido a sua fortaleza. As cortes serviram de ornamento ao poder vice-real no México, já-na época de Antonio de Mendoza, ou em Lima, durante os govémos de García Hurtado de Mendoza e do príncipe de Esquilache; e o governador Jorge de Albuquerque Coelho, em Olinda, também constituiu uma corte a sua volta. Grupos de ricos senhores, de damas amantes da poesia, cercados de prelados, juristas e funcionários, empenhavam-se em fazer alarde de um estilo de vida semelhante ao das cortes peninsulares, pelo afã de consolidar sua própria posição social, mas também pela ilusão de levar uma vida nobre no exílio colonial.
Uma vida nobre foi a preocupação quase obsessiva das altas classes fidalgas ou com pretensões à fidalguia. Consistia sobretudo em desprezar os trabalhos mecânicos e em manter separados artesãos e cavaleiros, como queria o jurista Juan Matienzo. Contudo, isto requeria organizar todo um sistema para que não só os privilegiados pudessem levar essa vida, como também para que todos os demais a contemplassem como o espetáculo da superioridade de alguns poucos. Essa minoria eram as grandes famílias, que moravam nas melhores ruas do México, como enumera Cervantes de Salazar – Mendoza, Zúñiga, Altamirano, Estrada, entre outras –, ou as que disputavam os cargos municipais a estocadas, como ocorreu em Santiago do Chile, no dia de San Quintín, em 1604, quando familiares e amigos dos Lisperguer e os Mendoza se enfrentaram. Orgulhosas de seus antepassados e zelosas de sua linhagem, as grandes famílias ostentavam brasões e enumeravam genealogias. Mas o que as unia era sobretudo um forte sentimento de classe – por cima de suas quizílias – e fechavam sua fileiras o quanto podiam. Havia irmandades e confrarias que as reuniam, festas nas quais se identificavam, cerimônias nas quais somente seus membros ocupavam os lugares de honra.
Bernardo de Balbuena elogiava a sua forma de convivência no México:
Calo sua altiva galhardia, e calo
a generosidade, sorte e grandeza
de coração que em seus costumes acho.
Sua cortês compostura, sua nobreza,
seu trato fidalgo, seu pacato modo,
sem mesquinharia nem sombra de escassez;
aquele prodigamente dar-lhe tudo,
sem reparar em gastos excessivos,
as pérolas, ouro, prata e seda a rodo;
se este estilo ainda vive entre os vivos,
este delgado solo o sustenta
e o cria em seus ânimos altivos.
A prodigalidade era apenas um sinal desse desejo de ostentação e luxo que alentava a classe fidalga. O padre Cardim descobria isso ao final do século XVI em Olinda, onde a corte de Jorge de Albuquerque Coelho brilhava tanto que ali “se encontra mais vaidade do que em Lisboa”. E acrescentava: “Os homens vestiam veludo, damascos e sedas, e gastavam galhardamente em cavalos de alto custo, com selas e rédeas das mesmas sedas da roupa. As damas também ostentavam luxo e gostavam mais de festas do que de devoções”. Também no México, frei Tomás Gage, por volta de 1625, observava:
Dizia-se que o número de habitantes espanhóis chegava a quarenta mil, todos tão fúteis e tão ricos que mais da metade tinha carruagem, de maneira que se acreditava que com certeza havia nesta época, na cidade, mais de quinze mil carruagens. Há um ditado no país que no México há quatro coisas bonitas: as mulheres, as roupas, os cavalos e as ruas. Poder-se-ia acrescentar a quinta que seria a ostentação da nobreza, que é muito mais esplêndida e custosa que a da corte de Madri e de todos os outros reinos da Europa, porque não se economiza para enriquecê-la nem o ouro, nem a prata, nem as pedras preciosas, nem o brocado de ouro, nem as maravilhosas sedas da China.
E de Lima, onde o padre Cobo ressaltava “a frivolidade dos trajes, dos enfeites e da pompa dos criados e de suas librés”, mais ou menos na mesma época, a Crónica do judeu português relatava:
Têm (as mulheres) cadeiras de mão nas quais os negros as levam quando vão à missa e às suas visitas; e têm também carruagens muito boas, mulas e cavalos que as puxam e cocheiros negros que as guiam. Para finalizar, os senhores de Lima usufruem de um paraíso neste mundo, pois Lima tem o melhor clima, pois se sabe hoje o dia que vai fazer amanhã. Embora as mulheres sejam formosas e elegantes, os homens são bem vestidos e garbosos. Em geral, todos vestem boas roupas de seda e finos tecidos de Segóvia e bonitos colarinhos com caras rendas de Flandres. Todos calçam meias de seda, são discretos, afáveis e bem-criados. Respeitam muito a lei da cortesia. São pródigos no gastar, gastam sem controle. Todos se vangloriam de grande nobreza, não há nenhum que não se considere cavalheiro, e todos andam pela cidade a cavalo, se não forem alguns muito pobres.
Esse desejo de ostentação e luxo era percebido em tudo: nos casarões que queriam ser palácios, no mobiliário e nas louças, trazidos da península, nas pinturas que adornavam as capelas particulares, até mesmo telhados e muros das casas, nas esculturas, nos livros, nas jóias. Mas além do que se tinha, era necessário que o seu uso fosse elegante como cabe às pessoas de alta condição. Os senhores eram pródigos e gostavam de ter a sua volta essa criadagem que faz parte do séquito senhorial. Eram os que os acompanhavam quando saíam para a caça, como aqueles que escoltavam, em 1590, o arcebispo de Bogotá, frei Luis Zapata de Cárdenas, quando encontrou a morte caçando, “acompanhado” – como lembra Rodríguez Freyle – “de seus criados e familiares e de alguns clérigos e seculares”, os que o assistiam em seus duelos, os que escutavam a leitura de seus alardes poéticos, ou os que serviam de mediadores nas aventuras de amor, ou ainda os que os acompanhavam nas festas noturnas, entre negras lúbricas e muitos copos de vinho. Esse séquito revelava a condição senhorial de quem fazia do lazer aristocrático e sensual a condição da vida nobre.
Nas festas e saraus, a classe fidalga sentia-se à vontade. Ali, achavam-se os eleitos, exercitavam-se as delicadas artes da cortesia e da etiqueta, cortejava-se e falava-se de poesia; e, além disso, dançava-se e cantava-se, em um ambiente refinado e elegante. Era uma grande pena que o marco para tão aristocráticas aspirações fosse tão modesto: se o casarão era confortável e finamente mobiliado, as ruas eram, com exceção de umas poucas, de terra, a iluminação escassa, os esgotos insuficientes. Porém, no século XVII, tanto o México quanto Lima tiveram o seu logradouro aristocrático, a Alameda, onde se encontrava a nata da sociedade. Bachelier, referindo-se à Lima do começo do século XVIII, dizia:
O lugar do passeio era encantador; é uma bela avenida muito larga, que se perde de vista, com quatro filas de árvores, laranjeiras ou limoeiros muito bonitos, dois riachos de água clara que correm dos dois lados, e ao fundo, em perspectiva, a fachada principal de um dos conventos mais bem construídos, o que representa um relance gratificante aos estrangeiros. As carruagens passeiam às centenas nas tardes, e é este o rendez-vous de todas as pessoas distintas da cidade. Os amantes cortejam as suas amadas, e têm como honra segui-las a pé, apoiados nas portas das suas carruagens.
E referindo-se ao México, frei Tomás Gage observava, em 1648:
Os grandes da cidade vão divertir-se todos os dias por volta das quatro da tarde, uns a cavalo e outros em carruagens, em um passeio delicioso que chamam de Alameda, onde há muitas ruas arborizadas em que não penetram os raios do sol. São vistas habitualmente cerca de duas mil carruagens cheias de fidalgos, damas e pessoas abastadas do povo. Os fidalgos comparecem para ver as damas; uns servidos por uma dúzia de escravos africanos, e outros, com um séquito menor, mas todos os levam com uniformes muito caros, cheios de rendas, flores, tranças e laços de seda, prata e ouro, com meias de seda, rosas nos sapatos e com o inseparável espadim ao lado. A comitiva do vice-rei, que algumas vezes vai passear na Alameda, não é menos brilhante e faustosa que a do rei da Espanha, seu senhor.
A vida alegre dos fidalgos devia produzir tanto impacto no ânimo daqueles que a observavam, que Bernardo de Balbuena dedicou para a descrição das suas formas nove tercetos de sua Grandeza mexicana:
Recreações de gosto em que ocupar-se,
de festas e presentes mil maneiras para
enganar cuidados e enganar-se;
conversas, jogos, brincadeiras, verdades,
convites, guloseimas infinitas,
hortas, jardins, caças, bosques, feras;
aparatos, grandezas encantadoras,
encontros, saraus, concertos agradáveis,
músicas, passatempos e visitas;
regozijos, folguedos saudáveis,
corridas, ruas, bizarrias, passeios,
amigos, no gosto e trato afáveis;
galas, librés, broches, camafeus,
arreios, tecidos, sedas e brocados,
pinte o capricho, peçam seus desejos.
Escarchas, bordados, entorchados,
jóias, joalheiros, pérolas, pedraria,
aljôfar, ouro, prata, bordados;
festa e comédia novas a cada dia,
de várias peças e primores
gosto, entretenimento e alegria;
usos novos, desejos de senhores,
de mulheres toucados e quimeras,
de maridos carunchos e dores;
volantes, carzahanes, primaveras,3
e para autoridade e senhorio coches,
carruagens, cadeiras e liteiras.
Sutil breviário da fidalguia barroca, a Grandeza mexicana revela alguns mecanismos secretos de sua concepção frívola da vida. Porém, nem tudo era assim. Os fidalgos também tinham outra vida menos fácil e menos estéril. Em alguns casos, eram funcionários de categoria e estavam então comprometidos com suas obrigações e presos às suas responsabilidades, em geral rotineiras mas, ocasionalmente, inesperadas e complexas que exigiam sua total dedicação e, às vezes, seu sacrifício; ou eram ainda soldados e deviam arrostar a defesa da cidade ameaçada por corsários e piratas, ou pela guerra contra os índios. Na hora de cumprir essas missões, a concepção frívola da vida dissipava-se; mas continuava pairando como uma aspiração generalizada, porque a vida nobre e ociosa parecia ser a única própria do fidalgo.
Era próprio dos fidalgos o prazer estético, bem como os elevados pensamentos. Tal como soror Juana, em seu convento mexicano, muitas mulheres haviam escrito versos, como, por exemplo, Leonor de Ovando, da antiga Santo Domingo. A vida conventual fazia parte do decoro das classes altas e nelas eram cultivadas tanto as letras quanto o estudo, sem prejuízo de que também fizessem o mesmo, talvez, os clérigos seculares, como Bernardo de Balbuena, Juan de Castellanos e Francisco Cervantes de Salazar. E não faltaram círculos cortesãos nos quais brilhassem a poesia e o teatro: no México, onde viveram Gutierre de Cetina, Mateo Alemán, Juan de la Cueva e Francisco de Terrazas, além de outros de menor expressão, tantos eram que chegaram a trezentos os participantes de um certame poético, em 1585; em Olinda, onde Bento Teixeira Pinto compôs sua Prosopopéia, em honra do governador Albuquerque Coelho; e em Lima, onde vice-reis literatos como Montesclaros, Esquilache e Castell dos Rius reuniam a sua volta poetas, como Juan de Miramontes e Zuázola, ou humanistas, como Pedro de Peralta Barnuevo. O teatro – inaugurado no México em 1597 e em Lima em 1602 – foi centro literário e mundano ao mesmo tempo. A própria sátira foi fidalga: no intencional relato de Rodríguez Freyle, que reunia as intrigas da aldeia bogotana, ou nas expressões maliciosas de Juan del Valle Caviedes, que humilhava as limenhas ou limenhos, ou no estilo mais acre de que se valia Gregório de Matos na Bahia para criticar a sociedade do Brasil, onde “a fidalguia no bom sangue nunca está”. E até as universidades – primeiro, a de Santo Domingo, e depois as do México e Lima, criadas em 1551, e as que surgiram depois em Bogotá, Quito, Córdoba, entre outras cidades – estamparam o ar aristocrático que Cervantes de Salazar exalta na sociedade mexicana ou o que transparece na própria fundação do Colegio del Rosario de Bogotá.
Sedes de vice-reinados, governos ou de audiencias, os centros de poder – grandes ou pequenos – viram florescer esta classe que se consolidou em grande parte apoiada na autoridade direta daqueles que representavam o poder conquistador. Contudo, o modelo de vida fidalga predominou também em outras cidades. A riqueza foi sempre o fator decisivo, mas nem todas as formas de riqueza, nestes dois primeiros séculos que se seguiram à fundação das cidades. Era necessário que suas fontes não estivessem muito à vista, que chegasse através do profundo abismo que separava o encomendero de seus encomendados, o legítimo proprietário mineiro de seu filão; que chegasse, enfim, através de uma escala hierárquica que permitisse alimentar a ilusão de que a riqueza era uma “antiga riqueza”, como a dos senhores da metrópole, tão assentada e consentida que seu beneficiário nada tivesse de fazer a não ser recebê-la e desfrutá-la, sem colocar as mãos nas sujas tarefas que pressupunha sua obtenção. Era uma ilusão dos fidalgos, mas tão entranhada que parecia real aos que a contemplavam, simulada por todo um sistema de convenções que procurava manter a distância entre eles e seus subordinados e evidenciar sua congênita superioridade. Através desses mecanismos, Puebla, Guanajuato, Taxco, San Luis de Potosí, Morelia, Popayán, Tunja, Arequipa, Olinda e Trujillo do Peru adquiriram caráter senhorial. Desta forma, bastaram poucas gerações para acrisolar os avoengos.
Diante do poder social e econômico da classe que herdava os privilégios da conquista e todas as fontes de riqueza, a posição dos demais setores mostrava uma grande inferioridade. Mesmo os brancos voltados para o serviço dos ofícios mecânicos e os comerciantes de muito baixa condição sofriam esta desvantagem. Porém, quem ainda sofria mais era o grosso da população indígena, negra ou mestiça, sobre a qual incidiam o desprezo e as suspeitas da classe dominante. Voltados para as profissões e tarefas mais humildes, seu horizonte era limitado e suas possibilidades restritas. Nos bairros onde viviam, eles criavam comunidades fechadas em volta de suas próprias igrejas e, às vezes, nas suas próprias confrarias ou irmandades, e mostravam-se unidos – por grupos ou por castas – em suas festas. No entanto, também eram vistos em outros locais da cidade, pelas ruas, cumprindo suas tarefas, ou no mercado, onde se concentravam e que era, a rigor, seu próprio reino. E nas festas públicas, nas quais as classes fidalgas brilhavam, o populacho fazia o coro que aplaudia o espetáculo de magnificência oferecido pelos ricos.
Baixos níveis de vida predominavam nos bairros de castas. Porém, as cidades, em especial as importantes, ofereciam resquícios através dos quais os grupos dominados podiam vislumbrar um destino melhor. Era, geralmente, à força de astúcia e, como na península, esse esforço transformava em pícaros aqueles que o envidavam: houve uma astúcia indígena, resposta forçada às condições impostas pela sociedade fidalga.
Diversos grupos recorreram a essa saída e por vias diferentes. As mulheres negras, sensuais e desapegadas, abriram um caminho de aproximação em direção aos fidalgos que foi aproveitado não só por elas, como também por todos aqueles que elas quiseram colocar à sombra de seus protetores. Vestidas com exagero premeditado, davam à cidade um ar pitoresco e excitante que se notava nos bairros em que viviam como também nos que as classes altas freqüentavam, porquanto desempenhavam diversas ocupações e serviços. Pagando algum dinheiro a seus amos, os escravos negros costumavam adquirir o direito de exercer por conta própria alguma profissão ou comércio. E se os lucros lhes fossem suficientes para pagar a sua alforria, podiam depois aumentar e permitir-lhes uma posição mediana. Semelhantes possibilidades costumavam ter os mestiços ou mulatos, sobretudo se seus familiares brancos lhes dessem algum apoio. Pela sua condição, costumavam ser considerados como intermediários úteis entre os amos e as pessoas que trabalhavam para eles, negros ou índios. Porque, capatazes ou encarregados, não só tinham a possibilidade de ganhar dinheiro como também de ir aproximando-se das classes privilegiadas numa espécie de cumplicidade contra os grupos dominados. Porém, suas possibilidades não terminavam aí. As múltiplas oportunidades não aproveitadas que a vida econômica oferecia deixavam aberto o caminho para os mais audazes e, sobretudo, para os que não tinham outra opção senão recorrer a soluções heróicas a fim de modificar sua condição. Mestiços, ou melhor, mamelucos, eram os bandeirantes paulistas, que voltavam carregados de riquezas quando obtinham êxito em suas empreitadas, e, pouco depois, alcançavam na cidade a esperada posição que Afonso Sardinha, o moço, teve, por exemplo, em São Paulo.
A rigor, a atividade econômica foi, mesmo nas cidades predominantemente fidalgas, o eixo da vida urbana, e ela impôs certas regras para o seu desenvolvimento, mais fortes e rígidas que a estrutura da sociedade barroca. Os fidalgos acharam, talvez, que a sociedade urbana dual era imutável, fundamentando-se nos sólidos preconceitos e nas mentalidades encontradas. Contudo, as atividades econômicas criavam zonas de contato nas quais o dinheiro facilitava a aproximação dos diferentes setores sociais, através de operações em que eram necessários o rico e o pobre, o fidalgo influente nas tribunas e o mestiço ou o negro conhecedor dos meandros da vida urbana. Por certo, esta força que chamava ao realismo uma sociedade que se queria manter estática, dentro de uma ordem ilusória, agia com mais eficácia nas cidades que foram, desde o princípio, predominantemente mercantis.
Na cidade, o mercado era o núcleo fundamental da vida: nele se concentrava e circulava a riqueza, e a cidade caminhava em consonância com a sua prosperidade. López de Velazco explicava o despovoamento progressivo de Santo Domingo e de Santiago de Cuba. As duas cidades – esclarece – haviam chegado a ter mil habitantes mas, por volta de 1574, Santo Domingo tinha quinhentos e Santiago de Cuba, trinta; e a explicação é a mesma: “por não virem mercadores negociar nesta ilha”, ou “por não chegarem ali navios para negociar”.
No México, havia quatro feiras “com grande quantidade de mercadoria, de sedas, tecidos e tudo quanto se pode encontrar nas mais abastecidas do mundo”, dizia Vázquez de Espinosa; e do maior dos mercados, que se fazia na Plaza Mayor, afirmava López de Velazco, que “cabem cem mil pessoas e está todo cercado de portais com locais determinados para cada profissão e espécie de mercadoria, com grande variedade e muitas miudezas”. Menos importante era, sem dúvida, o mercado de Lima, “que nesta cidade chamamos o Gato”, escrevia o padre Cobo. E acrescentava:
Vende-se todo gênero de frutas e de alimentos; tudo oferecido por negras e Índias, em tão grande número, que parece um formigueiro. As coisas que se encontram neste mercado são tantas quanto uma muito bem abastecida república pode querer para o seu sustento e deleite. Existem também muitas barraquinhas de pequeno comércio, índios que vendem mil miudezas. Por toda a calçada do Palácio há fileiras de barracas ou vendinhas de madeira, apoiadas nas paredes, de comerciantes com pouco dinheiro, sem contar as outras muitas barracas portáteis que existem nas duas calçadas e nos tianguis ou mercado; ao lado das casas do Cabildo, sempre há leilões, onde roupas usadas são vendidas a preços baixos, e outras tantas coisas para enfeitar uma casa.
Em maior ou menor escala, todas as cidades tinham o seu mercado com caraterísticas semelhantes e, em algumas delas, funcionavam feiras com certas características especiais. De resto, nem todo o comércio era feito no mercado. Havia barracas montadas nas ruas da cidade, algumas das quais recebiam o nome, precisamente, dos comerciantes que predominavam nelas. As vezes, havia não apenas comerciantes, mas também artesãos, que fabricavam certos objetos e, entre eles, destacavam-se os prateiros, que, já no fim do século XVI, formavam um poderoso sindicato, tanto no México como em Lima. E havia também negociantes que faziam transações com os atacadistas e exportadores, lidando com grandes quantidades.
Em decorrência da atividade econômica, funcionava nas cidades predominantemente fidalgas uma forma de vida que pouco tinha a ver com a das classes altas quando seus membros se comportavam como senhores. E, no entanto, boa parte de seus protagonistas eram os mesmos, embora, às vezes, fidalgos, funcionários e eclesiásticos obrassem por prepostos. Porém, havia também comerciantes por profissão que tinham assumido plenamente suas funções e que aceitavam sua posição secundária na cidade sobretudo fidalga; e formavam a camada superior de uma escala que terminava naquele que se dedicava ao transporte ou à venda a varejo. Todos eles tinham, por certo, uma posição muito distinta nas cidades predominantemente mercantis.
Algumas cidades mineiras adquiriram, digamos assim, um aspecto de cidades mercantis, quando a descoberta do surpreendente filão desencadeava uma vertiginosa tendência à aventura que nem mesmo os preconceitos, as colocações retóricas e os escrúpulos fidalgos eram capazes de conter. A prata estava ali, ao alcance de suas mãos, e muitos tentaram obtê-la. Poucos anos depois do descobrimento de Cerro Rico, por volta de 1550, Cieza de León escrevia, referindo-se à atração que provocou:
E embora nesta época Gonzalo Pizarro andasse dando trabalho ao vice-rei e o reino estivesse cheio de alterações causadas por esta rebelião, povoou-se o sopé deste morro e se construíram muitas e grandes casas, e os espanhóis fizeram seu principal assentamento nesta parte, transferindo-se inclusive a justiça para ele; tanto é que a vila estava quase deserta e despovoada. Aumentou tanto o número de pessoas para extrair a prata, que aquele lugar parecia uma grande cidade.
Porém, talvez o mais curioso fenômeno foi a rápida formação de um mercado extraordinariamente ativo, no qual se desenvolveram inúmeras atividades secundárias. O próprio Cieza de León compara o mercado de Cuzco ao de Potosí e diz:
(…) mas este mercado ou tianguis nem qualquer outro do reino se iguala ao soberbo de Potosí; porque foi tão grande o comércio que só entre os índios, sem os cristãos intervirem, vendia-se todo dia, na época em que as minas seguiam prósperas, de vinte e cinco a trinta mil pesos de ouro, chegando a mais de quarenta mil em alguns dias; coisa rara, e creio que nenhuma feira do mundo se iguala à atividade deste mercado. Eu notei isto várias vezes e vi que em uma área plana que era a praça deste assentamento, por uma parte havia uma fileira de cestos de coca, que foi a maior riqueza destas regiões; por outro, pilhas de mantas e bonitas camisas, finas e rústicas; e em outro havia um monte de milho, de batatas secas e de outras de suas comidas; além do que, havia também um grande número de pedaços de carne da melhor que havia no reino. Enfim, vendiam-se muitas outras coisas mais que não cito; e durava esta feira ou mercado da manhã até tarde da noite; e como extraíam prata todo dia, e estes índios gostam de comer e beber, em especial os que lidam com os espanhóis, gastava-se tudo o que era trazido para vender de tantas maneiras que de tudo quanto era canto eles surgiam com provisões e coisas necessárias ao seu abastecimento. E assim, muitos espanhóis enriqueceram neste assentamento de Potosí, tendo apenas duas ou três índias que comerciavam nestes tianguis; e de muitos lugares chegaram grandes bandos de anaconas, isto é, índios livres que podiam servir a quem eles quisessem; e as mais belas índias de Cuzco e de todo o reino encontravam-se neste assentamento. Uma coisa notei no tempo em que ali estive: que eram feitas muitas trapaças, e alguns se valiam de mentiras. E foram tantas as mercadorias pelo valor das coisas, que os linhos de Rouen, tecidos em geral e cambraias eram vendidos quase tão barato quanto na Espanha, e em leilão eu vi vender coisas por tão baixo preço que em Sevilha seriam consideradas baratas. E muitos homens que haviam obtido muita riqueza, não satisfazendo a sua ganância insaciável, perderam-se tentando comprar e vender; alguns deles foram embora, fugindo para o Chile, Tucumán e outros lugares, com medo das dívidas; e assim, tudo o que se tratava ali eram pleitos e brigas que uns travavam com os outros.
Setenta anos mais tarde, “a Imperial Vila de Potosí, a mais feliz e venturosa de quantas se conhecem no mundo por suas riquezas, tem uma vizinhança de quatro mil casas de espanhóis e sempre tem de quatro a cinco mil homens”, conforme assinala a Descripción do judeu português. “Parte deles ocupa-se do benefício das minas e outros tantos que são comerciantes negociam as suas mercadorias por todo o reino… e outros que vivem de suas aventuras e jogatina e de valentia.” E acrescentava: “E grande o comércio de mercadores e grandes e ricas lojas com toda sorte de mercadorias, com grande correspondência em Lima, indo daqui, portanto, muitos comerciantes investir em Lima, no México e em Sevilha, permitindo que vários homens bastante ricos vivessem na Espanha”.
A região de Minas Gerais, no Brasil, teve o mesmo poder de atração. A ela afluíram, após saberem de sua riqueza em ouro, não apenas os bandeirantes paulistas como também os baianos ou brasileiros do norte e numerosos portugueses, os primeiros que, por certo, emigraram espontaneamente para o Brasil. A concorrência daqueles a quem os paulistanos consideravam estrangeiros chegou a causar uma guerra – a Guerra dos Emboabas. Todos juntos, no entanto, produziram o extraordinário impulso da riqueza mineira. Vila Rica, a atual Ouro Preto, foi chamada de “a Potosí do ouro”; e assim como em Potosí e em todas as outras cidades mineiras do âmbito hispânico, a concentração de aventureiros produziu o mesmo fenômeno social. A esperança de enriquecer descartava toda preocupação e homologava a condição dos brancos que incentivavam a exploração, feita às custas dos escravos negros, que trabalhavam e morriam aos milhares nas minas, como os índios no âmbito hispânico. Desperdício, jogo, prostituição, orgias e crimes marcaram a vida de Vila Rica, onde, como em Potosí, passado o auge do ouro, a sociedade urbana da vila, transformada em cidade em 1711, estagnou-se até parecer uma cidade morta.
Outras cidades – Guanajuato, Taxco, Zacatecas – foram constituídas graças ao incentivo das riquezas que as minas ofereciam, com sociedades igualmente díspares no início. Nelas, ninguém se preocupou em aparentar fidalguia, embora vestissem, de acordo com a descrição que Arzans de Ursúa y Vela fazia dos potosinos, no século XVIII, apenas, riqueza. E ninguém buscou a ostentação de uma vida nobre. Casas de jogos nas quais apostavam fortunas, bordéis de todas as categorias e, sobretudo, um desenfrear de toda classe de paixões, caracterizou estas cidades: “Esta desditosa vila não parecia” – dizia um testemunho recolhido por Arzans de Ursúa em sua história de Potosí – “casa de cristãos, mas de bárbaros cruéis”, porque a violência levava de roldão homens e mulheres. No entanto, o motor da peculiar forma de sociabilidade nas cidades mineiras era a fácil obtenção de fabulosas fortunas e as possibilidades de novos negócios. O espírito mercantil triunfava irremissivelmente e se sobrepunha às preocupações sociais, talvez pela afluência de tantos estrangeiros, em especial portugueses, aos domínios hispânicos, que ratificavam a postura dos espanhóis ciosos de sua nobreza. Não obstante, algumas cidades mineiras viram os grupos de ricos transformarem-se em grupos fidalgos, já no final do século XVII ou no XVIII, quando a nobreza começava a entrar em crise.
De qualquer maneira, onde o espírito mercantil adquiriu um aspecto mais definido e um ar mais próximo ao das burguesias européias foi nos portos, nos quais as atividades econômicas foram fundamentais desde o princípio. López de Velazco assinala, com dados referentes a 1574, as diferenças da estrutura social das cidades quando distingue a condição social dos espanhóis. Diz ele, aludindo a Popayán, que são trinta habitantes espanhóis, dos quais dezesseis encomenderos; quinhentos espanhóis dos quais setenta encomenderos e os demais colonos e comerciantes, referindo-se à Guatemala; e conta vinte e quatro encomenderos e aproximadamente trinta e seis habitantes em Cáli, sessenta e três encomenderos e cerca de oitocentos habitantes em Cuzco e vinte e três encomenderos e mais ou menos trezentos habitantes em Trujillo do Peru. Porém, quando se refere a Potosí, ele diz: “Quatrocentas casas de espanhóis, nenhum encomendem, mas todos comerciantes, revendedores e mineiros, além dos que vêm e vão”. Sobre Vera Cruz, comenta que são todos comerciantes e a respeito de Cartagena, que tem aproximadamente duzentos e cinqüenta habitantes, dos quais dezesseis encomenderos e todos os demais revendedores e comerciantes.
Os portos tiveram o seu próprio estilo de vida: Portobelo, Havana, Cartagena, Vera Cruz, La Guayra, Santo Domingo, Acapulco, Panamá, Guaiaquil, El Callao, Valparaíso, Buenos Aires, São Vicente, Rio de Janeiro, Salvador, Recife. Os grandes negócios tinham ali a sua sede e constituíram-se, em conseqüência, os grupos econômicos mais poderosos, caracterizados por sua decisão, seu pragmatismo e sua eficácia. Os grupos vinculados ao comércio da metrópole mostraram desde o início um caráter social e mental muito definido. E de modo rápido mostraram as suas intenções duas espécies de comerciantes que teriam particular significação pelas fortunas que acumularam e por sua peculiar inserção na vida social: os negreiros e os contrabandistas. Assim como aqueles que constituíram as sociedades urbanas mineiras, tampouco estes tiveram escrúpulos ao lidar com os seus interesses, nem descuidaram da sua condução direta. Talvez tenham escolhido estas atividades porque estavam decididos a acelerar o processo de seu enriquecimento, sem preocupações extras de caráter social. Porém, em todo caso, forjaram o tipo do burguês mercantil, que havia de ser um modelo cada vez mais aceito, na medida em que a vida colonial se desenvolveu.
No Brasil, circunstâncias especiais contribuíram para delinear o modelo de vida mercantilista e burguês. A exportação do açúcar abriu uma perspectiva do mercado mundial muito mais ampla do que a que podia permitir a política monopolista da Espanha. Essa perspectiva melhorou ainda mais quando os holandeses se instalaram em Recife, em 1630, e ali criaram uma cidade tipicamente burguesa e mercantil, cujo remoto modelo era Amsterdã, assim como foi esse o modelo para as outras fundações holandesas, Nova Amsterdã, hoje Nova York, em 1624, e Willemstad, em Curaçao, em 1634. Na época de Maurício de Nassau – entre 1637 e 1644 –, Recife foi não apenas um importante centro econômico, como também um modelo do estilo burguês de vida, que os portugueses imitaram e mantiveram depois que a reconquistaram, em 1654. Diante de Olinda, que perpetuava a tradição fidalga, Recife acentuou o contraste e determinou o rumo que depois nos fatos as classes altas teriam de seguir, sem prejuízo da sobrevivência de certa tendência senhorial.
A criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil (1649) e da Real Companhia Guipuzcoana de Caracas (1730) contribuiu para acentuar a significação das formas de vida mercantilistas e burguesas. Feitorias e feitores introduziram nas cidades onde atuaram uma nova atitude econômica e social: por isso, rebelaram-se contra elas aqueles que viam afetados os seus interesses pelo monopólio e, ao mesmo tempo, o seu estilo de vida. As revoltas de Jerônimo Barbalho, no Rio de Janeiro, e do capitão León, na Venezuela, unificavam os dois desígnios.
Cidades predominantemente fidalgas e cidades predominantemente mercantis esboçaram dois estilos de vida, segundo as tendências de suas classes dominantes. Esses dois estilos coexistiram, a rigor, em todas as cidades, porque nem as classes nobres furtaram-se às atividades mercantis e às suas possibilidades, nem os setores mercantis deixaram de acalentar a esperança de alcançar algum dia o brilho das classes ociosas. Contudo, a nobreza foi uma obsessão prevalecente durante os dois primeiros séculos que se seguiram às fundações. Só a partir de meados do século XVIII, um crescente pragmatismo, sustentado pelas idéias da Ilustração, permitiu abandonar pouco a pouco as ostentosas fantasias dos aventureiros, empenhados em fazer que parecessem antigas as suas linhagens e brasões. Quando a riqueza pareceu ser um mérito suficiente, ninguém pretendeu ocultar que os seus brasões eram comprados, talvez porque a coroa também não tenha escondido que lhes havia imposto um preço.
4. Do projeto incipiente à cidade edificada
O desenvolvimento lento ou acelerado das cidades, segundo o caso, manifestou-se no crescimento, estabilização e diferenciação de sua sociedade, na sua maior atividade econômica, na adoção de formas de vida mais tipicamente urbanas e no aparecimento de novas preocupações culturais. Porém, manifestou-se sobretudo no fato concreto de sua edificação. Ato simbólico, a fundação não instaurou a cidade física. Seu traçado transformou-se, portanto, em um projeto que era necessário transformar em realidade. E após ter-se adotado definitivamente o lugar, o projeto foi posto em execução lentamente, erguendo construções civis e religiosas nos terrenos demarcados pela planta e que haviam sido adjudicados formalmente aos colonos ou reservados para edifícios públicos.
Se o traçado foi um projeto, sua extensão e distribuição revela a perspectiva que os fundadores descobriam para as novas cidades. Para certas capitais – México, Lima, Buenos Aires – foi concedida uma superfície que ultrapassava cem quarteirões, mas a grande maioria das cidades teve por volta de vinte e cinco, e tanto umas quanto as outras tardaram muito tempo a conseguir uma edificação compacta fora da zona central. No final do século XVII ou início do XVIII, pouquíssimas haviam ultrapassado esses limites, mesmo quando apareceram algumas formações suburbanas irregulares.
Por certo, a população urbana cresceu com muita lentidão. No início do século XVIII, o México poderia chegar a 40.000 habitantes, Lima, a uns 30.000 e Salvador, a 10.000. No entanto, nenhuma das outras cidades latino-americanas alcançava essa última cifra. Recife e Buenos Aires teriam por volta de 8.000, São Paulo e Caracas, 7.000 e Bogotá e Assunção, 5.000 aproximadamente. Eram, portanto, pequenas sociedades urbanas que não podiam acelerar o processo de preencher a planta vazia, nem tinham necessidade de fazê-lo. Além disso, salvo nas grandes capitais ou em algumas cidades mineiras ou portuárias, durante esse período, não sobraram recursos para enfrentar a tarefa de erguer cidades sobre o nada. Foram construídas casas particulares, edifícios públicos, igrejas e conventos, porém, até bem além da metade do século XVIII, o desenvolvimento físico das cidades foi lento e não superou, salvo exceções, o traçado dos fundadores.
De qualquer maneira, o que havia sido campo ficou circunscrito e transformado em área urbana, não só porque virtualmente o era, como também porque passava a sê-lo progressivamente, à medida que se levantava uma nova igreja ou uma nova casa e, sobretudo, à medida que a sociedade vivia nesse âmbito a sua existência cotidiana e o enchia de lembranças e de expectativas. No traçado, a praça principal era um espaço aberto e vazio como todos os outros; o pelourinho foi a primeira coisa que se levantou, e logo depois o mercado começou a funcionar ali: a praça já fora praça e consolidou tal condição quando se levantaram a sua volta os edificios destinados à sede dos poderes públicos, do templo e, talvez, a prisão. Com tudo isso, a praça começou a ser o centro de comunicação social da cidade, tão modesta como fora a sua edificação, tão elementar quanto os serviços públicos, reduzidos, talvez, a um chafariz. Porém, dali ia-se ao cabildo, à casa do governador ou à audiencia; ali eram centralizadas as atividades econômicas e feitas as poucas festas públicas que se celebravam na cidade. Por isso, a Plaza Mayor foi a primeira coisa que começou a merecer cuidados das autoridades, até onde a peculiar atividade do mercado assim o permitia. Algumas vezes se chegou a roubar-lhe espaço para alguma instalação que oferecesse abrigo aos comerciantes, porém, esse espaço tinha para todos um valor que o tornava recuperável. Da praça saíam as ruas principais, cuja linha de edificação foi quase sempre conservada cuidadosamente. Ali, próximo à praça, os moradores mais ricos estabeleceram-se e construíram as suas casas. E, mais distante, os moradores de menos recursos foram distribuindo-se, com freqüência em volta das igrejas – paróquias, às vezes – que começavam a ser erguidas nos solares que lhes haviam sido adjudicados pelas diversas ordens. Surgiram ali pracinhas, onde se instalaram fontes, e nas quais pequenos centros de bairros começaram a organizar-se, reunindo grupos populares, às vezes indígenas ou negros.
O fenômeno edilício mais importante foi a formação espontânea de subúrbios, menos prósperos, povoados em princípio por esses e outros grupos marginalizados. Nos outros dois séculos subseqüentes, outros bairros ou “doutrinas” agregaram-se aos previstos no traçado original do México, projetado por Alonso García Bravo, os mais importantes dos quais foram o de Santa Cruz e o de Santiago Tlatelolco. Em Lima, constituíram-se dois novos bairros: a reserva indígena do Cercado e, sobretudo, o “arrabalde de San Lázaro”, que surgiu do outro lado do rio Rimac por obra dos índios “camaroneiros” e onde pouco depois foi instalado um hospital para leprosos. Em Salvador, agregou-se a cidade baixa à cidade alta original, no extremo da Ribeira. E Recife, que nascera como uma aldeia de pescadores ao lado de Olinda e se transformara em uma cidade graças aos holandeses, voltou a ser um subúrbio depois da reconquista portuguesa quando seus habitantes conseguiram que se reconhecesse a sua importância.
Apesar de sua lentidão e parcimônia, o desenvolvimento das cidades deu-se, na realidade, com a sua progressiva criação. Ao organizar-se e regularizar-se a vida através das atividades cotidianas, começaram a aparecer necessidades inadiáveis às quais urgia atender, sobretudo nas cidades importantes. Talvez com dois ou três mil habitantes, uma cidade pudesse viver sem regular seu crescimento e organizar seus serviços; porém, aproximando-se dos dez mil, ou ultrapassando este número, ficaram a descoberto as deficiências que conspiravam contra a vida urbana. A resposta a isso foram algumas tentativas urbanísticas de certa magnitude. A Cidade do México, por exemplo, assentada numa lagoa, descobriu o enorme problema das inundações, pois ao fundar-se essa cidade hispânica, alterara-se a drenagem natural. As primeiras ocorreram em 1553 e repetiram-se várias vezes sem que se atinasse outra coisa senão atenuar as conseqüências. Nesse ínterim, no começo do século XVII, quando o vice-rei Montes-claros realizou a obra do aqueduto de Chapultepec para abastecer a cidade de água, projetou-se também e se pôs em execução uma extensa obra de esgotos que se prolongaria durante mais de um século. O abastecimento de água foi preocupação de todas as cidades, resolvido com a instalação de fontes públicas nas praças; porém os esgotos urbanos – simples canaletas abertas que corriam pelas ruas – não melhoraram. Houve também preocupação nas capitais com a pavimentação de algumas ruas; no México, além disso, foram feitos canais e bueiros, e pontes para cruzar os canais. O próprio Montesclaros – que do México foi para o Peru como vice-rei – fez construir em Lima, em substituição às que haviam sido derrubadas, uma nova ponte sobre o Rimac com pilares de pedra e arcos de alvenaria, concluída em 1610.
Só nessas cidades surgiu uma preocupação em melhorar o seu aspecto, atendendo ao modelo das cortes metropolitanas. Porém, partia-se das coisas mais rudimentares. Foi um grande passo retirar o pelourinho da praça principal e evitar o espetáculo, não das execuções que atraíam o público, mas dos cadáveres que ficavam expostos no lugar mais central da cidade. Quando se quis enobrecer a cidade, como observou certo cronista, pensou-se em criar lugares de entretenimento. México, Guatemala Antigua e Lima orgulharam-se de suas alamedas: e na primeira, inclusive, era costume desde os tempos do vice-rei Luis de Velasco ir passear no bosque de Chapultepec. Porém, foi em Recife, durante a administração holandesa de Maurício de Nassau, onde se tentou uma remodelação completa da cidade, segundo o plano de Peter Post.
A rigor, o que mudou o aspecto das cidades, ao longo dos dois primeiros séculos posteriores à fundação, foi o surgimento de uma arquitetura de certa categoria. Referindo-se a Lima, em 1629, o padre Bernabé Cobo escrevia:
A estrutura das casas, geralmente, é de tijolos; as primeiras casas construídas são de alvenaria ordinária, cobertas de esteiras tecidas de bambu e madeira tosca de mangue, e a fachada principal e os pátios, com pouco luxo e esmero, embora muito grandes e espaçosos; depois, foram demolindo quase todas as casas daqui e construindo outras mais caras com madeiramentos fortes e diferentes, de grossas vigas e tábuas resistentes de carvalho, com toda inovação que o primor da arte pôde oferecer; agora, são poucas as cobertas por esteiras, por causa das garoas, que quando são abundantes, costuma vazar água dos tetos de esteiras e encher as casas de goteiras; as construções de cantaria são escassas, pela grande falta que há de materiais, porque não se encontra em todo este vale pedreira boa de onde se possa tirar a pedra para lavrar, e por este motivo a que se utiliza é, na maior parte, trazida pelo mar do Panamá, a quinhentas léguas, de Arica, duzentas, e de outras terras remotas.
A Cidade do México, erguida à custa da destruição dos templos de Tenochtitlán, não teve esse problema: “Ali morreram muitos índios” – dizia frei Toribio de Benavente – “e demoraram muitos anos até conseguirem arrancar a base, de onde saiu uma infinidade de pedras”. Com elas, os senhores fizeram aquelas casas que, em 1554, provocavam a admiração de Cervantes de Salazar: as da rua Tacuba, a respeito das quais um dos personagens de seus Diálogos dizia: “São todas magníficas e feitas com grande dificuldade, como corresponde a habitantes tão nobres e ricos. Por causa da sua solidez, qualquer pessoa diria que não se tratava de casas mas, sim, fortalezas”. E de todas elas, as que mais pareciam um verdadeiro castelo eram as chamadas “casas velhas de Cortés” – “que não é um palácio, mas outra cidade” situadas em frente à Plaza Mayor.
Além do México, houve abundância de pedras também em outras cidades, como Cuzco e Quito. No entanto, construíram-se, com adobe, tijolo e madeira, boas moradias em outras cidades. No início do século XVII, Santiago do Chile, segundo González de Nájera, tinha trezentas destas, e “muitas e muito nobres casas de filhos e descendentes de conquistadores”. Em Tunja, o fundador Gonzalo
Suárez Rendón, o escrivão do rei Juan de Vargas e outros encomenderos e funcionários ergueram as suas. E na Guatemala Antigua foram construídas as casas de Bernal Díaz del Castillo, do ouvidor Luis de las Infantas y Mendoza e outras alinhadas na rua que, por seu porte, foi chamada da Nobreza, tal como relatava frei Tomás Gage, em 1639. Nem a casa dos Ponce, em San Juan de Puerto Rico, chegou a ser construída em pedra apesar de assim ter sido projetada originalmente.
“Em grandeza e esplendor, os edifícios públicos superam os particulares”, dizia o padre Cobo sobre Lima. O mesmo podia-se dizer das demais cidades. Contudo, o palácio vice-reinol de Lima não era uma obra suntuosa e, embora fosse um pouco melhor, o do México também não o era até o seu incêndio, em 1692. Porém no ano seguinte começou a nova construção que pôde ser habitada quatro anos mais tarde e que revelou certa grandeza. Não faltou estilo ao palácio dos Capitães Gerais da Guatemala Antigua, nem aos palácios de Recife ou de Salvador; porém, ao contrário, as sedes dos governos de Bogotá, Caracas, Assunção e Buenos Aires foram muito modestas. Durante estes séculos, os edifícios dos cabildos, situados geralmente em frente à Plaza Mayor, assim como as sedes governamentais, também foram modestos.
Todas as preocupações arquitetônicas concentraram-se nos prédios religiosos. O traçado original da cidade, que era vazia, encheu-se rapidamente de igrejas, conventos e colégios, que ocuparam grande parte da superfície urbana. No começo do século XVII, Alonso González de Nájera, fazendo alusão a uma pequena cidade como Santiago do Chile, dizia que ela possuía aproximadamente trezentas casas e “quatro mosteiros de frades, dois de freiras e um colégio”; e a respeito da mais importante das cidades das Índias, Bernardo de Balbuena listava, ao longo de todo um capítulo de sua Grandeza mexicana, as numerosas fundações religiosas. Assim, em pouco tempo, algumas cidades alcançariam o ar peculiar que conservam Cholula, Salvador, Puebla e Quito, cheias de construções religiosas, ou uma disposição urbana ímpar que propicia a implantação de uma grande construção religiosa no cerne da cidade, como é o caso de Tlaxcala, com o convento de San Francisco, e dos conventos fortificados do Carmo, um na Bahia e outro em Olinda; a imensa área do convento de Santa Catarina – quase uma cidadela –, em Arequipa, ou o Colégio dos Jesuítas, em São Paulo, núcleo da cidade.
A catedral ou igreja matriz foi a primeira coisa que se procurou erigir depois de fundada a cidade. Por certo, a casa-forte veio em primeiro lugar. Por isso, em 1554, quando as quase fortalezas dos primeiros povoadores do México já surpreendiam, um dos interlocutores de Cervantes de Salazar podia revelar: “Dá pena que em uma cidade cuja fama não se compara a nenhuma outra, e com uma vizinhança tão rica, se tenha erguido no lugar mais público um templo tão pequeno, humilde e pobremente adornado”. Entretanto, na mesma época, o arcebispo tinha uma “casa com elegantes portais e cujo terraço possui duas torres nos extremos, muito mais altas que a do centro”, tão sólida que se podia dizer que: “Nem com minas a derrubarão”.
Porém, à medida que as circunstâncias o permitiram, a catedral foi construída; e quando desmoronava – o que ocorreu com freqüência era erguida outra vez, mais bem-projetada, mais sólida e enriquecida. No final do século XVII ou princípio do XVIII, Santo Domingo, Guadalajara, La Paz, México, Salvador, Chuquisaca, Trujillo, Puebla, Lima e Cuzco já possuíam magníficas catedrais, sendo que as três últimas são originariamente do arquiteto Francisco Becerra. Erguidas em frente à Plaza Mayor, as catedrais chegaram a ter, uma vez concluídas as suas torres e pórticos, um volume tão imponente que dominavam o âmbito urbano. A decoração externa e interna levou anos, e tanto nela quanto na própria construção trabalharam não só os artesãos espanhóis, como também os filhos da terra que aprendiam o ofício. Para as artes da edificação, os franciscanos de Quito criaram uma escola na qual os índios as estudaram profundamente.
Entre as diversas ordens desencadeou-se uma acirrada disputa para impor sua influência nas cidades. Franciscanos, dominicanos, carmelitas, agostinianos, mercedários e jesuítas obtiveram, desde os primeiros tempos e em quase todas as cidades, imensos terrenos onde ergueram conventos e igrejas. Doações e esmolas ajudaram nestas obras que, nos dois séculos seguintes às fundações, impuseram um ar conventual às cidades fidalgas. Os franciscanos edificaram em Quito um conjunto arquitetônico de quase trinta mil metros quadrados, composto pelo convento e por três igrejas adjacentes: San Francisco, San Boaventura e a chamada Cantuna. Em relação ao convento construído no México, frei Agustín de Vetancourt dizia que
(…) tem quase trezentas celas onde, entre prelados, moradores, doentes e hóspedes, moram normalmente cerca de duzentos frades, sobrando ainda celas altas, baixas e intermediárias para outros tantos, todos eles acomodados e sem distinção de hierarquia, enquanto as moradias são ordenadas de acordo com a condição dos indivíduos, com seus corredores e gabinetes necessários a todos.
No convento de Tlaxcala, além do convento, havia também a igreja de La Asunción, a capela aberta do Santo Sepulcro, o hospital e, no enorme átrio, o campanário, sendo todo o conjunto fortificado como uma cidadela. Não menos grandioso foi o convento de Puebla, e não faltaram também importantes construções em cidades como La Paz, Lima, Salvador da Bahia, Cuzco, Bogotá, Sucre, Arequipa, entre outras.
Os dominicanos estiveram presentes também na distribuição original de solares e neles ergueram templos e conventos. Em Puebla, a igreja alcançou uma qualidade artística excepcional, especialmente na capela do Rosário. No México, o conjunto se abria sobre a pequena praça de Santo Domingo cercada com pórticos. Em Lima, Quito, Oaxaca, Cuzco, Santo Domingo, Salvador da Bahia, como em tantas outras cidades, o conjunto arquitetônico comprovava a riqueza e a influência da ordem. Um pouco menor foi a relevância dos conventos das outras duas irmandades mendicantes – carmelitas e agostinianos porém, apesar disso, construíram inúmeras igrejas e conventos, como, por exemplo, os de Carmen, de Quito, e os de San Agustín, de Lima, Quito e Bogotá, centros religiosos muito importantes na vida da cidade e monumentos de extraordinário valor artístico. Os mercedários, por sua vez, ergueram ricos templos em Lima, Quito e Cuzco.
A Companhia de Jesus também teve uma influência muito forte, e seus templos e colégios assim o comprovaram. De extraordinária repercussão estética foram as igrejas que a Companhia levantou em Guanajuato, Quito ou Potosí. Porém, foi em Cuzco onde a igreja dessa Companhia adquiriu relevo maior, não só por sua impressionante fachada, como também por sua localização, quase desafiando a catedral.
Outras e numerosas igrejas povoaram as cidades, e cada uma delas atraiu a devoção particular de certos grupos de fiéis. A medida que o tempo passava, aumentavam em número, investindo-se nelas altas quantias. Balbuena, em sua Grandeza mexicana, referindo-se aos bens imóveis e ao valor venal das construções religiosas no México, dizia:
Suas fundações, dotação e renda
de que algarismo comporá a soma
por mais letras e zeros que consinta?
E elas se multiplicavam de tal maneira que, em 1664, a prefeitura da cidade pediu ao rei que fosse proibido às ordens religiosas fundar mais conventos e comprar novas terras.
De fato, as construções religiosas imprimiram seu selo à cidade fidalga, sem comparação possível com a arquitetura civil. Elas revelavam o significado eminente da Igreja no seio dessa sociedade e as características fundamentais da mentalidade de suas classes altas. Mas, além disso, revelaram alguns fenômenos sociais e culturais importantes, dado que os estilos arquitetônicos corresponderam tanto à gravitação da influência peninsular quanto às condições próprias da cidade e da região. Para a catedral de Santo Domingo, por exemplo, adotou-se o estilo isabelino e não faltaram tentativas de introduzir o plateresco. Contudo, a primeira influência importante foi a do estilo herreriano e, a rigor, a definitiva foi a do barroco. E não apenas porque produziu o maior número de obras arquitetônicas importantes, mas porque ofereceu um esquema geral, tanto construtivo quanto decorativo, no qual couberam todas as possibilidades de expressão surgidas nessa nova sociedade que se estava constituindo no Novo Mundo. Houve, portanto, muitas obras barrocas, muitas delas imitação mais ou menos fiel de seus modelos peninsulares, e, além disso, formas que surgiam espontaneamente da criação e que configuram o barroco mestiço: a igreja de San Lorenzo de Potosí – com a imagem indígena de São Miguel –, a da Misericórdia de Olinda e a de Santo Domingo de Puebla expressaram em grau supremo essa aliança do gênio peninsular e da imaginação indígena.
A rigor, poder-se-ia entender que de certo modo, embora remoto, a aparição de um barroco mestiço prenunciou certa crise da sociedade barroca: uma classe alta hispânica, que tolera uma virgem morena, está anunciando que assimilou alguns elementos das culturas vernáculas: as comidas, as festas, as músicas, o vestuário, alguns costumes e talvez certas superstições que equivalem a idéias. Sem dúvida, isto ocorreu em muitas cidades, e não foi alheia a essa mudança a corja de serviçais que constituíam o entorno da vida doméstica e participavam da criação e educação dos filhos, e possivelmente também uma nuvem de mulheres com as quais os adolescentes aprendiam os segredos do amor, e os homens maduros os praticavam. Convivência e trato acabaram ensinando a muitos que as “castas” eram compostas também de seres humanos, e que até a Virgem e São Miguel podiam ter o rosto acobreado; porém, admiti-lo era reconhecer um ponto fraco na concepção da sociedade barroca das Índias. A devoção do Senhor dos Milagres, em Lima, da Virgem de Guadalupe, no México, e do Senhor dos Tremores, em Cuzco, contribuiu para essa crise.
O Senhor dos Tremores, sobretudo, e todas as imagens às quais lhes era atribuído poder para afastar as ameaças que pairavam sobre a cidade: terremotos, inundações, erupções vulcânicas. Por culpa delas, muitas cidades foram destruídas pelo menos uma vez e algumas, mais de uma vez. Porém, poucas foram abandonadas; e quando as autoridades decidiram o traslado da Guatemala, muitos permaneceram no lugar que começou a ser chamado de Antigua, e houve, desde então, duas Guatemalas, apesar de, na verdade, existirem três. Longa é a lista das cidades que decaíram e tornaram a nascer, como Cuzco, em 1650, Guatemala, em 1717, ou Caracas, em 1641.
Restava a possibilidade de que a cidade sucumbisse a um ataque dos inimigos, em especial os portos, e, para evitá-la, começaram a ser construídos morros e castelos, como os de Havana, San Juan de Porto Rico, Vera Cruz, Cartagena ou Valparaíso. Talvez a envergadura da fortificação militar fosse a primeira construção importante da cidade. Depois dela, a partir do traçado incipiente, a cidade edificada podia crescer ou surgir.
5. Da mentalidade conquistadora à mentalidade fidalga
Submetidos aos conquistadores, os povos dominados suportavam com dificuldade a sua presença. O aparecimento dos estrangeiros significou para eles o seu aniquilamento como sociedade autônoma, e, a partir de então, tiveram de aceitá-los como os donos de seu destino. Os suicídios coletivos comprovam até que ponto tomaram consciência de sua desgraça. Houve os que se rebelaram e lutaram, sabendo que a luta era de morte. Porém, pouco a pouco, a resignação e o ódio propagaram-se. A submissão foi aceita e começaram a ser criados os mecanismos de adaptação, em especial por meio dos mestiços. Sobreviver e mesmo prosperar não era algo impossível se fossem achados os atalhos por onde se inserir na nova sociedade. E sobretudo na sociedade urbana, não foi difícil encontrá-los. No entanto, esses êxitos não dissipavam o ódio. Os dominados aceitaram as crenças que lhes eram impostas, mas traduziram-nas nos seus próprios termos e criaram, ao mesmo tempo, uma estranha simbiose entre o que era próprio e o que haviam assimilado: um dia, algum santeiro o expressaria plasticamente, enquanto muitos o expressavam verbalmente, alterando, talvez sem saber, o seu profundo caudal de sabedoria vernácula à luz dos ensinamentos recebidos. Porém, conservaram tudo o que fazia parte da sua vida cotidiana, suas roupas, sua forma de alimentar-se, suas louças e utensílios, sua forma de enfeitar-se, de curar as doenças, de cultivar, de comprar e vender no mercado, de saudar o outro, sua vida familiar, até onde o amo espanhol assim permitisse. Tudo isso foi conservado de uma maneira viva, sem dúvida, porém impregnada do sentimento de inferioridade que repentinamente a conquista suscitou neles. O traço predominante da sua mentalidade foi a desesperança, a atitude de uma sociedade vencida que não é dona de seu destino.
Os conquistadores eram os donos do seu destino, do destino dos dominados e do seu próprio, a respeito do qual tinham claras idéias e propósitos definidos: queriam possuir – para eles e para o seu rei – a terra, os bens e a mão-de-obra dominada; e desejavam isso com uma veemência quase atroz, com uma decisão irresistível. Era um desígnio simples, porém de alcance tão vasto que implicava uma opinião sobre o mundo no qual estavam inseridos. Era um mundo para ser possuído com o esquecimento imediato e total do que tivesse sido antes. E uma vez tomado para eles – todos os conquistadores, os de cada região, os de cada vale era possuído por cada um pessoalmente para poder ser, a partir desse momento, o senhor de seu domínio. A rigor, uma concepção épica da vida foi a primeira característica da mentalidade conquistadora.
Passado o momento crucial da conquista, evidenciou-se ser necessário inserir essa possessão dentro de uma ordem estável que a assegurasse e que garantisse também a condição de privilegiados que os dominadores adquiririam a partir desse momento. Essa ordem estável não podia ser obra de um apenas, nem de todos, mas do Estado – Espanha ou Portugal – que se garantia por sua retaguarda não só militar como também econômica e cultural. E essa ordem pressupunha, portanto, a organização de uma nova sociedade.
Sem dúvida, o conquistador possuía um sistema de idéias sociais das quais se havia impregnado em seu país de origem. Uma delas estava relacionada com a estreiteza do horizonte que ali possuía, e a amplitude que o horizonte do Novo Mundo oferecia. E após chegar ao Novo Mundo, ele criou uma imagem da sociedade que nele se constituía através do seu próprio esforço. Era, ao contrário da sociedade matizada de seu país de origem, uma sociedade brutalmente cortada em duas, na qual conquistados e conquistadores constituíam dois estratos justapostos sem interpenetrar-se, uma irredutível sociedade dual. O conquistador crioua nos fatos e depois justificou-a, transformando-a em um esquema totalmente válido. Era a condição necessária para aquilo que se havia proposto fazer, a conseqüência irreversível do que havia sido feito.
De repente, a Igreja e o Estado dos países de origem dos conquistadores começaram a questionar essa sociedade dual, ou melhor, alguns de seus aspectos. Os dominicanos deram o grito de alerta. Em um sermão pronunciado em Santo Domingo, no quarto domingo do Advento de 1510, em nome de toda a comunidade, frei Antón de Montesinos censurou os encomenderos por seu comportamento com os índios e questionou o seu direito a submetê-los a seu serviço:
Dizei: com que direito, com que justiça tendes em tão cruel e horrível servidão aqueles índios, e com que autoridade fizestes tão detestáveis guerras com estas pessoas que estavam em suas terras mansas e pacíficas, onde um sem-número delas consumistes com mortes e estragos inauditos? Como os mantendes tão oprimidos e fatigados, sem lhes dar de comer nem curá-los de suas doenças das quais acabam morrendo devido aos excessivos trabalhos que lhes dais e, melhor dizendo, os matais, para extrair e adquirir ouro a cada dia? (…) Eles não são homens? Não têm espírito racional? Não sois obrigados a curá-los como a vós mesmos?
Começava então uma longa polêmica entre os encomenderos, de um lado, e um setor de frades e teólogos, de outro, que receberam afinal o apoio do Estado. As leis de Burgos de 1512, primeiro, e as Novas Leis de 1542, depois, englobaram os pontos de vista críticos dos frades; porém, junto a outras disposições, contribuíram somente para fortalecer a proteção pessoal dos índios e sua catequese, sem que pudessem minar os fundamentos da sociedade dual. Bartolomé de Las Casas, Juan de Zumárraga, Vasco de Quiroga, Lázaro Bejarano, Motolinía, Pedro Claver, Francisco Solano, Antonio Vieira, Diego de Avendaño, entre tantos outros, foram advogados e justos defensores dos índios e, alguns, dos negros: converteram-nos, educaram-nos, protegeram-nos contra os maus-tratos até onde chegava a sua força e sua influência, curaram-nos e tentaram proporcionar-lhes uma boa morte. Porém, nem a Igreja nem o Estado, apesar da tenacidade que muitos funcionários imprimiram para fazer cumprir as leis protetoras, conseguiram que a proteção ultrapassasse os limites das necessidades da exploração econômica.
Os encomenderos consideraram excessivas algumas medidas estatais; mas, na verdade, elas mal vulneraram os seus direitos e os seus interesses. O Estado procurou, com certeza, educar os filhos dos caciques e tratou com certa diferença determinados membros ilustres das famílias indígenas. Contudo, enquanto isso, os juristas peruanos, estimulados pelo vice-rei Toledo, preocuparam-se em demonstrar a ilegitimidade dos incas. E as rebeliões indígenas foram reprimidas com exemplar dureza, enquanto todas as precauções eram tomadas para assegurar a subsistência da nova sociedade, proibindo, por exemplo, que os índios portassem armas. A sociedade dual foi um princípio inalterável, sustentado pelo Estado e fortalecido pela aceitação das obrigações impostas pelos sentimentos caritativos, com os quais eram deslindadas as responsabilidades morais: foi a segunda característica da mentalidade conquistadora.
De qualquer maneira, os conquistadores aferrados a essa concepção da sociedade não puderam assimilá-la com exatidão aos esquemas que traziam de seus países de origem. A deles era absolutamente original quanto a seus componentes sociais, e, sobretudo, mais flexível. Os conquistadores acreditaram que precisamente para moldá-la necessitavam de certa margem de independência, não apenas por causa da novidade dos problemas mas também pela distância das metrópoles. Sem dúvida, tiveram, de fato, essa margem de independência; porém, sentiram-se convocados a prestar contas ou foram reprimidos energicamente por um poder que caminhava para o absolutismo e que era, além disso, muito meticuloso e casuístico. A sua resposta foi barroca – pré-barroca e como uma antecipação do monólogo de Segismundo –, expressa na fórmula “acata-se, porém não se cumpre”.
Se o princípio da sociedade dual foi um dos aspectos fundamentais da visão conquistadora da sociedade, a ressalva entre acatamento e cumprimento foi o da sua visão da ordem política do Novo Mundo. “Acatar” correspondia à necessidade de reconhecer o marco de autoridade estabelecido pelas potências imperiais, sem o qual o Novo Mundo não podia subsistir; “não cumprir” correspondia à perduração da concepção política da vontade popular de tradição medieval e comuneira, fortalecida tanto pela doutrina jesuítica expressada por Suárez e Mariana quanto pela singular experiência da conquista, que exigia independência e decisões adequadas às circunstâncias. O respeito à vontade popular – entendendo-se por povo o grupo conquistador – foi a terceira característica da mentalidade conquistadora. E assim como a coroa aceitou o princípio da sociedade dual, aceitou também dentro de certos limites o princípio do respeito à vontade popular.
Por certo, as metrópoles cortaram drasticamente, com violentos atos de autoridade, todas as tentativas de ultrapassar as margens de independência consentidas: assim caíram Gonzalo Pizarro, Lope de Aguirre e Álvaro de Oyón. Porém, as margens de independência vigoraram na medida adequada ao processo político fundamental que se produziu pouco depois de ocupada a terra e fundadas as cidades e que consistiu em transformar o mundo dos conquistadores em um mundo de funcionários e a sociedade épica das aventuras na sociedade barroca da colonização: foi a etapa que Mendoza e Velazco, Hurtado de Mendoza e Toledo, Tomé de Souza e Mem de Sá encetaram.
Esta metamorfose acentuou-se e consolidou-se à medida que os conquistadores se extinguiam e os seus descendentes herdavam seus direitos e privilégios. Talvez a existência de Hernán Cortés, durante seus últimos anos no México, ou os últimos anos de Diego Losada, no El Tocuyo, simbolizem esta transição. Daquele momento em diante, a sociedade do Novo Mundo seria de colonizadores, submissos à autoridade dos funcionários coloniais e orgulhosos do poder da metrópole.
Notou-se, ainda mais do que antes, uma acentuada subestimação pelo mundo americano. A América não era um lugar para criar raízes, mas um lugar de passagem, para obter-se riquezas e alcançar uma posição social, que se esperava desfrutar na metrópole. Um baiano do século XVII, frei Vicente de Salvador, já dizia em sua História do Brasil:
Deste modo, há povoadores que, por mais arraigados que estejam à terra, pretendem levar tudo para Portugal, porque tudo o que querem é para lá, e isto não vale apenas para os que de lá vieram como também para os que aqui nasceram, pois tanto uns quanto os outros aproveitavam a terra, não como senhores, senão como usufrutuários, e só para desfrutá-la, e por isso deixam-na destruída.
A ilusão do retomo medeia não só o valor atribuído ao Novo Mundo como também o grau de compromisso e solidariedade que o homem peninsular tinha naquele tempo com a terra onde estava estabelecido. Aqueles que queriam tudo para lá, não queriam nada para cá, para a nova sociedade que eles mesmos haviam constituído e da qual faziam parte. Porque o que queriam dizia respeito a cada um deles e a sua aventura pessoal.
Quando o conquistador se transformou em colonizador, o aspecto mais vigoroso da nova mentalidade foi a ideologia da ascensão social. Sem dúvida, era uma ideologia, porque encarnava uma imagem da sociedade e do papel e das possibilidades com que o indivíduo contava. A sociedade devia servir para que o colonizador se enriquecesse e alcançasse uma posição social respeitável, para que fosse reconhecida a sua condição de senhor. Padre Antonil, no começo do século XVIII, referindo-se ao Brasil, escrevia:
Ser o dono de uma plantação era uma honra à qual muitos aspiravam porque tal título exige ser servido, obedecido e respeitado por muita gente. E se fosse, como deve ser, um homem de riqueza e habilidade administrativa, a estima que se atribui a um dono de plantação no Brasil iguala-se ao apreço que os fidalgos do Rei têm por seus títulos.
Esse direito a ser respeitado como um fidalgo correspondia ao direito de mandar, ao direito de possuir privilégios que outros não tinham. Eram as manifestações concretas do processo de senhorialização que ocorreu entre os colonizadores, em virtude do qual aquele que havia alcançado o fruto de seu esforço conseguia de uma só vez o decoro que os fidalgos de Portugal e da Espanha ostentavam, respaldado por cinco ou dez gerações de senhores. Porém, à medida que o tempo passava, o importante não foi a glória herdada do fundador da linhagem, nem sequer a posição que graças a ela seus descendentes haviam alcançado, mas a força multiplicadora que a ordem imperial dava a tudo isso, o sistema que as metrópoles haviam instituído, incluindo um vasto caudal de façanhas individuais dentro de um quadro vigoroso e institucionalizado que gravitava decididamente na política do mundo.
A aceitação da ordem foi o reconhecimento desse rigoroso sistema que Manuel I, João III e dom Sebastião, em Portugal, bem como os Reis Católicos e os primeiros Áustria, na Espanha, elaboraram. Era um sistema político absolutista, centralizado, no qual o vassalo se sentia orgulhoso de sua incondicional obediência a um soberano a respeito do qual sabia, no entanto, que às vezes era dominado por validos que o governavam ou que estava dominado por círculos áulicos que manipulavam o poder segundo seu arbítrio. No entanto, o poder absoluto era a garantia do conjunto do sistema, ninguém podia questioná-lo e, muito menos, a periferia colonial do império. A rigor, por trás dessa estrutura de poder estava o sistema ideológico da Contra-Reforma, que não só abastecia de fundamento doutrinário o poder político como também a ordem social, tanto nas metrópoles quanto no mundo colonial: foi ela que inspirou e promoveu a formação de uma sociedade barroca.
Mas a sociedade barroca das Índias não pôde sustentar o pano de fundo ideológico que a Contra-Reforma e o absolutismo europeu impunham às metrópoles. Nas Índias, havia se constituído uma sociedade barroca como conseqüência da conquista, porém não era uma sociedade análoga à européia, mas, apenas, uma sociedade homóloga. E como os elementos que a integravam eram essencialmente diferentes, o seu processo de transformação tornava-se uma constante ameaça à ordem formal. A ideologia colonizadora atinha-se à ordem formal, porém a experiência de cada dia revelava o diferente curso que cada um dos elementos seguia. No próprio âmago da classe dominante, a diferença entre peninsulares e criollos introduziu uma constante instabilidade. A relação entre o pai espanhol e o filho criollo parecia comprometer fatalmente a unidade do grupo branco; e se a oposição foi visível quando o pai era conquistador, foi mais visível e mais difícil de afastá-la quando o pai passou a ser, meramente, um funcionário ou um comerciante. Isso ocorreu porque, pouco a pouco, ao contrário do homem peninsular, o criollo foi adquirindo com a terra um compromisso cada vez mais vivo, que entranhava a consciência do enraizamento e que se fortalecia geração após geração. Os mestiços, por sua vez, contribuíam para a instabilidade no seio das classes dominadas porque instalavam uma ponte subreptícia entre os dois grandes setores sociais, não só pela proteção que podiam obter de seus pais ou parentes brancos como também por sua aptidão para cumprir as funções práticas de intermediários entre aqueles. Para sustentar vigorosamente o sistema colonial, era necessário apegar-se às formas, porém não se podia esquecer que era a força que o sustentava.
Essa união de apego às formas e de apelo à força configurou a mentalidade dos colonizadores transformados em fidalgos. A fidalguia era na península a expressão de uma imagem do homem que enterrava as suas raízes profundas na estrutura feudal, mas que havia superado não só a etapa baronial como também as etapas cavalheiresca e cortês, para elaborar um modelo adequado à nova concepção monárquica, dentro dos princípios que a partir do século XVI seriam chamados de “cortesãos”, com evidente reminiscência itálica e renascentista. O fidalgo devia viver para o seu próprio decoro e para testemunhar a vigência da dignidade do homem, como o declaravam os humanistas italianos e os livros de cavalaria, como o expressava Fernán Pérez de Oliva, em seu Diálogo sobre la dignidad del hombre, ou como o recomendava Baltasar de Castiglione, no livro intitulado, justamente, El cortesano. Neste último, advertia-se que esse decoro e essa dignidade não eram mais os do belicoso barão altivo, nem sequer os do senhor refinado que se satisfazia em receber em seu castelo as damas e os cavalheiros, os quais recepcionava com as artes de trovadores e poetas depois que seus pares tivessem provado a sua habilidade em um elegante torneio ou em uma perigosa caçada; eram o decoro e a dignidade do cavalheiro que havia perdido os últimos resquícios de sua velha soberba e aceitava ocupar seu posto em uma sociedade severamente hierarquizada que era presidida por um monarca ou um grande senhor, da qual tinha a certeza do respeito à sua dignidade e ao seu decoro e, além disso, da possibilidade de mercê, para cuja obtenção não eram denegridoras a súplica submissa e a humilde e exagerada relação dos serviços prestados. O âmbito dessa sociedade era a corte, cerimoniosa, escrava de uma etiqueta rígida, severa nas formas, porém minada pelo jogo das intrigas e dos desejos e movida sempre pela esperança de alcançar o favor real ou pelo temor de perdê-lo. No século XVI, o português Gil Vicente e a anônima Epístola moral espanhola, referiam-se a essa corte:
Fábio, as esperanças cortesãs
prisões são onde o ambicioso morre
e onde ao mais astuto nascem cãs.
Transplantada para as Índias, a mentalidade fidalga exagerou alguns aspectos e modificou outros. No Brasil, durante os séculos XVI e XVII, manteve-se presa à vida rural; porém, pouco a pouco, deslizou para formas urbanas, como as que prevaleceram na América Hispânica desde o início. Um fidalgo que não aceitasse as novas regras da cortesania era possível na península porque tinha o refugio de um mundo rural coerente com a sua própria cultura e a sua tradição. Porém, nas Índias, o mundo rural não podia ser favorável ao homem peninsular, pois era ali onde a tradição da terra tinha mais força. Que repercussão e que valor podia ter para o mineiro ou para o encomendero a arcádica nostalgia das Églogas de Garcilaso ou de Sá de Miranda, o convite ao plácido retiro de frei Luis de León ou as reflexões de Antonio de Guevara sobre Menosprecio de corte y alabanza de aldea? Com certeza, Gregório de Matos repetiu esses temas no Brasil, elogiando a doce vida rural e execrando a da corte baiana do final do século XVII:
Se estando lá, na corte, tão seguro
Do néscio impertinente, que porfia,
A deixei por um mal que era futuro:
Como estaria, vendo na Bahia,
(Que das cortes do mundo é vil mentira)
Os roubos, a injustiça, e a tirania?
Porém, não foi a tônica geral porque, um século antes, o padre Anchieta, falando sobre a mesma cidade, já assinalava que no inverno, de abril a junho, “reabriam-se as ‘moradas nobres’ das ruas mais centrais, reanimava-se o comércio da praia com o embarque do açúcar, toureava-se no Terreiro, saíam as procissões, e tudo era animação e movimento”. E sabe-se que os senhores foram habituando-se cada vez mais a residir em suas casas citadinas.
Essa tendência predominou desde o princípio na América Hispânica. A rigor, era uma opinião aceita de que a cidade constituía o instrumento específico da dominação. Sobre esse esquema, havia se formado a mentalidade fundadora, e a experiência parecia apoiá-lo. A medida que crescia e se firmava, a cidade cumpria com maior eficácia seu papel de projetar e presidir a expansão regional, subordinando de modo evidente o mundo rural ao urbano. E cada vez mais a cidade aparecia como um reduto do estilo europeu de vida – no qual, pouco a pouco, se encaixavam os grupos de origem não européia que se formavam ao passo que os campos conservavam escondidos os ressábios da vida primitiva e ofereciam fácil refúgio para todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, pretendiam esquivar-se da ordem colonial.
A medida que os colonizadores se transformavam em fidalgos, inclinavam-se a reproduzir, de algum modo, o modelo da corte peninsular. Sem dúvida, não ignoravam a dura realidade da cidade colonial, que não era senão projeção de seus próprios interesses, tão amargamente enunciados por Balbuena:
Por todas as partes a cobiça a rodo,
que já quanto se trata e se pratica
é interesse de um modo ou de outro.
Não obstante, foi próprio da mentalidade fidalga – e não só nas Índias – apegar-se a essa concepção de vida – equiparável ao sonho –, segundo a qual se podia quase apagar a dura realidade, encobrindo-a com a ampla ficção do grande teatro do mundo. Nas Índias, a mentalidade fidalga foi decididamente urbana, porém não se alojou no modelo da cidade mercantil e burguesa, mas, sim, no da corte: uma corte precária, quase imperceptível através da lama e da pestilência das ruas, dos terrenos baldios, das igrejas ambiciosas porém inacabadas, das castas desprezadas, mas cuja precariedade encobria uma grande estrutura que regia a convivência das classes altas e graças à qual um sistema de vida nobre funcionava, convencionalmente, para elas.
A imagem dessa corte potencial, subjacente nas cidades, inclusive nas mais humildes, enriquecia-se nas evocações das grandes capitais vice-reinais até constituir um modelo retórico. Por certo, não faltou o cronista cético ou o poeta satírico que revelasse a picaresca urbana: o judeu português que descreveu as cidades do vice-reinado peruano, o limenho Juan del Valle y Caviedes, o baiano Gregório de Matos e até o próprio Juan Rodríguez Freyle, de Santa Fé. Porém, a maioria dos cronistas, geralmente religiosos e inseridos no mundo fidalgo, e também os viajantes, esmeraram-se em destacar, em sua descrição das cidades, essa serena dignidade da vida nobre que viam, ou acreditavam ver, acomodada em um cenário modesto, porém altivo. Nem sempre se fala da virtude, mas sim do brilho cortesão, das atitudes senhoriais, do decoro harmonioso com que os fidalgos se sobrepunham às duras contingências da vida. Essa idealização extremou-se particularmente nos poetas Bernardo de Balbuena e Juan de Castellanos e no humanista Francisco Cervantes de Salazar.
No entanto, como era decididamente urbana, a mentalidade fidalga sofreu os embates da realidade das cidades. Os fidalgos desprezaram os comerciantes, porém uma vaga opinião generalizada burlava-se das desmedidas pretensões dos fidalgos. O fidalgo pobre foi o que pôs à prova o vigor de suas convicções e, embora se empenhasse em manter as aparências de seu suposto modo de vida, a burla o acossava e ainda era perseguido pelas possibilidades que surgiam se optasse, afinal, por aceitar as condições reais em que a riqueza fosse possível. Assim, começou a filtrar-se outra maneira de entender a vida entre as frestas que os senhores haviam elaborado, que acabou constituindo-se em uma nova forma de mentalidade: burguesa de modo inequívoco, em algumas circunstâncias, ou fidalgo-burguesa, em outras, quando começou a parecer compatível o exercício de atividades econômicas com a manutenção de certas formas de vida que exteriorizavam a posse de velhos privilégios.
Notas
1. Tianguis: mercado pequeno, sobretudo aquele que se instalava, na rua, de maneira periódica. (N. do T.)
2. Parián: nome de um mercado popular, atualmente dedicado ao artesanato. (N. do T.)
3. Volantes, carzahanes, primaveras: veículos modestos de transporte de fins do século XVII, na Cidade do México. (N. do T.)
4.
AS CIDADES CRIOLLAS
Limitadas dentro do âmbito metropolitano, mas alçadas ao mundo mercantilista, as cidades latino-americanas começaram a voltar-se, a partir da segunda metade do século XVIII, para esse cenário no qual se desenvolvia uma economia mais livre, prosperava uma sociedade cada vez mais aberta e mais aburguesada e vigoravam novas idéias sociais e políticas. Pouco a pouco, a resistência do cerco que as mantinha encerradas dentro das idéias e das formas de vida de suas metrópoles diminuía, e o impulso que novas formas econômicas adquiriam desencadeava nos portos e nas capitais atividades novas e, com elas, novas atitudes naqueles que as promoviam e as colocavam em prática. O comércio foi a palavra de ordem para aqueles que desejavam sair de uma estagnação cada vez mais anacrônica: era como se a riqueza tivesse adquirido uma nova forma à que se deveria aderir definitivamente se se quisesse adotar o caminho do progresso.
O progresso foi também uma palavra de ordem. No entanto, não entrava com facilidade no vocabulário dos grupos fidalgos que dominavam as cidades barrocas. Para eles, a economia era imóvel e a sociedade também deveria sê-lo. A palavra começou a circular entre os grupos sociais que se constituíam por entre os interstícios da sociedade barroca e que alcançaram considerável força em poucas décadas. Peninsulares ilustrados ou apenas comerciantes chegados ao instaurar-se o comércio livre identificaram a liberdade mercantil com o progresso e manifestaram-se progressistas até descobrirem os reflexos que essa atitude poderia ter nas colônias. Nelas, a palavra progresso adquiriu um sentido muito mais explosivo do que nas metrópoles, e aqueles que a pronunciaram com a intenção de afirmar uma decidida vontade de mudança foram sobretudo os burgueses e os criollos, ou melhor, a incipiente burguesia criolla, cuja formação como grupo social sacudiu a sociedade tradicional, imprimindo-lhe características inéditas.
Por certo, a sociedade latino-americana revelou naquele momento que havia sofrido uma transformação silenciosa e que toda ela havia começado a se acriollar. Porém, nem todos os setores aproveitaram a mudança do mesmo modo. Foram as burguesias urbanas, cada vez mais inequivocamente criollas, as que conquistaram logo uma posição de vanguarda e constituíram, no final do século XVIII, a primeira elite social enraizada que as cidades latino-americanas conheceram. Seus membros sabiam que não estavam de passagem, que o seu destino não volar às metrópoles para desfrutar nelas a riqueza obtida, mas permanecer em suas cidades e nelas impor os seus projetos econômicos, suas formas de vida e sua mentalidade. Sentiam-se comprometidos com a sua cidade e sua região e, por isso, assumiram com firmeza o papel de elite: pouco tempo depois, pensaram na independência política e a alcançaram através de revoluções urbanas que eles mesmos encabeçaram.
Com a ascensão das burguesias criollas, o sistema das cidades barrocas esfumou-se, embora deixasse algum vestígio que alimentaria um modelo nostálgico de cidade cortesã. Porém, meio século antes da independência, as cidades latino-americanas começaram a ser inequivocamente criollas e assumiram a sua realidade social e cultural. Por isso, começaram a ser autênticas e iniciaram o seu verdadeiro processo contínuo e coerente de desenvolvimento, deixando para trás a artificiosa estrutura da cidade fidalga.
Uma onda de mobilidade social manifestou-se logo. A sociedade que se supunha imóvel entrou em um acelerado processo de transformação do qual as agitações políticas de independência foram um sinal e uma etapa. Assim, o processo precedeu e sucedeu à independência. Segundo a sua intensidade e o grau de eficácia dos grupos que ascendiam, consolidou-se mais ou menos uma nova economia, e as cidades progrediram, estagnaram ou retrocederam em seu desenvolvimento, de acordo com as funções que lhes coube assumir no novo sistema. Por fim, quase todas adquiriram um ar definitivamente urbano porque a riqueza cresceu e foi suficiente para que casas particulares e edifícios públicos fossem construídos. A cidade tomou forma, e o horizonte da vida de seus habitantes ampliou-se.
I. Algumas cidades tiveram bibliotecas e jornais, porém por quase todas elas circulavam os livros e as idéias que naquela época sacudiam a Europa. A cidade criolla nasceu sob o signo da Ilustração e de sua filosofia. No calor dessas idéias renovadoras, tão caras à burguesia, a cidade acentuou a sua vocação ideológica. Tanto a vida urbana quanto a rural foram submetidas a análises e a diversos projetos: alguns moderados e outros extremados, quase todos encontraram partidários que apostaram neles com determinação. A cidade foi cenário de fortes tensões porque as ideologias expressavam as tendências sociais, econômicas e políticas de grupos instáveis que consideravam o poder como a garantia de um predomínio significativo. Houve tradicionalistas e progressistas, reformistas e revolucionários e, entre os revolucionários, moderados e jacobinos. As cidades ferveram em fogo lento até a independência e em fogo intenso depois dela.
1. A velha e a nova economia
Se ao longo do século XVIII ocorreram mudanças importantes na vida econômica, não foram precisamente nos sistemas produtivos. Naquele momento, quase nada mudou nas áreas rurais e mineiras, à exceção dos avatares da prosperidade ou da decadência de algumas regiões. Proprietários de terras e de minas desenvolviam suas explorações como antigamente, apesar das normas que regiam o trabalho de índios e de negros. Extinto o sistema da encomienda, na prática, o trabalho indígena continuava sendo servil; os escravos negros trabalhavam nas poucas e novas explorações que surgiram, como as de cacau, na Venezuela, ou as de açúcar, em Cuba. A rigor, tanto as plantações quanto as minas melhoraram a sua organização de alguma forma, pelo simples refinamento da rotina. E as cidades, por sua vez, foram influenciadas, em certa medida, pelo papel regulador que a comercialização dos produtos impunha. Alguns estímulos contribuíram para aumentar a produção para o mercado urbano: em primeiro lugar, o crescimento das cidades e de seu consumo interno e, em seguida, a divulgação de certas idéias relacionadas com o desenvolvimento da agricultura. Nas regiões pecuaristas, o crescimento dos rebanhos aumentou com facilidade a riqueza dos proprietários. E nas regiões mineiras, o surgimento de novos filões ou a sua extinção alterou de uma forma ou de outra a economia da região.
Com a independência e com as guerras que acompanharam o processo de organização da nova ordem política, a economia rural sofreu rudes golpes. Terras e minas trocaram muitas vezes de mãos, mas em todas foram sentidas as conseqüências da comoção social. A população rural agitou a sua marginalidade e, ao participar de guerras e revoluções, quebrou o ritmo tradicional de produção, algumas vezes com graves conseqüências. Episódios como o de Boves, na Venezuela, ou os que mais tarde agitaram as planícies, como no pampa rio-platense, tiveram profunda repercussão na vida agrária.
Porém, foi o desenvolvimento mercantilista o que mais profundamente modificou a ordem econômica. Sem dúvida, crescia o mercado interno – e de modo bem acentuado nas cidades –, criando uma expectativa considerável ante a possibilidade de se aumentarem as importações, que poderiam e deveriam ser acompanhadas de um incremento dos produtos de exportação. Porém, todo esse desenvolvimento possível contradizia o regime monopolista que as metrópoles mantinham. Fora do âmbito colonial, podia-se observar o crescente movimento comercial que se desenvolvia, do qual chegava às colônias apenas o refluxo que o contrabando permitia. Por essa via, não só se importava como também se exportava. E a análise das possibilidades provocava a vontade de romper o cerco imposto pelo regime do monopólio.
As capitais e os portos foram os centros onde esta vontade ganhou mais ímpeto. As populações urbanas cresciam, porém as possibilidades econômicas não cresciam na mesma medida. Quando as metrópoles, influenciadas por novas idéias econômicas, decidiram abrir o regime comercial, a expansão foi notável, e as mudanças geraram novas e mais audazes perspectivas. Nas últimas décadas do século XVIII, tanto Portugal quanto a Espanha foram adotando diversas medidas para suprimir os obstáculos que freavam o desenvolvimento comercial e, no começo do XIX, já se observava nas colônias o propósito dos setores mercantis de ampliar ainda mais as suas perspectivas, estabelecendo relações diretas com os centros do comércio inglês. No mundo hispânico, o projeto tomou-se realidade depois da independência e, no Brasil, depois da chegada de João VI, em 1808, e da abertura do portos. Nos principais centros comerciais, os comerciantes estrangeiros que se estabeleciam como agentes para os negócios com seus respectivos países juntaram-se aos comerciantes peninsulares que tinham ficado na América e aos criollos que tinham se tornado importantes. Aos poucos, as exportações e as importações começaram a passar pelas mãos desses comerciantes estrangeiros e foram eles que introduziram novas tendências no intercâmbio comercial.
Assim, um forte poder mercantil consolidou-se nas cidades latino-americanas. Os setores vinculados à intermediação – o comércio e as finanças – adquiriram uma crescente influência e seus membros procuraram vincular-se também à produção para reunir em suas mãos os fios do processo econômico. A partir de então, as burguesias mercantis acentuaram a sua condição de grupo híbrido entre o urbano e o rural. No entanto, a rede da nova economia foi de fato controlada a partir das cidades, isto é, das capitais e dos portos.
2. Uma sociedade criolla
A rigor, o impacto mercantilista que estimulava o desenvolvimento das cidades não foi o único fator que provocou a crise da cidade barroca. Quando esta ocorreu, uma verdadeira metamorfose da sociedade latino-americana estava em processo, ou melhor, seus sinais começavam a ser percebidos. O que estava ocorrendo era apenas o resultado do decorrer do tempo, pois, sem dúvida, suas primeiras etapas ficaram disfarçadas ou encobertas pela concepção barroca que pretendia – e postulava – a imobilidade social. No entanto, o passar do tempo ligava as gerações e modificava substancialmente a estrutura de uma sociedade que deixava de ser a dos colonizadores e das classes dominadas para formar um quadro diferente: a sociedade tornava-se criolla e seus diversos grupos modificavam-se consistentemente, em número e, por conseguinte, em suas relações recíprocas. “Foi no México, e não em Madri”, escrevia Humboldt, no Viagem às regiões equinociais, “onde ouvi vitupérios contra o vice-rei conde de Revillagigedo por ter declarado à Nova Espanha inteira que a capital de um país que tem cerca de seis milhões de habitantes continha, em 1790, apenas 2.300 europeus, ao passo que aí eram contados mais de 50.000 espanhóis-americanos”. Era isso o que vinha acontecendo: Humboldt calculava em toda a América Hispânica uma população de 15 milhões de habitantes, dos quais somente 200.000 eram europeus, 3 milhões de criollos brancos e o restante correspondia às diversas castas. E assim seria dali por diante: suas conseqüências deviam ser importantes.
Ao contrário dos grupos de peninsulares que só podiam aumentar pela constante imigração, os grupos criollos cresciam naturalmente, inclusive no seio dos próprios grupos de peninsulares radicados. Os criollos da primeira geração gradativamente se aproximariam daqueles que já tinham várias gerações de permanência. E o conjunto, numericamente crescente, adquiria progressiva afinidade e começava a deslocar, por sua própria gravitação, o sistema estabelecido. Porém, não era o único setor que se transformava ao crescer, modificando o quadro das relações sociais. Foi, sem dúvida, o mais importante, porque dele surgiu a nova burguesia criolla que alcançaria muito em breve uma posição proeminente; contudo, com ele mudou também o grupo dos pardos, como eram geralmente chamadas as raças cruzadas. Grupos de mestiços e mulatos cresceram consideravelmente, e a eles foram se juntando sucessivamente seus filhos e seus netos, bem como os novos mestiços e mulatos nascidos de novas uniões misturadas. E não só cresceram em número como também, como os criollos, cresceram em significação social. Inclusive, poder-se-ia dizer a mesma coisa sobre certos grupos de índios, negros, cafuzos e outros cruzamentos que se incorporaram subrepticiamente à nova sociedade com essa força que a coexistência outorga, capaz de vencer, embora muito lentamente, as pressões que os mantêm na marginalidade.
O crescimento do grande setor nascido na terra, unido a ela porque lhe pertencia e porque era a única que tinha, e sustentado pela esperança de nela melhorar a sua condição, estava sendo observado por aqueles que criticavam o conde Revillagigedo e representava uma ameaça para o pequeno grupo peninsular, frágil no fundo, porque se renovava com os recém-chegados ou porque se instalava em lares de criollos, quando se radicava. Paralelamente ao pequeno número daqueles que constituíam um grupo necessariamente desarraigado, já que seus membros sonhavam com o retomo à península, crescia o grupo dos necessariamente arraigados, cuja permanência, aliás, se acentuava com o tempo. Era precisamente uma sociedade enraizada que, pela primeira vez, estava se constituindo no âmbito latino-americano, ao contrário da sociedade barroca. No entanto, esse não era o único sinal da metamorfose social que estava se processando. Se a sociedade barroca pretendia ser uma sociedade estática, a nova sociedade acriollada era fundamentalmente móvel e o seu vigor revelava as fraudes da ordem estabelecida pelos conquistadores e pelos colonizadores que defenderam os seus privilégios com o princípio da fidalguia. Essa garra era própria de uma sociedade espontânea e viva, como a que se formava por obra do crescimento inconsciente e da inevitável incorporação de grupos artificialmente marginalizados, porém indispensáveis à subsistência do conjunto social. Nas últimas décadas do século XVIII, ficou claro para muitos que essa nova sociedade – a sociedade acriollada — impunha seus interesses sobre os artificiosos esquemas que pretendiam ignorá-la ou contê-la. A polêmica a respeito das habilidades dos criollos em relação às dos peninsulares ganhou uma enorme repercussão. E os que estiveram atentos às mudanças que vinham acontecendo não deixaram de perceber que a nova sociedade despontava tanto nos campos como nas cidades.
Com certeza, a sociedade rural tradicional sobrevivia, graças às explorações mineiras e agropecuárias, vigorosamente organizada com base no sistema originário do trabalho indígena, pouco modificado, apesar das disposições legais e das preocupações humanitárias de alguns setores da Igreja e da administração. Contudo, ao seu lado ou mais distante talvez, havia começado a se formar uma sociedade espontânea que, apesar de ser claramente marginal, não deixou de se mostrar pouco a pouco, até tornar patente a sua presença.
Era uma sociedade desorganizada, instável, mas, sem dúvida, em crescimento. Foi o resultado do desequilíbrio entre um mundo rigorosamente ordenado à maneira européia – no campo e em especial na cidade – e um outro, pouco ocupado e onde quem se instalasse podia usufruir de uma liberdade sem outros limites além daqueles que a natureza e as populações indígenas lhes impusessem. Era o mundo das regiões que não haviam sido incorporadas à exploração econômica ou talvez o das zonas abandonadas, no qual as áreas fronteiriças eram em especial atrativas, pois o trânsito era fácil e as comunicações com o mundo organizado não estavam totalmente cortadas. Porém, toda a hinterlândia do mundo europeizado oferecia a tentação do desterro, da evasão do sistema; e, neste sentido, havia ocorrido uma emigração variada e heterogênea. Havia emigrado quem tinha chegado ilegalmente às colônias e não podia resolver a sua situação, o desertor, o fugitivo da justiça ou da prisão; contudo, também haviam emigrado índios e escravos negros que escapavam de sua condição servil – os escravos fugidos –, às vezes individualmente, outras em grupo. A eles juntaram-se os aventureiros em busca de fortuna: uns que exploravam os filões mineiros, outros que atuavam em um pequeno comércio com os que já estavam instalados; mas vieram, sobretudo, aqueles que buscavam alguma coisa que os estimulasse: em alguns casos, índios para vender no mercado de escravos, como os bandeirantes paulistanos; em outros, gado selvagem para negociar nas cidades, bem como negros escravos fugitivos ou até mesmo os libertos que podiam ser levados ao mercado.
Só os quilombos de escravos fugitivos adquiriram uma certa organização comunitária: o de Palmares ou os do rio das Mortes, além de outros inúmeros que se formaram depois como, por exemplo, nos arredores da Bahia, e ainda talvez alguns grupos indígenas, como os que ficaram desarticulados após a expulsão dos jesuítas, ou os que se juntaram aos grupos insurgentes nas últimas décadas do século XVIII. No entanto, esta nova sociedade foi marcada pelos imigrantes isolados, acompanhados às vezes de mulheres e filhos, que procuraram manter uma independência rústica em casas pobres, cabanas e barracos, onde se instalavam sem vizinhança à vista. Relutantes ao trabalho metódico, encontraram no pastoreio uma forma de vida que combinava o trabalho com a diversão: foram cavaleiros hábeis e peritos guias de rebanhos, ao ponto de transformarem as palavras com as quais eram designados em sinônimos de pastores: sertanista, bandeirante, camponês, gaúcho, gaudério, pampeiro, vaqueiro, labrego. Era uma atividade livre e oscilante entre o lícito e o ilícito; porém, a distinção entre um e outro não importava nessas áreas nas quais se criava um novo sistema de normas. O homem lutava por sua vida e era evidente o quanto lhe interessava conservá-la e defendê-la: as bolas, o laço e o facão impunham afinal a vontade do mais valente ou do mais hábil e nos despojos estavam incluídos a mulher do vencido e os seus pertences, e talvez o seu cavalo ou os animais que havia juntado. Quando era necessário, uniam-se em bando – brancos, mestiços, negros – e como bandoleiros agiam, muitas vezes nas estradas e em pequena escala e, em outras, assaltando fazendas e aldeias em operações de certo peso.
Nas últimas décadas do século XVIII, as sociedades urbanas e o mundo rural organizado tomaram consciência desta sociedade informal, claramente autóctone, criolla, que crescia de forma incontrolada e um pouco misteriosa na hinterlândia do mundo legal. Eram pessoas “campestres”, de hábitos rudes e alheias à refinada urbanidade do povo da cidade. De alguma maneira, rapidamente apareciam ou alguém os descobria nas estradas e notava uma cultura diferente: outras normas, outros ideais, outros costumes e, sobretudo, outra linguagem. Porém, descobria-se também que escondiam uma raiz vernácula e que eram, de modo evidente, filhos da terra. Uma certa curiosidade – curiosidade pelos contrastes – fez com que se prestasse atenção a esses costumes e a essa linguagem que pareciam expressar a personalidade do grupo mais enraizado da sociedade. Nas últimas décadas do século XVIII, começaram a penetrar nas cidades, talvez pelos subúrbios, e logo passaram a ser analisados por astutos observadores que compararam a imagem das duas sociedades, a rural e a urbana, às vezes através da fala de cada uma. Por volta de 1778, circulou em Buenos Aires um romance no qual se cantava “uma sátira em estilo campestre”, cuja linguagem reapareceria nos cielitos1 das guerras de independência. Algumas décadas depois, Fernández de Lizardi incluía em seu Periquillo Sarniento um fragmento composto na fala dos repentistas mexicanos que identificava antecedentes nas peças teatrais de José Agustín de Castro. E o nativismo brasileiro – Basílio da Gama, Santa Rita Durão – expressava, na mesma época, a emoção da paisagem e das populações nativas.
Antes mesmo das guerras da independência, alguns grupos alheios a esta sociedade rural espontânea tinham começado a aparecer e a se integrar, atraídos pelas atividades pecuárias que uniam campo e cidade. Mais tarde, pelas mesmas razões e incentivados pelo clima criado pelo movimento insurrecional, grupos cada vez mais numerosos irromperam na tumultuada sociedade que a revolução criava, incorporando-se por pleno direito. Montoneros rio-platenses, llaneros venezuelanos e sertanistas brasileiros engrossaram os exércitos e exaltaram os seus chefes, “campestres” também, como dissera Azara, ruralizando aquela sociedade e, sobretudo, tornando-a acentuadamente criolla. O criollismo pareceu patrimônio das sociedades rurais e foi confrontado polemicamente com as sociedades urbanas, acusadas de cosmopolitas e estrangeiristas. Assim nasceu uma espécie de disputa entre campo e cidade, destinada a durar um longo tempo e que parecia expressar uma contradição insuperável.
No entanto, esse confronto era apenas a expressão de um aspecto, pois as sociedades urbanas também se haviam acriollado. Os novos grupos de peninsulares que chegaram com outra mentalidade, após o estabelecimento do comércio livre, e alguns estrangeiros, na sua maioria ingleses, em quem essa mentalidade se extremava, moravam nos portos e nas capitais; e eram essas novas idéias e atitudes que davam às cidades esse ar que os grupos rurais denunciavam: eram, na sua opinião, cidades de comerciantes e “doutores” europeizantes que ignoravam ou menosprezavam a nova sociedade. Porém, esse julgamento era exagerado. Ainda que de outra maneira, as cidades tinham sofrido um processo social semelhante ao das zonas rurais, e suas sociedades também tinham se acriollado. Contudo, o que nelas dava o tom não eram as classes populares e sim os novos grupos burgueses, formados, a princípio, à sombra das burguesias peninsulares e estrangeiras, porém já indicando, no final do século XVIII, sua vocação para substituí-las ou, de preferência, encabeçá-las, direcionando-as para os seus próprios interesses.
De fato, haviam aumentado também os grupos populares que, ao crescer, manifestavam a sua condição acriollada. Foi um desenvolvimento tumultuado. Os grupos peninsulares ficaram sufocados não só pelos criollos brancos, como também pelas chamadas castas, um conjunto variado em que entravam negros escravos e libertos, mulatos, índios, mestiços, pardos, entre outros cruzamentos. Peninsulares e estrangeiros chegavam aos montes, porém os escravos se multiplicavam, e as castas, por sua vez, cresciam naturalmente de uma maneira vertiginosa. Em seu Ensaio político sobre a ilha de Cuba, Humboldt destacava entre muitas outras informações que “em vinte anos, os brancos – isto é, peninsulares e criollos – se multiplicaram em Havana e em seus arredores em 75% e as demais raças, em 171%”. A sensação do viajante foi a de estar diante de uma sociedade em crise:
Se a legislação das Antilhas e o estado das pessoas de cor não sofrerem muito em breve alguma mudança saudável, e caso se continue a discutir sem agir, a hegemonia política passará às mãos dos que têm a força do trabalho, a vontade de eliminar a opressão e a coragem de suportar longas privações.
Em outras cidades do Caribe e do Brasil, o predomínio numérico dos negros também crescia: “só na Bahia – dizia José de Silva Lisboa –, 50 corvetas faziam em 1781 esse transporte a partir da África”. E é notório o quadro que apresentava Cartagena das Índias, centro do tráfico negreiro. No entanto, a população negra, escravos ou libertos, não aumentava apenas nessas regiões. Buenos Aires tinha um importante mercado e, em Córdoba, Concolorcorvo, em El lazarillo de ciegos caminantes, dizia ter visto serem vendidos dois mil negros “todos criollos”, e deles havia, acrescentava, “criollos até a quarta geração”. Em Cuzco, a proporção de índios era tal que, em 1788, Ignacio de Castro ressaltava que,
como o grupo dos índios é tão numeroso, de forma que todo o comércio é feito com eles, torna-se indispensável que a língua destes índios seja quase a universal da cidade. Todos os nascidos no Peru falam esta língua, que se tomou necessária para entender e serem entendidos; assim que até os senhores de prestígio falam com os espanhóis em espanhol, e com os empregados, criados e gente do povo precisamente na língua indígena.
Talvez com menos intensidade, o espetáculo era semelhante em muitas cidades. Antonio de Ulloa e Jorge Juan destacavam, já em meados do século XVIII, que das quatro mil famílias que viviam em Santiago do Chile, a metade era espanhola, isto é, brancas, de peninsulares ou de criollos, e a outra metade era de castas, a maior parte de índios. Porém, talvez o testemunho mais expressivo da heterogênea sociedade criolla, na qual começavam a se confundir os diversos e variáveis grupos sociais e raciais em diferentes proporções, gerações após gerações, à medida que se acentuava a radicação de uns ou a incorporação de outros, seja a descrição de Lima que fez Simón de Ayanque – pseudônimo de Esteban de Terralla y Landa – na “obra jocosa e divertida” que publicou em 1792 com o título de Lima por dentro y por fuera.
Andaluz, primeiramente radicado no México e depois instalado em Lima, o espirituoso poeta descreve, com um tom provocador, o mundo do mercado e das ruas limenhas, que era o mundo das classes médias e populares. Ayanque enfatiza a convivência dos diversos grupos, a integração que tinham alcançado na vida cotidiana da cidade, o sentimento de que a cidade era deles e o peso que esse conjunto heterogêneo tinha na cidade vice-reinol. Dirigindo-se a um peninsular – na realidade, a si mesmo –, Ayanque pinta o ambiente da Plaza Mayor e da feira livre que ali se realizava:
Pois divisas muita gente
E muitas bestas presas,
De que não se distinguem
Seus próprios donos, às vezes;
Pois vês muitas cozinheiras,
Muitas negras, muitos negros,
Muitas índias vendedoras de especiarias,
Muitas vacas e bezerros;
Pois vês muitas mulatas
Destinadas ao comércio,
Umas ao da carne,
Outras ao mesmo;
Pois vês índias pescadoras
Pescando muito dinheiro,
Pois às vezes pescam mais
Que a pesca que trouxeram;
E percorrendo as ruas, se surpreende com o mundo miscigenado:
Verás depois pelas mas
Grande quantidade de cabelos,
Índias, cafuzas e mulatas,
Chineses, mestiços e negros.
Verás vários espanhóis
Armados e janotas,
Com ricas capas rubras,
Relógio e grandes chapéus.
Mas da mesma massa Verás outros perecendo,
Com capas de lamparina,
Com lâmpadas e orifícios.
———-
Pois vais vendo pela rua
Poucos brancos, muitos pretos,
Sendo os pretos o alvo
Da estima e apreço.
Pois os negros são os amos
E os brancos são os negros
E que terá de chegar o dia
Que sejam escravos daqueles.
Pois usam capas bordadas
Com riquíssimos chapéus,
A melhor meia de seda,
Seda de alamares, lã e veludo.
Pois nessa classe de gente
Está o principal comércio,
Porque o maior mecanismo
E de maior privilégio.
———
Verás em todas as profissões
Chineses, mulatos e negros,
E muito poucos espanhóis,
Porque à míngua os tiveram.
Verás também muitos índios
Que da serra vieram,
Para não pagar tributo
E meter-se de cavaleiros.
Ao compasso da enunciação, Ayanque pontua o que sabe a respeito das relações entre os grupos populares e, sobretudo, sobre suas possibilidades de ascensão social e de integração nos quadros da sociedade fidalga ainda pretensamente rígidos:
Que uma mulata, uma cafuza,
E outras deste curto cabelo,
Alternam em gala e traje
Para alguém de título expresso.
Pois porque deu de beber
Ao senhor Dom Estupendo,
E para o ponto mais árduo
O mais favorável empenho.
Que a pública saúde
Está em mãos dos negros,
Dos chineses, dos mulatos,
E outros vários dessa fibra.
———-
Do rei do Congo os netos,
Pois estes senhores doutores
São os que tocam as meninas,
As damas e cavaleiros.
Que a fé pública está
Também entre Macabeus,
No dos Escribas,
E todos os Fariseus.
Há muito do mulatismo
E do gênero chinesco,
Que com papéis fingidos
Querem mudar de pele.
Verás com mui ricos trajes
As de baixo nascimento,
Sem distinção de pessoas,
De estado, de idade nem sexo.
Verás uma mulher branca
De quem um negro se enamora
E um branco que em uma negra
Tem embebido seu afeto.
Verás um título grande,
E o mais alto cavalheiro,
Pôr em uma mulata
Seu particular esmero.
Inseridos na vida da cidade, fatores decisivos nela, estes setores populares, de variada procedência e com diferentes expectativas, ao longo do tempo, amalgamaram-se num conjunto que ia adquirindo diversos graus de homogeneidade. Foram o “povão”, segundo a designação pejorativa da “gente decente”, e ainda havia de ser adicionado o grupo de desocupados e mendigos, brancos ou pardos, cuja irmandade mexicana Fernández de Lizardi descreve tão bem no Periquillo Sarniento.
Nos grupos médios, não faltavam os brancos criollos. Talvez um deles tenha sido esse serralheiro, que o viajante John Luccok encontrou no Rio de Janeiro, usando um tricórnio e que fazia um escravo negro transportar a sua caixa de ferramentas. E foi especificamente entre eles que o processo de interpenetração com os segmentos inferiores ascendentes ocorreu de maneira mais estreita. Com certeza, as relações foram difíceis. De vez em quando um branco apelava para a cor da sua pele a fim de decidir uma disputa. No entanto, as funções médias foram entusiasticamente assediadas por mestiços, mamelucos e mulatos e, por fim, os brancos criollos sem recursos entraram no jogo deles mais do que aqueles no seu. Como produtos de um cruzamento, mestiços e mulatos se transformaram nos intermediários necessários e eficazes dentro de uma sociedade tradicionalmente dividida. Essa intermediação fixou as funções das camadas médias e os brancos criollos deserdados tiveram de escolher entre elas. No fundo, tomou-se cada vez mais claro que todos eram criollos, que todos estavam fixados na terra, que todos estavam unidos pelo mesmo destino. Esta convicção foi amalgamando-se árdua porém firmemente e alcançou considerável vigor no final do século XVIII. Ao contrário das classes altas, os setores médios, como as classes populares, aprenderam a sobrepor-se aos preconceitos de raça, sem deixar de conservá-los por isso.
Em oposição aos grupos populares e às castas, mestiços e mulatos se predispuseram a se aliar aos espanhóis: mamelucos e mestiços, sobretudo, conservavam o orgulho de sua raça indígena, porém revelavam certa tendência a incorporar-se à nova sociedade. Foram capatazes, gerentes, mordomos, agentes, todos os cargos que os brancos evitavam para reduzir os atritos com os grupos subordinados. Apesar de tudo, ocuparam também muitos outros cargos e desempenharam variadas funções, sempre mais próximos dos brancos do que das castas. Segundo Concolorcorvo, dom Manuel de Campo Verde y Choquetilla, “espanhol e descendente por parte de mãe de legítimos caciques e chefe de índios”, foi designado chefe das postas de Oruro, e em outra passagem menciona que “o comércio dos espanhóis é feito entre todos, incluindo os mestiços e outras castas que estão fora da esfera dos índios, descendo ou subindo”. Uma tentativa de consagrar esta ascensão dos mestiços foi a real cédula de 1795 que autorizava os pardos de Caracas a usar o título de “dom”, pagando um imposto.
A proximidade ou solidariedade de brancos ou mestiços é tema freqüente nos diálogos que o mestiço Concolorcorvo mantém com o inspetor dom Alonso Carrió ao longo do Lazarillo de ciegos caminantes. Um índio bem tratado pelo espanhol, vestido e ensinado a estar limpo, já passa por cholo,2 “que é o mesmo que ter mistura de mestiço. Se o seu serviço é útil para o espanhol, ele o veste e o calça, e com dois meses é um mestiço no nome”. A condição do mestiço era privilegiada: tinha atividades como o comércio, que alternava com os brancos, exercia profissões e, salvo por certa desconfiança que “suas picardias e ruindades” inspiravam, porque “são piores que os ciganos”, podia compartilhar todas as atividades com os brancos criollos do setor médio. Justamente Concolorcorvo, referindo-se aos mestiços e aos indios, falava de “criollos naturais” e aguçava a sua ironia, declarando que “nós os cholos respeitamos os espanhóis como filhos do Sol”.
Criollos naturais e criollos brancos estimulavam as camadas médias da sociedade na promiscuidade das cidades, cuja atividade permitia que uns ascendessem na riqueza e que outros mergulhassem na miséria. Assim, “descendo ou subindo”, como dizia Concolorcorvo, misturavam-se de diversas maneiras os membros dessa camada social, a mais confusa, a mais inconstante e na qual se produziu mais intensamente a transmutação que deu origem à sociedade criolla.
Essa transformação teve outras características nas classes altas. Estas eram formadas tradicionalmente pelos peninsulares, destinados aos cargos públicos, donos de minas ou fazendas, ou vinculados ao comércio, estes últimos aumentados em número a partir do estabelecimento do livre comércio; porém, ao lado deles, já havia no século XVIII um enorme setor criollo inequivocamente majoritário, de fisionomia indefinida, tanto pela condição social e pela origem quanto pelas atitudes e pelas ideologias.
Humboldt fez com sagacidade três observações sobre as classes altas às vésperas da independência. “Nas colônias – dizia em sua Viagem às regiões equinociais –, o verdadeiro indício dessa nobreza é a cor da pele”, e marcava assim um limite que separava, em geral, as classes altas das outras em que predominavam os pardos, embora talvez aparecesse algum branco criollo. Porém, ao analisar os caracteres das classes altas — “a nobreza” –, ele assinala a presença de um setor criollo claramente dividido:
Existem dois gêneros de nobreza em todas as colônias. Uma, composta por criollos cujos antepassados ocuparam muito recentemente altas posições na América: fundamenta, em parte, as suas prerrogativas no prestígio que goza na metrópole e acha que pode conservá-las além-mar, qualquer que tenha sido a época de seu estabelecimento nas colônias. A outra nobreza atém-se mais ao solo americano: compõe-se de descendentes dos conquistadores, isto é, dos espanhóis que serviram ao exército desde as primeiras conquistas.
Era, portanto, uma divisão entre criollos velhos e criollos novos, uma divisão pela origem. Porém, encaminhando sua análise para outro ponto de vista, Humboldt distingue na classe alta caraquenha
duas categorias de homens, poderíamos dizer duas gerações muito diferentes. Uma que é, afinal, pouco numerosa, conserva uma viva lealdade aos antigos hábitos, à simplicidade dos costumes, à moderação nos desejos. Ela vive só nas imagens do passado: parece-lhe que a América é propriedade de seus antepassados que a conquistaram; e porque detesta isso que chamam de ilustração do século, conserva com cuidado os seus preconceitos hereditários, como uma parte de seu patrimônio. A outra, dedicando-se menos ao presente que ao futuro, possui uma inclinação, irreflexiva com freqüência, por hábitos e idéias novas. E quando esta inclinação se encontra acompanhada do amor por uma diretriz sólida, quando se sujeita e se orienta graças a uma razão forte e instruída, seus efeitos tornam-se úteis para a sociedade.
Essa distinção baseia-se nas atitudes e nas ideologias.
E, portanto, visível que tanto nas colônias espanholas quanto nas portuguesas uma classe alta criolla tenha ido se formando, nascida na terra e comprometida com ela, e em número muito maior que os grupos peninsulares. Firmemente estabelecida em seus privilégios, mostrou-se orgulhosa e arrogante. Orgulhosos foram no Brasil os senhores de engenho e os senhores das minas; no mundo hispânico, os descendentes de encomenderos, os proprietários de minas; enfim, todos aqueles que pretenderam manter uma sociedade fidalga. Porém, tanto orgulho e soberba começavam a ser condicionados de acordo com as novas circunstâncias. A primeira era a humilhação a que estavam expostos os criollos pelos peninsulares, que lançavam mão de seus preconceitos anticoloniais e antiamericanos para afirmar a sua eventual supremacia. A segunda era a formação de setores burgueses que se insinuavam no seio das classes altas criollas e que abalavam a velha estrutura da sociedade patrícia.
A primeira desembocou em uma forte tensão entre criollos e peninsulares que, em virtude da disparidade numérica, era no fundo uma tensão entre a sociedade que se fixava e os grupos de poder político e econômico que estavam instalados nas colônias. Essa tensão crescia de maneira surda e evidenciou-se muitas vezes: por exemplo, quando João VI chegou ao Brasil acompanhado de sua corte portuguesa, em 1808, e as altas classes criollas enfrentaram-na até conseguir atrair d. Pedro para as suas fileiras; nos movimentos comuneiros do Paraguai e da Colômbia; nos movimentos emancipadores que fracassaram e, mais tarde, nos que triunfaram. Mas, além disso, evidenciou-se uma longa e diversificada polêmica a respeito do mérito e valor relativos dos peninsulares e dos criollos. Concolorcorvo recolheu cuidadosamente os seus argumentos e o padre Feijó nela interveio. Afirmou que a raça européia degenerava na América e, em resposta, não faltaram as críticas aos espanhóis e aos portugueses a quem os criollos viam movidos por um desejo incontrolado de lucro. Nos setores populares criollos, os gachupines ou chapetones3 – espanhóis – e os mascates ou emboabas – portugueses – eram desprezados. Porém, nas classes altas, a disputa crescia em outros termos, e talvez nenhum texto seja tão expressivo quanto o discurso intitulado Discurso sobre las preferencias que deben tener los americanos en los empleos de América que Mariano Alejo Alvarez, da Universidade de Charcas, pronunciou em Lima, pouco depois de 1810. Quando as tensões políticas cresciam, o ódio acentuava-se e suas expressões adquiriam um caráter mais acre, como o que anima o “romance”4 que circulou em Oruro, em relação ao clima subversivo de 1781:
O ser Indiano é maldade
E ter bens lhe acrescenta
A circunstância mais grave
que agrava a Majestade.
Prova é desta verdade
A infame perseguição
Que sustenta o coração
Do Europeu plebeu
Contra Oruro e todo Indiano
Por não ser de sua Nação.
A segunda circunstância foi a formação de setores burgueses criollos que se sentiam mais hostilizados por “ter posses” ou que denunciavam o seu maior direito de obter cargos na América. Eram grupos incentivados – direta ou indiretamente – pelas novas idéias do século XVIII e tentados pelas novas possibilidades que o mundo mercantil oferecia. Diante deles, alguns setores enfatizaram as suas pretensões nobiliárquicas, dos quais, por certo, zombou Concolorcorvo com fina ironia. Porém, apesar disso, essa burguesia criolla, que vislumbrou o papel de nova elite que lhe estava reservado, afirmou-se. Muitos dos seus membros eram de famílias chamadas nobres – como os “mantuanos” caraquenhos – e outros luziam uma nobreza recentemente adquirida – como os mineiros mexicanos –, a um preço que a coroa fixou sem muitos escrúpulos. No entanto, esses nem sequer dissimularam sua decisão de impor-se como minoria dirigente da sociedade criolla e de submetê-la aos seus desejos, enquadrados dentro da ideologia cada vez mais influente do mercantilismo. A intermediação comercial pareceu ser a atividade mais tentadora. A cidade deveria ser seu centro e, a partir dela, controlariam a fiscalização da atividade econômica, mantendo relações com os grandes centros comerciais do exterior e ocupando as funções públicas que regulavam aquela atividade.
O crescimento desse setor ficou visível a partir do estabelecimento da liberdade de comércio: no Brasil, particularmente, depois da abertura dos portos, em 1808, e no mundo hispânico, após a independência. A medida que a burguesia criolla desvanecia-se, extinguia-se a ilusão da sociedade barroca, cujos membros eram criticados por Ayanque, à luz de novas idéias:
Este sumo desperdício
O tempo vem vingar.
Uma nova concepção da vida lutaria para impor-se nesta sociedade que se havia enraizado, composta de “criollos naturais” e de brancos criollos, e que havia encontrado na burguesia criolla uma elite adaptada às exigências e às possibilidades da época que se abria com a crise dos impérios da Espanha e Portugal.
3. A nova fisionomia urbana
O progressivo amadurecimento de uma sociedade criolla, que ao constituir-se tomava consciência de si mesma, confluiu com o acentuado incremento da atividade comercial; dessa confluência deveria resultar uma renovação na fisionomia das cidades. Suas sociedades mudavam continuamente e começaram a mudar também os seus traços físicos: uma expressiva expansão, certa opulência, algumas vezes, e uma franca abertura para o mundo mercantil – tanto dos negócios, quanto do estilo e das idéias – começavam a alterar os traços da cidade barroca.
Ruas e mercados anunciavam a mudança. Essa multidão de negros – dezenove em cada vinte pessoas – que, em 1774, Frézier observava nas ruas da Bahia, enquanto passava a liteira em que quatro negros levavam o senhor branco, revelava o mesmo quadro social que muitos outros viajantes contemplavam em outras cidades hispânicas ou portuguesas: privilegiados e não privilegiados diferiam em muitas coisas, mas sobretudo em número. E as ruas, os mercados, as igrejas, as calçadas estavam repletos desta nova multidão de pessoas que, quaisquer que fossem os seus direitos explícitos, incorporavam-se cada vez mais à vida urbana como que por direito próprio.
Tal multidão era complexa e variada. Na hora de ir para casa, cada núcleo social agrupava-se em seus bairros, porém, enquanto durava a atividade cotidiana os grupos misturavam-se, inclusive os mais fechados e exclusivistas. Comprar e vender eram funções que se intercomunicavam e durante um instante equiparavam os dois termos da operação. Talvez, por causa disso, os viajantes e os observadores prestaram tanta atenção no papel das mulheres que enchiam as ruas e o mercado e que voltavam logo para o seu núcleo com alguma coisa que houvessem comprado, mas também com algo que tivessem ouvido e aprendido. Amulata ou a mestiça observava os vestidos, os costumes e a linguagem de sua cliente de boa posição e procurava imitá-la; porém, sua cliente aprendia os usos vernáculos e populares e acabava gostando do encanto das cores vivas que enfeitavam as roupas das pessoas do povo, de seus pratos preferidos, das palavras vernáculas que iam incorporando ao espanhol, dos modismos lingüísticos que o talento popular inventava:
Verás na maior praça
Golpes de finos conceitos
Em qualquer verdureira
Em qualquer açougueiro,
como observava Ayanque em Lima, porque as pessoas da rua
embora com semblantes pardos
são de muito claros engenhos.
E se aceitava a louça ou o tecido, preparava-se para aceitar as superstições e as crenças, a prescrição da velha experiente em males do corpo e nas formas de expressão corporal. O próprio culto hibridava-se; as aproximações entre o cristianismo e as religiões locais produziam-se não só nas castas como também nos brancos; e assim como se acabava prestando culto a uma imagem mestiça, admitia-se nos dias festivos a dança dos negros – o batuque – diante do templo em uma cidade tão conservadora como Olinda.
As mulheres de classe alta não se privavam de circular por este mundo multicolorido. Em São Paulo e em Lima, chegou a ser uma questão de grande interesse a capa ou a mantilha com as quais se envolviam. Porém, tanto o vestuário, que não permitia saber se escondia uma marquesa ou uma mulata, quanto o ousado comportamento, aproximava os grupos sociais. Eram vistas nas barraquinhas ou no mercado, remexendo tudo até encontrar o que procuravam, e o empenho pela qualidade ou pelo preço enriquecia o diálogo que, aliás, começava na própria casa entre a patroa e as criadas. Enquanto isso, os varões de classe alta, obrigados a conviver com as castas devido às suas atividades e aos seus negócios, tentavam esta aproximação na hora da diversão e a encontravam nas amantes mais ou menos duradouras, nos ambientes de festejo ou nas casas de jogo.
Onde corria o dinheiro, como em Potosí ou Vila Rica, o jogo e a dissipação alcançavam os seus limites máximos. O mineiro deixava as suas fortunas nas mesas de jogo e não economizava com as prostitutas, mulatas em sua maioria, com quem terminava a noite. Não faltaram também os vice-reis – Amat, em Lima, ou Solís, em Bogotá, – que acabaram envolvendo-se em escândalos. Jogo e prostituição foram dois caminhos importantes na aproximação das classes e das castas. E, em tomo das duas atividades, movia-se o cinturão da delinqüência, com assassinos e ladrões “de espada, carabina ou pistola”, como dizia Concolorcorvo, e o mundo dos pícaros e mendigos, que Fernández de Lizardi retratou no Periquillo Sarniento, espelho da capital mexicana às vésperas da independência. O frade limenho Castillo Andraca y Tamayo dava nas Coplas del ciego de la Merced a sua versão deste pequeno mundo da sua cidade, assim como Concolorcorvo o fazia em relação aos outros mundos pelos quais passou em sua longa viagem.
Uma sociedade multifacetada não tinha porque ter formas muito definidas de vida. Se os grupos sociais eram instáveis, suas formas de comportamento o eram também. As formas tradicionais de vida só foram conservadas nas cidades do interior e nas que ficaram estagnadas. Porém, em todas aquelas que cresceram e naquelas em que o processo de formação da nova sociedade criolla se acelerou com a interpenetração de classes e castas, predominou uma espécie de anomia, sinal da intensa mobilidade social. Só as classes altas sabiam qual era o seu lugar e, em conseqüência, quais eram as normas que as regiam; no entanto, as camadas médias e populares manifestaram uma acentuada fluidez, que preparava a profunda crise subseqüente à independência. Bastante frutífera – pois nela brotava a formação de uma nova ordem social –, essa crise estava no curso normal do processo social, que excedia os limites e as pressões do regime advindo da conquista. Ninguém sabia quem era quem nos setores médios e populares de uma cidade – capital ou porto, em especial – que crescia com novas atividades de inesperadas perspectivas para pessoas e grupos antes estagnados.
A multidão heterogênea, rica em matizes de cores, costumes, posição econômica inundava a cidade nos dias de festas públicas, quando havia touradas e procissões. O núcleo da festividade era organizado. O palco para o juramento de Carlos IV reunia os notáveis, e notáveis eram também os que cercavam o estandarte real e os que participavam da cavalgada ou da escaramuça com que celebravam – como em Bogotá em 1789, graças ao Alferes Maior, dom Luis de Caicedo – a cerimônia do juramento. Contudo, nos arredores estava espalhado um povo para quem eram jogadas moedas: era essa abigarrada e numerosa sociedade que desfrutava por sua conta o lazer eventual, o espetáculo, as luzes, tudo o que quebrava a rotina. Alguns lutavam pelas moedas lançadas, bisbilhotavam a cerimônia, porém desfrutavam de sua própria festa comprando doces ou pedaços de carne dos muitos vendedores que circulavam entre eles, bebendo pulque5 ou chicha,6 talvez, dançando ou cantando em seus grupos, para voltar, afinal, às suas casas com o sentimento de que eram o “povão”, diferente da “gente decente”. Só em raras ocasiões eram os brancos que assistiam às festas das castas, conforme relata Concolorcorvo, referindo-se a Cuzco.
Porém, apenas para a “gente decente”, o povão era um grupo social coerente. Cada um de seus membros sabia que estava dentro de um conjunto fluido e que dependia dele, e da sua própria sorte, para ascender ou descender tanto em bens quanto em posição social. E na luta cotidiana, cada um deles procurava apoiar-se em seus inferiores para ascender e imitar os seus superiores a fim de que o quanto antes o confundissem com eles.
Ao calor das inquietudes do tempo, alguns aprenderam a ler e a escrever, e, entre eles, houve talvez quem tenha aproveitado seus conhecimentos para ler livros ou, quem sabe, jornais que, naquela época, começaram a circular em algumas capitais: o Mercurio Volante, no México, o Mercurio Peruano, em Lima, o Papel periódico de Santa Fe, em Bogotá, as Primicias de la cultura de Quito, o Telégrafo Mercantil, em Buenos Aires. Estas preocupações pelo que ocorria no mundo eram sobretudo da classe alta; porém, as notícias corriam, circulavam pelos cafés que tinham começado a estabelecer-se em várias cidades e ali confundiam-se fregueses de diversas classes e confrontavam-se as opiniões. E nos teatros e circos que começavam a abrir, como nos passeios públicos, esta sociedade heterogênea tinha a oportunidade de relacionar-se socialmente com as classes altas, exibindo cada uma as roupas com as quais queria comprovar a sua posição social ou a que talvez desejava ter.
As roupas representaram um problema singular na vida dessas sociedades urbanas nas quais a ostentação do nível social e a preocupação pela ascensão chegou a ser, mais do que uma obsessão individual, a expressão de uma filosofia de vida, de uma ideologia. Neste sentido, também o foram a casa e a carruagem, as jóias e os criados, enfim, tudo o que significava um indício de certa posição social. Em menor escala, mas intensamente, esta corrida contra a realidade era observada nos níveis altos das castas, em especial entre mestiços e mulatos. Era explicável, pois se tratava de sair desse grupo para individualizar-se e ultrapassar o fosso que os separava das classes privilegiadas. Porém, nestas a preocupação não foi menor porque para muitos era tão difícil manter a posição quanto para outros conquistá-la, sobretudo quando começou a acelerar-se o processo de enriquecimento. Extraordinários esforços foram empenhados em parecer o que não se era:
As que querendo alternar
No luxo e luzimento,
Em mil empenhos se vêem
Por sair de tanto empenho.
Estas vão muito enfeitadas
De jóias de muito preço,
Saias de seda,
Diamantes, ricos arreios,
Plumas, tiaras, balangandãs,
Aventais sobrepostos
Rendas finas, galões,
E outros adornos diversos.
E julgando que são seus,
Saímos, amigo, logo
Em que tudo é alugado
E estão devendo tudo.
Assim descrevia Ayanque o afã das limenhas para defender a sua posição e o seu prestígio. No entanto, Fernández de Lizardi, mais filosófico, colocava na boca de um dos seus personagens reflexões mais explícitas a respeito desta preocupação obsessiva que revelava a peculiaridade da sociedade, mais que móvel, mobilizada pela aceleração que a atividade mercantilista introduziu:
Não acredite que consiste em outra coisa a grande pobreza que se observa nas cidades populosas, que não no luxo desordenado com que cada um pretende sair de sua esfera… As mulheres pouco prudentes não são as que menos contribuem para arruinar as casas com suas vaidades importunas. Nelas, vê-se geralmente o luxo entronizado. A mulher ou a filha de um médico, advogado ou de outro semelhante quer ter casa, criados e uma decência que concorra ou pelo menos se iguale à de uma marquesa rica; dessa forma, o pai ou o marido carinhosamente deixam-se levar e, mais cedo ou mais tarde, aparecem os credores; lançam mão do pouco que têm, perde-se o crédito e a família perece.
E concluía: “Além do que, olhando bem, é uma loucura alguém querer aparentar o que não é à custa de dinheiro, e expondo-se a parecer com desonra o que é na realidade”.
Na verdade, esta preocupação obsessiva das classes altas era um resquício da tradição fidalga, que subsistiu escondido na sociedade que se transformava e aceitava os modelos da burguesia ilustrada européia. Uma significativa preocupação pelo decoro movia esses grupos que representavam a “nobreza” das cidades. Porém, era uma nobreza discutível. Em relação à de Lima, dizia Concolorcorvo:
Nesta cidade há muitos títulos de marqueses e condes e um número muito maior de cavaleiros cruzados nas ordens de Santiago e Calatrava, que, à exceção de um ou de outro, têm suficientes rendas para manter-se com esplendor, aos quais se juntam muitos primogênitos e cavaleiros que têm como sustento as suas fazendas e outros negócios honestos para viver e honrar a cidade. Não duvido que na cidade de seu nascimento como nas outras deste vasto vice-reinado haja famílias ilustres, porém o número de todas elas não chega ao desta capital, onde se faz pouco caso dos conquistadores, pois embora não faltassem alguns de famílias ilustres, estas cresceram quando a conquista se impôs.
E falando das classes altas de Córdoba, na Argentina, comentava com ironia: “não sei como aqueles colonos comprovam a antigüidade e ilustre nobreza da qual se vangloriam”.
O certo é que as classes altas, fossem ou não de antiga nobreza, procuraram conservar um “estilo de vida nobre”, com boa casa, boa louça, carruagens e criados. Humboldt, que as freqüentou nos primeiros anos do século XIX, em Caracas, Bogotá, Quito, Lima, México e Havana, delas conservou a lembrança de sua urbanidade, sua cordialidade e uma grande simplicidade nas maneiras; porém, o que mais lhe chamou a atenção foi o interesse de muitas famílias pelo mundo mercantil e por alcançar uma educação de acordo com a época das luzes. Sem dúvida, o perspicaz observador notava a penetração das novas idéias e a difusão das novas atitudes burguesas, compatíveis, por certo, com a preservação de alguns ressábios senhoriais. Saraus e tertúlias reuniam com freqüência as famílias aristocratas: até oitenta senhoras “vestidas e penteadas na moda, hábeis na dança francesa e espanhola”, Concolorcorvo tinha visto em um sarau de Buenos Aires, que, no entanto, não tinha, em 1773, o esplendor das grandes cortes. Além das reuniões mundanas, começou a difundir-se o gosto pelas tertúlias chamadas literárias, nas quais, porém, mais do que de literatura, costumava-se falar de política, filosofia, economia e ciências. Naquela época, o padre Juan Baltasar Maziel criou em Buenos Aires a sua notável biblioteca, comparável, aliás, às mais completas de outras capitais: graças a elas, tinham podido surgir eruditos tão plenos como Carlos de Sigüenza e Góngora, no México, ou os peruanos Pedro de Peralta Bamuevo e Pablo de Olavide, em Lima. Outra geração – a dos precursores da independência – preferiria a leitura das obras políticas mais revolucionárias à pura erudição: Nariño, Torres, Santa Cruzy Espejo, Tiradentes, Egaña, Villava, Moreno, Monteagudo, entre outros. E quase na penumbra, alguns grupos aplicavam-se aos estudos científicos, como o que se reuniu em Bogotá em tomo do sábio José Celestino Mutis, encabeçado depois por Francisco José de Caldas.
A vida mundana – salões e passeios, visitas e novenas – e a vida intelectual satisfaziam as exigências dessas classes altas, nem sempre ociosas, pois muitos dos seus membros estavam voltados para a renovação das suas perspectivas econômicas ao calor das novas possibilidades que a abertura dos portos oferecia, antes e depois da independência. Porém, pouco a pouco, as cidades começaram a politizar-se. Os grupos dividiram-se segundo suas ideologias – progressistas ou tradicionalistas – e as tensões cresceram na vida urbana. Cada decisão do poder foi questionada ou defendida, de acordo com os interesses que afetava ou com as intenções que se acreditava ver nela. E o que a princípio foram boatos, mais tarde passaram a ser opiniões defendidas publicamente com veemência. Essa politização delineou as frentes de combate e plasmou os movimentos revolucionários, movimentos urbanos geralmente encabeçados pelas novas burguesias criollas, independentemente de que, às vezes, projetassem figuras não engajadas. E quando chegaram ao poder, o rompimento da estrutura tradicional liberou as forças dessa sociedade criolla que estava sendo gestada, imatura, insegura quanto aos seus objetivos após o triunfo, dividida em grupos com interesses contrários e movida no fundo pelo desejo veemente de cada um de seus membros de ascender social e economicamente.
Os anos subseqüentes aos movimentos emancipadores modificaram a fisionomia das cidades. Muitas adquiriram um ar jacobino que acelerou o processo de mudança de mentalidade em grupos mais amplos do que os comprometidos inicialmente na revolução. Outras, pelo contrário, viram estreitar-se as fileiras dos setores conservadores. E mesmo nas primeiras, esses setores conseguiram apagar a chama inicial. Contudo, nada disso ocorreu sem luta. À calma monótona da cidade barroca seguiu-se uma agitação permanente, através da qual ia entrando em cena cada um dos grupos que se achava no direito de participar do processo político que se havia inaugurado: os notáveis nos gabinetes oficiais, o povo na Plaza Mayor, os conspiradores nos quartéis, os críticos nas tertúlias, os incitadores nos comícios. Assim se manifestava o progressivo amadurecimento da nova sociedade, antes inerte e agora voltada para a ação, que imprimia o seu selo à cidade criolla.
As marcas desta mudança também ficaram impressas na cidade física. O crescimento das cidades, em geral muito lento até meados do século XVIII, começou a se acelerar em especial nas últimas décadas do século, sobretudo naquelas que receberam subitamente o impacto da ativação comercial. Mais e melhores casas começaram a ser construídas em terrenos antes baldios, e a cidade foi se enchendo. A população urbana cresceu, ao mesmo tempo em que se acentuava a participação de grupos arraigados que se diferenciavam. Certamente, muitas cidades permaneceram paralisadas. Ao finalizar o século XVIII, cidades tão significativas como Concepción e Valparaíso, no Chile, não ultrapassavam os 5.000 habitantes. Em Assunção e Montevidéu, que em breve se tornariam capitais, giravam em tomo de 10.000, assim como em Córdoba, Oruro, Barquisimeto ou São Paulo. Bogotá reunia 20.000 habitantes e Santiago do Chile, Rio de Janeiro, Caracas e Buenos Aires tinham por volta de 40.000. Lima alcançava 60.000; e Salvador da Bahia e México ultrapassavam os 100.000 habitantes. Esta última era a mais atrativa para o viajante europeu. Em 1803 Humboldt escreveu:
A Cidade do México deve ser considerada, sem dúvida alguma, entre as mais belas cidades que os europeus fundaram em ambos os hemisférios. A exceção de Petersburgo, Berlim, Filadélfia e alguns bairros de Westminster, dificilmente existe uma cidade daquela extensão que possa ser comparada com a capital da Nova Espanha pelo nível uniforme do solo que ocupa, pela regularidade e largura das mas e pela grandiosidade das praças públicas. A arquitetura, em geral, é de um estilo bastante puro e há também edifícios de belíssimo estilo.
Três séculos foram suficientes para consumar este imenso esforço.
Forçadas pela sua expansão e pelo seu desenvolvimento demográfico, as cidades latino-americanas precisaram começar a se preocupar com os problemas que nelas apareciam. Menos no Brasil do que no mundo hispânico, os funcionários públicos progressistas consideraram os transtornos cotidianos que a desordem urbana provocava e alguns deles começaram a aplicar modernas idéias para racionalizar o que até então havia sido desenvolvido espontânea e desordenadamente. Revillagigedo na Cidade do México, Amat em Lima, Vértiz em Buenos Aires, González Torres de Navarra em Caracas, Mestre Valentim no Rio de Janeiro e outros mais, em menor escala, tomaram várias medidas em diversos sentidos para melhorar o aspecto e o funcionamento das cidades. A partir de 1753, houve em São Paulo um “oficial arruador” para pôr ordem na confusão de ruas e becos. Em outras cidades, fez-se mais. Procurou-se regularizar o plano da cidade, delimitar os espaços livres, projetar ou melhorar os passeios públicos e submeter a edificação a algumas regras. Porém, a maior preocupação consistiu em ordenar o funcionamento da cidade. A sociedade heterogênea usufruía da cidade mais do que antes e superlotava os lugares públicos, de modo que a primeira preocupação a surgir foi com o saneamento básico. O abastecimento de água por meio de fontes públicas e o sistema de redes de esgoto foi melhorado nas capitais, nas quais começou a ser instalada uma rudimentar iluminação pública. Criaram-se hospitais, cemitérios, asilos. O mais importante disso tudo foi a organização da polícia urbana, talvez desnecessária anteriormente; no entanto, a sociedade heterogênea estimulava o desenvolvimento desses focos de vida irregular que ameaçavam a paz dos cidadãos. O assassino e o ladrão se ocultavam não apenas em seus esconderijos, mas também nas catas de jogo, bordéis e tabernas. E estava tornando-se difícil a identificação de cada um na heterogênea sociedade das castas que ocupava o mercado e as ruas.
Estas pessoas ocupavam sobretudo os subúrbios que tinham começado a aparecer. A partir de uns vinte ou trinta quarteirões mais próximos da Plaza Mayor, a edificação se tornava escassa e um pouco mais adiante, de acordo com a cidade, começava o limite urbano-rural. Nele, foi aparecendo o subúrbio, miserável conjunto de barracos agrupados ao redor de uma mercearia ou de uma capela, próximo às vezes ao matadouro, a um mercado das imediações ou a uma praça de carroças. Ali viviam os mais pobres, os que trabalhavam a terra para levar os seus frutos ao mercado urbano, ou os que buscavam nesse ambiente uma oportunidade para exercer uma profissão ou algum tipo de comércio. Contudo, além disso, no jogo daqueles que migravam do campo para as cidades e dos que fugiam delas para o campo, o subúrbio representava um papel de escala, e a população que derivava dessa combinação se caracterizava pela instabilidade e pela marginalidade, lindante às vezes com uma vida desregrada.
O surgimento dos subúrbios correspondia a uma incipiente diferenciação dos bairros. Não faltaram subúrbios aristocráticos, em especial como áreas de veraneio; mas normalmente as classes altas ocupavam o centro da cidade. Enquanto os quarteirões próximos à praça conservavam, em geral, o maior prestígio, algumas ruas definiam a sua aparência: em algumas se alinhavam as casas das famílias mais importantes e outras reuniam os comerciantes e artesãos de um mesmo nível. Porém, um pouco mais distante, nas paróquias mais afastadas, ao redor das quais a edificação ia se apertando, eram fundados bairros populares onde habitavam as castas, ou, dito de outra forma, as classes populares. Poucos brancos eram vistos neles ou talvez nenhum, nem sequer de passagem, porque neles os habitantes recuperavam esse sentimento de grupo do qual procuravam despojar-se, quando na agitação cotidiana do mercado ou da rua tinham que lidar com a sua clientela ou satisfazer os seus patrões. Ali costumavam celebrar suas próprias festas à sua maneira e impunham silenciosamente as suas próprias normas de vida, independentemente de que um dia vissem violada por oficiais de justiça e guardas a sua consentida autonomia.
Algumas cidades ameaçadas ergueram na época novos fortes, de acordo com as concepções da engenharia militar do século XVIII; e algumas levantaram ou aperfeiçoaram suas muralhas. Eram obras imensas – como as de Cartagena das Índias diante das quais as arquiteturas civil e religiosa pareciam modestas. No entanto, nem sempre era assim. A cidade que era povoada e que crescia contava com algumas classes altas que não hesitavam em investir grandes importâncias para erguer ricas igrejas e belos palácios. Dois ricos mineiros mexicanos, José de la Borda e Antonio de Obregón y Alcocer, levantaram na segunda metade do século XVIII duas jóias do barroco: Santa Prisca, em Taxco, primeiro, e San Cayetano de la Valenciana, em Guanajuato, depois. Bandeirantes endinheirados encheram de igrejas a cidade mineira de Vila Rica, onde luziriam as esculturas de Aleijadinho. E o esplendor econômico das últimas décadas do século permitiria não só acrescentar novos templos em cidades já cheias deles, como Bahia e Quito, e completá-los às vezes com novas fachadas e dependências, como também erguer novos e definitivos em cidades que haviam tido apenas precárias construções. Assim surgiram as igrejas de Buenos Aires – San Ignacio, Nuestra Señora del Pilar –, as de Santiago do Chile, onde o arquiteto Joaquín Toesca construiu a Catedral em austero estilo neoclássico que seus discípulos perpetuaram ali e em outras cidades.
A rigor, a obra-mestra de Toesca pertence à arquitetura civil: o Palacio de la Moneda, na capital chilena, consagrou a concepção neoclássica, construído quarenta anos depois do palácio dos governantes de Vila Rica. Nesse ínterim, o desenvolvimento das cidades havia estimulado a construção de edifícios públicos de outra natureza. A atividade mineira determinou a edificação da Casa de Moneda de Potosí, em meados do século XVIII. A necessidade de manter uma reserva de grãos motivou a construção da Alhóndiga de Granaditas, em Guanajuato, iniciada em 1798. Porém, os cabildos foram os edifícios mais representativos. Cada cidade deveria ter o seu, modesto ou monumental. E onde não havia um edifício digno de ser conservado – como as Casas Consistoriais de Tlaxcala, magnífica construção do século XVI –, ergueu-se um novo, em geral com suas arcadas e sua torre do relógio, que se converteu em símbolo da vida municipal.
Ao desenvolverem-se a sociedade e a riqueza, toda a edificação ampliou-se. No entanto, os mais ricos exibiram sua fortuna substituindo os seus velhos casarões por suntuosos palácios. Poucos igualáveis aos do México que, por ostentá-los – na rua de San Francisco ou na de Tacuba –, chamou-se de “cidade de palácios”. Manuel Tolsá, arquiteto, como Toesca, de tendência neoclássica, foi autor de alguns deles, como o chamado Iturbide, o do marquês do Apartado, assim como o que abrigou a Escola de Mineração. Em menor escala, eles não faltaram também em outras cidades: o do marquês de Torre Tagle, em Lima, os de Villaverde e Arana, em La Paz, o de João Rodrigues de Macedo, em Vila Rica, o do marquês de Maenza, em Quito, o de Diego de Rui, em Guanajuato, obra do arquiteto neoclássico Francisco Eduardo de Treguerras. A respeito deste último, Humboldt, que nele se hospedou, escrevia: “Poderia servir de enfeite nas melhores ruas de Paris ou de Nápoles”.
Sem dúvida, nem todas as cidades latino-americanas usufruíram deste esplendor. Muitas receberam direta ou indiretamente os benefícios do reaquecimento econômico, em maior ou menor escala. Porém, só algumas despertaram plenamente para esta nova vida: os portos, as capitais e aquelas cidades nas quais o acaso provocava uma eclosão de riqueza. Este último foi o caso de Vila Rica, metrópole do ouro cujo fluxo repercutiu no Rio de Janeiro, que, por sua vez, voltou a destacar-se quando, em 1808, recebeu a corte portuguesa e transformou-se em capital do reino, com um porto que ficou franqueado ao comércio com a Inglaterra. Fenômeno semelhante ocorreu em quase todos os portos e capitais, estimulados, em primeiro lugar, pela liberdade comercial que lhes haviam outorgado as metrópoles e, em segundo, pela abertura do comércio com os países europeus e com os Estados Unidos. As novas capitais administrativas que apareceram ao instaurar-se o novo sistema administrativo espanhol, em 1788, juntaram-se às velhas capitais no processo de expansão: Puebla, Valladolid, Guanajuato, Zacatecas, Veracruz, Oaxaca, Mérida, Culiacán; Arequipa, Tarma, Huancavélica, Huamanga, Cuzco, Puno; Santa Marta, Cartagena, Santa Cruz de la Sierra; e, a partir de 1777, as sedes dos governos locais da Venezuela: Maracaibo, Guayana, Mérida, Cumaná, La Margarita. Em todas elas, cresceu uma nova burocracia que acentuou o caráter de pólo de desenvolvimento que já tinham como centros regionais.
Nesse meio tempo, novas cidades surgiram. Montevidéu havia sido fundada em 1724 como um baluarte militar, mas cresceu aos poucos como centro regional e como porto, tendo o seu crescimento acelerado quando, em 1791, se transformou em um dos centros do tráfico negreiro para o rio da Prata, Peru e Chile. Outras cidades foram fundadas como conseqüência de uma forte tendência a recolher a população dispersa nos campos. Assim nasceram, entre muitas outras, Talca e Los Andes, no Chile. Algumas surgiram sozinhas, como resultado de uma atividade econômica muito produtiva que as revigorou muito cedo. Foi isso o que ocorreu com Vila Rica, que se converteu em um empório incomparável em poucos anos. Ali se fixou uma nova aristocracia e lhe proporcionou um impulso tão forte que um cronista pôde dizer que “estava à frente em toda a América; e pelo poder de suas riquezas, é a pérola preciosa do Brasil”. Inquieta e revolucionária, rebelou-se duas vezes, em 1720 e em 1789, porém, foi dominada. Um dos participantes do último dos movimentos – a Inconfidência Mineira –, Cláudio Manoel da Costa louvou a cidade: em seu poema Vila Rica e nos versos satíricos que lhe são atribuídos e circularam com o título de Cartas chilenas, descreve a vida da cidade. Algo semelhante aconteceu com Puerto Cabello, cuja origem espontânea Andrés Bello relata nas páginas que, pouco antes do movimento emancipador, escreveu com o título de Historia de Venezuela para o Calendario manual y guía universal de forasteros en Venezuela para el año 1810:
Puerto Cabello, apto pela natureza para receber e restaurar toda a marinha espanhola, foi o ancoradouro que os holandeses de Curaçau escolheram para deixar os seus produtos e levar o cacau. Umas miseráveis barracas de contrabandistas unidas às de alguns pescadores foram o núcleo da população deste porto, condenado a parecer, por muito tempo, mais uma colônia da Holanda do que uma propriedade espanhola. O governo quis dar uma consistência legal àquele grupo de homens, cujo caráter e cuja atividade deveria tornar a tranqüilidade pública muito precária; porém, a independência criminosa em que haviam vivido e o interesse particular, sustentado pelo general dos holandeses, fê-los opor-se obstinadamente aos propósitos do governo, até obrigá-lo a renunciar ao projeto de submeter à sua autoridade as barracas de Puerto Cabello, que logo se transformaram no recanto da impunidade e no depósito geral das colônias holandesas na Costa Firme. A Venezuela não tinira nada para oferecer à península para atrair os seus barcos a seus portos senão o cacau; mas os holandeses tinham bastante cuidado de extraí-lo para colocar sob o monopólio da necessidade um país que não tinha como valer-se, nem como atender às necessidades de sua agricultura a não ser pelos armazéns de Curaçau, nem outro meio por onde dar vazão a seus frutos e receber estes retornos, a não ser por Puerto Cabello; até que um dia, por causa de um daqueles acordos políticos mais dignos de admiração do que fáceis de explicar, a província da Venezuela viu-se inserida em um novo monopólio tão útil em sua instituição como nocivo em seus abusos, a favor do qual sua agricultura começou a deixar de engatinhar, e o país, conduzido pela mão de uma companhia mercantil, iniciou seus primeiros passos rumo ao progresso: a metrópole recuperou um ramo do comércio cuja autoridade lhe havia sido tomada injustamente e Puerto Cabello ascendeu à categoria de um dos primeiros lugares e de mais respeitável porto da Costa Firme.
José Agustín de Oviedo y Baños, referindo-se a portos, dizia, em 1723, em sua Historia de la conquista y población de la Provinda de Venezuela, que a população de Caracas “fala a língua castelhana com perfeição, sem aqueles ressábios com que a contagiam nos demais portos das Índias”. E quase um século depois, Fernández de Lizardi, referindo-se aos hereges, assinalava: “Vivi em porto de mar, e conheci e lidei com alguns.” Da grande transformação que se operaria na sociedade criolla as cidades foram o campo apropriado e, entre todas, as que estiveram abertas a todas as idéias e romperam com todos os preconceitos, inclusive os da linguagem.
4. Reformas e revoluções
Por certo, a sociedade criolla constituiu-se em virtude de um processo social interno do mundo colonial: foi, antes de mais nada, o resultado do crescimento díspar dos grupos brancos e das castas. Enquanto estas últimas misturavam-se e multiplicavam-se com prodigalidade, os peninsulares iam e vinham e seus descendentes brancos criollos formavam grupos proporcionalmente cada vez mais reduzidos. Foi também o resultado da miscigenação e da aculturação, porque o abismo estabelecido originalmente entre conquistadores e conquistados, entre os brancos e as castas, diminuiu de fato, apesar dos esforços, muitas vezes mais formais que efetivos, envidados pelos conquistadores para contê-lo. Porém, a expansão da sociedade criolla e, sobretudo, a sua acelerada integração foi o resultado de uma conjuntura favorável que os grupos reformistas das metrópoles criaram e, graças a ela, primeiro se insinuou e logo se manifestou a diferenciação de uma nova elite desvinculada do novo conjunto: as burguesias criollas ilustradas.
Os ministros de Carlos III da Espanha e de José I de Portugal, Aranda, Floridablanca e Pombal, promoveram então reformas nas metrópoles. A pressão do mundo mercantilista sobre a península alcançou em meados do século XVIII tal grau de intensidade que os grupos mais lúcidos encabeçaram um movimento para renovar a vida econômica, social e cultural de ambos os reinos. Foi a era das “reformas”, isto é, do reajuste das estruturas, sem modificá-las, mediante decisões racionalmente elaboradas – sobre a base da experiência estrangeira – que baniram os preconceitos e os sistemas consuetudinários que impediam o melhor desenvolvimento das possibilidades.
Se o campo das reformas alcançou a política, foi apenas para acentuar o autoritarismo. Nenhum fator deveria opor-se às decisões do monarca, que eram a própria razão. Os tradicionais grupos de pressão – nobreza e clero – foram submetidos a uma política regalista, que consistiu, fundamentalmente, em limitar o seu poder. Uma monarquia rodeada de sábios e por eles aconselhada constituía o ideal dos novos grupos ilustrados.
A política reformista era, com certeza, filha da Ilustração, uma filosofia fundada na razão que aspirava conseguir que a razão, e não os costumes, governasse o mundo. Era, portanto, uma filosofia aristocratizante, que distinguia entre as minorias seletas e a plebe, na qual estavam incluídas não só as massas ignorantes mas também os grupos dirigentes, que “embora tivessem berço ilustre, e apesar de tudo isso, não saíram das trevas da ignorância”, como escrevia um autor muito representativo do novo pensamento. A essas minorias seletas, instruídas e iluminadas pela luz da razão, cabia o governo. E como a sua principal preocupação deveria ser que a sociedade contasse em todos os âmbitos com pessoas como elas, a educação foi um objetivo fundamental.
As reformas educacionais não deveriam consistir só em alfabetizar grandes massas. Mais importante era selecionar os melhores e inculcar-lhes as novas idéias, que então começavam a surgir codificadas, não apenas na Encyclopédie de Diderot e d’Alembert, como também nas obras de muitos autores que preferiam sistematizá-las e difundi-las, a tentar novas indagações científicas ou especulativas. Colégios, institutos superiores, bibliotecas e jornais científicos eram preferíveis às muitas escolas de ensino básico onde aprendiam as primeiras letras aqueles que não iriam além desse primeiro grau de instrução. O fim da educação deveria ser a ampliação das minorias seletas, impregnadas das novas ciências físicas e naturais, conscientes das peremptórias necessidades de uma sociedade injusta e estagnada, e compenetradas na nova verdade que Gaspar Melchor de Jovellanos expressava em seu Informe sobre el libre ejercicio de las artes:
A grandeza das nações já não se apoiará, como em outro tempo, no esplendor de seus triunfos, no espírito marcial de seus filhos, na extensão de seus limites nem no crédito de sua glória, de sua probidade ou de sua sabedoria… Tudo já é diferente no atual sistema da Europa. O comércio, a indústria e a opulência que nasce de ambos são, e talvez sejam por muito tempo, os únicos apoios da preponderância de um Estado.
Desta maneira, as reformas educacionais projetavam-se sobre as da sociedade e da economia. Tanto uma como a outra deveriam ser livres de atavismos e preconceitos. A igualdade dos homens constituía um princípio racional que condenava o sistema tradicional dos privilégios. Se havia pobres, eram vítimas do sistema e era necessário socorrê-los. Porém, o mais importante era que não houvesse ociosos: nem os pobres que não encontravam em que trabalhar nem os ricos que consideravam desonroso fazê-lo. Nada mais atrabiliário que o preconceito de que os ofícios mecânicos são indignos. E já que o mundo caminhava em direção ao predomínio do comércio e da indústria, nada mais justo do que outorgar liberdade a estas atividades para que se regulassem por si sós.
A atitude reformista incluía uma nova concepção da política colonial. Se até então havia predominado a idéia de que as colônias eram apenas uma fonte de riquezas para as metrópoles, urgia admitir que as sociedades coloniais tinham direito de trabalhar para o seu próprio benefício, e então a própria metrópole se beneficiaria. Era assim que entendiam os grupos progressistas peninsulares, e dessa forma ensinaram em seus livros e praticaram com sua política. Era inevitável que tivessem discípulos nas colônias.
A aplicação da política reformista cindiu as opiniões tanto no Brasil quanto no mundo hispânico. Como nas metrópoles, e talvez até mais, as inovações abalavam um sistema muito fechado cujos beneficiários viram seus privilégios em risco. Talvez a expulsão dos jesuítas – em 1759 no Brasil e em 1767 no mundo hispânico – tenha revelado o alcance da nova mentalidade, e desde então tomou-se visível que os peninsulares das Índias se dividiam entre os que apoiavam entusiasmados a mudança e os que a rejeitavam com veemência. Nessa cisão, ficou definido o lugar que haveria de ocupar uma burguesia criolla incipiente, quase potencial, mas que começaria a definir-se como um grupo ou como uma classe muito rapidamente, quando os seus membros vinculassem as suas expectativas imediatas aos pressupostos da ideologia reformista metropolitana. Se os peninsulares progressistas das Índias aceitaram e aproveitaram as condições criadas pela política renovadora, foi a incipiente burguesia criolla que assumiu o conjunto da ideologia reformista apoiada nas idéias do Iluminismo. Cada vez mais, seria essa ideologia que a definiria como grupo, que lhe outorgaria coerência e continuidade, embora, um dia, alguns setores descobrissem que a ideologia reformista podia transformar-se, a qualquer momento, em uma ideologia revolucionária, ao calor de imprevistas contingências.
Nesse ínterim, o movimento reformista, impulsionado a partir da península, seguia avançando nas colônias por obra de funcionários ilustrados: Vértiz, Bucarelli, Mayorga, Revillagigedo, Gálvez, Caballero y Góngora e Lavradio. O estabelecimento do livre comércio foi decisivo para estimular a vida econômica em geral, e em particular a das cidades. Houve, rapidamente, mais riqueza e mais trabalho. Houve mais hospitais e melhores cadeias. Houve teatros, imprensa e jornais. O Brasil conheceu várias academias: duas no Rio, a dos Seletos, fundada em 1752, e a Academia Científica do Rio de Janeiro, estabelecida em 1770; e uma em Vila Rica, a Arcádia, em 1760, na qual surgiu a Escola Mineira. Porém, esta última viu-se comprometida com a conspiração de Tiradentes, e a Academia Científica do Rio de Janeiro, que tanta influência tivera no desenvolvimento científico quanto no econômico, foi violentamente dissolvida, em 1794, por um vice-rei anti-reformista, o conde de Resende. Nesse meio tempo, renovava-se a Universidade de Charcas e fundavam-se, em Buenos Aires, o Real Convictorio Carolino e a Academia Náutica, todos centros sensíveis às novas idéias. O México via aparecer a Escola de Mineração, a Academia de San Carlos, de belas-artes, e o Jardim Botânico. Bogotá se transformava em um importante centro científico por obra do espanhol José Celestino Mutis e do criollo Francisco José de Caldas; mas, já antes da chegada de Mutis, a cidade possuía biblioteca pública, fundada pelo ilustrado Francisco Antonio Moreno y Escandón, e teve depois um observatório astronômico. Um afã de saber e um desejo de transformar o opaco mundo colonial vibrava nos jovens que se aproximavam das fontes do pensamento moderno.
Porém, através de estranhos canais, a reforma transformava-se em revolução. Aqueles que usavam perucas empoeiradas preferiam falar calmamente dos remotos benefícios da educação, mas algumas de suas idéias eram absorvidas pelos que estavam envolvidos no jogo da ação e lançadas sob a forma de lemas contra o sistema estabelecido. Uma onda de insurreições anticolonialistas, de alcance variado, começou a percorrer o império hispânico, em 1780. Enquanto nos campos se agitava surdamente a insurreição indígena que Túpac Amaru lideraria no final desse ano, já nos primeiros meses estouraram insurreições urbanas em Arequipa, Cuzco, La Paz, Charcas, Cochabamba e em algumas cidades e povoados do Peru. Possivelmente a mão da Inglaterra movia os fios do movimento, mas houve um eco espontâneo que se revela através dos fatos de trinta anos depois. O motim de Arequipa congregou “toda a plebe da cidade e dos extramuros ou dos subúrbios composta de mestiços, cafuzos, negros e índios, cujo número, entre homens e mulheres, passaria de mil”. Em Cuzco, um criollo mestiço, Lorenzo Farfán de los Godos, liderou a rebelião, e não o seguiram apenas grupos de índios, mas também os mestres de prataria da cidade. Em La Paz, o movimento adquiriu um caráter singular, porque o pasquim que apareceu nas ruas começava com a frase: “Morra o Rei da Espanha!”, exclamação nunca antes usada. Quase sempre os movimentos reconheciam um motivo concreto: novos impostos e, no caso de Arequipa, uma tentativa de equiparar a condição dos mestiços à dos índios, fazendo-os pagar o imposto anual. Foi a heterogênea sociedade criolla que se mobilizou, embora só em seus níveis inferiores, e parece que em muitas cabeças fervilhava um propósito separatista, algumas vezes vinculado à possibilidade de apoio da autoridade britânica. Ao final desse ano, dois movimentos organizaram-se em Santiago do Chile: a conspiração de Don Juan, em busca da proteção inglesa, e a conspiração dos franceses, que, como a anterior, não chegou a estourar, e que procurava a independência americana inspirada no exemplo das colônias inglesas da América do Norte.
Nesse ínterim, no Alto Peru eclodiu, em novembro de 1780, a rebelião de Túpac Amaru, movimento predominantemente indígena e rural ao qual, no entanto, não eram alheias muitas das idéias que circulavam entre os grupos ilustrados. Foi terrível o abalo que a rebelião gerou. Talvez muitos houvessem descoberto uma força insuspeitada que se ocultava na nova sociedade americana e as emoções que esse sentimento suscitou. Os grupos secularmente dominados acreditaram que havia chegado a hora da ação ou, pelo menos, a da esperança. Os grupos dominantes tremeram porque viram que se tornava realidade um temor que nunca havia abandonado os conquistadores. E o dramático episódio revelou aos criollos a sua posição ambivalente, que a partir de então foi, sem dúvida, tema de meditação e de análise em vista das perspectivas que ensejava. Porém, o movimento foi radicalmente sufocado e o temor dos dominadores passou, sem que o mesmo acontecesse com as preocupações a respeito do destino dessa nova sociedade que alcançava um novo ponto de amadurecimento.
Alguns movimentos urbanos se inseriram no excitante clima da insurreição indígena e rural. Eclodiram em Cochabamba e Charcas, porém os mais significativos foram os de Oruro e Tupiza. Em fevereiro de 1781, enquanto se resolvia o destino do movimento de Túpac Amaru, irrompeu em Oruro uma rebelião que revelou as violentas e desencontradas tensões dos diversos grupos sociais. Espanhóis, criollos, mestiços e índios entraram em um complexo jogo. Diante do perigo do levante indígena, os espanhóis decidiram cerrar fileiras e revelaram desconfiar dos criollos, com quem já mantinham uma longa disputa pela supremacia política dentro da cidade. Essa atitude manifestou-se em um ato transcendental: expulsaram do cabildo dois ricos mineiros criollos que acabavam de ser eleitos. Assim, enquanto crescia a insurreição dos mestiços dentro da cidade, peninsulares e criollos enfrentavam-se porque os primeiros temiam a aliança dos criollos com as castas. Efetivamente, assim ocorreu. Após assenhorear-se da cidade com o apoio dos índios vizinhos, e após violenta luta, a plebe urbana concedeu a autoridade ao mineiro criollo Jacinto Rodríguez como justiça maior. Contudo, as alternativas dos dias subseqüentes modificaram as alianças. Mestiços e índios avançaram demais na perseguição dos chapetones, e os criollos retrocederam: rejeitaram os seus aliados eventuais e pactuaram com os peninsulares, unidos àqueles que empreenderam uma enérgica repressão à plebe sublevada e aos índios que a apoiavam.
Esta ambivalência dos criollos ricos era o sintoma da situação social: pairava em suas cabeças o propósito de rechaçar os peninsulares, talvez o de obter a independência, porém hesitavam diante do importante passo que significava mobilizar a seu favor essa sociedade heterogênea, de cuja solidariedade não estavam seguros. Trinta anos depois, esse processo se esclareceria um pouco mais.
Características semelhantes teve o movimento que estourou em março de 1780, em Nova Granada, onde as medidas de um inspetor anti-reformista, Gutiérrez de Piñeres, suscitaram a rebelião dos centros mais atingidos. Criollos ilustres, como o próprio marquês de San Jorge, encabeçaram o protesto, que irrompeu violentamente no Socorro e alastrou-se rapidamente. Os “comuneros”7 receberam o apoio de grandes contingentes indígenas e, com essa força militar, enfrentaram as tropas enviadas de Bogotá. Por fim, houve um pacto e, em Zipaquirá, assinaram capitulações que estabeleciam a derrogação dos novos impostos, medidas de proteção para os índios, o repúdio aos funcionários espanhóis e a confirmação das autoridades estabelecidas pelos insurretos, o que implicava uma afirmação dos direitos dos criollos. Certamente, os acordos não foram cumpridos, porém o processo revolucionário evidenciou a postura dos grupos criollos.
Alguns movimentos posteriores foram mais claramente independentistas. No Brasil, por exemplo, Joaquim José da Silva Xavier, chamado de “Tiradentes”, liderou em 1789 um movimento revolucionário na cidade de Vila Rica. Acompanharam-no as personalidades mais ilustres desse núcleo intelectual que se havia formado no âmbito do comércio mineiro, cuja decadência por essa época inquietava os ânimos das classes populares, de alguns proprietários e, sobretudo, dessa minoria ilustrada que sonhava com uma república liberal. Reprimida pelo visconde de Barbacena, a conjuração abortou; porém, o jogo das forças sociais e políticas, assim como as ideologias sustentadas, revelaram a nova fórmula na qual se integravam as classes populares e as classes altas criollas: não foi em vão que a direção do movimento foi assumida por aqueles que, literariamente, afirmavam um “nativismo” que era como um grito de guerra. Sentido semelhante teve a Conjuração dos Alfaiates na Bahia, em 1798, que aglutinou a plebe mulata e os setores nobres da cidade no anseio de instaurar uma “República Bahiana”. Características similares também puderam ser observadas na conspiração de Manuel Gual e José María Espana, abortada em 1797, com a qual os venezuelanos, influenciados pela Declaração dos direitos do homem e pela doutrina de ingleses e franceses, haviam proposto pôr fim à dominação espanhola. Negros, mulatos e indígenas respaldaram a ação de criollos e espanhóis ilustrados que desejavam abolir a escravidão e abrir os portos venezuelanos ao comércio internacional.
Porém, estava-se já em plena crise européia. A partir de 1808, a corte portuguesa, ameaçada por Napoleão, havia-se instalado no Rio de Janeiro, e, em tomo do regente, peninsulares e criollos, portugueses e brasileiros disputavam a supremacia. Na Espanha, a crise também se havia desencadeado, e, diante da catástrofe, todos os grupos ilustrados das cidades americanas se comoveram, convencidos de que havia chegado a hora da independência. O mais ilustrado de todos foi, precisamente, o que iniciou a rebelião na cidade que mais se identificava com as novas idéias, Charcas, onde em 25 de maio de 1809 um pequeno conflito entre o presidente e os ouvidores da Audiência precipitou-se até transformar-se em um movimento revolucionário. Bernardo Monteagudo e muitos outros doutores e estudantes da universidade prestaram orientação ideológica ao movimento criollo, movimento popular e minoritário ao mesmo tempo, na medida em que se estabelecia uma correspondência entre os vagos desejos das castas e a ideologia reformadora, transformada agora pela força dos fatos em ideologia revolucionária. Homens de Charcas, e em particular José Antonio Medina, levaram a La Paz a mensagem revolucionária – concretizada na Proclama de la ciudad de La Plata a los valerosos habitantes de La Paz, atribuída a Monteagudo –, e a Junta Tuitiva, de nítida tendência independentista, foi toda constituída de criollos. Tudo o que parecia imaturo, em 1780, começava a parecer mais assentado, em 1810. E quando as forças revolucionárias que Buenos Aires mandou ao Alto Peru triunfaram sobre as espanholas em Suipacha, Juan José Castelli, membro da Junta portenha, congregou os índios nas ruínas de Tiahuanaco para explicar-lhes o evangelho da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
Naquele momento, os movimentos liderados pelas aristocracias urbanas criollas já haviam triunfado em Buenos Aires, Assunção e Santiago do Chile. Grupos esclarecidos, partidários das reformas inspiradas pela filosofia da Ilustração, lançaram a sua imagem do futuro político das colônias em uma ideologia revolucionária que desfraldava até às últimas conseqüências as linhas do reformismo ilustrado. A rigor, esses grupos substituíam velozmente os enfoques da Ilustração espanhola – moderada e cingida dentro da concepção monárquica – pelos da Ilustração francesa, que havia abandonado o reformismo desde 1789. Jovellanos havia sido substituído por Rousseau, e apesar de Napoleão já ter mostrado a sua intenção de conter o processo revolucionário, os grupos criollos restauraram as atitudes jacobinas para consumar a revolução que, mais ou menos ostensivamente, queria desembocar na independência. Características análogas tiveram os movimentos de Caracas, Cartagena e Bogotá, movidos pelo veemente discurso ilustrado de Francisco de Miranda e de Antonio Narino, tradutor da Declaração dos direitos do homem e de O cidadão. Como um símbolo, o movimento bogotano começou com o enfrentamento pessoal de um chapetón e um criollo, seguido de uma eletrizante polarização das classes populares atrás desses ricos comerciantes e ilustrados ideólogos que repetiam palavras de pouco sentido para eles. Porém, as palavras continham uma senha: certa identidade de propósitos, ainda que transitória, da qual podia resultar, pelo menos para as classes populares, um passo a mais no caminho da integração que almejavam.
Movimentos essencialmente urbanos e quase sempre da capital não só evidenciaram a ruptura entre peninsulares e criollos como também as fissuras que logo se insinuaram no cerne destes últimos. Níveis de riqueza e graus de integração criavam em cada cidade camadas diferentes. Contudo, as rupturas mais importantes apareceram entre os grupos de cidades diferentes entre si pela oposição de seus interesses e pela disputa do poder político. Córdoba e Montevidéu enfrentaram-se com Buenos Aires e resistiram ao movimento iniciado pela burguesia portenha. No México, um movimento preparado pelas classes altas criollas de Querétaro e San Miguel, com ramificações em outras cidades do interior, conseguiu aglutinar importantes camadas populares, em especial camponesas, que encetaram um violento sentimento antiespanhol, concordando com as aristocracias provinciais. No entanto, chocaram-se com os grupos nobres da capital, nos quais peninsulares e criollos se mantinham unidos pelo temor, tanto das novas correntes ideológicas quanto dos movimentos populares e, em especial, indígenas. A insurreição foi contida com a derrota de Hidalgo e de Morelos, porém irrompeu em várias cidades com novos chefes. A situação só mudou quando ocorreu na Espanha a revolução de Riego e a restauração da constituição liberal de 1812. Os grupos peninsulares da capital desencadearam um processo político destinado a perpetuar o absolutismo no México, mas a decisão acelerou o distanciamento entre peninsulares e criollos: eleito como instrumento da mudança, Iturbide pactuou com os rebeldes e gerou, por sua vez, outro processo de radicalização do separatismo que, em poucos anos, estabeleceria as bases do problema aproximadamente como no restante da América Latina.
Desta forma, sucederam-se nas cidades duas políticas que expressaram tanto o processo de interpenetração e diferenciação social quanto o de aceitação e adequação das ideologias. Enquanto a sociedade criolla se organizava, homogeneizando-se e, ao mesmo tempo, diferenciando-se, as novas minorias que nela se formavam, brancas e, em certa medida, mestiças, assumiam como sua própria política a concepção reformista dos grupos ilustrados peninsulares. Porém, da política reformista passaram para uma política revolucionária quando a conjuntura permitiu radicalizar o processo. O ritmo com que se pretendeu modelar a realidade de acordo com a ideologia mudou, embora a ideologia fosse a mesma.
5. As burguesias criollas: ilustração e mudança
As novas minorias que assumiram a direção de uma política reformista, primeiro, e de uma política revolucionária, posteriormente, foram as burguesias criollas, que, pouco a pouco, insinuaram-se como candidatas ao papel hegemônico na nova sociedade. A medida que se organizavam, defrontavam-se com as minorias – entre nobres e monopolistas – que formavam a elite da sociedade tradicional. A princípio, foi uma briga silenciosa, uma tensão entre um grupo forte e outro fraco, entre um já organizado e outro pouco expressivo, através de um processo de diferenciação, entre um reconhecido e outro que procurava ocultar as suas aspirações, entre um que tirava proveito da passividade do consenso e que fundamentava suas prerrogativas na origem privilegiada que seus membros alegavam e outro que não se atrevia a declarar quais eram os fundamentos em que apoiava as suas aspirações. Contudo, à medida que o tempo passava e a sociedade criolla se definia um pouco mais, à medida que as circunstâncias fortaleciam as possibilidades de mudança, o enfrentamento foi-se aprofundando e nem a antiga elite fidalga pareceu tão forte, nem a nova, tão fraca. Tanto o jogo das forças internas quanto o das externas parecia legitimar as pretensões da incipiente burguesia criolla.
Muitos traços inequívocos perfilavam a personalidade desse grupo social. Diante da elite tradicional, a burguesia criolla parecia mais enraizada, menos aprisionada às metrópoles no seu jeito de viver e em suas expectativas. Era como se tivesse cortado definitivamente o cordão umbilical e descoberto que estava só e lançada à própria sorte, na terra que os seus avós haviam conquistado. Sentia-se profundamente comprometida com a terra, sem outra alternativa: uma terra onde seus interesses particulares se afastavam, mas a cujos interesses gerais e a cujo destino sentia-se total e indissoluvelmente ligada. Essa terra representava uma sociedade extensa, heterogênea, composta majoritariamente de descendentes daqueles que seus avós haviam dominado. Porém, a burguesia criolla não os olhava do mesmo modo que seus avós haviam olhado os vencidos. Era, aliás, outra sociedade. A das vésperas da independência era, étnica e culturalmente, uma sociedade mesclada, de traços confusos e que participava da mesma vida daqueles que mantinham a pele branca. A burguesia criolla não olhava os de pele parda como o vencedor ao vencido, como se olha algo diferente e isolado. Talvez os olhasse como o superior ao inferior e, às vezes, como o explorador ao explorado; porém, certamente os olhava como membros de um conjunto no qual ela mesma estava integrada, que constituía um círculo necessário, do qual aspirava a ser o líder e sem o qual não podia ser líder de nada. Assim como com a terra, a burguesia criolla, geralmente de pele branca, estava e se sentia comprometida com o seu círculo social de pele parda.
Era, além disso, um grupo essencialmente urbano, constituído nas cidades e moldado às limitações e às lisonjas da vida urbana. A burguesia criolla havia herdado – no mundo hispânico, e em algumas cidades brasileiras, como Recife, São Paulo e Rio de Janeiro – a convicção de seus antepassados a respeito do papel hegemônico das cidades como centro da região, a partir de onde se comandava a vida do meio rural. E esta convicção afirmou-se cada vez mais, à medida que a sociedade urbana se imbuía da mentalidade mercantilista. Mercantilista foi a burguesia criolla, e, se chegou a ser constituída como um grupo social definido, foi, precisamente, porque os seus membros adquiriram essa mentalidade, ao passo que os que não a alcançaram ficaram, de alguma forma, fora dele. As civilizações hegemônicas eram mercantilistas e capitalistas – as da Inglaterra e da França –, e a burguesia criolla julgou, tal como seus avós fidalgos, que as cidades eram os focos da civilização, só que agora começava-se a pensar que o modelo peninsular estava caduco e que era necessário buscar outro, exatamente ali onde a civilização manifestava esse esplendor que antes parecia outorgar o poder e a glória e que, agora se sabia, como o recordava Jovellanos, só a riqueza oferecia. Foi especificamente a riqueza – a nova riqueza que as aventuras comerciais ofereciam – que consagrou a posição de cada um dos membros da burguesia criolla. Antes também havia sido assim, porém um gigantesco mascaramento havia dissimulado esse segredo. Na catarse racionalista do século XVIII, todos os véus caíram e não apenas ninguém se atreveu a negar esse fato, como também foi declarado ostensivamente. Pertencia-se ao novo grupo privilegiado em função da riqueza; e apesar de não ter faltado no próprio cerne da burguesia criolla certa apelação para uma fidalguia, talvez envergonhada, ficou cada vez mais explícito que eram as atividades do moderno mundo mercantil as que proporcionavam a riqueza e, com ela, a posição social.
Porém, não era a única coisa. A burguesia criolla aderiu veementemente a duas idéias que, por certo, não eram antagônicas. Acreditou que a sua posição dependia também da sua eficácia, e pensou que a sua eficácia – e a sua riqueza – tinham muito a ver com a sua educação. Era, precisamente, o que ensinava a filosofia da Ilustração. Rico, eficaz e culto, o homo faber americano sentia-se em condições de dominar o seu espaço e derrotar o dândi brilhante nos saraus, zeloso dos brasões que seus pais haviam comprado e saturado de desprezíveis preconceitos.
Movida por essas certezas, a burguesia criolla descobriu que a filosofia da Ilustração era a sua, porquanto havia sido elaborada por grupos homólogos europeus, mais maduros e sem dúvida mais solidamente estabelecidos na estrutura econômica. E a aceitou como uma ideologia, incorporando os seus elementos e sobretudo o sentido dinâmico que encerrava.
A filosofia da Ilustração tinha nuances, e, no princípio, as incipientes burguesias criollas aceitaram o matiz peninsular, moderado e, sobretudo, restrito. Uma acentuada predileção pelos conhecimentos científico-naturais estimulou o estudo da botânica, do qual podiam ser obtidas importantes informações para a agricultura. Discurso sobre el mérito y la utilidad de la Botánica é o título de um ensaio de um discípulo do sábio Mutis, o neogranadino Francisco Antonio Zea, o mesmo que depois editaria em Bogotá um jornal chamado El Semanario de Agricultura. E houve geólogos, como Francisco Javier Gamboa, físicos e matemáticos, como José Ignacio Bartolache, ambos mexicanos. O importante era acumular noções e conhecimentos práticos; e não apenas para compreender de uma maneira não tradicional a natureza, mas para entender da mesma forma os problemas fundamentais da filosofia e os da vida social e política. Foi nestes últimos campos que o matiz peninsular da Ilustração patenteou-se: o religioso e o político ficaram excluídos da controvérsia, e tanto o agnosticismo e o materialismo quanto o liberalismo político foram objeto apenas de estudos sub-reptícios. Uma cédula real de 1785 ordenava recolher e queimar as obras de Marmontel, Raynal, Montesquieu, Maquiavel, entre outros autores considerados perigosos. Sem dúvida, era possível falar em termos teóricos do “mau governo”, mas só se ficasse bem claro que era o funcionamento e não os princípios do sistema o que se criticava. E para falar do sacerdote ganancioso e sensual, era necessário contrapor a sua figura à do sacerdote piedoso e humanitário.
O que estava liberado era a crítica aos costumes; e tal como a fizeram o padre Feijó, Montesquieu e Voltaire, também a fizeram muitos pensadores americanos: entre eles, frei Servando Teresa de Mier, Esteban de Terralla y Landa, Mathias Aires Ramos da Silva de Eça e, sobretudo, aquele que batizou o seu jornal com o nome de El Pensador Mexicano, José Joaquín Fernández de Lizardi. Toda a sua obra – Periquillo Sarniento, Don Catrín de la Fachenda, suas crônicas costumbristas8 – está cheia dessa atmosfera urbana, civilizada, racionalista, que imprime à sua picaresca um tom tão diferente do de seus modelos espanhóis, do século XVII. Toda a sociedade de uma grande cidade – a maior cidade colonial – desdobra-se em analisá-la à luz da razão. No Periquillo, o ilhéu chinês que salva e hospeda o náufrago inicia com ele um longo diálogo sobre as crenças, usos e costumes ocidentais, no qual a burla e a crítica abalam a fraqueza dos preconceitos, a injustiça das normas sociais, a inutilidade das profissões comuns, tudo aquilo que o ilustrado polemista mexicano via à sua volta na metrópole colonial ou conhecia do mundo através de livros e jornais. Esse era o sentimento predominante nas novas burguesias criollas, que se haviam apropriado do espírito da Ilustração e construído, inspirada por ele, uma ideologia interpretativa da realidade, dissidente, crítica, que desembocaria com facilidade em um projeto de mudança.
Algumas vezes, esse projeto fluiu vagamente, através de eventuais opiniões sobre os fatos de cada dia; em outros casos, foi formulado em relação a interesses individuais e concretos, no argumento de um comerciante ou na opinião de um administrador ou de um ouvidor; porém, em alguns momentos sistematizou-se por obra de um pensador intransigente que se atreveu a dar-lhe forma clara e metódica, sem deixar, em nenhuma oportunidade, de insinuar as últimas conseqüências que previa. Os problemas econômicos e suas possíveis soluções foram analisados em Bogotá por Antonio Nariño, em seu Ensayo sobre un nuevo plan de administración en el Nuevo Reino de Granada; em Buenos Aires, o primeiro a tratar deles foi um comerciante ilustrado, Manuel José de Lavardén, nos discursos que proferiu na Sociedade Patriótica, agrupados depois com o título de Nuevo aspecto del comercio del río de la Plata; e, mais tarde, Mariano Moreno, no documento conhecido como Representación de los hacendados y labradores, que José da Silva Lisboa traduziu imediatamente, no Rio de Janeiro, acrescentando um prólogo em que reunia e transferia a argumentação do autor para o seu país. Moreno também se ocupou dos problemas sociais em sua Disertación jurídica a respeito da condição dos índios, aprofundando a argumentação do jurista da Universidade de Charcas, Victoriano de Villava, cujo Discurso sobre la mita de Potosí havia originado uma grande polêmica; o Diálogo entre Atahualpa y Fernando VII – anônimo, mas atribuído com verossimilhança a Bernardo Monteagudo – retomava o tema, ao passo que Mariano Alejo Alvarez escrevia em Charcas seu Discurso sobre las preferencias que deben tener los americanos en los empleos de América. Profundo e enérgico, o Memorial de agravios, do bogotano Camilo Torres, argumentava sobre a mesma coisa em termos políticos, ao passo que o Nuevo Luciano, de Francisco Eugênio de Santa Cruz y Espejo, criticava a partir de Quito a situação intelectual da colônia. Este profuso caudal de idéias foi pensado, exposto ou publicado entre 1797 e 1810, anos durante os quais a burguesia criolla tomou consciência de si mesma e identificou-se como uma classe social com uma ideologia. Essa ideologia transformou-se de imediato em um projeto de mudança, alentada tanto pelas “Sociedades Econômicas”, fundadas em muitas cidades a exemplo das peninsulares, quanto pelas publicações periódicas e as tertúlias que reuniam os que estavam vinculados por seus interesses e por suas idéias.
O projeto de mudança, a princípio, foi um projeto reformista dirigido à transformação da economia e da sociedade. Para a mentalidade tradicional, a América era um mundo mineiro onde bastava chegar para rapidamente adquirir-se riqueza. A alucinação dos primeiros conquistadores, deslumbrados pelo grande volume de metais preciosos que acumularam, renovou-se com o descobrimento sucessivo dos filões de Potosí e de Minas Gerais, que inundaram o mundo de ouro e de prata. Porém, à medida que a riqueza mineira foi diminuindo e que se tomou mais trabalhoso alcançá-la, a ilusão foi-se desfazendo. Além disso, extensas regiões latino-americanas que não possuíam essas riquezas iam sendo povoadas e tinham de firmar a sua economia em outras que exigiam mais trabalho, mais organização e mais atividade comercial. As doutrinas dos fisiocratas vieram para auxiliar as regiões desprezadas pela ausência dos metais e a elas se apegaram aqueles que se sentiam comprometidos com o destino dessas regiões.
Nas últimas décadas do século XVIII, as palavras mágicas das burguesias criollas ilustradas e reformistas foram agricultura e comércio. O que antes pareceu uma riqueza menor e subsidiária, transformou-se na grande esperança dos novos setores que, a partir das cidades, queriam impulsionar o desenvolvimento de sua região. Antes de mais nada, era necessário conhecer a riqueza potencial, explorar a natureza, conhecer as condições do solo e do clima. A seguir, teria de escolher-se os cultivos, selecionando-os tanto por sua adequação ao ambiente quanto por suas possibilidades no mercado. E posteriormente procurar melhorá-los, deixando de lado técnicas rotineiras e testando outras novas. Os jornais especializados em agricultura empenhavam-se em difundir estes progressos, mas deveria ser o exemplo o que provocaria a mudança, porque, como se dizia na época, “os agricultores não são homens de ler livros”. As burguesias urbanas acreditavam que os agricultores progressistas aplicariam os métodos modernos para arar a terra, substituindo a enxada por arados puxados por cavalos ou bois, e que os demais os imitariam ao comprovar os bons resultados. No entanto, era necessário também aprender a adubar as terras com fertilizantes artificiais, como já o faziam os agricultores mais progressistas da Espanha, depois aprender a semear, abandonando o costume de espalhar ao vento, e garantir a irrigação. Assim, se conseguiria diversificar e aumentar a produção. As burguesias criollas que apregoavam o progresso sentiam-se estimuladas quando viam os resultados. Em seu escritório de Caracas, Andrés Bello, pouco antes da independência, exaltava o que o viajante contemplava nos campos:
A Europa pela primeira vez sabe que na Venezuela há algo mais que cacau, quando vê chegar os navios da Companhia (Guipuzcoana) carregados de tabaco, anil, couros, dividivi,9 bálsamos e outras preciosas curiosidades que este país oferecia à indústria, ao deleite e à medicina do Antigo Mundo.
Era o triunfo da razão sobre a rotina.
Porém, não apenas o crescimento e a melhoria dos cultivos compraziam as burguesias criollas. Satisfaziam-na também o efeito indireto da riqueza agrícola sobre o modo de viver das populações, porque descobriam que seu programa se concretizava: cresciam os núcleos urbanos e, nos centros mais influentes, nos quais já havia um importante mercado interno, beneficiavam-se com a fartura da produção rural. Entusiasmado com o florescimento da agricultura nos últimos tempos, Bello escrevia:
Graças aos impulsos de tão favoráveis circunstâncias, saíram da miséria todas as populações que hoje alcançam este privilegiado estágio da agricultura da Venezuela. Victoria passou rapidamente de um pobre povoado formado por índios, missionários e espanhóis, que se dispersaram nas minas dos Teques, à favorável condição que tem atualmente; Maracay, que mal podia aspirar à condição de aldeia, goza hoje de todas as características e de todas as vantagens de um povoado agrícola, e seus arredores anunciam de muito longe ao viajante o espírito ativo de seus habitantes. Turmero deve também ao cultivo do anil e às plantações de tabaco do rei as melhorias que a fazem figurar entre os principais centros administrativos de Caracas; Guacara, San Mateo, Cagua, Güigüe, e muitos outros povoados, mesmo no início, devem a sua existência à influência do espírito agrícola protetor dos vales de Aragua; e as margens do majestoso Lago de Valência, que domina esta parte do país na Venezuela, vêem-se estimuladas por uma agricultura que, renovando-se todos os anos, provê em grande parte a subsistência da capital.
Era a época em que todos os governos coloniais procuravam a “integração das famílias nos povoados” para a sua segurança e a da vida rural.
As cidades deveriam oferecer às populações uma vida melhor, mais civilizada. O entusiasmo pela urbanização crescia quando se tratava das grandes cidades, porque nelas o comércio se desenvolvia e prosperava. As burguesias criollas lutaram com denodo pelo livre comércio e sonharam com portos repletos de navios de todas as bandeiras. Quando perceberam que não foram só os comerciantes monopolistas os beneficiados com a atividade mercantil, quiseram que o comércio fosse aberto também aos estrangeiros e em especial aos ingleses. “Deveriam cobrir-se de ignomínia pública os que crêem que abrir o comércio aos ingleses nestas circunstâncias é um mal para a Nação e para a Província”, escrevia em Buenos Aires o ilustrado Mariano Moreno, talvez porque estivesse convencido de que “ignoram seguramente os primeiros princípios da economia dos Estados”. As burguesias criollas, ao contrário, conheciam-nos bem e, convencidas de que era necessário nutrir o comércio, apoiaram não só o desenvolvimento da agricultura como o da pecuária e das indústrias; porém, não se opuseram à importação de produtos manufaturados, em especial ingleses, porque esperavam que isto multiplicasse a atividade mercantil, na qual apoiavam fundamentalmente o seu poder econômico. Era um avançado programa reformista que incitava a hostilidade dos setores monopolistas. No entanto, as burguesias criollas começavam a ter uma claríssima idéia de seus interesses e se sentiam respaldadas não só pela crescente pressão inglesa sobre os governos peninsulares como também pela difusão que atingiam esses princípios através dos tratados fundamentais dos economistas e, sobretudo, das obras de divulgação. Tal era o entusiasmo que as novas idéias econômicas provocavam, que um poeta guatemalteco, Simón Bergaño y Villegas, colocou-as em verso em sua Silva de economia política.
As burguesias criollas prestaram uma adesão não menos veemente às novas idéias sociais, educacionais e políticas. Uma sociedade híbrida e em processo de integração deveria revisar as teses ilustradas a respeito da igualdade humana e da condição do índio e do negro. As idéias de Villava e de Moreno sobre a situação dos indígenas, embora com antecedentes hispânicos, compartilhavam das tendências humanitárias e filantrópicas próprias da Ilustração. Da mesma fonte eram as suas idéias a respeito dos pobres e dos mendigos, porém, neste caso, a interpretação se tornava mais complexa. Fernández de Lizardi punha na boca do cavalheiro que queria proteger Periquillo Sarniento quando mendigava, fingindo-se de cego, algumas reflexões transparentes sobre o problema dos pobres, em especial urbanos. “Não me cabe ditar projetos econômicos gerais”, dizia, mas seu enunciado implicava um projeto:
Se o senhor me disser que embora queiram trabalhar, muitos não encontram em quê, responder-lhe-ei que podem ocorrer alguns casos como estes por falta de agricultura, comércio, marinha, indústria etc.; porém, não são tantos como se pressupõem. Não obstante, reparemos na multidão de vagabundos que são encontrados nas ruas, jogados, bêbados, encostados nas esquinas, metidos em jogos, bares e tavernas, tanto homens como mulheres; perguntemos e saberemos que muitos deles têm profissão, e outros, vigor e saúde para trabalhar. Vamos deixá-los aqui e indaguemos pela cidade se há artesãos que precisem de ajudantes e residências onde faltem criados e criadas e, sabendo-se que há muitos que os necessitam, concluiremos que a abundância de vagabundos e viciosos (em cujo número entram os falsos mendigos), não se deve tanto à falta de trabalho como se acredita, mas à ociosidade à qual estão acostumados.
O amor ao trabalho e à educação eram para os reformistas os caminhos pelos quais se podia recuperar aquele que, por sua origem, não tinha bens, ainda mais sendo ambas as coisas também válidas para as pessoas bem situadas. Uma intensa polêmica surgiu em volta dos “trabalhos mecânicos”. Para a mentalidade fidalga era preferível ser
Vagabundo, jogador,
Alcoviteiro e caloteiro
conforme dizia Simón de Ayanque, em Lima, pois
Que o tem por mais honrado
Que ser bom artesão,
Porque ainda o ofício mais nobre
Avilta o cavalheiro.
Em tomo deste tema, Fernández de Lizardi fazia girar, no México, toda a controvérsia a respeito da educação de Periquillo Sarniento. “Um fidalgo sem profissão é mais bem recebido e tratado com mais distinção em qualquer lugar decente do que outro fidalgo alfaiate, latoeiro, pintor”, dizia a mãe. E o pai replicava, expressando o ponto de vista ilustrado: “Em todos os lugares estimarão mais ao alfaiate e inclusive ao sapateiro do que ao fidalgo patife, ocioso, esfarrapado e caloteiro, que é justo aquilo que não quero que o meu filho seja”.
A educação era necessária; sim, ou melhor, a instrução, isto é, o aprendizado de noções modernas e de coisas úteis, e incorporação de princípios ilustrados que substituíssem os falsos e fúteis preconceitos de pessoas vulgares. Só assim se podia ser um homem útil à sociedade e, sobretudo, um homem superior que nela ocupasse um lugar proeminente por seus méritos e por suas virtudes. Se, além disso, se queria ser um bom vassalo e um bom habitante da cidade, era necessário ser progressista, mas dentro dos limites que o reformismo impunha. Podia-se exclamar, diante dos abusos de um servidor público: “Viva o rei e morra o mau governo!”; e podia dizer-se, por causa de uma discutível ordem real: “Acata-se mas não se cumpre”. Além destes limites, o reformismo transformava-se em revolução.
Sem dúvida, o projeto reformista tinha implícito o projeto revolucionário: foi uma conjuntura favorável o que levou as burguesias criollas a optar pelo segundo. Aceitaram o desafio em algumas cidades e provocaram revoluções claramente urbanas, com as quais deram os passos irrevogáveis que as tiraram do velho caminho e as puseram no novo. Porém, não houve mudança ideológica mas, apenas, um aprofundamento e talvez uma radicalização da ideologia à qual até então estavam ligadas. O aprofundamento consistiu em aceitar algumas idéias além das que estavam contidas na fisionomia do pensamento ilustrado, mas que não faziam parte do matiz peninsular dessa ideologia. Alguns aceitaram as idéias políticas sob suas formas mais radicais – os jacobinos – e outros, sob as formas moderadas; essa aceitação e os passos que deram no terreno fático libertaram as burguesias criollas do ritmo moroso que a postura reformista impunha à mudança. Agora tudo podia ser feito mais rapidamente, sem obstáculos, sem temor de ultrapassar os limites impostos pela velha estrutura tradicional; mas o que se queria fazer era a mesma coisa que o projeto reformista continha. Essas idéias econômicas, sociais e educacionais foram as mesmas que inspiraram a conduta das burguesias criollas depois das revoluções urbanas.
O grave foi que essas revoluções urbanas, embora apenas políticas na intenção, destruíram o arcabouço que sustentava o conjunto da velha estrutura urbana e rural e libertaram os seus diversos componentes para que buscassem um novo espaço. Era inevitável, já que as cidades garantiam todo o sistema. Viu-se então que essa sociedade criolla que se havia constituído lentamente liberava as suas forças, superava os esquemas tradicionais e começava a trabalhar para reorganizar-se, concorrendo os diversos grupos na conquista de posições. Os tradicionalistas – e os que no jogo aberto, às vezes ferrenho, tornaram-se tradicionalistas – viram apenas o fenômeno da luta pelo poder e chamaram a situação de crise de anarquia. Porém, o que se disputava era muito mais do que o poder: era o lugar para cada um na estrutura econômica e social. Contida até então, ainda que insinuando de modo evidente a sua capacidade impetuosa, a sociedade criolla explodiu ao quebrar-se a ordem político-colonial e ao extinguirem-se definitivamente os fundamentos da estrutura tradicional.
As burguesias criollas que desencadearam e encabeçaram os movimentos revolucionários urbanos tentaram manter o projeto reformista – lento e moderado – enquanto estava relacionado à estrutura social e econômica. No entanto, a conjuntura revolucionária modificou com tanta rapidez a situação da véspera que essa política deparou com fortes resistências. O que deveria ser reformado, em especial a sociedade, mudou logo a seu modo e deixou as burguesias criollas deslocadas. Os velhos problemas foram superados por outros novos, mais graves e urgentes, talvez previstos mas não calculados quanto a sua capacidade de reverter a ordem tradicional. As burguesias criollas tiveram de fazer um grande esforço para enfrentar a nova situação. E nisso, os grupos desintegraram-se, seus diversos setores reagruparam-se, algumas vezes em insólitas combinações, pois havia que adequar o velho projeto a uma nova realidade que criava problemas inéditos.
Precisamente, o mais agudo deles foi o das relações entre o campo e a cidade, entre as novas sociedades rurais e as burguesias criollas, de modo especial urbanas e convencidas de seu direito à hegemonia, na medida em que a cidade significava para elas a civilização, e o mundo rural, a ignorância e a tradição, em primeiro lugar, e a barbárie, em seguida. O duelo começou rapidamente, a partir do momento em que as burguesias criollas e urbanas convocaram as populações rurais para formar em primeiro lugar os exércitos que defenderiam a revolução, e depois cada uma das facções que disputavam o poder. Com as armas na mão, a nova sociedade rural entrou no elenco de personagens que representavam o drama: porém, a sua presença não havia sido prevista e quebrou os esquemas das burguesias criollas urbanas. Em virtude de sua função econômica no processo de produção e de sua formação étnica e social, o surgimento das populações rurais questionou o próprio sentido das revoluções. Para as burguesias criollas, era evidente que haviam sido protagonistas de uma revolução política, na qual o poder havia passado das mãos de um grupo para as de outro. Contudo, elas sabiam que advinham do grupo deslocado, que era um grupo dentro da mesma classe; e inclusive as classes populares urbanas percebiam que era isso o que havia ocorrido e satisfaziam-se com as perspectivas que a mudança de poder proporcionava. Em compensação, o surgimento das populações rurais modificava o projeto e suscitava a dúvida sobre se o que havia sido produzido era, além dos interesses de seus promotores, uma revolução social. Era, sem dúvida, o que sombriamente começavam a sentir as populações rurais convocadas para a defesa do novo regime. E foi o que nitidamente perceberam as burguesias criollas, que a partir desse momento tiveram de incluir esse problema entre os novos que não estavam previstos nem em seu projeto reformista nem em seu projeto revolucionário. Assim que se abrandou a euforia inicial, as respostas começaram a insinuar-se, adaptadas aos termos da ideologia da Ilustração. Moderados ou jacobinos, os membros das burguesias criollas determinaram o alcance de seus passos e decidiram restringir o processo dentro dos termos de uma revolução política. Foi a decisão das sociedades urbanas dirigidas por sua nova elite. No entanto, tiveram de enfrentar uma revolução social que começou a ser feita com espontaneidade, sem ideologia a princípio, mas à qual logo se oferecia uma, antiiluminista, que já estava sendo formulada na Europa: a do romantismo, que em uma de suas múltiplas facetas reivindicava a valorização do povo e sobrepunha sua inspiração genuína aos rigorosos preceitos da razão. Assim começou a época que as burguesias criollas, urbanas e ilustradas, consideraram anárquica.
O problema, imprevisto dentro da ideologia iluminista porque havia sido provocado pelas tensões internas da estrutura social e econômica, trazia outros consigo. Um deles, concreto e decisivo, relacionava-se com a origem da soberania; outro, mais abstrato, implicava uma decisão sobre se conservava ou destruía a ordem colonial. De fato, o primeiro foi resolvido, e talvez os princípios do código napoleônico já tivessem entrado em muitas mentes. As burguesias criollas aliaram-se por intermédio dos cabildos, e estes foram os que se transformaram em representantes do povo; porém, tiveram de enfrentar a dissidência daqueles que não se sentiam representados por eles: foram as populações rurais ou, ainda, aqueles que aglutinaram as populações rurais e as utilizaram como força de apoio em sua luta com as burguesias urbanas ou com algumas de suas facções. O segundo problema foi apenas um tema de meditação a longo prazo, mas esteve presente em muitas mentes; e apesar de teórico, encerrava algumas decisões importantes a respeito da abrangência e da consumação da mudança. Porém, a tumultuada crise social e política posterior às revoluções urbanas frustrou a coerência tanto do projeto reformista quanto do revolucionário, e as decisões refletiram essa situação.
O ponto inicial e fundamental da manutenção ou não da ordem colonial consistia na independência política, combinado com o da forma de governo. Houve variadas opções: a independência total dentro de um sistema republicano ou monárquico, e vagas formas de protetorado, entre as quais não estava excluída a possibilidade de um protetorado inglês. No fundo, cada grupo de opinião, dentro das burguesias criollas, estabeleceu as suas preferências segundo outro dilema ao qual a questão se reduzia: precisamente a ideologia da Ilustração. Era a escolha entre a ordem e a anarquia, entre o autoritarismo e o jogo livre das forças sociais. Porém, nem todas as forças sociais tinham o mesmo caráter para a burguesia criolla, urbana e ilustrada. Uma coisa era a “gente decente” e outra o “povão”; e mesmo dentro deste, uma coisa era a plebe urbana e outra, a plebe rural. A primeira opção das burguesias urbanas foi a favor da “gente decente” e da ordem; mas à medida que o tempo passou e as outras forças sociais ganharam vigor e infiltraram-se através de certos grupos da própria burguesia criolla que não rejeitaram ou buscaram o apoio rural, as burguesias urbanas dividiram-se em facções que, em sua luta pelo poder, tornaram-se mais compreensivas da nova realidade social.
O outro ponto, não menos importante, foi o da opção entre um regime centralizado ou outro em que se reconhecia a identidade política das áreas regionais que haviam começado a adquirir caráter próprio. A centralização pressupunha confirmar o valor das cidades e de suas burguesias, manter a rede urbana que confluía para as capitais, perpetuar uma ordem que ignorava o processo de diferenciação real que havia sido produzido em cada área vice-reinol e mantinha a indiscriminação que a conquista havia estabelecido e que o regime de intendências mal havia modificado na área hispânica. O regionalismo era a sua antítese e ignorava o princípio do uti posidetis, afirmando pura e simplesmente a realidade incontestável das regiões que haviam descoberto a si próprias e cujos habitantes não reconheciam outro espaço a não ser aquele que consideravam como o seu, independentemente da estrutura institucional. E, como no caso da independência e dos regimes políticos, as burguesias criollas, urbanas e ilustradas, aferraram-se à concepção centralizadora e dividiram-se em seguida, segundo os acasos da luta das facções pelo poder.
A atitude pragmática daqueles grupos que não hesitaram em buscar o apoio das novas forças sociais desencadeadas após os movimentos revolucionários urbanos foi o que provocou a crise das burguesias criollas, todas originariamente urbanas e ilustradas, e depois, pouco a pouco, diferenciadas entre os que continuavam presos a sua ideologia e se negavam a reconhecer a nova realidade social, e os que, em compensação, a reconheceram e a exaltaram, uns porque esqueceram a sua ideologia, outros porque nunca haviam estado muito convencidos de sua vigência, e outros, enfim, porque embora socialmente pertencessem à burguesia urbana, mantinham-se vinculados às concepções pré-ilustradas. Dividida, a burguesia criolla deixou de ser exclusivamente a elite da nova sociedade e abriu caminho para outra elite, criolla, mas menos ligada a uma ideologia do que a uma situação: a elite patrícia.
Notas
1. Cielito: dança e canto dos gaúchos (N. do T.)
2. Cholo: mestiço de branco e índio (mameluco). (N. do T.)
3. Gachupines ou chapetones: no Peru, emigrante espanhol recém-chegado à América. (N. do T.)
4. Romance: forma popular de verso de oito sílabas. (N. do T.)
5. Pulque: bebida alcoólica, branca e espessa, que se obtém fermentando o suco da pita. (N. do T.)
6. Chicha: bebida de milho fermentado. (N. do T.)
7. Comuneros: movimentos populares contra as autoridades coloniais da América. (N. do T.)
8. Costumbrismo: gênero que descreve com objetividade realista os costumes típicos de um país ou de uma região. (N. do T.)
9. Dividivi: árvore da família das leguminosas da América Central e da Venezuela, de cujas favas se extrai o tanino, usado para curtir peles. (N. do T.)
5.
AS CIDADES PATRÍCIAS
Consolidada a independência nas primeiras décadas do século XIX, diversas circunstâncias provocaram transformações fundamentais no perfil das cidades criollas. Não em seu aspecto físico, que pouco mudou até o final do século, mas, sim, em sua estrutura social. As burguesias criollas, constituídas a partir dos últimos decênios do século XVIII, abriram caminho a um novo patriciado que se formou nas lutas pela organização das novas nacionalidades e que compôs a classe dirigente das cidades, acima de uma massa heterogênea à qual se incorporaram muitas vezes novos elementos de origem rural. Advindo espontaneamente de uma sociedade que buscava uma nova elite, o novo patriciado, inequivocamente criollo, aceitou à sua maneira as responsabilidades do destino incerto que esperava cada uma das novas nações e, através de inflamados conflitos, os seus diferentes grupos traçaram o esboço do que seria cada país. As cidades foram patrícias porque nelas se desenvolveu o experimento fundamental do processo constitutivo de cada país e, em seu âmbito, consolidou-se a nova classe dirigente, com o seu modo peculiar de viver e de pensar.
A independência havia criado de fato as novas nacionalidades; porém, ao identificá-las, propusera-lhes o árduo problema de esboçar urgentemente o seu perfil peculiar e traçar o itinerário possível do seu caminhar futuro. No entanto, como a independência havia desfeito os laços que uniam a sociedade criolla, ficou também exposta a dúvida sobre a que grupos correspondia essa missão. As burguesias criollas, apegadas aos seus velhos modelos iluministas e indecisas diante da nova sociedade que emergia, transformaram-se ao entrar em contato com os novos grupos de poder que apareceram; e desses e daquelas surgiu o novo patriciado, entre urbano e rural, entre iluminista e romântico, entre progressista e conservador. Coube-lhe a tarefa de conduzir o fluxo da nova sociedade dentro dos novos e incertos estados, e a rigor constituiu-se no exercício dessa tarefa. Não era um grupo preexistente, nem foi homogêneo desde o início. Os interesses opostos, as ideologias em jogo e as alternativas de um processo social muito confuso enfraqueceram os projetos que, várias vezes, foram esboçados pelos diversos subgrupos que cobiçavam a hegemonia. Após a independência, houve em quase todos os lugares um prolongado período de conflitos que, em geral, levaram a longas e cruentas guerras civis. A sociedade criolla havia emergido, e o surgimento de novos grupos sociais, antes inoperantes, provocou uma descaracterização dos moldes que até então ordenavam a sociedade. Apenas um projeto para o futuro era sólido: o das burguesias criollas impulsoras da independência. Mas o pressuposto desse projeto era uma sociedade ultrapassada e que se modificava de modo rápido, por isso, ficou invalidado, pelo menos por algum tempo. Era necessário encontrar outras opções, talvez menos definidas, porém mais adequadas à nova situação.
Na busca dessas opções, no jogo de azar de impor-se uma delas, constituiu-se o novo patriciado. Alguns dos seus grupos mostraram certa lucidez intelectual, porém a maioria trabalhou com espontaneidade, movida por seus interesses imediatos, econômicos ou políticos, sem se preocupar com a coerência de seus atos, com a sua legitimidade, nem com as suas implicações ideológicas. A rigor, era a ação o que importava para aqueles que emergiam da sua posição de marginalidade, porque da ação bem-sucedida esperavam o poder e com ele uma posição vantajosa para muitos quando chegasse o momento de negociar os termos de uma nova ordem: uma ordem que só alguns poucos procuravam prever metodicamente, de acordo com definidos princípios políticos, sociais e econômicos, ao passo que os demais a esperavam apenas como fruto do ajuste fático das situações reais. A disputa foi constante e as cidades foram muitas vezes ágoras agitadas, onde à discussão das idéias seguia a rebelião da caserna ou a mobilização popular. Legislaturas e congressos reuniam os atores do drama, embora talvez os protagonistas se congregassem nos quartéis. Os jornais ventilavam as idéias e nas tertúlias misturavam-se os comentários doutrinários e o rumor intencional sobre o jogo dos personagens. E não poucas vezes houve enfrentamentos nas ruas, com mortos para vingar, cuja memória exacerbava as paixões e os ódios facciosos.
Houve, em meados do século XIX, um apaziguamento das tensões, precisamente porque se vislumbraram em muitos lugares os termos da adequação à realidade. Cada grupo, cada setor, cada região havia revelado não só as suas tendências como também a sua capacidade para impô-las aos demais. Assim começou um deslizamento da anarquia em direção a algum tipo de organização fundada, às vezes, na força hegemônica de um dos grupos, e outras, na atitude de negociação que surgia após longos enfrentamentos. A própria instabilidade social conferia um valor mágico às constituições sancionadas solenemente, porém o que parecia o fim de um conflito foi, às vezes, o início de outro. Lutou-se com fúria pelas constituições, e o prêmio pela vitória foi, em algumas ocasiões, impor uma delas. No entanto, por volta de 1880, as novas gerações patrícias – filhos ou netos dos fundadores da nacionalidade – haviam consumado o seu equilíbrio econômico, determinado os seus interesses e adequado os seus objetivos às suas possibilidades. A atitude transacional acentuou-se e resultou, em alguns casos, em uma ordem constitucional de amplo consenso entre os grupos de poder e, em outros, no estabelecimento de um poder pessoal forte, mais forte que a própria constituição.
Por certo, o longo processo local que se desenvolveu em cada país a partir da independência até 1880 – término aproximado do período das cidades patrícias – viu-se inscrito no quadro das grandes transformações econômicas que a Europa e os Estados Unidos sofreram na época. A revolução industrial desencadeada na Inglaterra havia-se estendido a outros países e a pressão econômica foi cada vez mais forte sobre a América Latina. Houve pressão sobre os mercados através de financiadores que negociavam empréstimos e de comerciantes que vendiam produtos manufaturados e compravam matérias-primas; mas não faltaram também as pressões militar e política. As grandes potências julgaram-se autorizadas a conquistar mercados à força e, eventualmente, bloqueavam os portos – como em Valparaíso, El Callao ou no rio da Prata –, algumas vezes, incitavam guerras – como a do Brasil, a do Paraguai e a do Pacífico – e, finalmente, em outras, instituíam estranhos regimes como, por exemplo, na insensata aventura imperial de Maximiliano, no México. Até um desconhecido aventureiro norte-americano – William Walker – achou que podia impunemente tomar o poder na América Central.
O campo recebeu os impactos da revolução industrial e viu aparecer a força do vapor aplicada aos velhos engenhos açucareiros. Depois, foram vistos os barcos a vapor e começaram a expandir-se as estradas de ferro. Porém, a produção fluía para as cidades, e foi nelas, já iluminadas a gás, que se notou uma crescente atividade, sobretudo após a metade do século XIX. O comércio de importação e exportação e os bancos estrangeiros impulsionaram a vida urbana: pouco a pouco, os descendentes do velho patriciado, estabelecidos em cidades que queriam imitar as da Europa, descobriram que a melhor opção para os novos países era adscrever-se ao desenvolvimento das grandes potências industriais.
1. A cidade e o campo
A independência desfez os laços que uniam a sociedade criolla, e tanto as guerras de emancipação como as guerras civis propiciaram a ocasião favorável para que os seus diversos grupos irrompessem no cenário da vida social, afirmando a sua personalidade, as suas tendências e as suas expectativas. Algumas vezes a plebe urbana insinuou-se diante das burguesias criollas, mas o que alterou substancialmente o quadro foi o brotar daquela sociedade rural que havia surgido no final do século XVIII e que, de repente, encontrou uma missão nas circunstâncias pós-revolucionárias e, com ela, perspectivas não suspeitadas anteriormente. Embora nunca o tivesse sido antes, viu-se convocada a participar da luta pelo poder e pelas ideologias, e respondeu atendendo ao chamado e reclamando o papel que sua força parecia justificar.
Em sua origem, a América Latina havia sido um mundo de cidades. No entanto, o campo emergiu subitamente e invadiu essas ilhas. O campo era o lar mais querido da sociedade criolla e o foco do criollismo. A sociedade rural colocou suas cartas na mesa e revelou que em seu seio não só se produzia a riqueza que garantia a sobrevivência de todos como também se amalgamava essa população arraigada que podia fazer de cada âmbito colonial uma nação independente e de aspecto definido. O campo afirmava seu papel de matriz da nova nação quando derramava sobre os campos de batalha e sobre as amedrontadas cidades as suas indomáveis multidões a cavalo, comandadas pelos improvisados chefes que pareciam ignorar o que queriam. Contudo, essa ignorância era uma ilusão dos grupos ilustrados urbanos. Assim como os homens que os seguiam, os latifundiários que se proclamavam coronéis ou generais transmitiam uma vaga ideologia que o campo também afirmava: o criollismo, uma indefinida filosofia de vida que mergulhava suas raízes em uma já secular experiência cotidiana e que, por isso, tinha mais força emocional do que doutrinária. Era uma ideologia espontânea, cujos termos começaram a tornar-se precisos quando se defrontou com a ideologia das cidades e se expandiu sustentando uma maneira de viver e um reduzido conjunto de idéias e de normas baseadas na experiência. Como ideologia espontânea, o criollismo amalgamava uma forma de vida e uma forma de mentalidade, sem discriminar esta última com muita clareza. Por este motivo, não se opôs a uma só das ideologias que predominavam nas cidades, mas, sim, a todas juntas, como ideologia antiurbana, embora mostrasse mais afinidade com aquelas atitudes que representavam certa adesão às formas tradicionais de viver e de pensar. Lar do criollismo, o campo primeiro assediou as cidades com uma força cega que pareceu devastadora e, a seguir, cada vez com mais brandura, até que se viu envolvido na complexa rede dos problemas desse outro mundo – também real – no qual as cidades estavam inseridas e que haviam aprendido a conhecer à força de estudar a complexa trama do mundo mercantil.
Como expressão de um sistema econômico, ou melhor, de um sistema produtivo que via nas cidades o sinuoso mecanismo da intermediação, a sociedade rural irrompeu como um fator de poder. Porém, logo se viu que o seu objetivo não era aniquilar as cidades, mas apoderar-se delas, talvez esperando que se submetessem a seus padrões. Por certo, foi assim em parte. As cidades ruralizaram-se de alguma forma, mas só em sua aparência, nos costumes e nas normas, na declarada adesão a certos hábitos regionais. No fundo, a sociedade rural foi reduzida aos poucos, outra vez, aos esquemas urbanos. Até os costumes e as normas voltaram a ser urbanas ao final de pouco tempo, fosse Páez ou Rosas quem dominasse a cidade. E, enquanto isso, a sociedade rural – a produtora de riqueza – adaptou os seus mecanismos outra vez ao complexo sistema intermediário que as cidades controlavam sabiamente, e só manifestou sua influência e seu poder incorporando-se a ele e compartilhando o comando com os experimentados grupos que, após se submeterem ao poder rural, recuperavam lentamente suas posições, atraindo os eventuais vencedores, ou talvez, apenas introduzindo-os no comando de seus complexos mecanismos.
De qualquer maneira, depois da independência, as cidades deixaram de ser o centro exclusivo das decisões econômicas e políticas. Continuaram sendo, por certo, os núcleos sociais mais organizados e, por isso, recuperaram pouco a pouco o seu poder, apesar de terem de substituir as suas velhas elites por outras mais aptas a uma negociação com a sociedade rural. O campo transformou-se, por sua vez, em um centro de decisões, e as cidades tiveram de aceitar essa bipolaridade. Porém, apenas excepcionalmente as decisões da sociedade rural foram cegas. Ela aceitou, por sua vez, o papel das cidades e quis controlá-las, para dominar desse modo quem a dominava. Na prática, a elite rural urbanizou-se tanto ou mais do que se ruralizaram as cidades, e, em pouco tempo, integrou-se em sua sociedade e no seu jogo. “Os santiaguenhos – escrevia Vicente Pérez Rosales, falando da capital chilena – são sempre os contra-regras e os diretores de cena no drama tragicômico da nossa vida pública.” No entanto, os santiaguenhos, como todas as sociedades urbanas desta época, haviam mudado de fisionomia. Continuavam mandando em sua região e em todo o país; porém, intrinsecamente, como grupo social, estavam integrados de tal maneira que a sua representatividade era maior que a das antigas burguesias criollas: uma parte da sociedade rural havia conseguido ultrapassá-los.
As cidades transformaram-se, mas o âmbito campesino também mudou. A independência não modificou, por certo, o sistema produtivo. O tipo de propriedade ou de simples posse como nos tempos coloniais subsistiu e manteve-se durante várias décadas o sistema de primogenitura. E, sem dúvida, subsistiram os sistemas tradicionais de recrutamento de mão-de-obra e as técnicas de produção. Muitas fazendas ficaram em mãos das mesmas famílias, como a chamada “Cañada seca”, que Guillermo Enrique Hudson descrevia em Allá lejos y hace tiempo, mas outras mudaram de mão durante as vicissitudes da revolução e das guerras civis. Apareceram estrangeiros que exploraram tenazmente a terra, como o alemão que Pal Rosti encontrou em “El palmar”, em 1857, produzindo café no vale venezuelano de Aragua, ou os norte-americanos que exploravam engenhos nas ilhas do Caribe, ou aqueles ingleses que Hudson recorda entre os seus vizinhos do pampa argentino. Mas apareceram sobretudo novos proprietários ou arrendatários nas velhas haciendas, muitos deles valendo-se de seu poder e de sua influência, porque nada era tão fácil para quem exercia o poder – nacional ou local – quanto arruinar um latifundiário e obrigá-lo a esvaziar a sua terra ou abandonar o seu gado. Por esta via, constituíram-se muitos camponeses novos-ricos que puderam fortalecer-se e aumentar o seu poder graças à sua nova riqueza e aos homens que podiam mobilizar.
Nas velhas fazendas continuava-se trabalhando como sempre, e todas as que a marquesa de Calderón de la Barca descreveu em seu livro La vida en México parecem-se, em sua essência, com aquelas que evocaram Jorge Isaacs e Guillermo Enrique Hudson, ou com as fazendas brasileiras tradicionais. Porém, pouco a pouco, as coisas começaram a mudar. Sem dúvida, a atitude dos latifundiários modificou-se. Como no caso de Mauá e dos plantadores paulistas de café, a mentalidade do fazendeiro tradicional ou do latifundiário começou a impregnar-se das tendências do homem de empresa. O produtor compreendeu que não devia perder de vista os mecanismos da exportação, porque nela entranhavam-se as novas possibilidades que o mercado internacional lhe oferecia, estimulado pelo desenvolvimento industrial da Europa e dos Estados Unidos. No entanto, também compreendeu que tinha de aceitar e incorporar as inovações técnicas que na época deslumbravam o mundo, sobretudo pelo perigo que significava para sua exploração a crise cada vez mais ameaçadora da mão-de-obra. Nas primeiras décadas do século, os produtores mais progressistas começaram a introduzir máquinas a vapor, em especial nos engenhos açucareiros de Cuba; e, à medida que a experiência crescia e que se superava a polêmica a respeito dos benefícios ou inconvenientes da máquina, seu uso generalizou-se para outras regiões e para outros setores da produção. Outros refinamentos técnicos começaram também a ser introduzidos, de acordo com modelos estrangeiros.
Novas técnicas agrícolas, pecuárias e mineiras foram as respostas ao chamamento internacional para a exportação. Os mercados estrangeiros requeriam mais produtos, porém exigiam qualidade, e os produtores mais atentos esforçaram-se, sobretudo depois da metade do século XIX, para melhorar a sua produção. Os pecuaristas trataram de melhorar o seu gado, cruzando-o com reprodutores ingleses ou franceses, os agricultores começaram a cuidar das suas plantações eliminando pragas, melhorando a irrigação e introduzindo novas variedades para obter um produto capaz de competir no mercado internacional: tudo em pequena escala no princípio, porém cada vez maior à medida que transcorria a segunda metade do século XIX e se criavam condições com certa estabilidade.
Alguns produtos mereceram particular preocupação porque abriram novas possibilidades para a exportação. As lãs ofereciam grandes possibilidades para a Argentina, mas se começava a prever a possibilidade de vender carne fresca na Europa se se conseguisse melhorar sua qualidade graças ao cruzamento que acabava de iniciar-se. A demanda era grande, e em relação às escassas possibilidades européias de satisfazê-la, o Peru adquiriu importância por sua disponibilidade de fertilizante natural. Em 1882, o peruano Luis Esteves, historiando o processo econômico de seu país nas últimas décadas, escrevia:
As desertas ilhas de Chincha tornam-se um depósito fecundo de nitrogênio: a terra envelhecida da Europa, já condenada à esterilidade, recebe com este fertilizante novas substâncias vitais. A Inglaterra de Malthus “cuja população aumenta em maior proporção do que os meios de subsistência” encontra no guano o meio de baratear o pão e de produzir carne. Quanto não deveriam ter-se congratulado todas as nações do mundo por semelhante descoberta, e quão risonho não deveria ter sido o futuro do Peru?
Congratularam-se, por certo, até o momento em que a Espanha enviou, em 1863, uma esquadra para apossar-se das ilhas, embora não o tivesse conseguido. O guano foi, durante algum tempo, o principal produto de exportação do Peru. No entanto, outro adubo, o salitre, parecia prometer enormes ganhos em virtude da demanda européia. O Peru e o Chile disputaram-no, e após a Guerra do Pacífico, em 1879, foi este último que ficou com a posse das salitreiras de Tarapacá. Metais industriais foram procurados com afã em muitas regiões, e alguns começaram a ser vendidos com lucros. E o café do estado brasileiro de São Paulo, que em meados do século XIX já era o principal produto de exportação, continuou sendo cultivado cada vez mais intensamente sobretudo a partir do momento em que a fazenda cafeeira adquiriu, por volta de 1870, as características de uma exploração industrial.
Tal como antes ocorreu com os produtores de açúcar de Cuba, foram especificamente os novos produtores de café, os latifundiários, que mais claramente evidenciaram certa mudança de mentalidade que se imporia mais tarde em quase todos os cantos e em quase todos os setores da economia. Conhecedores do mercado mundial, sabiam que não bastava dominar corretamente o processo de produção, mas que era também imprescindível controlar os mecanismos comerciais, já que produziam fundamentalmente para a exportação. Porém, durante longas décadas depois da independência continuou predominando o tipo do latifundiário e do mineiro tradicional e rotineiro no desempenho de suas tarefas. Outras preocupações o moviam: sua vida de patriarcas – como a daquele dom Joaquín Gómez a respeito de quem a marquesa de Calderón de la Barca dizia ser “o monarca de tudo quanto a sua vista alcança” – e, sobretudo, a influência que podiam exercer transformada, às vezes, em poder militar e político. Alguns moravam nas cidades, nas quais, apesar de tudo, todos tinham casa montada; porém, em geral habitavam as suas próprias terras, nas quais viviam a seu modo e segundo os seus princípios, em estreito contato com os afazeres rurais e atentos ao novo avanço da produção. Uns, primitivos em seus gostos, acomodavam-se aos velhos casarões herdados, algumas vezes em ruínas; mas não faltava aquele que, como o senhor Lavalle, cujo engenho de açúcar foi visitado por Flora Tristán, no Peru, em 1834, havia mandado construir para si uma das casas mais elegantes. Não economizou nada para a sua solidez e embelezamento. Esse palacete manufatureiro está mobiliado com uma grande riqueza e com o melhor bom gosto: tapetes ingleses, móveis, relógios e candelabros da França; gravuras e novidades da China; enfim, tudo o que pode contribuir para o conforto da existência se vê ali reunido.
Foi nesse mesmo engenho, próximo a Lima, que o latifundiário disse à sua visitante: “Senhorita, vossa mercê fala dos negros como pessoa que os conhece apenas pelos belos discursos de seus filantropos de tribuna; mas, infelizmente, é bem verdade que não se pode fazê-los caminhar senão com o chicote”. Referia-se aos escravos que constituíam a mão-de-obra da sua propriedade, uns quatrocentos homens além das suas mulheres e filhos. Em outras regiões – no México, por exemplo –, a mão-de-obra era indígena ou mestiça, e não faltavam as propriedades, em especial pecuárias, nas quais eram encontrados criollos a cavalo com algumas gotas de sangue indígena. Nas plantações, a disciplina era severa e os castigos, às vezes cruéis: marcava-se a fogo os escravos, que se vingavam fazendo as suas mulheres abortar e os homens poupar esforços. Mais submissos, os índios suportavam pacientemente a sua condição. Só os peões boiadeiros mantinham certa independência, e não se submetiam senão ao respeito que mereciam a coragem e as habilidades campesinas do patrão. Este, por sua vez, respeitava os seus homens apesar de exercer uma autoridade despótica. O capitão inglês Andrews ofereceu uma vez um cigarro a um gaucho,1 e depois escreveu em suas anotações: “Porém, mesmo que seja dado a um peão do campo, deve-se fazê-lo com um ar cavalheiresco de estilo espanhol, para que não perca a metade de seu valor”. Algo curioso, Darwin escreveria pouco depois em sua Viagem de um naturalista: “Se um gaucho lhe corta o pescoço, fá-lo-ia como um cavalheiro”.
Poucos homens eram necessários na propriedade pecuarista, onde gaúchos, vaqueiros, camponeses e llaneros2 tocavam grandes manadas com surpreendente destreza de cavaleiros; e nunca faltaram homens para o trabalho, contando os que estavam estabelecidos em uma fazenda e os que vagavam pelos campos e ofereciam-se eventualmente. Além disso, nas plantações, assim como nas minas, o problema da mão-de-obra foi se tornando cada vez mais grave. O preço dos escravos negros subia à medida que o seu número diminuía, não só pela progressiva redução do tráfico como também pelas epidemias, a escassa fertilidade das escravas e a mortalidade infantil. De resto, crescia o número de escravos alforriados, que nem sempre permaneciam nas antigas propriedades em que trabalhavam. Assim, pioraram ainda mais as condições das propriedades rurais quando nos diversos países se sancionou definitivamente a abolição da escravatura: no México, em 1829, e, a seguir, sucessivamente em outros, até chegar ao Brasil, em 1888. Além disso, o imposto pessoal dos índios havia sido suprimido em quase todos os lugares. Foi mister, pois, que as propriedades rurais se reorganizassem com base na mão-de-obra livre.
De resto, diversas circunstâncias ofereceram a essa plebe rural oportunidade para que modificasse o seu destino. As guerras, sobretudo, abriram um caminho para a sua integração, já que os líderes a convocaram para a luta, sem distinção de castas. Alguns proclamavam a necessidade de uma ruptura imediata e profunda da ordem estabelecida. Em Caracas, Coto Paul, em 1811, gritava excitado:
A anarquia! Essa é a liberdade, quando para fugir da tirania, abre o cinto e solta a cabeleira ondulada.
A anarquia! Quando os deuses dos fracos, a desconfiança e o pavor a amaldiçoam, eu me ajoelho na sua presença. Senhores: que a anarquia, com a tocha das fúrias na mão, nos guie ao Congresso, para que a sua fumaça embriague os facciosos da ordem, e a sigam pelas ruas e praças, gritando: liberdade! Para reanimar o mar morto do Congresso, estamos aqui, estamos aqui na alta montanha da santa demagogia. Quando esta tiver destruído o presente, e espectros sangrentos vierem atrás de nós, sobre o campo que tiver lavrado a guerra, erguer-se-á a liberdade.
Negros, mulatos, índios e mestiços atenderam ao chamado e aderiram aos exércitos da independência, e San Martin pôde dizer a respeito dos primeiros que eram os melhores soldados de seu exército. Porém, foram as guerras civis que deram as maiores oportunidades de integração e ascensão às pessoas da plebe rural. Não apenas os chefes que desempenharam um papel importante na política as convocaram para grandes empresas como os que levaram as massas para Buenos Aires, em 1820, para o México, em 1855, e para Lima, em 1865; cada latifundiário teve, em algum momento, necessidade de intervir em alguma disputa com o seu exército de peões, e na luta destacaram-se alguns que não voltaram à sua humilde condição original. Uma consciência de que eles eram “o povo em armas” foi se generalizando, e esse sentimento configurou uma democracia elementar que, lentamente, buscaria mais tarde a sua expressão política. Sem dúvida houve até algum latifundiário que conseguiu descobrir em seu escravo um ser humano, como aquele que evocava a remota história afro-americana de Feliciana, no romance de Jorge Isaacs.
Aquele exército de peões, comandado por um lugar-tenente ou pelo próprio patrão, talvez não estivesse em disputa política com outro grupo semelhante. Porém, uma situação de fato – a quase permanente crise de poder – obrigava cada latifundiário a organizar a sua própria defesa. A bandidagem foi uma forma a mais de expressão, e talvez a mais importante, da explosão da plebe rural e da crise do sistema tradicional após a independência. Os caminhos encheram-se de bandidos que saqueavam os viajantes e que não hesitavam em assaltar as fazendas. Quando apareciam, ninguém sabia quem eram, porque não raramente eram confundidos com as facções dos exércitos que combatiam na guerra civil. Bandidos e soldados eram duas faces da mesma moeda. Talvez alguma peça de vestuário constante do regulamento militar pudesse identificar estes últimos: um quepe ou um sabre; mas ninguém podia dar crédito a essa frágil credencial, diante do testemunho irrecusável da ocupação da casa, do roubo dos animais e das ricas baixelas. Coisa semelhante faziam os bandidos, quem sabe com menos respeito à vida humana. Contudo, o latifundiário reconhecia-os por sua maneira de agir e talvez porque sabia quem eram os membros do bando. Para responder ao ataque, armava os seus homens e transformava a sua casa em fortaleza. E sabendo que não podia esperar nada da lei, recebia os seus agressores a tiros.
Mais grave ainda era o problema das estradas. Já ruins, tornavam-se mais perigosas ainda nos trechos sinuosos, nas serras ou nas áreas silvestres. Os bandidos escondiam-se discretamente e esperavam a passagem da diligência, das carroças ou dos cavaleiros; e valendo-se da surpresa, apoderavam-se de quanto os viajantes levassem e matavam sem compaixão aquele que resistia. Para estas circunstâncias, o latifundiário contava com a sua própria patrulha, armada até os dentes e bem montada. A frente, um chefe ou capataz exercitava os rudimentos de uma tática que havia aprendido no exército ou na experiência de muitos embates. E quando ocorria o incidente, os dois grupos – os bandidos e os peões – decidiam de variadas maneiras o destino do enfrentamento entre a sociedade estabelecida e a sociedade rebelde.
A marquesa de Calderón de la Barca – uma escocesa casada com o ministro plenipotenciário da Espanha no México, que residiu no país entre 1840 e 1841 – dava uma explicação simplista para a bandidagem:
Esta pestilência dos ladrões, que infesta a república, nunca pôde ser extirpada. São, de fato, fruto da guerra civil. Algumas vezes, fazendo-se passar por insurgentes, e participando de forma ativa na independência, devastaram independentemente o país, roubando a todos que encontraram em seu caminho. Com o pretexto de expulsar os espanhóis, estes bandos armados, invadindo as estradas entre Vera Cruz e a capital, arruinaram todo o comércio, e ignorando as opiniões políticas, propagaram por todos os cantos o roubo e o assassinato. Em 1824, foi enviada uma lei ao congresso, em virtude da qual todas as quadrilhas armadas de ladrões deveriam ser julgadas militarmente, a fim de diminuirem-se os processos, pois a maioria dos bandidos encontrava alguma maneira de escapar das prisões enquanto o seu julgamento estava pendente, e muitos foram encarcerados quatro ou cinco vezes pelo mesmo delito e nunca foram levados à justiça. Nessa lei foram incluídos tanto os ladrões profissionais quanto aqueles grupos de insurgentes que não passavam de simpatizantes extemporâneos. Porém, quaisquer que tenham sido as medidas tomadas em diferentes épocas para eliminar esta calamidade, suas causas permanecem, e tanto os vagabundos quanto os carentes de princípios se aproveitarão continuamente do estado de desorganização em que se encontra o país para obter pela força o que deveriam ganhar com o trabalho honrado.
“Vagabundos e carentes de princípios”, ou, como se disse em outros lugares, “vagabundos e desocupados”, eram, a rigor, os que escapavam como podiam da sujeição que a plebe rural havia suportado por um longo tempo. As guerras e a anarquia lhes ofereceram a ocasião e, enquanto os seus patrões buscavam o poder, os peões cavaleiros procuraram o seu sustento e talvez a sua riqueza mediante o crime e o roubo. O importante era sair da fazenda, da dependência, e usufruir da liberdade selvagem da terra sem amo e da riqueza fácil que copiava a dos senhores.
Talvez tenha sido no México que o fenômeno do bandoleirismo mais se prolongou e teve maior intensidade. No entanto, durou bastante também em outros lugares. No Peru, próximo a Lima, os bandoleiros de Piedras Gordas e da Tallada de Lurin faziam estragos. Na Colômbia, danificavam a savana desde Cota, onde se tomou célebre Juan Rojas y Rodríguez. No Chile, os ladrões ameaçavam a própria capital pouco depois da independência, a começar por Portezuela de Colina, La Dormida e outros lugares que assinala Pérez Rosales; e ele mesmo recorda que em 1847 aqueles ladrões que moravam nos bosques de Chimbarongo dominavam os morros de Teno. Pérez Rosales lutou contra eles. “Os meus ativos guardas foram os mais poderosos proprietários do lugar – diz em Recuerdos dei pasado armaram-se os arrendatários e, chefiados por seus respectivos patrões, perseguiram o bandido por todos os cantos…”.
No México, porém, durou mais a guerra civil e a anarquia e, mais ainda, por conseguinte, o bandoleirismo. A mesma época das inquietantes experiências da marquesa de Calderón de la Barca correspondem, aproximadamente, as descrições de Manuel Payno, em Los bandidos de río Frío; e sobre os arriscados anos de Juárez – entre 1861 e 1863 –, El Zarco, de Ignacio Manuel Altamirano, é um perfeito retrato de um bandido levado a agir por seu temperamento, conforme relata o autor. Possivelmente se o personagem fosse real, descobrir-se-ia que outras profundas motivações moveram a sua ação. Porém, Altamirano criou o símbolo e revelou, a propósito, os bastidores da bandidagem, entre os quais não podem ser esquecidos os que se relacionam com a proteção ou com a cumplicidade de que gozavam os bandidos dos grupos mais influentes. Um camponês indignado organizou o bando que conseguiu capturá-lo e matá-lo.
Talvez fossem os mesmos os que se uniam aos bandos que assaltavam nas estradas e os que se incorporavam aos exércitos revolucionários de qualquer uma das revoluções, liberais ou conservadoras, que se sucederam por todos os lugares durante esses anos. As vezes, estes últimos agrupavam-se no exército regular; porém, muitas vezes, armaram guerrilhas irregulares, as montoneras, cuja ação costumava ter os mesmos aspectos da guerra e do bandoleirismo. Era o resultado da explosão social da plebe rural. No entanto, não de toda ela. A que encontrou esta saída foi, sobretudo, a que tinha cavalo, a dos pampas rio-platenses ou peruanos, a da planície venezuelana, a dos estados mexicanos de Vera Cruz, Morelos e Guerrero, a do estado brasileiro do Rio Grande do Sul e a dos vales chilenos. O cavalo era nessas regiões uma necessidade, mas foi também um luxo e um esporte. Era criado com esmero. Na metade do século, Guillermo Enrique Hudson, quando evocava o pampa argentino, recordava que Gregorio Gándara tinha mil éguas reprodutoras, em sua estância “La Tapera”. “Do mais pobre até o mais poderoso gaucho proprietário de terras e gado – acrescentava – todos têm, ou tinham naquela época, o cuidado de que seus cavalos de montaria fossem de uma só raça”. Porém, mesmo aquele que não podia dar-se esse luxo tinha sua manada para locomover-se na planície, para trabalhar por algum tempo em uma fazenda para um rodeio ou um arreio e manter sua condição de homem livre. Para enfeitar o seu cavalo, o cavaleiro gastava tudo o que tinha porque não se sentia satisfeito até ter os seus arreios de prata. E não só o cavalo garantia a sua liberdade: também seu facão e, sobretudo, sua decisão de defendê-la a cada passo com uma valentia que era, às vezes, provocativa e arrogante. Assim, provocativo e arrogante, o “lacho guapetóríˮ,3 lembrava Pérez Rosales por volta de 1880, tipo puramente chileno e quase esquecido hoje em dia, era então a viva encarnação do cavaleiro andante da época medieval, com poncho e com botas de arreios, tanto por seu modo de viver quanto por seus gostos e por suas tendências. Tal como ele, buscava aventuras; e ia à cata de valentões a quem vencer, injustiças para vingar, leis para desobedecer e donzelas a quem agradar, algumas vezes com comedimento e outras vezes sem ele, pois existiram também aqueles descomedidos e baderneiros. Assim como o cavaleiro andante não dispensava combate onde pudesse ostentar a sua galhardia e o poder irresistível da sua lança, era mais provável faltar o sol do que faltar o “lacho guapetón” nas trilhas, nos rodeios, nas corridas de cavalo e em quantos lugares mais houvesse moças para apaixonar-se, chicha4 para beber, toadas para ouvir, botões de flores para presentear, generosidade e elegância para luzir, e peitadas e facadas para dar e receber, ainda que o motivo não fosse outro senão o fato de ter se recusado a beber no mesmo copo.
Características semelhantes tinham o gaucho argentino e o charro5 mexicano; porém, ao lado de tão representativos personagens, vivia uma imensa maioria de tranqüilos trabalhadores ocupados com as rotineiras e cotidianas tarefas campestres.
A eclosão rural marcou, durante algumas décadas, o destino e o perfil das cidades. Centros de poder e núcleos de articulação da atividade comercial e financeira constituíram o objetivo de todos os que pretenderam impor a sua autoridade à inquieta sociedade dos novos países que surgiam com a independência. As capitais, sobretudo, atraíam os grupos em luta. O sistema colonial havia feito delas a sede do poder político e da administração pública, e nenhum movimento insurgente podia ser considerado consumado até que conseguisse sua ocupação. Dela, do “palácio”, podia-se manipular todos os fios da vida pública, e nela se obtinha uma investidura que fortalecia decisivamente o exercício da autoridade.
As capitais e, em menor medida, todos os centros urbanos, cada um na sua escala, continuavam sendo os focos da vida econômica. O comércio era a atividade fundamental das cidades, com maior ou menor intensidade segundo o seu raio de ação, e, por isso, tiveram tanta repercussão as falências milionárias de grandes estabelecimentos, como a de Judas Tadeo Landínez, em Bogotá, em 1841, e a do visconde de Mauá, primeiro em Montevidéu, em 1869, e a seguir no Rio de Janeiro, em 1875. Em alguns casos, as cidades atendiam apenas ao seu mercado interno e outras eram, por várias razões, ou centros regionais ou centros nacionais de distribuição. Estes últimos controlavam o setor mais importante e mais compensador: o comércio de exportação e importação, que a partir da independência havia adquirido maior intensidade. Mercadorias de origem inglesa, francesa ou alemã chegavam aos portos; e depois de atravessar as diversas alfândegas – externas e internas, estas últimas numerosas em algumas rotas – atingiam os centros urbanos. A venda de certos produtos continuava submetida à organização do estanco; outros eram de venda livre e, uma vez recebidos pelos atacadistas, distribuíam-se nos mercados, lojas e barraquinhas para onde afluíam os compradores. Os produtos nacionais que iam do campo para as cidades também passavam pelas alfândegas internas; e tanto as mercadorias estrangeiras quanto as locais costumavam ver aumentado o seu preço pelas dificuldades do transporte e pelos riscos derivados do constante estado de insegurança.
Uma crescente demanda aumentou o volume das importações. As classes abastadas queriam os mais variados produtos franceses e ingleses: móveis, tapetes e louças, tecidos, rendas, enfeites e peças de vestuário, vinhos, azeites e doces. A obsessão de estar em dia com a moda européia promovia uma importante corrente comercial, mas a necessidade de obter instrumentos, ferramentas e máquinas foi se tornando cada vez mais importante. As máquinas a vapor, originariamente usadas nos engenhos e, depois, pouco a pouco, destinadas a outros usos, como as que a Companhia Inglesa instalou nas minas de Real del Monte, no México, exigiram grandes investimentos. Porém, a aquisição de barcos a vapor e, sobretudo, a expansão das linhas férreas – a partir de 1851, ano em que foi construída a primeira no Peru com a correspondente importação de trilhos, locomotivas e vagões, tomou maior o montante das obrigações financeiras com o exterior, que cresceram ainda mais ao generalizar-se o uso do gás para iluminação a partir da década de 1850. Todas essas necessidades, suscitadas pela penetração do mundo industrial, acentuaram a demanda de capitais. Importantes empréstimos foram negociados e obtidos na época dos primeiros governos independentes, mas as exigências da modernização intensificaram mais tarde a necessidade de capitais, ao mesmo tempo em que a estabilização que se foi alcançando após a metade do século estimulava as grandes potências a propiciá-los.
Os instrumentos da ação financeira foram os bancos. Fracassaram os primeiros que os governos independentes, golpeados duramente pela instabilidade política e pelos desequilíbrios econômicos, estabeleceram. Porém, a partir de meados do século, constituíram-se outros graças a financistas privados que conseguiram juntar o volume de capital suficiente para iniciar as suas operações, como Edwards em Valparaiso, Ossa em Santiago do Chile ou Mauá no Rio de Janeiro, este último com projeções voltadas para as capitais rio-platenses. No entanto, a organização bancária só prosperou vigorosamente a partir do estabelecimento de filiais de grandes bancos estrangeiros. Em 1862, fundaram-se, no Rio de Janeiro, o Banco de Londres e o Banco do Brasil; em 1863, o Banco de Londres e do Rio da Prata, em Buenos Aires, e em 1864, o Bank of London and South America, no México. Outros foram aparecendo rapidamente nessas e nas demais cidades, correspondendo aos interesses de diversos países investidores.
No México, o ministro Lucas Alamán fundou o Banco do Avio. Uma comissão criada em 1831 havia sugerido algumas medidas para promover as indústrias, e o banco devia servir a esses fins. Ministro conservador de vários governos e ele mesmo industrial, Alamán dirigiu a Companhia Unida de Minas e fundou várias empresas para a fabricação de linhas e tecidos de algodão. Houve outras empresas na cidade do México, e não foi esta cidade a única onde essas novas atividades alcançaram importância. Em 1841, a marquesa de Calderón de la Barca escreveu:
Antigamente, Puebla concorria com o México em população e na indústria. A peste, que dizimou cinqüenta mil pessoas, foi sucedida pela praga da guerra civil, e Puebla caiu na categoria de uma cidade secundária. Porém, agora se fala muito das suas fábricas de fiação e tecidos, e das máquinas, instrumentos e artesãos trazidos da Europa, que proporcionam ocupação para trinta mil pessoas.
A marquesa relatava a seguir as vicissitudes de um dos mais esforçados industriais, dom Esteban Antuñano, para levar adiante a sua fábrica, chamada “La constancia mejicana”. E necessitou de muita constância para superar os apuros financeiros e a oposição que teve de suportar para formar seus operários e trazer dos Estados Unidos as máquinas necessárias. Por fim, a fábrica começou a produzir em 1835:
Sua situação era magnífica, e vista de longe parece mais uma casa de veraneio do que um estabelecimento industrial. Dá gosto ver a ordem e a boa ventilação que tem o edifício, com seu grande chafariz de água puríssima no centro do pátio. Um escocês que esteve empregado aqui por algum tempo – acrescentava a marquesa escocesa – diz que não viu nada com que se possa compará-la, não obstante haver trabalhado seis anos nos Estados Unidos.
Puebla tinha uma tradição senhorial, mas sua nova burguesia revelou uma grande capacidade de iniciativa: não só houve fábricas de fiação e tecidos, como também de azulejos e, em 1860, uma de cerveja.
Nas cidades, a disputa entre protecionistas e livre-cambistas agitaria os ânimos. Os primeiros queriam apoiar as indústrias e os artesanatos locais ameaçados pela onda das importações estrangeiras, à qual atribuíam os seus fracassos. Vicente Pérez Rosales, que montou uma fábrica de aguardente por volta de 1830, e teve graves contratempos, observava muitos anos depois que a improvisação e a pressa eram as únicas responsáveis pelo comprometimento do êxito de muitas iniciativas, e passava em revista as experiências industriais empreendidas até então:
A indústria ceramista no Chile fracassou porque decidiram começar pelas louças finas, quando ainda não tínhamos saído do cântaro e do prato de Talagante. A fábrica de vidros fracassou porque, em vez de começar fazendo garrafas de vidro comum, teimou em começar por vasilhas finas e por vidros planos. A de açúcar de beterraba fracassou porque o fabricante teve de ser agricultor, e o produto, por ser chileno, refinado. Lânguida existência leva a fábrica de tecidos porque, em vez de começar por ponchos, mantas e colchões, deu-nos na telha começar por casimiras; e fracassou também a minha fábrica de aguardente porque, em vez de contentar-me com melhorar a serpentina condensadora, tomei um pileque; porque em vez de usar as caldeiras artesanais, inovei com o estreitíssimo alambique francês; e afinal, porque, em vez de criar aguardente barata, concentrei-me no conhaque, no anisete. Daí se depreende um triste axioma: toda indústria especializada que se introduz em um país que carece de indústrias rudimentares contém o presságio da ruína do empresário.
Por certo, por uma razão ou por outra, as iniciativas que essa nova forma de atividade desencadeava tiveram difíceis altos e baixos. Um empresário de firme vontade e grande imaginação como o barão de Mauá pôde dar andamento a inúmeros projetos e encerrar a sua carreira com uma quebra humilhante. Contudo, alguma coisa restava dessa iniciativa. Pouco a pouco aparecia o primeiro esboço da cidade industrial, com as suas fábricas incipientes, com as suas oficinas tipográficas ou ferroviárias ou apenas de reparos de maquinário, com as suas usinas de gás, nas quais começavam a ser vistos os velhos artesãos misturados com um nascente proletariado industrial. E apesar de alguns movimentos operários se insinuarem em algumas cidades, o novo estamento social não chegou a constituir na época uma força importante.
De resto, predominava um sentimento generalizado de que o importante para o artesão e para o operário era conseguir a sua própria ascensão social. Em seu romance Jorge, el hijo del pueblo, a arequipenha Maria Nieves y Bustamante descrevia a condição de um artesão e a sua angústia pelo abismo que separava a sua classe – sua “triste esfera” – das classes altas às quais almejava incorporar-se. Qualquer esforço parecia justificado por esta ambição. Por certo, nem todos o faziam, e José T. de Cuéllar divertia-se em mostrar um protótipo do artesão mexicano, vagabundo e bêbado, em sua Historia de Chucho el Ninfo. Os que lutavam com tenacidade para melhorar a sua situação costumavam fazê-lo em sua própria cidade e dentro das possibilidades preexistentes; porém, outros somaram-se a algumas das novas aventuras que as mudanças econômicas provocaram e outros ainda emigraram fascinados pelas esplêndidas perspectivas como as que oferecia, por exemplo, a mineração. Nesses focos de aventura o nativo deparava com o estrangeiro, preso a uma espécie de aposta com o destino. Misturavam-se os que se afundariam na pobreza com os que seriam ricos, segundo o jogo do acaso. Pérez Rosales descrevia o clima tenso de Copiapó por volta de 1846:
Copiapó só tinha em comum com o Chile a constituição política, que nem sempre se levava em conta, e as leis, que não raras vezes eram violadas; em Copiapó não se reza o provérbio de que pelo fio se conhece o novelo porque, na realidade, o fio Copiapó era para o novelo Chile o mesmo que um ovo é para uma castanha. Era muito difícil, se não impossivel, que em uma reunião casual de vinte e cinco cavalheiros houvesse quatro chilenos; falo do sexo feio, porque do bonito seria o contrário (…) Copiapó era um povo cosmopolita, e muito em especial com raízes em La Rioja, para onde afluíam ingleses, franceses, chilenos, alemães, italianos, sem contar os que chegavam de quase todas as repúblicas irmãs. Ali não se falava, nem se devia ou se podia falar, de outra coisa a não ser de minas, e assim como Valparaíso é uma enorme casa de comércio, Copiapó era uma imensa boca de mina.
Ali encontravam-se pessoas de condição variada, mas todos aventureiros; e os mais humildes eram os que contavam apenas com as suas próprias mãos, com as quais esperavam, não obstante, construir um futuro.
Não faltava um amplo setor popular submerso na rotina por falta de iniciativa ou, mais freqüentemente, pelo desalento causado pela miséria. Os pobres perdulários não só chamaram a atenção de tudo quanto foi viajante que percorreu a América Latina por esta época, como também a dos cidadãos que os contemplavam a cada dia; e no relato das viagens, no artigo de costumes ou nas gravuras, aquarelas e desenhos ficou patenteada a presença deste grupo que formava a camada mais densa das cidades. Talvez chamasse mais a atenção do estrangeiro naquelas cidades onde predominava a população negra entre as classes populares: em Vera Cruz ou em Cartagena, mas sobretudo nas cidades brasileiras. “Este povo negreiro (…)”, dizia Pérez Rosales, em 1825, falando do Rio; mas não o surpreendia menos a população indígena ou mestiça em outros lugares. Pancho Fierro, pintor perspicaz e sutil, deixou o seu testemunho visual deste estrato da sociedade criolla de Lima que, como em todas as cidades, aparecia em seu conjunto no mercado e nos dias de festa. Os viajantes ingleses – Parish, Robertson, Hutchinson – surpreenderam-se ao ver em Buenos Aires mendigos a cavalo, talvez menos maltrapilhos do que os toscos mexicanos, “pilhas de farrapos patéticos que se aproximam da janela e pedem com a voz mais lamuriante, mas que é só um falso choramingar, ou então, jogados sob os arcos do aqueduto, espantam a sua preguiça tomando ar fresco, ou deitados ao sol”. E nem todos eram mendigos. Talvez convencidos da impossibilidade de livrar-se da pobreza, recusavam o trabalho por falta de estímulos. Pal Rosti, o viajante húngaro que percorreu a Venezuela em 1857, perguntava a “um jovem cor de café” que estava recostado em uma parede próxima ao mercado de Caracas por que não trabalhava. Eis a resposta:
Para que vou trabalhar? O alimento necessário dá em todas as árvores; só tenho de esticar as mãos para apanhá-lo; se falta um cobertor, ou um facão, ou um pouco de aguardente, trago ao mercado algumas bananas ou outras frutas e obtenho fartamente o que desejo; para que mais? Não passaria melhor nem que fosse tão rico como o senhor X ou Y. E assim sente e opina cada peão da Venezuela.
A classe popular, no entanto, desempenhava cem profissões e ocupações, porém ninguém admitia sair dessa miséria que matava os estímulos. Era o resultado da própria estrutura da sociedade. Três livros reveladores foram escritos sobre esse tema: o de Mariano Otero, Ensayo sobre el verdadero estado de la cuestión social y política que se agita en la República Mexicana, publicado no México, em 1842, o de Miguel Samper, La miseria en Bogotá, 1867, e o de Joaquín Capelo, Sociologia de Lima, de 1900. Em que pese a abertura observada por algum tempo depois da revolução, a possibilidade de emergir, ao menos ao nível da subsistência, era difícil para muitos; mais difícil ainda era dar os passos para a ascensão social e econômica, apesar dos efeitos indiretos da revolução industrial.
Menos profundo era o abismo que separava as classes médias das altas. Havia entre elas uma forte tensão, precisamente porque existia certa fluidez apesar do esforço dos setores mais elevados para parecerem inatingíveis. Piegas ou pernóstico era aquele que, pertencendo às classes médias, se empenhava em imitar o estilo de vida e os hábitos próprios das mais ilustres. Contudo, a perseverança e o êxito venciam as barreiras a partir do momento em que alguém conseguia juntar uma respeitável fortuna. Algumas vezes podia ser um acaso: um veio de mineração, uma carta de exportação e importação oportunamente apresentada, uma exploração rural bem-sucedida que trazia o seu beneficiário à cidade, um negócio próspero que colocava o novo rico em situação de batalhar socialmente para ser admitido nos círculos mais seletos. E esta esperança motivava o comerciante ou o empregado a perseverar em seus esforços, pois se não obtinham ótimos resultados, podiam pelo menos facilitar a ascensão dentro da complexa escala da própria classe média.
Certa literatura é testemunha da presença dessa classe social, incipiente em algumas cidades, na qual o observador atento entrevia a força capaz de dissolver os vícios inoportunos da sociedade fidalga, que o novo patriciado acreditava poder restaurar e cuja época de maior esplendor evocava nostalgicamente. Os costumbristas não desperdiçaram o tema: o chileno Jotabeche, o argentino Alberdi, o colombiano Vergara y Vergara. Os romancistas começaram a explorar esse filão: o mexicano Juan Díaz Covarrubias seguiu-o com seriedade em La clase social media e o peruano Luis Benjamín Cisneros o usou como pano de fundo em Julia. Em todas as suas descrições são vistas em seu viver cotidiano algumas cidades cuja sociedade se movia lentamente tentando romper uma estrutura tradicional. Mas foi o chileno Alberto Blest Gana quem deixou o panorama mais completo e agudo. Das classes médias retirou personagens reveladores da nova situação que pouco a pouco se formava e que amadureceria mais tarde, e em Martín Rivas combinou habilmente os quadros de duas sociedades paralelas dentro do ambiente social santiaguenho. Experiente observador, destacou o decisivo papel do dinheiro em uma sociedade fluida, cujos estratos mais altos não possuíam os instrumentos para fechar as vias de acesso aos seus próprios quadros.
Apesar de seus avanços em algumas cidades, as classes médias não tinham conseguido, até as últimas décadas do século, transpor o fosso que as separava dos grupos da velha sociedade fidalga. Insinuava-se o processo, mas a resistência da estrutura social era muito forte. A marquesa de Calderón de la Barca conheceu pela primeira vez uma sociedade criolla quando chegou a Havana, em 1839, e disse a seu respeito: “Esta súbita transição da terra ianque para esta terra espanhola de militares e de negros é como um sonho”. O sonho repetiu-se muitas vezes no México, onde a marquesa escocesa registrou em várias ocasiões o imenso contraste que observava entre as classes altas e os setores populares: “quase não existe o degrau entre o cobertor ordinário e o cetim”, dizia em uma curiosa passagem em que descrevia a confusa sociedade que, na capital mexicana, se reunia no passeio da Viga.
As classes altas sofreram duros altos e baixos com a independência, e houve muitos que deixaram de pertencer a elas, enquanto outros se incorporavam às mesmas. Porém, em geral, esses altos e baixos não incidiram em seus hábitos. Logo que as condições assim o permitiram, tornaram a mostrar-se arrogantes e ostensivas como os grupos fidalgos da colônia, até onde a fortuna de cada um assim o permitisse. Em todo caso, procuraram fazê-lo. Vestiram-se à moda européia, e da Europa trouxeram tudo quanto consideraram necessário para manter a sua ostentação. A fortuna, porém, colocava os seus limites. Alguns haviam herdado as suas terras ou as suas minas e mantinham a tradição de seus avós coloniais. Eram vistos nas capitais, porém mais claramente eram identificados nas velhas cidades de tendência senhorial como Popayán, Trujillo do Peru, Guadalajara e Puebla, Olinda e Salvador. Outros tinham fortunas mais modernas, feitas algumas vezes à sombra do poder político, com negociatas ilícitas ou usurpações, e outros, no exercício do comércio, cujos lucros serviam para tentar buscar o brilho que habitualmente os bens imóveis outorgavam. O alto clero e as primeiras hierarquias militares faziam parte das classes altas por direito próprio, por pertencerem a elas por nascimento alguns de seus membros mas, também, porque as classes altas procuravam atraí-los, em épocas tão instáveis, como representantes do poder. E ao conjunto das classes altas nativas incorporaram-se os comerciantes estrangeiros prósperos, aristocratas de fato só por serem ingleses ou franceses, ricos em dinheiro e, sobretudo, em lugares propícios para ajudar a enriquecer os demais. Foram os árbitros do bom gosto e da moda, e o que fizessem costumava transformar-se em um modelo para aqueles que sonhavam com o paraíso inatingível de Londres e Paris. Quem mais elegante do que uma modista francesa? Quem mais rico do que um importador inglês? Para ambos os casos havia um lugar nas tertúlias aristocráticas, nas quais, de resto, se falava fundamentalmente de modas e negócios. Um Dreyfus ou um Meiggs tiveram abertas as portas dos mais refinados salões de Lima ou de Santiago do Chile, e ninguém pensou em indagar a origem social de tais personagens.
Divididas entre a tradição colonial, o estilo patrício e o desenvolvimento mercantil, as cidades começaram a elaborar um novo perfil. Contudo, uma de suas características foi, à medida que absorveram a onda rural, voltarem a manifestar o seu desdém pelo campo, que às vezes era de um acentuado menosprezo. Após o alarme inicial, as renovadas sociedades urbanas que haviam incorporado vigorosos contingentes desligados dos campos confirmaram a sua superioridade e começaram a tratar de fazer voltar o mundo rural à sua condição de mundo subjugado. O camponês da independência ou das guerras civis, bastante acostumado à liberdade, pareceu um fator de dissociação e julgou-se necessário submetê-lo à autoridade do Estado, ou melhor, dos latifundiários, e encaminhá-lo dentro do sistema da produção.
Observou-se certo enfrentamento entre as formas de vida do campo e da cidade durante esta época, talvez porque o mundo rural cresceu em tamanho e, durante algum tempo, achou que podia desafiar o mundo urbano. Porém, perdeu logo a batalha e restou da situação determinado ressentimento recíproco ou, apenas, a aguda percepção de que representavam duas formas de vida diferentes.
Tropas rurais entraram muitas vezes nas cidades e o povo urbano as viu chegar com terror como se não obedecessem mais do que a instintos primários. As cidades temeram ser o ansiado despojo de guerra de pessoas que, supunha-se, as odiavam por seu refinamento e por sua riqueza: Buenos Aires estremeceu diante do avanço dos caudilhos López e Ramírez, e Lima tremeu quando o negro guerrilheiro León Escobar entrou na cidade e sentou-se por um dia na cadeira presidencial. E, por certo, se não era ódio o que os camponeses sentiam, era, pelo menos, ressentimento contra os “cachacos”,6 os “catrines”,7 os “currutacos”,8 apelidos que designavam ao filho do senhor urbano. Inclusive o homem do campo que havia conseguido os seus distintivos na disputa tinha certo ressentimento contra o “doutor” com quem tinha de negociar ou compartilhar a paz ou a guerra. E no subúrbio onde conviviam e negociavam, enfrentavam-se o homem da cidade e o do campo, este último acostumado a desconfiar do dono de mercearia astuto que se aproveitava da sua inexperiência nos dissimulados mecanismos do trato comercial.
Tanto o Facundo de Sarmiento como o Martin Fierro de José Hernández – duas obras argentinas particularmente representativas da época – revelaram o alcance desse enfrentamento entre o campo e a cidade. A cidade aspirava a recuperar o papel que havia tido durante a colônia, agora apoiada em sua certeza de que representava a civilização. A rigor, havia se fortalecido com a incorporação de certos grupos de latifundiários à sociedade urbana; talvez, por isso, a plebe rural tenha sentido mais a sua orfandade, e contra essa plebe se uniam todas as forças, buscando reduzi-la ao antigo domínio; transcorrida a metade do século, o “gaucho mau”, o rebelde, lançou sozinho a sua última cartada contra a civilização das cidades e perdeu a partida. Martín Fierro foi a expressão de seu lamento.
O enfrentamento fez-se patente no contraste das formas de vida. Bartolomé Hidalgo, repentista uruguaio da época da independência, cantou a ingênua admiração de um gaucho da Guardia del Monte diante das festas com que Buenos Aires celebrava o aniversário da Revolução de Maio. Décadas depois, o chileno Jotabeche escreveria sobre El provinciano en Santiago e o venezuelano Daniel Mendoza sobre El llanero en la capital, este último criando um típico personagem, Palmarote, que simbolizava as reações provocadas no camponês por um mundo em relação ao qual se sentia alheio. Foi também o tema que, anos mais tarde, o argentino Estanislao del Campo desenvolveu em seu Fausto, no qual o gaucho Anastasio, el Pollo9 oferece não só a sua inocente versão do tema de Goethe, mas também as suas impressões sobre a vida de Buenos Aires.
Campo e cidade, vida rural e vida urbana, expressam os pólos que evidenciaram a entrada da sociedade criolla dentro do marco ainda vigente do mundo colonial. Triunfaria a cidade, mas à custa de profundas mudanças no perfil da sociedade urbana, que precisou harmonizar as forças das antigas burguesias dentro dos novos patriciados.
2. Burguesias e patriciados
A poucas décadas da revolução, a mudança que havia ocorrido nas classes dirigentes era patente. Em 1840, a marquesa de Calderón de la Barca, referindo-se a uma distinta dama do México, escrevia:
Ela e os seus contemporâneos, últimas lembranças do vice-reinado, estão desaparecendo muito depressa. Em seu lugar, surgiu uma nova geração, cujos modos e características têm bem pouco a ver com a vieille cour; são, em sua maioria, segundo dizem, esposas de militares, produto dos estímulos revolucionários, ignorantes e cheias de pretensões, como costumam ser sempre os parvenus que ascenderam por um golpe da sorte e não por seus próprios méritos, como parece que deveria ser.
Essa nova geração que substituiu as aristocracias tradicionais não teve, no entanto, uma composição tão simples. Em muitos lugares, faziam parte dela inclusive membros das velhas aristocracias transformados em republicanos mais ou menos sinceros. Contudo, a marquesa escocesa não se equivocou muito. De fato, os novos militares predominavam, porém não faltavam os novos e os velhos burgueses, nem os novos e os velhos latifundiários. Desunidos e confrontados inicialmente, ao longo de poucas décadas agruparam-se de acordo com uma nova e diferente fórmula. Na comoção geral que a sociedade havia sofrido depois da independência, a mudança mais profunda havia ocorrido, precisamente, nas classes dirigentes.
Sem dúvida, as burguesias criollas conservavam boa parte de seu poder. Questionadas algumas vezes sobre o seu desejo de manter a posição que ocupavam antes – e imediatamente depois – da independência, tiveram de ceder posições, transigir ante os novos grupos de poder que foram aparecendo e talvez dispor-se a servir de procuradores ou limitar-se a oferecer o seu ambicioso apoio. Porém, como grupo, e qualquer que fosse o destino pessoal de alguns dos seus membros, continuou tendo considerável influência econômica, ocupando os cargos administrativos e, geralmente, também os políticos.
Vicente Rocafuerte, no Equador, e Diego Portales, no Chile, representantes da burguesia portuária de Guayaquil e de Valparaíso, respectivamente, ocuparam cargos políticos decisivos. O doutor Borrero deixou a sua loja, na qual vendia tecidos, para ocupar o Ministério de Relações Exteriores da Colômbia, e depois voltou a seu comércio. Nicolás de Piérola, no Peru, ou Florentino González e Manuel Murillo Toro, na Colômbia, puderam, como ministros da Fazenda, interpretar as intenções e os interesses das burguesias de seus países. No entanto, apesar de seus membros não ocuparem cargos pomposos, as burguesias continuaram a tecer seus fios no comércio, nos escritórios de advocacia, nos guichês dos bancos, nos gabinetes. Às vezes, esses fios eram vigorosos e, assim como os que movia o visconde de Mauá no Brasil, arrastavam toda a economia do país. Mas, sem dúvida, as burguesias criollas haviam perdido parte da sua força, e só a recuperaram graças à crescente atividade e à influência alcançada por um novo segmento que se incorporou à vida das cidades e tingiu o seu perfil: o dos comerciantes estrangeiros.
Havia um número considerável em muitas cidades e sua influência era ainda maior. Em Buenos Aires – escrevia um cidadão inglês por volta de 1825 –, “os comerciantes britânicos gozam de grande apreço: o comércio do país encontra-se sobretudo em suas mãos”. A seguir enumerava quarenta estabelecimentos comerciais britânicos em Buenos Aires, e acrescentava: “A maioria destas casas tem sucursais no Rio de Janeiro, Montevidéu, Chile e Peru, constituindo uma ampla rede comercial de não pouca importância para os interesses britânicos”. No México, reuniram-se em 1840 para celebrar o casamento da rainha Vitória em um baile oferecido no palácio da Mineração: eram tantos e tão representativos que a festa congregou as mais ilustres famílias da cidade e contou com a presença do presidente da república. E em todas as cidades havia um núcleo importante que controlava, geralmente, os principais negócios, sem se despreocupar, por isso, com as lojas que vendiam a varejo. Havia também, junto aos ingleses, outros comerciantes estrangeiros. Não faltavam os franceses nas cidades do Atlântico, embora fossem mais numerosos nas do Pacífico. Flora Tristán enumera os estrangeiros da cidade de Arequipa:
Arequipa, cidade do interior, só oferece ao comércio recursos limitados. O número de estrangeiros é também muito restrito. A única casa francesa é a de M. Le Bris. Estabeleceu-se no Peru há dez anos e seus negócios cresceram em grandes proporções. Antes do Peru ser explorado pela concorrência e arruinado pelas guerras civis, M. Le Bris ganhou uma fortuna de vários milhões. Porém, as suas casas de Valparaíso e de Lima sofreram perdas enormes pela excessiva complacência nos negócios. Foi preciso que a casa central de Arequipa socorresse as outras duas. M. Le Bris é um hábil negociante e resolveu postar-se à frente, sucessivamente, da direção de cada uma delas, e em poucos meses tudo voltou a ser como antes. Em Arequipa, não há mais do que oito ou dez franceses no total. São, além dos que acabo de citar: M. Poncignon de Burdeos, cujo empório de novidades é o mais bonito da cidade; M. M. Cerf, judeus de Brest, que vendem em sua loja toda classe de objetos. Muitos outros franceses possuem também seu domicílio em Arequipa, mas não residem ali habitualmente. Os negócios de corretagem, aos que mais se dedicam, obrigam-nos a ir a todos os pontos do Peru.
Por sua vez, os norte-americanos e os alemães espalharam-se pelas cidades do Caribe. E no rio da Prata instalaram-se os de todas as nacionalidades, incluindo italianos e portugueses. Muitos eram de origem humilde, mas, em geral, todos tiveram de alguma forma as características do aventureiro. Um escritor peruano, falando a respeito de Dreyfus, dizia pouco depois de este obter no Peru o monopólio do guano na época do presidente Balta:
Como tantos outros que sem dúvida não conseguem satisfazer em seu próprio país as suas imensas ânsias por dinheiro e que se expatriam para buscar em país estrangeiro o modo de se tornar rápida e facilmente milionários, M. Dreyfus foi improvisar no Peru a fortuna que não podia encontrar na Europa.
Ao lado dos comerciantes aventureiros apareceram pessoas de outro estilo, em especial os que se lançaram ao negócio das ferrovias, como Meiggs, no Peru e no Chile, Wheelright, no Chile e na Argentina, ou aquele Buschental que rondava Urquiza, no Paraná, capital da Confederação Argentina, e que não desprezava nenhum tipo de negócio. As capitais, naturalmente, atraíam os estrangeiros mais ambiciosos e, sobretudo, aqueles que pretendiam obter o calor do poder. Contudo, inclusive nas pequenas cidades, como Arequipa ou Vera Cruz, o núcleo de comerciantes estrangeiros era “a alma da população”, como dizia o viajante francês Eugène de Sartiges sobre Arequipa.
Este assinalava, no entanto, certos enfrentamentos s. “Muitas vezes – escrevia – foram apresentadas petições às câmaras peruanas, propensas a expulsar do país os comerciantes estrangeiros a fim de impedir essa exportação de divisas monetárias, e o mesmo pedido renova-se a cada comoção política”. De maneira parecida, expressa-se o viajante que assinava “Um inglês” falando de Buenos Aires:
As vezes os criollos demonstram certa inveja em relação aos ingleses. Supõem que temos o monopólio dos negócios e lhes tiramos a moeda do país. Esses inábeis alunos de economia política não entendem que nos negócios as obrigações são mútuas, e que com freqüência devemos comprar matéria-prima a preços lesivos.
Porém, de qualquer maneira, o prestígio e a influência dos comerciantes estrangeiros proporcionavam considerável força ao conjunto do setor comercial, e as ligações entre os grupos foram às vezes fluidas e benéficas. Ao começar a sua autobiografia – Exposição do visconde de Mauá aos credores de Mauá and C., Rio de Janeiro, 1878 – escrevia o genial empresário brasileiro:
Na primavera da vida eu já havia adquirido, por meio de um infatigável e honesto trabalho, uma fortuna que me assegurava a mais completa independência. Um dos melhores tipos da espécie humana, representado por um negociante inglês (Richard Carruthers) que se distinguia pela completa probidade da velha escola da moral positivista, depois de provas suficientes de minha parte em seu serviço, escolheu-me para sócio-gerente de sua casa quando ainda era um imberbe, colocando-me assim, tão cedo, na carreira comercial, em condição de poder desenvolver os elementos que porventura se aninhavam em meu espírito.
Não foi o único caso, e essa vinculação originária manifestou-se ao longo do tempo através de uma coincidência do segmento criollo com o segmento estrangeiro das burguesias.
Plantadas na administração, aptas para as sutis negociações da economia e da política, as burguesias das cidades, renovadas ao calor das mudanças sociais e econômicas, superaram os sobressaltos da desordem e da guerra civil. Aqueles que obtiveram o poder pelas armas recorreram a elas em busca de conselho e apoio, para aparelhar esse poder eficazmente a favor de seus planos e de seus interesses. E nesse jogo as burguesias se integraram com os novos grupos dominantes organizando o novo patriciado.
Interagiram também de outro modo; pragmáticos e atentos ao cotidiano, os ricos banqueiros e os poderosos comerciantes inspiraram e subvencionaram revoluções, tentando impor os seus próprios pontos de vista ou, se os consideravam impraticáveis, modificando-os no necessário para coincidir com quem parecia mais próximo do poder. Por certo, uns ganharam e outros perderam, mas as burguesias nunca se esquivaram da luta nem abandonaram o jogo.
O pragmatismo também se apoderou dos latifundiários, ricos e influentes proprietários que foram convocados para a luta e muitos dos quais se regalavam com as delícias do comando. Eles também tinham que tratar de sobreviver em meio às crises de autoridade que as guerras civis provocaram. O liberal Altamirano coloca na boca de um de seus personagens estas palavras dirigidas ao presidente Benito Juárez:
Desconfie o senhor desses patrões, senhor presidente, porque recebem parte dos roubos e enriquecem-se com eles. Por aqui há um senhor que usa peruca loura, que toma rapé em estojo de ouro e que recebe a cada mês um grande salário dos bandidos. Ele dá permissão aos latifundiários para que passem com os seus carregamentos de açúcar e de aguardente, pagando evidentemente uma substancial contribuição.
Latifundiários, montoneros e bandidos formaram um complexo social muito fluido durante muitas décadas, ao longo das quais os latifundiários mobilizaram exércitos particulares cujos membros podiam, ocasional ou formalmente, separar-se desse núcleo para formar, com outros companheiros, os seus próprios bandos para trabalhar por sua conta em operações de pilhagem.
Houve, por certo, latifundiários que se mantiveram à margem da política e recolheram-se em suas fazendas ou em suas casas da cidade. Dessa forma, foram condenados a certa marginalidade, da qual só a sua riqueza os salvava. Outros, em compensação, decidiram participar da transformação social e política, em que tinham muito a ganhar. Encabeçaram os movimentos regionalista ou federalistas, sem prejuízo de que, ao chegar ao poder, se tornassem centralistas, colocando no centro da política os seus próprios interesses e os da sua região. Por isso, esforçaram-se em conquistar as capitais, de onde todo o poder se espalhava, podendo chegar a cobrir a totalidade da área nacional. As entradas dos montoneros nas cidades foram simbólicas, mas foram também fatos significativos, inclusive quando não tiveram os contornos, entre dramáticos e pitorescos, daquelas ameaçadoras cavalgadas dos camponeses nas ruas das cidades.
Os mais ativos na política foram os novos latifundiários, precisamente os que assim se fizeram na própria política, apropriando-se das fazendas dos adversários ou talvez adquirindo-as com as fortunas que acumularam nas campanhas, algumas delas suspeitas. Assim como os montoneros puderam enveredar em algum momento pela bandidagem, os seus chefes deixaram levar-se mais de uma vez pelos bens alheios: terras ou gados. Era o prêmio de sua ascendência sobre as classes populares rurais, as quais eles mobilizavam e com as quais eles davam sua cartada na mesa da política.
No ambiente que predominou depois da independência era impensável uma política que não estivesse respaldada pela força. O indício dessa situação foi a transformação dos civis em militares. Manuel Belgrano foi o exemplo de como um típico intelectual representante da burguesia de Buenos Aires pôde transformar-se em general de um exército regular. Porém, à medida que o processo avançou e se propagaram os conflitos civis, a diferenciação entre tropas regulares e irregulares tomou-se mais confusa. Um exército de aldeãos costumava conservar a sua condição híbrida; e nele as graduações militares se obtinham de fato, no exercício eficaz da ordem segundo as regras espontâneas que o grupo armado seguia, e muitas vezes por autodeterminação do promovido. A respeito do gaucho rio-platense, o viajante francês Xavier Marmier dizia, em 1850:
E quando consegue domar um cavalo, cruzar a nado os rios de correnteza mais rápida, manejar com sangue frio o laço e o facão, é então um homem completo. Sua existência está garantida, e por menor ambição que tenha, suas qualidades de gaucho podem colocá-lo em uma posição destacada. Assim começaram os coronéis e os generais da Confederação Argentina. Heróis imortais, como os chama Rosas, e ele mesmo, o grande Rosas, revelou desta maneira aos povos platinos o seu gênio providencial.
De origem mais ou menos semelhante foram quase todos os chefes dos montoneros, e aqueles que depois de serem chefes de montoneros acabaram ocupando altos cargos públicos. Dom Jacobo Baca, cuja ascensão relatava em 1869, com fina ironia, o tradicionalista José T. de Cuéllar em Ensalada de pollo, se lançou à revolução no México e acabou como coronel.
O generalato costumava ser concedido pelo poder político da ocasião. No entanto, ninguém hesitava em proclamar-se coronel se tinha por trás quinhentos homens bem montados. O coronel era, por direito próprio, o chefe político que estava em condições de tornar efetiva a sua autoridade arbitrária com o respaldo de uma força militar. A época das guerras civis foi a dos militares-políticos, porque dificilmente podia gravitar na política quem não tivesse essa dupla condição. Eugène de Sartiges visitou as autoridades de Arequipa e escreveu: “O prefeito, que acabava de ser promovido a general pelo presidente Gamarra, repetia de bom grado que o melhor governo era o do sabre”. E para uma sociedade que comprovava cotidianamente que era esse, de fato, o governo que tinha, a classe dominadora foi a dos coronéis e dos generais. Por isso, a marquesa de Calderón de la Barca pôde dizer agudamente, sem dispensar a ironia, que a nova geração que ela via dominar no México estava formada por “esposas de militares” e, naturalmente, por militares, “parvenus que foram promovidos por um golpe de sorte”.
Todos com as armas na mão, cada um deles buscou em seguida o apoio que julgou mais propício. Alguns se mostraram conservadores e outros liberais, mesmo que mudassem de partido se assim o julgassem oportuno. Houve aqueles que buscaram o apoio das camadas populares, tanto rurais quanto urbanas, como Belzú na Bolívia; e outros, o seu matador, Melgarejo, que preferiram colocar-se a serviço das classes abastadas e dos interesses estrangeiros. Contudo, todos tiveram de recorrer aos bons ofícios das burguesias urbanas para consolidar o seu governo e regularizar de algum modo o seu poder. Deste cruzamento saiu o patriciado, entre urbano e rural, que dominou a vida política no longo meio século após a independência.
Foi uma nova classe dirigente, de características inéditas, surgida com espontaneidade da nova sociedade e a ela adaptada. Todas as contradições sociais refletiram-se no novo patriciado. E todas as aspirações e propósitos nele encontravam eco. Era, sem dúvida, um grupo que desejava ardentemente o poder e a riqueza; mas não desejava apenas manipular e conduzir a nova sociedade, nem sempre de acordo com ideologias definidas – que, de resto, só se adequavam à realidade de modo muito limitado –, e sim segundo concepções pragmáticas e imediatas. Das próprias situações surgiam, para um curto prazo, opções entre as que cada um devia escolher: e dessa decisão derivaram enfrentamentos e lutas facciosas nas quais se entremesclavam os interesses e as ambições pessoais com opiniões radicais sobre questões básicas. E no confronto das opiniões foram elaboradas silenciosamente certas linhas políticas que, tocadas em algum ponto pelas ideologias, acabavam sendo vigorosas tendências através de cujos nomes – ou dos nomes de quem as apoiavam – previa-se um complexo e multiforme contexto, às vezes quase inexpressável, mas que em cada país ou em cada região ou em cada cidade levava à adesão ou à rejeição.
Por este motivo, a nova classe dirigente foi um autêntico patriciado, quaisquer que fossem as virtudes ou os vícios de cada um de seus membros. Esteve ligada ao rumo do destino coletivo e a sua pureza não foi nem maior nem menor do que a de outras aristocracias. O importante é que foi reconhecida pela nova sociedade como o seu patriciado, como a sua elite. E seus membros tiveram o sentimento de que constituíam uma elite. Devido aos grupos que a integravam, o patriciado foi um pouco urbano e um pouco rural, e talvez um pouco senhorial e um pouco burguês. Rural nos campos e urbano na cidade, pouco a pouco começou a ser rural nas cidades e urbano nos campos.
Com o passar do tempo, o patriciado foi-se consolidando graças à continuidade da ação de suas sucessivas gerações, à fortuna e ao poder herdados, à ação simultânea em diversos setores da sociedade, às alianças matrimoniais ou econômicas. Converteu-se em uma “antiga riqueza” e começou a considerar-se e a ser considerado uma aristocracia que, como de costume, ocultava ou idealizava as suas origens. Constituíram verdadeiras linhagens, nas quais havia lugares prefixados para herdeiros e colaterais, cuja força crescia caso conseguissem unir-se com outra linhagem colonial que, porventura, ostentasse brasões nobiliárquicos. Com o tempo, começou a desvanecer-se em alguns setores da nova classe alta a resistência contra o passado colonial; porém, mais rápido passou o entusiasmo pelo sentimento igualitário que vibrava nas palavras dos oradores jacobinos. As novas linhagens reivindicaram os privilégios das antigas e afirmaram com arrogância a sua pretensa excelência. Aquela que conseguia que de suas alas saísse um presidente da república e um arcebispo – como a dos Errázuriz, no Chile, ou a dos Mosquera, na Colômbia – assegurava-se o respeito universal e os melhores lugares para os seus membros menos importantes. “Esta estirpe dos Mosquera penetra na história com títulos de nobreza bem merecidos. Em Popayán, brilhou como estrela de primeira grandeza”, disse um cronista da cidade do Cauca. Em Arequipa, brilhavam os Goyeneche e os Tristán, aparentados entre si, e não só pertencia à linhagem o bispo como também as abadessas dos aristocráticos mosteiros de Santa Rosa e Santa Catarina. E não houve cidade na qual as novas linhagens republicanas não fizessem pesar a sua autoridade e se revestissem da ostentação que acreditavam corresponder à sua hierarquia. A respeito de muitos fatos da vida das grandes famílias ter-se-ia podido concluir o que dizia em 1840 a esposa do ministro plenipotenciário da Espanha no México sobre a cerimônia de inauguração do Congresso: “Oferecia um aspecto tão anti-republicano quanto se poderia desejar que fosse uma assembléia”.
Das novas linhagens saíam também em sua maioria os jurisconsultos que ocupavam os altos cargos jurídicos, os que elaboravam as constituições, as leis e os códigos, os que assessoravam o governo para os problemas mais graves e, constantemente, os que assessoravam os gestores estrangeiros que ofereciam empréstimos ou administravam concessões para as obras públicas. E quase sempre saíram deles escritores eminentes e poetas ilustres, com freqüência polemistas comprometidos que alternavam as letras com a política e, às vezes, com as armas, como o colombiano Julio Arboleda. Este patriciado foi a espuma da nova sociedade e brilhou nas grandes e nas pequenas cidades que conservavam o ar colonial quase intacto.
3. A luta pelas ideologias
Conduzir a nova sociedade supunha imaginar e colocar em funcionamento uma política. Mas a experiência – clara ou difusa – da mudança implicava interpretar de algum modo uma realidade social inédita, para adequar aquela política, tanto a curto quanto a longo prazo, às situações reais. Assim adquiriu inusitada importância a imagem da sociedade que cada um fizera para si, e esboçá-la foi, por cima das anedóticas lutas pelo poder, o desafio que o novo patriciado latino-americano teve de enfrentar, sobre o que se poderia dizer, como afirmava Lucio V. López, referindo-se ao de Buenos Aires de 1850, que se compunha de “estancieiros e comerciantes”, com o único acréscimo dos militares que organizavam a força a serviço de cada um dos grupos. Ter uma interpretação da sociedade foi, portanto, tão ou mais importante do que ter uma política. Essa interpretação foi algumas vezes intuitiva e outras, metódica e ajustada a critérios bem elaborados; porém, mesmo quando parecia puramente intuitiva através das palavras ou dos atos de um caudilho mais ou menos carismático, era fácil perceber que também respondia a alguma das orientações ideológicas que predominavam naquele momento.
Em diversas mentes perdurou, com diferentes matizes e com algumas alterações ao longo do tempo, a maneira de entender a sociedade que havia elaborado o pensamento da Ilustração e herdado depois o liberalismo. A sociedade era uma soma de indivíduos racionais, livres e iguais que constituíam um conjunto orgânico. Cada um deles exercitava a sua inteligência e a sua vontade para estabelecer e custodiar o pacto social que o vinculava aos demais. Nesse conjunto orgânico residia a soberania nacional que era, por isso, uma soberania popular, fonte de todo o poder. O venezuelano Antonio Leocadio Guzmán escrevia:
Nada significa na América o direito divino, que serve de fundamento para todo poder e jurisdição em algumas regiões; nada, o direito hereditário, que legitima em outras a autoridade do soberano e nada, senão bombas incendiárias, as combinações e equilíbrios aristocráticos. Todas essas legitimidades do mundo antigo foram substituídas na América pelo voto da maioria, constitucionalmente expresso.
Os deveres que o indivíduo tinha com o organismo social baseado no pacto eram rigorosos, e o primeiro deles era o de não quebrar o sistema de normas em que se baseava. No entanto, mais rigorosas ainda eram as obrigações que tinha o organismo – e em especial aqueles a quem havia sido delegado o poder – em relação aos indivíduos que o formavam: c sistema das liberdades individuais devia ser ciosamente resguardado, porque nessa interpretação da sociedade o mais importante era o indivíduo, e suas liberdades não deviam ter mais limite do que as liberdades dos demais.
O problema prático suscitado pela nova sociedade criolla era estabelecer quem eram os indivíduos que, de fato, faziam parte do organismo social. Na sociedade colonial, ninguém tinha dúvidas, já que estava estabelecido quem não fazia parte; porém, na sociedade posterior à independência produziu-se uma cisão entre a teoria e a prática, pois, segundo a primeira, todos faziam parte da sociedade como iguais, e de acordo com a segunda continuavam integrando-a só alguns, embora a mobilidade social forçasse o deslocamento de certos limites. A rigor, para a interpretação liberal da sociedade pareceu evidente que o sistema de liberdades e direitos individuais era válido apenas para o indivíduo que fosse racional e livre, o que, em outras palavras, significava que eram credores das liberdades e direitos apenas os proprietários – economicamente livres –, os que possuíam certa ilustração e, em geral, aqueles que, por suas condições, podiam considerar-se interessados na manutenção da ordem estabelecida pelo pacto e responsáveis por suas obrigações para com ele. Não foi, por conseguinte, de fato, uma interpretação igualitária da sociedade, embora o fosse na teoria, e ainda que o princípio da igualdade fosse arvorado de vez em quando pelos setores mais radicais do liberalismo, subentendendo-se que se tratava de aumentar em uma certa e limitada medida o número dos iguais.
Resquícios da concepção fidalga pulsavam na concepção liberal, que substituiu a distinção entre as classes fundamentada na origem por outra baseada na propriedade e na ilustração. O “gaucho ignorante” estava, como o escravo ou como o índio, à margem da sociedade, ou melhor, fazia parte de outra sociedade inferior, cuja rebeldia era necessariamente subversiva. A verdadeira sociedade era constituída por “gente decente”.
Porém, a convulsão social que se esboçou a partir do século XVIII e culminou ao desencadear-se a independência formulou o problema em outros termos. Pessoas que pertenciam à “outra sociedade” se ativeram à teoria igualitária que palpitava na essência da atitude emancipadora e exigiam, a seu modo, o posto que acreditaram corresponder-lhes. Ficou então criado um conflito entre as duas interpretações da sociedade, a respeito de qual era o significado da palavra “povo” na doutrina da soberania popular. Povo era toda a sociedade ou apenas uma parte dela? Uma vez mais, a interpretação iluminista e liberal da sociedade encontrou-se presa na contradição entre a teoria e a prática.
Intuitivamente, a resposta da “outra sociedade” e de seus porta-vozes foi que a sociedade era composta de todo o povo e devia ser, em conseqüência, igualitária. Foi uma convicção profunda e espontânea que só aos poucos ganhou clareza e se armou de argumentos. A sociedade começou a ver-se não como uma soma de indivíduos racionais e livres que constituíam um conjunto orgânico baseado em um pacto, mas, sim, como o próprio conjunto, no qual os indivíduos se desvaneciam ante o significado do todo. Assim, o conjunto era inorgânico, instável, fluido e, por isso, coexistiam nele igualitariamente os indivíduos, sem atributos de qualidades: proprietários e não proprietários, letrados e iletrados, responsáveis e irresponsáveis, a “gente decente” e a “gentalha”. Uma consciência, uma alma comum palpitava no conjunto inorgânico que não se expressava através da razão, mas sim do sentimento e da vontade. Em 1811, o uruguaio José Artigas escrevia:
Não eram os camponeses soltos, nem aqueles que deviam sua existência ao seu ordenado ou salário os únicos que se agitavam; habitantes já estabelecidos, possuidores dos benefícios que este solo oferece, eram os que se convertiam repentinamente em soldados, os que abandonavam os seus interesses, as suas casas, as suas famílias, os que iam, talvez pela primeira vez, expor a sua vida aos riscos de uma guerra, os que deixavam as suas mulheres e seus filhos acompanhados de um triste pranto, enfim, os que surdos à voz da natureza, ouviam só a da pátria.
Foi uma experiência semelhante a esta que desencadeou em muitas mentes uma interpretação da sociedade como um todo.
A cada interpretação da sociedade correspondia uma interpretação do modo de expressar-se. Para a concepção liberal, a sociedade falava através de cada um dos seus membros, cujas opiniões e decisões racionalmente elaboradas se transferiam para um número reduzido de representantes capazes de trabalhar racionalmente também. Porém, a outra concepção – romântica – não contava com a opinião e a decisão racional de cada um daqueles que integravam o conjunto inorgânico, mas sim com os seus sentimentos, profundos, mas não traduzidos em fórmulas: necessitavam de um intérprete que os racionalizasse e canalizasse, convertendo-os em atos. Assim, à democracia representativa opôs-se uma concepção personalista e caudilhesca. Carlyle descobriu rapidamente este mecanismo da vida política latino-americana e explicou-o em seu estudo sobre o ditador paraguaio José Gaspar Francia.
Grande parte das observações e análises que foram feitas sobre a sociedade latino-americana nesta época giraram, precisamente, em tomo do tipo de poder dos caudilhos carismáticos. Dois argentinos, Juan Bautista Alberdi e Domingo Faustino Sarmiento, levaram a análise até o âmago da questão: o primeiro, no Fragmento preliminar al estudio del derecho, de 1837, e o segundo, em Facundo, de 1845. Ficou evidente para eles a representatividade dos caudilhos com respeito à nova sociedade; sua resposta foi que urgia modificar as condições dessa sociedade; mas o diagnóstico era profundo e a descrição, fiel. Acumularam-se outras observações, umas vezes, de liberais influenciados, de certo modo, pelas idéias sociais do romantismo, outras dos conservadores e outras ainda dos turiferários dos caudilhos. Todos aceitaram de alguma forma a representatividade dos chefes mais ou menos carismáticos que polarizavam camadas populares, tanto rurais quanto urbanas. Porém, os excessos da autocracia acabaram desestimulando a interpretação romântica da sociedade ou, melhor, conduzindo-a em direção ao caminho aberto pelo romantismo liberal; foi uma transação que levava, por fim, à aceitação formal do sistema representativo entre os mais radicais, a uma perspectiva de incorporação acelerada dos grupos recém-emergentes da sociedade integrada. Era esta a sociedade que, de fato e apesar de eventuais tropeços, continuava conduzindo os destinos regionais e nacionais, e à sua frente estavam – ou tornavam a estar – as sociedades urbanas.
A interpretação liberal e a interpretação romântica da sociedade tinham, na América Latina, apesar da sua contradição radical, algo que as vinculava: eram como duas faces de uma mesma moeda, cunhadas ao calor da mudança que as duas haviam percebido e identificado. No entanto, não fizeram desvanecer de todo a velha interpretação, anterior a ambas, que havia nascido com a conquista e que serviu de fundamento à sociedade fidalga. A mudança provocada pela intensificação do desenvolvimento mercantil havia sido importante, embora a mudança advinda da liberação das forças sociais após a independência não o fosse menos; porém, o regime de propriedade das terras e das minas continuava sendo o mesmo embora tivesse havido mudança de mãos. Era inevitável que subsistisse a velha interpretação da sociedade, sustentada por aqueles que, mesmo havendo percebido a mudança, não estavam dispostos a reconhecê-la: alguns procuravam detê-la, mas muitos confiavam na possibilidade de recuperar a situação anterior ao seu desencadeamento.
Portanto, entrecruzaram-se três ideologias na mentalidade do novo patriciado, e operaram algumas vezes puras e outras combinadas em variadas composições. Foi nas cidades, e em especial nas capitais, que nasceu esta batalha ideológica porque nelas se integrava pouco a pouco o heterogêneo grupo que disputava o poder, e nelas também se formavam os movimentos de opinião que aceleravam ou retardavam a consolidação dos grupos de poder. Algumas vezes, vencia aquele com objetivos definidos e outras aqueles que se perguntavam, no dia seguinte à conquista do poder, o que fazer com ele. As transações entre os grupos foram tão freqüentes como as transações ideológicas. E nesta tarefa alquímica, o complexo e ambíguo ambiente da cidade constituía um cenário no qual se tinha de estar presente para formalizar os termos do pacto.
Lentamente, as cidades foram absorvendo o impacto das invasões rurais, seduzindo e catequizando seus representantes e porta-vozes. Juan Facundo Quiroga – o “tigre das planícies” – comprou em Buenos Aires a bela casa dos Lezica e nela se instalou com a sua família; e nos suntuosos salões de “Vineta”, a casa onde morou em Caracas o general José Antonio Páez, sua esposa, doña Barbarita, oferecia brilhantes tertúlias. Nesse ambiente, a velha tese urbana do despotismo para a liberdade – o despotismo ilustrado do século XVIII – reverdeceu modernizada. Nem todos optaram por ela, certamente, porque muitos se refugiaram no mais atávico conservadorismo de tradição encomendera e com debruados ultramontanos. Aceitaram-na, por outro lado, os que se nomeariam liberais e os que, pertencendo aos grupos de velhos ou novos proprietários, haviam buscado e obtido apoio popular e se reconheceram como conservadores liberais. Em meio à trama das orientações, escapavam às vezes as decisões pragmáticas, relacionadas com os problemas imediatos de cada momento. Não obstante, pressentia-se, por trás de cada uma daquelas, uma intenção, uma tendência, uma atitude, que revelava qual era o peso que cada uma daquelas interpretações tinha na complexa combinação de opiniões que lentamente decantavam na mentalidade do novo patriciado.
Desencadeada a mudança, uma questão fundamental ficou subjacente a todas as decisões que se teve de tomar: a manutenção ou a transformação da estrutura socioeconômica do mundo colonial. Desde o início, ela não ficou clara para todos, nem todos os problemas imediatos estavam contemplados nos sistemas de princípios que se esgrimiam. Mas os fatos falaram por si mesmos. Conservar o sistema da primogenitura ou o regime do estanco significava manter a estrutura socioeconômica da colônia; e a luta a favor ou contra essas instituições polarizou conservadores e liberais. A constituição liberal do Chile de 1828 aboliu a primogenitura, porém, após a revolução de 1830, a constituição conservadora de 1833 restabeleceu-a: todo o esforço do ministro Portales estava voltado para a manutenção da estrutura socioeconômica colonial, como fez Rosas na Argentina. No Brasil, em meio a uma grave comoção geral e a uma tensa polêmica, a primogenitura foi suspensa em 1835, e com isto a aristocracia proprietária que havia mantido Pedro I sofreu um duro golpe. A lei colombiana de 1848, liberando o cultivo do tabaco, pôs fim a uma situação monopolista ardorosamente defendida pelos conservadores. As reformas propostas no México por Gomez Farías, em 1833, apoiadas com veemência pelos liberais, foram derrogadas no ano seguinte por Sant’Anna, e foi necessário esperar até a constituição liberal de 1857 e as Leis de Reforma para que fossem restabelecidas, o que não impediu o desencadeamento da guerra civil e a intervenção estrangeira.
Talvez o que mais ameaçava a persistência da velha estrutura era o problema da mão-de-obra. Apesar da predisposição teórica dos governos nascidos da revolução para liberar o servo rural indígena e dar os primeiros passos a fim de abolir a escravatura, o debate que conduziria à consagração legal desses propósitos foi longo e inflamado. Enfrentando oposição e hesitações, o presidente Castilla decretou no Peru a alforria dos escravos e a supressão do tributo dos indígenas. A liberdade dos servos rurais foi igualmente estabelecida na constituição mexicana de 1857, após árduo debate e contra a mobilização dos proprietários a favor de seus interesses. E no Chile, ao discutir-se a constituição de 1823 que aboliu a escravatura, os proprietários de escravos não apenas defenderam os seus direitos como também mobilizaram os próprios escravos para que declarassem diante do congresso que não queriam mudar de condição. Por certo, eram os burgueses urbanos – não prejudicados por essas medidas – os que com afã trabalhavam para conseguir algumas conquistas que, de resto, liberalizavam o mercado da mão-de-obra.
Os conservadores antiliberais perderam esta batalha, porém todos os conservadores e muitos liberais mantiveram um forte preconceito a respeito das relações entre as classes. Em meados do século, percebia-se um resquício fidalgo que criava um abismo entre as classes altas e dominadoras e as classes populares. Destas últimas, amplos setores aceitavam tal interpretação das relações sociais. Em alguns países – como no Chile e na Colômbia os grupos de artesãos alcançaram certa consistência, agruparam-se em sociedades e até intervieram na política, mas não chegaram a superar o seu sentimento de inferioridade. As classes médias urbanas contrapuseram à concepção tradicional da sociedade uma variante inspirada por certa ideologia da ascensão social. Não consistia em negar a sua separação, mas em afirmar o direito dos que alcançavam certas posições a serem admitidos na classe superior. Foi um tema comum da literatura realista e costumbrista a crítica aos grupos ditos aristocratas por sua resistência a aceitar os méritos e a fortuna, alegando explícita ou implicitamente uma espécie de direito de nascimento. A prédica igualitária transferir-se-ia, portanto, para a política através do tema do sufrágio censitário.
Foi precisamente nos temas políticos que a luta das ideologias ficou mais claramente evidenciada. O primeiro e mais profundo desses temas foi o da nacionalidade. Surgidas – exceto no Brasil – de uma eventual divisão das áreas coloniais, as novas nacionalidades formaram-se sem um fundamento suficientemente eficaz; era difícil estabelecer, nas décadas que se seguiram à independência, quais eram os traços específicos e diferenciadores de cada um dos novos países. Duas tendências manifestaram-se contra a definição das nacionalidades. Uma foi a aspiração de constituir grandes unidades políticas, como tentaram Bolívar com a Grande Colômbia, Morazán com a América Central e Santa Cruz com a Confederação Peru-Boliviana. Outra foi a de certas regiões a converterem-se em nacionalidades.
As tentativas dos criadores de grandes unidades políticas fracassaram. Diante da teoria bolivariana inflamaram-se os sentimentos e os interesses nacionalistas que encarnaram Páez, Santander e Flórez, cujos movimentos tiveram forte apoio para afirmar a personalidade política do que seriam depois novos países: Venezuela, Colômbia e Equador. As regiões centro-americanas frustraram o projeto de Morazán e os dois países unificados por Santa Cruz separaram-se logo devido à resistência de diversos setores e da pressão do Chile. Porém, antes, durante e depois manifestaram-se tendências no sentido de fortalecer certas áreas mediante alianças e até protetorados estrangeiros. Houve, em resposta, fortes movimentos nacionalistas que consideraram tais apoios como uma traição.
Entre aqueles que lutaram pela emancipação das suas regiões, triunfaram alguns que, em última instância, impuseram uma imagem nacional da região: foi o caso do Uruguai com Artigas, do Paraguai com Francia e, de certo modo, em um primeiro momento, o caso dos países centro-americanos e da Bolívia. Contudo, foram muitos os que fracassaram ou reduziram as suas aspirações nacionalistas a fórmulas federalistas. Talvez o caso mais dramático tenha sido o do Brasil quando da abdicação do imperador Pedro I. A partir de 1831, as insurreições regionais colocaram em risco a unidade do império e, em cada região – assim como nas grandes cidades dividiram-se as opiniões que, quase sempre, opunham liberais e federalistas, por um lado, e conservadores e centralistas, de outro. O problema apresentou-se, de vez em quando, em muitos países. Centralistas e regionalistas ou unitários e federais foram os protagonistas de uma longa polêmica doutrinária que acompanhava as tensões políticas e as guerras civis, como as que agitaram a Argentina e o Uruguai, a Colômbia, a Venezuela e o México. Regiões bem diferenciadas – Yucatán, Cauca, Texas, Coro, Apure, Pernambuco, Rio Grande do Sul –, com nítidos interesses locais às vezes antagônicos em relação aos das capitais, fizeram valer o seu direito a certa margem de autonomia, sem negar necessariamente o princípio básico da nacionalidade.
O vigor da ideologia nacionalista, oposta às concepções ultranacionais e regionais, manifestou-se na obra dos historiadores que se propuseram a indagar geneticamente a formação da nacionalidade e a sua preexistência quanto ao sentimento regional. Tratava-se de afirmar – talvez de demonstrar ou porventura de aperfeiçoar – a noção de uma peculiaridade nacional que abrangia todas as regiões de uma área, aprofundando-se tanto no passado colonial quanto na decisiva aventura da emancipação. Neste sentido, de um modo ou de outro, podemos citar a obra dos mexicanos Lucas Alamán e José Maria Luis Mora, do cubano José Antonio Saco, dos venezuelanos Rafael María Baralt e Juan Vicente González, do colombiano José Manuel Restrepo, do boliviano Mariano Paz Soldán, dos argentinos Bartolomé Mitre e Vicente Fidel López, dos chilenos Diego Barros Arana e Benjamín Vicuña Mackenna, enfim, uma longa lista que prova a grande influência que a concepção romântica da história havia tido na América Latina, movida precisamente pelo propósito de identificar, em cada caso, as linhas do destino nacional.
Os movimentos regionalistas e federalistas, embora compartilhados e liderados por proprietários, foram de modo evidente populares: um típico exemplo foi a Revolução Farroupilha que Bento Gonçalves liderou, em 1835, no Rio Grande do Sul. Todos expressaram o que havia de comum no conjunto das populações regionais diante das pretensões centralistas das capitais e suas burguesias, consideradas arrogantes e ambiciosas. E embora nem sempre tivessem uma clara política além da autonomia, escondiam uma concepção positivista da vida provinciana e da tradição local que se opunha ao modo de vida das grandes cidades atingidas pela influência européia.
Politicamente, o regionalismo almejava uma administração descentralizada. Porém, a tradição do governo centralizado e forte era muito vigorosa e a muitos pareceu a única solução para as sociedades instáveis. Rosas, Garcia Moreno, Páez, Monagas, Latorre e, de antemão, os imperadores Pedro II e Maximiliano exerceram autoritariamente o governo e expressaram a opinião de consideráveis setores conservadores, compostos não só pelos membros da classe alta que viam neles os defensores da ordem – e da “ordem de coisas” vigente – como também pelos setores populares que tinham uma concepção paternalista do poder. Os liberais, pelo contrário, incluindo os conservadores liberais, condenavam violentamente o personalismo ou a tirania, em termos tão violentos como o fizeram Sarmiento ou Montalvo: as burguesias urbanas apoiaram as formas da democracia republicana e representativa, nas quais os seus adversários só viam uma armadilha inventada pelos doutores para desfrutar do poder e de suas vantagens.
Por isso, grande parte das lutas pelas ideologias se deu através dos projetos constitucionais. Houve quem acreditasse, como Rosas, que o seu país não estava maduro para promulgar uma constituição, após os fracassos que os seus adversários haviam sofrido ao tentar impor algumas delas e que haviam sido rejeitadas pelas províncias. Assim como o doutor Francia no Paraguai, ele pensava ser o porta-voz fiel das aspirações populares e que, de qualquer maneira, só uma personalidade carismática, uma voz pessoal, matizada e sensível aos sentimentos coletivos podia expressar as vagas tendências das classes populares sem experiência política. Porém, na maioria dos países e das situações houve acordo acerca da necessidade de promulgar uma constituição, pois esse era o modelo político que os teóricos das novas democracias propunham. A disputa ocorreu primeiramente entre os que aspiravam a que, por força de uma constituição, se modificasse a realidade social e o sistema consuetudinário – segundo um esquema racionalista –, e os que sustentavam que a constituição devia, apenas, codificar as situações instauradas que, naturalmente, configuravam um sistema de privilégios das velhas classes proprietárias. Porém, em seguida, o quadro das divergências piorou, porque se quis incorporar às constituições as respostas aos novos problemas que se iam delineando. Lutou-se por constituições decididamente liberais ou conservadoras e, às vezes, pelo triunfo de um texto consensual. Lutou-se por um sistema no qual o congresso tivesse amplos poderes ou, pelo contrário, a favor de outro que assegurasse ampla margem à autoridade do poder executivo. Mas lutou-se também para que a constituição definisse questões concretas a respeito das alfândegas, da navegação dos rios, do sistema econômico, da condição das classes dominadas. E lutou-se muito também para regulamentar de uma maneira ou de outra as relações entre a Igreja e o Estado, o poder econômico da Igreja e a condição do clero. Se a Convenção do Rio Negro deu à Colômbia em 1863 uma constituição na qual se prescindia da tradicional invocação a Deus, Garcia Moreno deu ao Equador em 1869 uma constituição teocrática. Conservadores e liberais já não eram os únicos rótulos que definiam os grupos políticos, porque em todos os lugares começaram a se perfilar grupos ultramontanos, por um lado, e grupos radicalizados, por outro.
Vagas opiniões e sentimentos difusos foram muitas vezes o móvel da ação. Na inquieta e fluida situação social, nos arrebatados entreveros da luta pelo poder, alguém erguia uma bandeira e a defendia até a morte sem analisar o impulso que o havia movido e sem deter-se para considerar as implicações finais de seus atos. No entanto, por uma via ou por outra, tais opiniões indefinidas e tais sentimentos intensos iam-se canalizando, porque diante deles havia quadros estabelecidos de idéias e de princípios que funcionavam como modelos. Esta canalização, esta redução de um pensamento difuso a um quadro de idéias claras, representou uma longa tarefa que se desenvolveu nas cidades. No cerne das burguesias urbanas, sabia-se aquilo que se queria e acumulava-se uma vasta experiência política e uma suficiente formação doutrinária como para entrever o significado de cada ato voluntário, de cada opinião imprecisa, de cada sentimento difuso. O conservador sabia o que queria conservar, até onde valia a pena conservar cada coisa e em que ritmo podia aceitar a mudança de outras. O liberal sabia o que queria mudar e o que não queria mudar, e em que ritmo preferia que a mudança ocorresse. Nem todos os liberais nem todos os conservadores coincidiam entre si: aspectos profundos ou sutis os separavam, embora coincidissem em alguns esquemas fundamentais. E com tudo isso eram estabelecidos quadros aos quais, em situações-limite, recorriam aqueles que haviam adotado uma opinião ou comprometido a sua vida em um ato, alarmados pela virada dos acontecimentos e temerosos de se excederem ou de não chegarem aos vagos objetivos perseguidos.
Esta tarefa foi realizada nas cidades, lentamente, como era inevitável em uma situação social e política na qual se contrapunham com freqüência o arrebato audaz dos impulsivos e a prudência calculada dos cautelosos. Foi nas cidades que essa transfusão se processou lentamente, corrigindo os ideólogos os seus modelos para que entrassem novos conteúdos trazidos pelos que se moviam por impulsos espontâneos, por idéias imprecisas e por sentimentos difusos, enquanto estes outros aprendiam a moderar os seus sentimentos e a inscrevê-los em um marco que lhes permitisse reduzir os riscos de sua manobra ou aumentar a vantagem que dela esperavam.
Através desse jogo, os grupos de opinião delinearam-se com progressiva precisão e adquiriram traços de partidos políticos. Os problemas eram esclarecidos ao mesmo tempo que se multiplicava o limitado número de opiniões que cada problema suscitava. E cada opinião mostrava, à luz da experiência política e da análise doutrinária, quais eram os seus alcances, as suas possibilidades e as suas últimas conseqüências. Os conservadores liberais se diferenciaram dos conservadores ultramontanos e antiliberais herdeiros da ideologia conquistadora. Os liberais adaptaram e readaptaram a sua doutrina, tentando harmonizar os problemas que deviam enfrentar com os princípios que recebiam elaborados: dos teóricos europeus, das duas vertentes da maçonaria – escocesa e yorkina –, dos doutrinários de outra revolução mal entrevista na América Latina, mas que havia sido ensaiada na Europa, em 1848. Assim se diferenciaram os liberais moderados dos radicais, e ambos, daqueles que começavam a pensar em uma política autônoma para as classes populares.
Os dois grandes partidos – liberais e conservadores – começaram a adquirir coerência e a incorporar as idéias surgidas espontaneamente da ação e os homens que as apoiavam. O patriciado dividiu-se em liberais e conservadores. Porém, automaticamente, cada partido se dividiu em alas ideológicas que, diante das situações reais, se uniram nas mais diferentes alianças. Não foi raro ver conversões doutrinárias e, menos ainda, conversões práticas: de conservadores tornaram-se liberais Tomás Cipriano de Mosquera, na Colômbia, e José Tadeo Monagas, na Venezuela; e na Colômbia todos se uniram quando o general Melo quis capitalizar as inquietações populares, em 1851.
A tentativa de Melo era, sem dúvida, tipicamente militar. Os militares o combateram, mas insuflados pelos civis. Tão patente foi o papel dos militares na América Latina nesta época que várias vezes a antinomia de liberais e conservadores foi substituída pela de militaristas e civilistas. Porém, isso não foi obstáculo para que houvesse ditaduras civis tão enérgicas quanto as militares. A rigor, em que pese o jogo dos partidos e a vigência das constituições, a luta das ideologias alimentou a tendência espontânea – ou talvez certa necessidade das sociedades instáveis – no exercício do poder de facto. As burguesias urbanas foram as que trataram de vestir os poderes de facto com o manto da legalidade formal, como uma transação entre os seus ideais doutrinários e a imensa necessidade de voltar a enquadrar as massas rurais liberadas dentro do sistema produtivo e de conter a mobilidade social que ameaçava ultrapassar as fronteiras das classes privilegiadas.
4. Panorama da cidade
Os inúmeros viajantes europeus que chegaram às cidades latino-americanas por esta época, muitos movidos por interesses comerciais, outros fugindo dos vaivéns da política e alguns incentivados por um espírito romântico de aventura, nelas descobriram uma fisionomia colonial, ou melhor, uma fisionomia envelhecida. A partir das cidades, e como confinados em um reduto de civilização, observaram com certa surpresa um mundo que não lhes pareceu totalmente alheio. Era uma espécie de Europa, talvez mais primitiva, mas que ostentava um exotismo moderado, curioso e, ao mesmo tempo, tolerável. Observaram a natureza um pouco exagerada e as cidades um pouco elementares. Aquele que vinha de alguma das grandes capitais sorria com uma altivez, no fundo ingênua. Por volta de 1850, não havia em Mendoza ou em Veracruz hotéis tão bons quanto em Paris. Porém, de qualquer maneira, o espetáculo interessava aos viajantes. Alguns escreveram as suas impressões de viagem e os que sabiam manejar o lápis ou a aquarela procuraram um ponto de vista apropriado e esboçaram um panorama da cidade.
Apesar do seu ar levemente desdenhoso, muitos viajantes – transformados em escritores e pintores – observaram cuidadosamente as cidades latino-americanas em meados do século XIX, após a independência. Sem dúvida estas chamaram a sua atenção, sobretudo por seus contrastes. Por certo, eles as contemplavam em um momento singular de seu desenvolvimento, quando uma mudança profunda se processava em suas sociedades sem que se produzisse ao mesmo tempo uma transformação em seu aspecto físico. Seu traçado e sua arquitetura eram predominantemente coloniais, mas as sociedades urbanas eram criollas e estavam em plena ebulição. Raramente o recém-chegado podia perceber a intensidade da mudança que estava ocorrendo na vida das cidades, e suas observações flagravam apenas um momento do processo. No entanto, fixavam em sua memória, ou no desenho, a perdurável imagem do conjunto urbanístico e arquitetônico: as igrejas, as grades e balcões dos velhos casarões, o pacato conjunto que circundava a Plaza Mayor.
Sem dúvida, era curioso para o estrangeiro o espetáculo destas cidades que, quaisquer que fossem os seus traços, funcionavam como as cidades de seu país de origem. Assim as viram também os nativos, como núcleos arquitetônicos e centros sociais que cumpriam um papel singular, não só na vida do país como também na do mundo, como um elo do enredado mundo urbano que a economia mercantilista havia criado e que começava a servir à economia industrial. Um papel que não passou despercebido para o romancista seduzido pelo realismo, para o sociólogo surpreendido por uma realidade inesperada, para o historiador preocupado com a sucessão de mudanças. Benjamín Vicuña Mackenna escreveu metodicamente sobre Valparaíso e Santiago do Chile, e muitos outros reuniram materiais ou expuseram o que sabiam a respeito do desenvolvimento de sua cidade.
Por certo, as cidades, naquela época, eram objeto de curiosidade e de estudo. As da Europa cresciam ao calor das transformações econômicas, e a industrialização mudava os costumes, as condições de vida, os objetos de uso. A rapidez da transformação técnica acentuava os contrastes. E tanto o observador estrangeiro quanto o nativo que havia visitado a Europa analisavam e consideravam as cidades segundo certos padrões que evidenciavam a estagnação ou o progresso. A rigor, a cidade foi o indicador da mudança, e todos a ela dirigiram o seu olhar para descobrir se a sociedade à qual pertenciam se havia incorporado ao processo desencadeado na Europa.
Na América Latina, porém, várias das cidades que haviam começado a transformar-se no final do século XVIII interromperam o seu breve desenvolvimento por ocasião das alterações produzidas primeiro pela independência e depois pelas guerras civis. Houve um transtorno nos circuitos comerciais e as relações entre os centros urbanos e as regiões adjacentes se modificaram, ao passo que as cidades foram ocupadas várias vezes pelos bandos em luta e os bens de consumo foram destruídos ou confiscados. Nessas condições, o leve movimento iniciado pouco antes foi contido. Foi diferente nas cidades protagonistas das novas correntes econômicas: aquelas que recebiam e distribuíam as importações estrangeiras, as que concentravam a produção para exportá-la; e foi diferente também em várias capitais que se beneficiaram com a presença do poder político. Mas em poucas a continuação ou a renovação do desenvolvimento econômico se traduziu em uma transformação da cidade física que impressionasse o viajante disposto a fazer um desenho da cidade ou a descrevê-la. Um perspicaz geógrafo, Agustín Codazzi, depois de resenhar os progressos da cidade venezuelana de Barinas, de 1787 até 1810, explicava as causas de sua decadência:
Já foi dito que a guerra a destruiu; o incêndio e os saques não lhe permitiram soerguer-se tão rápido como em outros lugares. Aqueles homens ricos e poderosos que faziam Barinas luzir ou abandonaram os seus lares fugindo, ou morreram neles ou a guerra os abateu de todas as formas, e os poucos que voltaram ficaram na indigência. O dinheiro havia sido consumido, a riqueza pecuária havia perecido e a agricultura havia ficado inteiramente abandonada. Bermas ficou despovoada, desertas as suas savanas, ermos os seus campos, abandonadas as suas fazendas, arruinadas as suas casas. Uma nova era despontou, a de liberdade e igualdade, e cada um se julgou livre, como o era efetivamente; e dono de todas as suas ações, não quis submeter-se a ninguém.
Em maior ou menor escala, o processo repetiu-se em muitas cidades. O argentino Sarmiento descreveu em Recuerdos de provincia o destino de San Juan e, em Facundo, o de outras cidades. O brasileiro João Lisboa anotou o languescente perfil de São Luís do Maranhão. A marquesa de Calderón de la Barca, falando do México, dizia: “Nenhuma cidade deste país decaiu tanto desde a independência quanto Morelia”, mas não deixava de ser significativo que o porto de Veracruz, vítima dos contratempos da guerra, houvesse perdido a sua antiga pujança e parecesse uma cidade estagnada. E outros portos importantes da época colonial, como El Callao, Panamá e Cartagena, haviam sofrido declínio semelhante.
De resto, eram muitas as cidades que não haviam tido ainda um desenvolvimento significativo, e somavam-se às que haviam declinado para aumentar o quadro geral de estagnação. Que imagem podiam oferecer Cuzco ou Quito, Ouro Preto ou Tacna, Cochabamba ou Monterrey, Assunção, Guatemala ou Valdivia?
O século XVIII sobrevivia nelas: a mesma praça, o mesmo chafariz, a mesma igreja, as mesmas ruas com as mesmas casas. Quem lia uma antiga descrição da cidade descobria que nada havia mudado.
Ao calor da nova economia fundaram-se novas cidades ou velhas aldeias transformaram-se em cidades: Bahía Blanca e Rosário na Argentina, Tampico no México, Colón no Panamá, Barranquilla na Colômbia. “Fruto espontâneo do comércio”, como chama Miguel Samper esta última, referindo-se ao seu fulminante desenvolvimento por volta de 1872: “Nela existem talvez mais estrangeiros do que em todo o restante da república; ouve-se falar o inglês nos escritórios, nas docas, nas ferrovias, nos navios; e o movimento comercial, o barulho da atividade, o apito da máquina a vapor contrastam com a quietude das cidades do altiplano.”
Porém, o aspecto destas cidades prósperas era ainda muito primitivo. O traçado era irregular; as edificações consistiam mais em ranchos de palha do que em casas de alvenaria, e mesmo estas eram sumárias, como para resolver de imediato o problema do teto; os terrenos baldios surgiam em pleno centro urbano e o centro da atividade costumava consistir em duas ou três ruas, ou em uma aglomeração formada em volta do porto ou da estação de trem. Algo parecido ocorria nas cidades e nos povoados de fronteira ou naqueles que surgiam ao longo das vias férreas, a partir de uma precária casa de comércio instalada em frente à estação.
Também, graças ao calor da nova economia e das novas situações foi como progrediram as cidades que mais mudaram a sua fisionomia no longo meio século posterior à independência. A centralização da economia regional acentuou-se em algumas capitais políticas, em alguns portos, em algumas cidades. As capitais que eram ao mesmo tempo portos, como Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro, reuniram as maiores vantagens. Uniam à ativação econômica a influência do poder político, e à concentração da riqueza somavam, em algumas ocasiões, as tendências inovadoras de determinados grupos. Os portos refletiram a intensificação da atividade comercial. A capital do Panamá começou a sair da sua prostração quando foi ligada pela estrada de ferro ao porto atlântico de Colón, em 1855, e muito rapidamente ganhou novo aspecto imposto pelo grande contingente de população norte-americana que nela se instalou. Guayaquil e El Callao cresciam lentamente, apesar de este já ter conexão ferroviária com Lima desde 1851.
No entanto, o porto do Pacífico que mais cresceu e o que mais rápido se transformou em uma moderna cidade foi Valparaíso, que colheu os frutos da ativação econômica da área suscitada pelo descobrimento do ouro na Califórnia e na Austrália. No todo, era superada por Santiago que, por sua vez, não disfarçou os seus ciúmes do porto que queria “ser de maior importância e consideração do que a capital da república”, como diria Blest Gana. Mas, à medida que se povoava o anfiteatro montanhoso que emoldurava a baía, Valparaíso adquiria um ar cada vez mais vivaz e pitoresco. As vistas da cidade feitas por Wood, Fisquet e Lafond de Lurcy refletiam sobretudo este aspecto, porém as primeiras fotografias preferiam mostrar a imagem da cidade que se modernizava, com o seu aristocrático hotel Aubry na rua da Alfândega, quase tão elegante como o hotel Pharoux do Rio de Janeiro. Em tomo de 1856, Valparaíso já tinha 52.000 habitantes, e vinte anos depois atingia os 97.000. Uma intensa atividade comercial dava ocupação a muita gente. Max Radiguet escrevia, em 1847:
A praça da Alfândega, aberta ao lado do mar, mostra essa atividade, essa agitação buliciosa que denota inúmeras e importantes transações comerciais: só ali há montes de volumes empilhados e cobertos, barris de todos os tamanhos e formas, grandes caixas pintadas vistosamente e cheias de letreiros desiguais, obra laboriosa de um pintor chinês.
E, no entanto, Valparaíso mal estava então no começo. As exportações de trigo, em especial para a Califórnia, haviam revigorado o seu comércio e as suas importações cresceram paralelamente, aumentando cinco vezes as suas rendas de alfândega entre 1841 e 1870. Crescia o movimento portuário, e o tráfego interno tomou-se mais intenso e ágil a partir da inauguração, em 1863, da via férrea que ligou Valparaíso a Santiago. Uma notável transformação urbana acompanhou este esplendor econômico. A zona portuária ficara unida ao subúrbio do Almendral, oferecendo uma frente compacta de edificações. Novos edifícios modificaram o aspecto do centro, ao passo que Almendral se transformava em um bairro com bonitas casas ocupadas geralmente por comerciantes estrangeiros. Hotéis, estabelecimentos comerciais e bancos foram sendo instalados na estreita rua da Alfândega – hoje Prat –, em tomo da qual mal restavam vestígios da velha cidade colonial.
O Rio de Janeiro foi a primeira cidade latino-americana a sofrer mudanças importantes em seu aspecto, já nas primeiras décadas do século XIX. A inesperada chegada do regente de Portugal João VI, em 1808, fugitivo dos franceses e protegido pela frota britânica, transformou de repente a sonolenta capital vice-reinol em corte, sem estar, por certo, preparada para isso. Alojar a família real e as quinze mil pessoas que compunham sua comitiva foi um problema difícil que se resolveu transformando-se funcionalmente o centro da cidade. O palácio vice-reinol, o convento dos Carmelitas e a cadeia foram dedicados sem outras modificações além das imprescindíveis a hospedar a corte; porém, a partir desse momento, pouco a pouco tudo começou a mudar. Os nobres portugueses impuseram as suas próprias necessidades e contribuíram para a mudança. Contudo, contribuíram mais os comerciantes ingleses e franceses que se dispuseram a supri-las aproveitando a abertura dos portos. Ao cabo de algum tempo, a rua do Ouvidor converteu-se em uma rica e variada vitrine de produtos estrangeiros e nela se reuniam os elegantes em improvisadas tertúlias nas ruas.
Logo, o aspecto edilício do Rio começou a mudar. O regente recebeu de presente uma luxuosa casa de campo nos arredores da cidade e transferiu-se para ela: chamou-a de Boa Vista e determinou a melhoria das ruas que a ela davam acesso. O caminho – que se chamou do Aterrado – deu seu nome ao bairro, que pouco a pouco começou a abrigar novas casas, prestigiadas pela proximidade do palácio real. Foi a Cidade Nova, com a qual se estendeu o perímetro urbano até São Cristóvão. Mas não foi a única expansão. Uma fábrica de pólvora erguida próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas e ao Jardim Botânico que o regente fez instalar em sua vizinhança criou outro pólo de expansão que se foi urbanizando, pouco a pouco, dando origem aos bairros da Lagoa e da Gávea. E a iniciativa dos novos moradores estrangeiros – diplomatas e comerciantes – suscitou a formação de novos bairros, uns na costa, como Glória, Flamengo e Botafogo, e outros em vales, como Laranjeiras e Tijuca.
Ao longo do período imperial, o Rio de Janeiro alcançou certo esplendor. Sua expansão foi espontânea, mas em alguns aspectos a sua transformação resultou da obra de urbanistas franceses que trabalharam intensamente na cidade: Auguste Grandjean de Montigny e Auguste Glaziou. Abriram e remodelaram ruas, praças e jardins, e até se pensou – já sob a influência da obra do barão Haussmann em Paris – em uma modificação da cidade que desvanecesse a sua estrutura colonial. Alguma coisa já havia sido feita. A praça do Mercado, terminada em 1841, renovou o aspecto da área, juntamente com as obras que foram feitas no porto; e a praça da Aclamação, antes Campo de Sant’Ana, transformou-se em um jardim francês. Muitos edifícios foram sendo erguidos ao longo dos anos do império; alguns públicos, como o Teatro Real primeiro, na praça Tiradentes, e o Teatro Lírico depois, a igreja da Candelária, a Casa da Moeda; outros particulares, como os que se ergueram no Aterrado, próximo do Palácio da Boa Vista, e especialmente o da amante real, a marquesa de Santos, assim como os suntuosos palácios do Itamarati e do Catete, que ricos latifundiários fizeram edificar, em 1854 e 1866, respectivamente.
Capital imperial e porto ao mesmo tempo, o Rio de Janeiro mostrava certa atividade comercial. O visconde de Mauá promoveu inúmeros empreendimentos, e a ele se deveu a inauguração da iluminação a gás e da primeira estrada de ferro, em 1854. Contudo, ele considerava a sua cidade modesta e provinciana, como na realidade o era, evocada depois melancolicamente por Machado de Assis em Dom Casmurro, como aparecia nas descrições da cidade do austríaco J. Varrone ou ainda nas do francês Jean Baptiste Debret. Sua esperança estava depositada no entusiasmo que despertaram as estradas de ferro que sonhava construir e que deviam adentrar-se nas zonas produtivas do interior. “O Rio de Janeiro será então um centro de comércio, indústria e riqueza, civilização e força, que nada terá a invejar de nenhum lugar do mundo”, disse Mauá ao inaugurar o primeiro trecho na presença do imperador Pedro II.
O México também foi, por alguns anos, capital imperial, quando Maximiliano e Carlota ocuparam o trono. Porém, foi um trono instável, ameaçado pela resistência armada dos mexicanos que viam nele apenas o símbolo da invasão. Não era momento para cogitar-se proporcionar à capital um brilho imperial, e só o passeio que ligava a cidade velha ao castelo de Chapultepec mereceu alguma atenção. E, no entanto, aquela via – o passeio do Imperador, chamado posteriormente de passeio da Reforma – assinalou o caminho da expansão da cidade.
Em tomo de meados do século XIX, outras capitais começaram a modificar a sua fisionomia. Maior estabilidade política e alguma forma de riqueza permitiram que as classes altas e os governantes tratassem de dar às cidades uma fisionomia nova, de acordo com a sua importância e, sobretudo, com as suas pretensões de luxo inspiradas no já obsessivo exemplo de Paris. Não houve remodelações importantes na planta urbana, mas nos bairros de classe alta começaram a aparecer as residências com pretensões a palácios, que ricos comerciantes, latifundiários e mineiros mandaram construir. A tendência ao revival que se manifestava em alguns países europeus produziu nas cidades latino-americanas também o aparecimento de palácios neogóticos e mouriscos. No entanto, em geral, predominou na arquitetura um ecletismo afrancesado que correspondia à influência preponderante nos gostos e nos costumes.
Com a prosperidade de que gozou o Chile entre 1840 e 1870, a classe rica de Santiago alcançou um grande esplendor do qual foram reflexos os casarões ou petit-hotels que os mais poderosos de seus membros construíram. Os Ossa tiveram o capricho de possuir uma casa que imitasse o Alhambra. Enrique Meiggs, o norte-americano enriquecido com os contratos de trabalhos públicos, quis ter a sua casa bostoniana. Porém, a maioria assimilou a influência francesa, como os Blanco Encalada, os Larraín Zañartu, os Concha y Toro, os Subercaseaux, os Cousino. As velhas ruas vestiam-se de nova arquitetura, apesar de, da Alameda, onde já estava a casa dos Amunátegui, ver-se uma nova via residencial, mais ao sul da qual começavam a surgir os novos barracos, talvez mais sinistros do que os que ocupavam a outra margem do Mapocho. Encravado na cidade, o Parque Cousino significou um alarde da jardinagem francesa; e Benjamín Vicuña Mackenna, historiador e prefeito de Santiago, transformou o monte de Santa Lucía em um formoso passeio público.
A lenta mudança das outras cidades só começou depois de 1870. Várias adotaram a iluminação a gás, introduziram os bondes puxados por cavalo, aperfeiçoaram os sistemas de abastecimento, começaram a pavimentar algumas ruas e melhoraram os serviços de segurança. O crescimento da população se traduziu em uma extensão dos velhos subúrbios e no aparecimento de outros novos. A estação de trem foi, como os portos, um núcleo singular de desenvolvimento urbano, e o denso mundo do jogo e da prostituição estimulou outros focos nos arredores. Mercados e matadouros atraíram uma população heterogênea e, bem perto dali, foi sendo demarcado o limite urbano-rural. Um chileno, José Antonio Torres, descreveu em 1858 esse pequeno universo em Los misterios de Santiago, um romance que imitava o de Eugène Sue.
Algumas dessas cidades aceleraram a sua transformação. Caracas, na época de Guzmán Blanco, sofreu certa mudança em sua fisionomia com a construção do Capitólio, a fachada neogótica da universidade e a remodelação da praça Bolívar. Sarmiento incorporou à cidade de Buenos Aires o parque de Palermo, projetado nos terrenos da residência de Rosas. São Paulo começou também naquela época a transformar-se rapidamente. Por volta de 1860, o viajante francês Auguste Emile Zaluar destacava o aspecto contraditório da cidade, na qual a Faculdade de Direito e o mundo dos estudantes pareciam expressar o seu espírito, apesar do crescente movimento comercial que se observava como projeção da riqueza cafeicultora da região. “Faça desaparecer a Academia de São Paulo e esse centro morrerá de inanição. Sem trabalho e sem indústrias montadas em grande escala, a capital da província, deixando de ser o que é, deixará de existir.” Contudo, a partir de 1870, São Paulo se transformou aceleradamente. A cidade deixou de ser o burgo de estudantes, para transformar-se na metrópole do café. Contra a opinião de alguns, a criação da rede ferroviária que ligou São Paulo ao Rio de Janeiro e ao porto de Santos fortaleceu a sua posição. A indústria têxtil surgiu em 1872 e ricos latifundiários do interior instalaram-se na cidade, construindo boas moradias. A fisionomia das ruas e das praças começou a mudar a tal ponto que se pode falar de uma segunda fundação da cidade: o processo, ao contrário do que ocorreu em Caracas, já não se deteve.
“As muralhas de Lima” – escrevia o viajante francês Edmond Cotteau, em 1878 – “foram demolidas recentemente e substituídas por novas ruas; mas todos estes bairros constroem-se lentamente: a crise comercial e monetária que vem sofrendo o Peru paralisa todo o espírito empresarial”. O desígnio modernizador do presidente Balta, estimulado pelas iniciativas do empresário norte-americano Enrique Meiggs, derrubou as muralhas entre 1869 e 1871 e construiu a ponte de ferro sobre o Rimac. Porém, as possibilidades de expansão não foram imediatas: menos ainda depois da guerra e da ocupação da cidade pelas tropas chilenas. Algo semelhante havia ocorrido antes com Montevidéu. Demolidas as muralhas a partir de 1829, acrescentou-se à cidade velha o que se chamou de cidade nova: uma praça para o mercado e uma rua central – 18 de Julio – organizavam um traçado em forma de tabuleiro de xadrez que foi projetado em 1836 e abarcava os terrenos baldios da cidade. Durante alguns anos começaram a ser levantadas algumas construções na área, mas o início da guerra e o cerco à cidade a partir de 1843 transformaram-na em campo de batalha até 1851, detendo conseqüentemente o seu desenvolvimento. Nesse meio tempo, outros núcleos urbanos apareceram nas vizinhanças: a vila do Cerro, chamada Cosmópolis, a vila da Restauração – mais tarde batizada com o nome de La Unión –, o Cerrito da Victoria e o Buceo. Estes e outros núcleos começaram a vincular-se depois da paz firmada em 1851, e cresceram graças à população imigrante. Não faltaram edifícios ambiciosos, como o Teatro Solís, erguido em 1856, e o Mercado da Abundância, em 1859. Porém, mesmo depois a instabilidade política manteve um lento crescimento urbano, e as telas da cidade feitas por Théodore Fisquet, em 1836, e Adolphe D’Hastrel, em 1840, ainda continuavam refletindo de certo modo a sua tradicional fisionomia.
Abertas às influências estrangeiras, as cidades latino-americanas começaram a transformar-se quando de alguma forma os processos sociais e políticos se estabilizaram e a riqueza começou a aumentar: foi uma das preocupações fundamentais das sociedades patrícias emoldurar a sua vocação de legítima aristocracia apegada à terra dentro do quadro da civilização européia. Tudo foi imitado: desde os modelos arquitetônicos até o costume de tomar chá. E, ainda assim, as formas de convivência foram predominantemente acriolladas durante este longo meio século que sucedeu à independência. Quando os costumes europeus foram definitivamente aceitos nas classes altas, o velho patriciado havia cedido o seu lugar a uma nova geração, a uma nova classe.
5. Uma convivência acriollada
Centros de irradiação das metrópoles, as cidades latino-americanas reproduziram durante a colônia os estilos de vida hispano-lusitanos e foram modificando-os ao compasso das mudanças que a sua sociedade sofreu. Imperceptivelmente, os estilos de vida acriollavam-se nas cidades pelas influências indiretas do ambiente. As convenções da sociedade fidalga, os usos e as formas subsistiam, porém muitas coisas alteravam a artificiosa situação dos privilegiados, através dos seus membros, retirados de seu refúgio pelas circunstâncias e colocados em contato com a nova sociedade. Isso ocorreu sobretudo no trato com escravos e serviçais, e muito mais no campo do que nas cidades. Quando a independência rompeu os laços da sociedade tradicional, as sociedades urbanas começaram a ruralizar-se de alguma forma e foi inevitável que os estilos de vida e de convivência adquirissem o ar criollo que era patrimônio dos grupos rurais que se iam incorporando.
A ruralização não teve em todos os lugares a mesma intensidade nem o mesmo ritmo. Cidades provincianas envolvidas desde muito cedo na atmosfera camponesa quase não perceberam a acentuação dessa influência depois da independência. Onde, sim, se observou isso foi naquelas que haviam conservado mais viva a tradição urbana e peninsular, e nas que, depois da independência, congregaram os grupos de ingleses e franceses recém-chegados, voltados para o comércio, e os grupos rurais trazidos pela convulsão política. Estes últimos afetaram a sociedade urbana em vários sentidos: fizeram parte da máquina de poder dos novos senhores e deles saíram muitos que alcançaram posições políticas e fizeram fortuna. No entanto, os demais incorporaram-se às classes populares, imprimindo-lhes características que não eram as dos antigos grupos dominados de índios, mestiços e escravos negros.
Estas mudanças foram notadas em Caracas, na época de Páez e dos Monagas, em Montevidéu, no México e em Veracruz. Porém, melhor do que em qualquer outra cidade, foram percebidas em Buenos Aires, cujo ambiente, durante a época de Rosas, José Mármol descreveu em seu romance Amalia, com arrebatamento político, mas com o colorido certo. As classes dominantes eram criollas e ruralizadas, o que não impedia que se sentissem atraídas pelo encanto dos costumes europeus. E este estranho contraste foi o que observou e expressou o viajante Xavier Marmier, em 1850, em cujo relato vale a pena deter-se:
Para ajudar-me a expor algumas destas imagens cotidianas, suponha o leitor que me acompanha por alguns momentos em um passeio a pé pelas ruas da cidade. Entramos na rua do Peru: à direita e à esquerda descobre-se o luxo e a indústria da França: nas casas de móveis, joalherias e salões de beleza; nas sedas recém-chegadas de Lyon e nas fitas de Saint-Etienne, bem como nas últimas criações em vestidos e chapéus. Por trás de uma janela gradeada, uma jovem prepara uma grinalda de flores artificiais que poderia figurar muito bem em um salão do Quartier Saint-Germain; um alfaiate coloca em sua vitrine o novo figurino do Journal des Modes que chegou na véspera pelo navio do Havre e que será a atração dos elegantes; um livreiro dispõe cuidadosamente em suas estantes uma coleção de livros. O livreiro se sentiria perplexo se alguém lhe pedisse as obras de Garcilaso de la Vega ou de algum outro historiador espanhol antigo, mas sempre tem a mão os romances de Dumas, de Sandeau e as poesias de Alfred de Musset. Poder-se-ia dizer uma esquina de Paris ou uma cópia da rue Vivienne. E de fato é, mas uma cópia com colete de cor escarlate, como aqueles que luziam em Paris depois da nossa famosa revolução de fevereiro.
Damos uma volta e passamos pelos comércios ingleses e pelo estúdio do engenhoso Favier, que faz com a mesma delicadeza um retrato a óleo ou um com o daguerreótipo. Assim chegamos ao Cabildo, à polícia e à prisão da cidade. A cena muda subitamente. Estávamos na Europa; agora estamos na América primitiva, na região dos Pampas. Sob os átrios amontoam-se os soldados, que em nada se parecem aos europeus; há os negros e os brancos, com uniforme e sem ele, um usa um poncho índio e outro tem o corpo apertado por uma jaqueta esportiva inglesa. Há aqueles que cobrem a cabeça com um lenço, outro com um gorro ou com um chapéu redondo. Para isso, há total liberdade. Em relação a apenas um só ponto da indumentária, se não me engano, devem ter uma ordem determinada: em vestir a calça comprida desfiada no extremo inferior e os pés descalços; vem-me à lembrança que nas tropas de Rosas os graus podem ser diferenciados pelas extremidades inferiores: os soldados andam descalços, o sargento com botinas, o oficial com botas de couro comum, os generais com botas de verniz. E uma maneira mais prudente que a nossa de reconhecer a hierarquia militar; desta forma, o subalterno, para saber o grau do superior, deverá manter-se sempre com os olhos baixos.
Divertida é a morosidade e a preguiça com que estes defensores da pátria montam guarda e levam os seus fuzis. Enquanto os observo, ouve-se um barulho de ferros no chão da rua e um cavalo que chegou a galope detém-se sob a mão vigorosa do cavaleiro, como se cravasse as patas no chão. E um cavalo de fazenda montado por um gaucho. Aqui está o verdadeiro soldado da América do Sul, o filho dos pampas com toda a sua beleza masculina.
O viajante, depois de descrever cuidadosamente a vestimenta do gaucho e seus hábitos, pinta o singular ambiente das praças de carroças e mostra o tipo do cocheiro, apegado a sua concepção de vida, imerso em sua atmosfera rural ainda que esteja às margens da cidade, a quem não ocorre “ver o obelisco da praça da Victoria nem o luxo da rua do Peru”; e termina dizendo: “Cocheiros e gauchos: eis a parte mais pitoresca da população de Buenos Aires. Entretanto, vejamos outros aspectos. A cidade possui uns cento e vinte mil habitantes, a metade dos quais é de estrangeiros pertencentes a diversas nações”. Assim era a Buenos Aires rosista, entre européia e gaucha, modelo extremado da mudança que a revolução trouxe, em maior ou menor grau, para determinado número de cidades latino-americanas.
Ao abandono das tradicionais formas de vida e convivência seguiu-se, pois, uma estranha conjunção de influências rurais e anglo-francesas. Houve partidários de uma e de outra, às vezes agressivos e fanáticos; e houve aqueles que aceitaram as duas e, ao submeter-se a elas, criaram curiosas combinações que surpreenderam os observadores e não deixaram de suscitar alguma ironia. Contudo, foi precisamente esse o caminho perseguido arduamente pela convivência nas grandes cidades – capitais e portos – enquanto a tradição peninsular ruralizada predominava nas cidades à margem da influência e da penetração anglo-francesa.
Referindo-se à descuidada maneira de vestir-se das mexicanas, a marquesa de Calderón de la Barca apontava:
Esta indolência, é certo, está fora de moda, em especial entre os jovens da sociedade, talvez devido ao relacionamento mais freqüente com os estrangeiros, apesar de talvez ter de passar muito tempo antes de que a manhã em casa deixe de ser considerada, no tempo e no espaço, o lugar privilegiado para andar a meio vestir. Não obstante, fiz muitas visitas onde encontrei toda a família muito bem vestida e arrumada; porém, pude perceber que, nestes casos, os pais e, o que é ainda mais significativo, as mães viajaram à Europa, e ao regressarem estabeleceram uma nova ordem de coisas.
Para muitos membros das novas classes altas tinha-se a impressão que era importante conservar a tradição criolla manifestada na vestimenta, na alimentação, nas devoções e nas festas. Parecia necessário conservar a tradição jarocha10 em Veracruz ou a tradição gaucha em Buenos Aires para que as novas nacionalidades consolidassem o seu perfil. Nas mesas de 1840 evocadas pelo argentino Santiago Calzadilla era “tudo criollo” e do menu, “nem o nome era então conhecido”. Ele mesmo dizia que naquela época “tampouco caminhávamos à francesa […], mas sim à criolla”, costume criticado, por sua vez, no Rio de Janeiro, por um personagem de Machado de Assis em Dom Casmurro. Porém, o próprio Calzadilla também gostava de imaginar o bairro da zona sul da cidade como uma espécie de Saint-Germain e dizia em outro trecho: “Gosto do mate, é verdade, porém gosto mais do conhaque, que senta bem ao estômago depois de comermos um boi assado, como costumamos geralmente fazer aqui”.
De tal contradição ninguém sairia até as últimas décadas do século, quando os costumes estrangeiros derrotaram os de tradição criolla, convertendo-os em leves resquícios nostálgicos. Mas, até essa época e a partir da independência, as novas sociedades viveram em contradição, planejando sucessivas combinações. Em Bogotá, distinguiam-se entre as pessoas de ruana11 e as pessoas de levita,12 duas classes sociais, evidentemente, mas protagonistas também de dois estilos de vida. A contradição tomou-se mais patente em relação às pessoas de levita, que, em alguns casos, haviam usado ruana até pouco tempo antes. Se determinada ideologia nativista as impulsionava para conservar e exaltar o criollismo, a condição de classe alta induzia-as a adotar modas e costumes estrangeiros. A chegada, a Bogotá, de madame Gautron, a primeira modista francesa, na década de 1840, foi um fato importante na vida da cidade, o que já havia ocorrido em várias outras, a partir da época em que se estabeleceram as primeiras modistas no Rio de Janeiro, na rua do Ouvidor. O pensador argentino Juan Bautista Alberdi não refutava o cuidado com a moda – e chamou-se La Moda um jornal que ele inspirava –, a ponto de ele mesmo difundir, com o pseudônimo de Figarillo, aquelas que chegavam de Paris e que ele queria ver estabelecidas em Montevidéu e em Buenos Aires.
Casas pretensiosas, obra às vezes de arquitetos franceses, abrigaram as famílias que queriam ostentar a sua riqueza. Nelas, apareceria o luxo, esse fenômeno que chamou a atenção dos observadores e da crítica veemente dos moralistas. Contudo, durante muito tempo o luxo foi uma exceção no círculo das famílias tradicionais. Por volta de 1860, o romancista limenho Luis Benjamín Cisneros escreveria condenando este fato. Porém, ele estava apenas começando a aparecer. Até então predominava uma convivência acriollada que ele descrevia criticamente em seu romance Julia, em um ex-cursus moralizante:
A presteza com que indivíduos e famílias inteiras conseguem entre nós a amizade mais estreita e a intimidade mais ilimitada consiste em uma qualidade inata ao caráter do país. Deve-se a ela a consideração, as preferências e o carinho com que imediatamente se vê cercado o estrangeiro que chega desconhecido às nossas portas. Nessa qualidade têm também a sua origem as encantadoras especialidades de nosso modo social de viver. Falo dos traços distintivos de nossa vida particular, isto é, de nossas relações de família para família, de pessoa para pessoa. A necessidade de expandir-se, as simpatias instintivas, as improvisadas e sinceras afeições, as ingênuas e mútuas confidências, os temos pedidos, o desejo generalizado de fazer o bem, o espírito de caridade nas famílias, tudo isso reunido constitui entre nós uma existência sincera que não se encontra talvez em outros povos da terra. Nascidos em nossa sociedade e transferidos um dia para o intenso torvelinho das grandes populações modernas, temos visto o vazio que essas sociedades deixam aos sentimentos íntimos, temos vivido na solidão de todo afeto desinteressado e sentido o coração como em um deserto, somos os únicos que podemos apreciar toda a doçura e todos os encantos de nossa vida de afeições.
Sobre esta atmosfera das cidades patrícias começou a pairar não só a tentação das modas e dos objetos estrangeiros, como também uma nova maneira de entender a vida.
O costumbrista descobriu um vasto campo de observação nestas sociedades que procuravam o seu perfil entre o novo – embora velho –, entre o criollo e o estrangeiro. Em Las tres tazas, José Maria Vergara y Vergara datava mudanças insignificantes e reveladoras nas tertúlias bogotanas: tomava-se chocolate em 1813, café em 1848 e chá em 1865. A tertúlia era uma expressão tradicional da forma de vida latino-americana, mas em seu seio foram se formando novos costumes e suas implicações. Figarillo descrevia genericamente a de Buenos Aires e a de Montevidéu, porém poucos romancistas da época resistiram à tentação de descrever as tertúlias que eram celebradas em suas cidades, com os seus personagens em movimento e adaptados ao sistema de normas vigente: Cisneros descreveu as de Lima, Cuéllar, as do México, María Nieves, as de Arequipa, Blest Gana, as de Santiago, todas elas diferenciadas segundo as classes sociais. O escritor costumbrista salientava os traços do ambiente, os pequenos detalhes do tratamento, a vestimenta, as bebidas e as comidas que eram oferecidas. Praticavam a mesma análise em relação à descrição das festas. Em Amalia, o argentino José Mármol destacava os aspectos da sociedade que se reunia no baile oferecido ao governador Rosas:
Dançava-se em silêncio. Os militares da nova época, estourando dentro de suas casacas abotoadas, as mãos doloridas com a pressão das luvas, e suando de dor por causa de suas botas recém-calçadas, não conseguiam imaginar que pudessem estar de outro modo em um baile a não ser muito circunspectos e muito sérios. Os jovens cidadãos, surgidos da nova hierarquia social, introduzida pelo Restaurador das Leis, pensavam com a maior boa fé do mundo que não havia nada mais elegante e cortês do que ir presenteando botões de flores e sequilhos às senhoras. E, afinal, as damas, umas porque ali estavam a pedido de seus maridos, e estas eram as damas unitárias; outras, porque estavam aborrecidas por encontrar ali só as pessoas de sua sociedade, e estas eram as damas federalistas, todas estavam com um péssimo humor; umas desdenhosas, e outras, enciumadas.
Por sua vez, o colombiano Cordovez Moure recordava o baile que José María Mosquera – “o patriarca da cidade” – ofereceu em Popayán a Bolívar, no qual o Libertador obrigou uma das jovens patrícias a dançar com o coronel Carvajal, negro e llanero, porém vestido de hussardo polonês, e lembrava também o baile que vários cavaleiros bogotanos ofereceram em 1852, do qual salientou ter sido o primeiro em que começou a ser “introduzido o costume de enfeitar as penteadeiras com objetos de tocador de que as senhoras pudessem precisar”. Este baile contou com a presença do presidente da república e foi tão brilhante que um rico mister Goschen, membro do parlamento inglês que estava de passagem, disse que “acreditava estar presenciando um baile da corte oferecido por sua soberana”. Cordovez Moure acrescentava que esta observação havia sido feita “com a franqueza peculiar dos ingleses”.
De ingleses foi um baile organizado em 1840, no Palácio da Mineração, ao qual compareceu a marquesa de Calderón de la Barca. “No que se refere às jóias, nenhuma das damas estrangeiras poderia atrever-se a competir com as daqui”, escrevia a marquesa, mas acrescentava: “Muitos vestidos estavam excessivamente extravagantes, característica muito freqüente no México, e muitos outros, embora belíssimos, estavam fora de moda”. Em compensação, um norte-americano residente no Chile, o audacioso empresário Henry Meiggs, ofereceu em 1856 o magnífico baile que teve como cenário a sua luxuosa casa de campo santiaguina da Alameda, cercada de jardins. Benjamín Vicuña Mackenna viu ali uma sociedade sem máculas, bem diferente, com certeza, daquela que poucos anos antes pintava Blest Gana nos bailes que descrevia em El ideal de un calavera e em Martín Rivas: ali estavam os “tolos sérios”, os “chatos” e, sobretudo, os “elegantes”, aos quais “poucas mulheres resistem, falam só de dinheiro, de milhões, nunca de menos! Foram ou pensam ir à Europa e jamais se constrangem ao dizer uma bobagem”, porque como dizia o seu observador personagem, “em toda reunião há sempre seres mais curiosos do que no museu zoológico mais cheio”.
O teatro ou os lugares de veraneio – como Chorrillos, para os limenhos – eram igualmente um local de exibição para as classes altas. Assim como nas tertúlias e nos bailes, via-se no teatro o que nenhum costumbrista deixou de observar: uma progressiva tendência ao luxo. Não era uma tendência natural nas sociedades criollas, mas, sim, uma imitação dos estilos de vida que começavam a ser adotados na Europa ao calor do desenvolvimento industrial e da formação das primeiras grandes metrópoles. A rigor, era, simplesmente, uma imitação dos estilos de vida das novas burguesias de Paris tal qual foram delineadas na época de Luís Filipe e que adquiriram um definido perfil na de Napoleão III. Porém, nem todo luxo nem toda ostentação tinha o mesmo traço. Por volta de meados do século, subsistia na América Latina o luxo colonial, como se podia depreender da vida de muitas famílias mais ou menos fidalgas ou como o que Flora Tristán observou no convento de Santa Catarina de Arequipa. O luxo criollo alimentou-se dessa mesma raiz depois da revolução, contudo, mais moderado e um pouco grosseiro, que transcendia nos hábitos e costumes dos patriarcas habituados à vida nas fazendas. No entanto, o novo luxo que começou a ser difundido nas cidades mais ricas por essa época manifestou-se como um propósito deliberado do novo patriciado de mostrar-se incorporado ao opulento mundo das novas burguesias européias, vislumbradas através do modelo parisiense. Imitavam-se certos costumes, algumas modas, mas muito tempo passou até que tudo isso mudasse o matiz do estilo acriollado de convivência que havia sido elaborado depois da emancipação. Era, portanto, um luxo sem estilo, ostentado incoerentemente por meio de uma forma de vida que tinha estilo, sim, e cujo predomínio assinalava a simples superposição de elementos estranhos.
Velhos que eram novos ricos, jovens elegantes, damas ambíguas formavam em algumas cidades uma sociedade volúvel que começava a insinuar-se por entre a trama da sociedade tradicional. Eram “os filhos do prazer”, como dizia José T. Cuéllar, em Ensaiada de pollos, referindo-se aos que começavam ou terminavam a farra no café de Fulcheri, esse café mexicano onde a comida parecia uma “ceia do Café Inglês de Paris, quase pompeiana”. O pollo mexicano, assim como o cachaco de Bogotá ou o elegante de todas as cidades, que havia viajado à Europa e não podia superar a impressão causada pelo brilho parisiense, unia-se na imagem do tradicionalista com a dos jovens que caíam na irresistível tentação do luxo, como “as meretrizes de Paris costumam baixar do palácio até o hospital”, conforme dizia Cuéllar; e buscando as causas, falava da “torrente invasora da prostituição parisiense” e da “comoção social na época de transição que atravessamos”. Dez anos antes de escrever estas palavras, o limenho Luis Benjamín Cisneros diagnosticava em 1860, em seu romance Julia, as causas deste declínio que ameaçava a sociedade tradicional:
O luxo poderia ser chamado de a serpente dourada desta sociedade. Enroscou-se em seu coração e acabará por consumi-lo. Já não representa apenas um hábito: constitui uma paixão, um vício das nossas famílias. O luxo deslumbra e atrai; dá vertigens e causa febre. A sociedade em que vivemos chegou a este período.
E acrescentava: “Não é precisamente a paixão pelo luxo o que reina em Lima, é a paixão pela aparência”.
Porém, apesar da santa indignação dos moralistas, naquele momento o perigo apenas surgia. A sociedade continuava sendo acriollada inclusive quando esta tendência, percebida nas novas classes ricas, triunfou algumas décadas mais tarde. “O xale – dizia o próprio Cuéllar – é o mais íntimo confidente da mulher do México. Os costumes franceses geralmente se chocaram diante do uso deste auxílio indispensável, diante desta intensificação da nacionalidade, diante desse xale de estranha flexibilidade e característico do México”. Criollismo e europeísmo disputavam uma batalha sem limites, pleiteando a primazia dos costumes.
O luxo europeizante atraiu também as classes médias, embora em menor escala. Se a convivência criolla pôde resistir ao choque das influências européias foi, sobretudo, pelo vigor que ainda existia nas classes médias e populares. Porém, uma sociedade aberta na qual os acasos da política ou a riqueza permitiam o aparecimento de novos ricos situava nas classes intermediárias uma etapa de ascensão que se identificava com determinadas expectativas e, em especial, com a sua moderada satisfação. O “siútico”13 era no Chile, precisamente, o tipo representativo dessa situação, e Blest Gana o descreveu com minúcias em Martin Rivas. Quase todos eram siúticos – cafonas, poder-se-ia dizer – na “pretensiosa” tertúlia para onde se dirigiu o seu personagem na rua do Colegio, porque tinham “esse algo mais que distingue um bom santiaguino dessa gente sem classe”. O perspicaz observador combinava em sua descrição as características da convivência criolla com os costumes importados que aquela família, modesta e pretensiosa, imitava de outras com mais experiência e mais dinheiro. E depois, referindo-se ao fim da festa, quando já haviam ocorrido as libações da vulgar mistela,14 ele comentava:
Após o grande esforço que haviam exibido a princípio para copiar os costumes da sociedade de grande estilo, ocorria esta mistura de confiança e afetada urbanidade que dá um colorido peculiar a esta classe de reuniões. Postos estes grupos que chamamos de sem classe, entre a democracia, que desprezam, e as “boas famílias”, às quais ordinariamente invejam e cujos costumes aspiram a copiar, apresentam um amálgama curioso, em que os costumes populares são adulterados pela presunção e, de certa forma, caricaturados, os da primeira hierarquia social, que oculta seus ridículos sob o ouropel da riqueza e das boas maneiras.
Poucos anos separavam aquele baile do coronel e da dona Bartolita que Cuéllar descreve em Baile y cochino. Referindo-se ao quadro que traçava, deixava claro que não era escolha sua. “Existe infelizmente – acrescentava e não só existe assim como se multiplica no México, para decadência da moral e dos bons costumes. A crescente invasão do luxo na classe média determina novos desmoronamentos.” E em seguida descrevia o baile do coronel e da dona Bartolita, com a presença de meninas piegas, como as de Machuca, e de frangotes elegantes que queriam divertir-se e embebedar-se. Porém, o luxo mal dissimulava o predomínio dos velhos costumes, que reapareciam tão logo se perdia a rigidez convencional e adquirida. E não inutilmente, o autor havia comentado no princípio que a dona da casa era “muito simplória e muito caipira”. E o seu marido, um coronel que acabava de “fazer um grande negócio”. Houve conhaque e quem acreditasse que a água era pulque.
Nas festas públicas, patrióticas ou religiosas, encontravam-se todos; no Dia do Grito15 nas cidades mexicanas, no 20 de julho nas colombianas, no 7 de setembro nas brasileiras, no 25 de maio nas argentinas; e depois no dia de Corpus Christi, no do Senhor dos Milagres, no da Virgem de Guadalupe. Referindo-se à multidão que se reunia para comemorar o 18 de setembro em Santiago, escrevia Blest Gana: “Os velhos costumes e os modernos hábitos encontram-se lado a lado em todos os lugares, olham-se como irmãos, toleram as suas respectivas fraquezas e juntam as suas vozes para entoar hinos à pátria e à liberdade.” Porém, eram ocasiões excepcionais. As classes altas e as classes médias bem estabelecidas procuravam fugir das classes populares, dos pobres no México, dos maltrapilhos em Buenos Aires, dos rotos em Santiago. Estas classes em Santiago viviam em outros bairros e conservavam os seus próprios costumes, nos quais se observava o vigor da tradição criolla. Aqueles que se consideravam superiores descobriam nelas a sua ignorância, a sua grosseria, em geral, a sua pobreza, mas não deixavam de avaliar o que guardavam da bagagem vernácula. As classes populares conservavam os seus pratos regionais, os seus vistosos trajes, os seus antigos artesanatos, os seus provérbios nos quais transmitiam uma bem sedimentada experiência de vida. Comparecia-se às suas festas nos subúrbios para ouvir suas canções e apreciar os seus bailes e, embora nenhuma pessoa com pretensões sociais se tivesse atrevido a incorporá-las ao repertório de suas próprias festas, percebia-se nelas uma força que não tinha a ária de uma ópera italiana em voga ou as polcas e as valsas que se difundiam nos salões. Talvez algum resquício peninsular servisse de vínculo entre esse passado vivo e a atração de uma outra Europa que não era nem a Espanha nem Portugal.
Nas cidades, as classes populares passaram da miséria rural para a miséria urbana, em especial naquelas que cresceram em população e em riqueza. As classes populares ficaram confinadas em bairros marginalizados e miseráveis que constituíam um mundo à parte do centro da cidade. Em Buenos Aires era necessária certa audácia para penetrar no bairro de Tambor, onde os negros predominavam. No caminho para a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, a marquesa de Calderón de la Barca passou pelos subúrbios da capital mexicana, “pobres, em ruínas, sujos e com tamanha promiscuidade de odores, que só se atreveria a enfrentar com água de colônia”; assim era também, em outro sentido, São Paulo e La Palma. Malambo, em Lima, e Chimba, em Santiago, eram subúrbios tétricos de favelas primitivas e sórdidas, onde o quadro de miséria só era interrompido pela convencional alegria dos prostíbulos ou das miseráveis casas de jogo. E em Otra Banda, nome dado ao subúrbio arequipenho, ou no bairro das Nieves, de Bogotá, viviam as classes mais humildes como em um mundo fechado e à parte. Nos desfiladeiros e barrancos de Valparaíso as classes populares erguiam as suas moradias, e no Rio de Janeiro imperial amontoavam-se em Botafogo os cortiços. Um deles, e também outro rival construído em frente, foi lembrado por Aluízio de Azevedo no romance que intitulou precisamente O cortiço.
Noventa e cinco casebres comportou o imenso cortiço. Prontas, João Romão mandou levantar na frente… um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, com um grande portão no centro, onde se pendurou um lampião de vidros vermelhos, por cima de uma tabuleta, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e em má ortografia: “Estalagem de São Romão. Alugam-se casebres e tinas para lavar”.
E acrescentava Azevedo, descrevendo os primeiros movimentos pela manhã: “E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade morna e lodosa, começou a mover-se como um formigueiro, a fervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco”. Italianos e portugueses misturavam-se com brasileiros fugidos das fazendas e formavam famílias híbridas, em que se confundiam variadíssimas tradições, usos e costumes. E tal como no Rio de Janeiro, aconteceu também em outras cidades brasileiras e de outros países: em Barranquilla, em Colón, em Panamá, em Veracruz. Caso singular foi o do bairro da Boca em Buenos Aires, de população quase totalmente genovesa, que manteve suas normas e costumes durante longo tempo.
Mesmo os mais pobres costumavam ser vistos pelo centro das cidades. Encontravam-se com pessoas ilustres nas festas públicas, nas touradas, nas rinhas de galos. Reuniam-se sozinhos nas tavernas – chicherías,16 picanterías,17 mercearias – que estavam espalhadas por diversos pontos da cidade. Inclusive no centro, já que as classes populares iam ali com freqüência atraídas pelo trabalho. Contudo, o seu reino era o mercado e seus arredores, para onde vinham dos subúrbios aqueles que levavam os seus produtos para vender. Ao ar livre muitas vezes, ou em locais fechados – como no Mercado de la Concepción, em Lima, terminado em 1854, ou no da Abundancia, em Montevidéu, concluído em 1859 – concentrava-se a produção e vendia-se à maneira tradicional; as índias sentadas com as pernas cruzadas estendiam sobre um pano no chão suas frutas e verduras, a carne e o peixe e, sobretudo, comida preparada segundo o antigo costume camponês, que ocultava velhos hábitos de índios e criollos; e tão visível como era o interesse pela cozinha estrangeira nas classes altas, quase ninguém desprezava o prato tradicional acompanhado da bebida típica. Um pequeno universo heterogêneo costumava rodear o mercado, que se estendia pelas ruas próximas com barracas fixas ou simplesmente com vendedores sentados nas calçadas. Na vizinhança do mercado limenho da Concepción ficava o bairro chinês. O viajante alemão Ernst Wilhelm Middendorf escrevia, em 1876:
Entre elegantes lojas de gosto asiático descobrem-se sebosas e apertadas lojinhas, nas quais, em meio a toda classe de repugnantes comestíveis, viam-se pálidos e esquálidos homens de cócoras; um desagradável cheiro de ópio toma conta de toda a área. As pensões desta parte do mercado são administradas exclusivamente por chineses, e todos os pratos são preparados à moda chinesa, e assim também são servidos.
Menos exóticos mas não menos misturados eram os arredores dos mercados do Volador e da Merced, no México, ou os das cidades interioranas: Oaxaca, Toluca ou Veracruz, Puerto Cabello ou Barquisimeto, Colón, Bahía ou Copiapó.
O baluarte da delinqüência estava nos subúrbios onde ninguém conhecia ninguém, onde ninguém perguntava ao recém-chegado o que havia sido antes. Uma polícia foi sendo organizada pouco a pouco nas cidades mais importantes, porém a insegurança era grande. Furtos, roubos e grandes assaltos que às vezes terminavam em morte alarmavam os cidadãos. Os delinqüentes que faziam incursões no centro urbano tinham os seus refúgios nos subúrbios ou ainda mais longe, e neles combinavam a sua atividade delituosa com outras semelhantes: o jogo, a exploração de prostitutas ou as rinhas de galos. Santiago de Marfil, um subúrbio de Guanajuato, ganhou fama lendária, semelhante aliás aos de outras cidades mineiras. Porém, na própria cidade podia aparecer um “ladrão de casaca” que organizasse um bando de profissionais do roubo para realizar operações em grande escala sob o seu inteligente comando: foi o caso de um advogado bogotano, o doutor José Raimundo Russi, que aterrorizou a cidade, em 1851, com os seus bandos. “Cada casa da cidade transformou-se em uma fortaleza”, recordava Cordovez Moure ao contar as façanhas e o fim do notável bandido.
As casas costumavam transformar-se em fortalezas também por outros motivos. Centros políticos por excelência, as cidades foram o palco das lutas pelo poder. Contudo, foram com freqüência apenas cenário, pois grande parte da sociedade não participava, sabendo que a disputa era entre grupos armados que sob as ordens de um ou outro pretendente à presidência. As capitais, sobretudo, sabiam que eram o prêmio do vencedor, e a angústia transformou-se em uma espécie de apatia acomodatícia. O peruano Felipe Pardo y Aliaga descrevia a reação espontânea das pessoas diante do perigo:
E apenas têm do butim suspeito
gritam os cidadãos: “Fecha as portas!”,
e vêem-se ruas e praças no ponto
como por relâmpago desertas.
Que estranho, pois, que o suposto mandarim
as portas ache do Poder abertas,
se ao anunciar seu criminoso empenho
só tranca as suas o limenho?
Isso dizia Pardo y Aliaga a respeito da sensibilidade política de Lima. Pouco antes, em 1846, o venezuelano Juan Vicente González condenava Caracas, porque considerava que a república estava perdida.
… se esse centro corrompe os costumes da juventude, capitula ante o vício, cria e alimenta necessidades fictícias que vão devorar pobres populações e, nova Sibaris, se entorpece e dorme e se irrita até com a folha da rosa que se dobra, enquanto deveria dar o exemplo de frugalidade, de amor ao trabalho, de patriotismo ativo e laborioso.
E denunciando a indiferença política da cidade, concluía: “Quando terás a tua parte de desgraça, Caracas egoísta?” Pouco depois, evocando o episódio final da guerra civil mexicana, em 1860, Justo Sierra escrevia em sua Evolución política del pueblo mexicano:
México, a cidade conservadora e clerical por excelência, que havia aplaudido de suas varandas e terraços todas as vitórias de Miramón e de Marquez, que, em cada uma das festas profanas da guerra civil, havia lançado às ruas centrais os artesãos e os miseráveis de seus bairros sujos e hediondos jogados à sombra grandiosa dos conventos para puxar a carruagem do vencedor e gritar e assobiar de entusiasmo, e roubar lenços e relógios, agitando paus e bandeiras, México então saudou com uma espécie de delírio a entrada do exército reformista de González Ortega. E acontece que não era uma cidade clerical, era apenas católica, e acontece que a guerra civil havia conseguido tornar a todos indiferentes ao que não fosse a paz, porque era a exigência desumana, o produto mesquinho do trabalho, já não exigido brutalmente mas, sim, literalmente roubado pelo agente do fisco, e o grupo de sanguessugas apropriando-se sem parar do homem útil na família e na oficina, para lançá-lo ao trabalho árduo no quartel e à carnificina no campo de batalha. Paz, clamavam todos, o povaréu na praça e o burguês na varanda e no terraço.
As cidades eram o cenário das lutas pelo poder, porém apenas alguns atuavam no palco e os demais sentiam-se alheios ao drama.
Atuavam na luta pelo poder grupos reduzidos, algumas vezes organizados sob a forma de um partido político, embora geralmente como setores de interesses e de opinião que apoiavam certos dirigentes de reconhecida influência. Eram políticos e militares, mas nem sempre se podia distinguir o aspecto que diferenciava uns dos outros. A hierarquia militar seduzia os civis, porque sabiam a eficácia decisória que a força tinha na política. Mas os militares, formados na ação e com uma mentalidade autoritária, compreendiam que deviam aceitar as regras do jogo político para consolidar o seu poder e estabilizar a situação do grupo que os apoiava em cada caso. A política era decidida nas cidades, algumas vezes através de processos eleitorais e outras, por meio de motins. Nem o Brasil, submetido ao sistema imperial, escapou deste destino, e não só teve de assistir ao movimento de verdadeira desagregação nacional que se processou em 1831 quando da abdicação de Pedro I, como também enfrentou sucessivas revoluções no Recife e na Bahia. Em outros países, os motins militares, alguns com características de revolução, agitaram a vida das cidades com dramática regularidade. Arequipa conheceu vários e Lima mais ainda. La Paz viu sucederem-se os governos “revolucionários”. Guayaquil desafiou várias vezes o poder da aristocracia de Quito. Contudo, o fenômeno foi tão freqüente que aprofundar-se nele equivaleria a esboçar a história fáctica de cada país e de suas cidades.
Poder-se-iam distinguir duas categorias de revoluções: aquelas que foram simples golpes militares e as que polarizaram a opinião pública e comoveram a sociedade das cidades onde estouraram. A respeito destas últimas, Blest Gana descreveu uma revolução em Santiago do Chile, María Nieves y Bustamante, outra em Arequipa; sobre as primeiras deixou testemunho a marquesa de Calderón de la Barca, espectadora de uma das que levaram Sant’Anna ao poder. Comprometida ou indiferente, a sociedade urbana saía da experiência abalada e decepcionada, quase sempre frustrada em suas esperanças, sem que o triunfo entranhasse aquela “regeneração” à que aspirava: um poder substituído por outro, sempre indeciso na definição de uma linha coerente e tolerante.
Blest Gana observou que, na revolução santiaguina por ele descrita, estavam em jogo outros elementos que não apenas os da luta pelo poder entre os grupos dominantes. Cordovez Moure descreveu mais explicitamente os conflitos políticos bogotanos ocorridos entre 1851 e 1853. Um franco enfrentamento de classes aguçou a luta pelo poder, quando os cachacos, de famílias burguesas, desafiaram os artesãos organizados em sociedades populares que assimilavam de algum modo a onda revolucionária de 1848. O bairro das Nieves foi testemunha de um combate campal, e pouco depois o general José María Melo desencadeou sua revolução popular, frustrada pela aliança de todas as forças políticas e militares.
Cordovez Moure também relatou algumas eleições exemplares, de 7 de março de 1849, nas quais as Câmaras Legislativas reunidas na igreja bogotana de São Domingos deveriam decidir entre o general José Hilario López, candidato popular, e o doutor Rufino Cuervo, candidato conservador, que compartilhava as simpatias de seu partido com o doutor José Joaquín de Gori. Uma forte tensão reinava na cidade, e em alguns momentos pareceu que a eleição terminaria em tragédia. Porém, pôde-se chegar até o final sem incidentes, e o general López ganhou a eleição. Cordovez Moure escreveu:
A notícia da eleição do general López produziu um vivo entusiasmo no povo que cercava a igreja. A gritaria era ensurdecedora; uns se abraçavam e se apertavam, com o risco até de se asfixiar; outros atiravam ao ar os chapéus; os deputados lopistas eram aclamados ao sair do templo, de braços dados com os congressistas cautelosos; os foguetes e o repique na torre da catedral anunciavam à cidade que já havia presidente eleito, e os partidários do candidato vitorioso percorriam as ruas precedidos das marchas militares do batalhão número 5 e da Guarda Nacional, aos gritos de “Viva López!”, “Viva o povo soberano!”.
No caso de uma eleição de deputados, a preparação da lista ter-se-ia desenvolvido como naquela tertúlia portenha que descreveu o argentino Lucio V. López, em La gran aldea, na qual “o partido da minha tia” – diz o autor – apresentava os candidatos que se autonomeavam em uma tertúlia familiar. Era por volta de 1860.
No partido da minha tia, é necessário dizê-lo para ser justo, e sobretudo para ser exato, estava a maior parte da burguesia portenha; as famílias honradas, ricas e poderosas; os sobrenomes tradicionais, essa espécie de nobreza bonaerense medianamente ignorante, sadia, iletrada, muda, orgulhosa, maçante, regionalista, honrada, rica e influente; esse partido tinha uma razão social e política de existência; nascido para a vida ao cair Rosas, dominado e sujeitado ao seu governo durante vinte anos, havia, sem querer, absorvido os vícios da época, e com as grandes e entusiastas idéias de liberdade, quebrara as correntes sem romper com suas tradições hereditárias. Não transformou o perfil moral de seus filhos; tornou-os estancieiros e comerciantes em 1850. Viu a universidade com arisca desconfiança, e o talento aventureiro dos novos homens pobres, como um perigo para a sua existência; criou e formou suas famílias em um lugar luxuoso com todas as pretensões inconscientes da vida folgada, da elegância e do estilo; porém, sem querer, sem poder evitar, sem sentir isso, conservou a sua fisionomia histórica, que era honrada e virtuosa, porém rotineira e opaca.
Eram grupos políticos, quase partidos organizados, e talvez, no fundo, fossem simplesmente grupos de poder que adotavam circunstancialmente uma organização eleitoral e um rótulo ideológico. Porém, era grande a imprecisão quanto à magnitude do consenso que, nessas sociedades instáveis e constantemente renovadas, sustentava cada grupo, tal como era grande a imprecisão ideológica diante da urgência e da originalidade dos problemas imediatos, estranhos às vezes à temática das doutrinas políticas consagradas. Por isso, o poder foi sempre pragmático e só se apoiou na teoria de maneira muito vaga.
Apoiou-se, em compensação, na força; das armas, primeiro, e depois na força que dá o próprio poder. Daí a importância das capitais, nacionais ou provinciais, nas quais se radicava o poder e a partir das quais se manipulava sua trama. Em última instância, o poder era sempre pessoal, e a presença física de quem o exercia e daqueles que atuavam como intermediários diretos criava a sua volta um pólo de atração e de influência. O “palácio”, o “forte” ou a “casa de governo” foram algumas vezes suntuosos – como nas cortes imperiais da Boa Vista ou em Chapultepec – e outras, modestos; porém sempre foram considerados como o recinto onde se urdia uma trama secreta da qual depois só se conheciam os efeitos. Dali era preciso se aproximar caso se quisesse obter algum favor, que podia não ser apenas o que legitimamente se merecesse como também o que o poder era capaz de outorgar gratuitamente: um posto subordinado de poder e, sobretudo, uma riqueza fácil nascida do beneplácito oficial. Parentes, amigos e aliados políticos rondavam pelas ante-salas e, se podiam, transferiam os seus domicílios para as vizinhanças da sede do poder, principalmente se o poder estivesse em mãos de um autocrata criollo, cheio de insígnias militares e medalhas e ansioso por reverências cortesãs.
Cada capital teve um momento tensamente dramático pela angustiosa presença do poder. O chileno José Victorino Lastarria explicava, em 1868, como a pressão de um governo autoritário havia modificado o perfil social de Santiago:
Um governo onipotente e repressivo dominou durante trinta e seis anos, apoiando-se nos interesses de uma oligarquia limitada e reduzida, isto é, de um pequeno número de homens e de famílias prósperas, que o cercaram e sustentaram. Esse governo todo-poderoso é o único que teve a palavra, a iniciativa, a supremacia, para definir o bom e o mau, o justo e o injusto. O cidadão que teve a ousadia de não se submeter, de censurá-lo, de opor-se, sofreu a perseguição, o desdém, o desprezo do poder e da próspera oligarquia que o apóia.
E enumerava as conseqüências:
Santiago não era há trinta anos o que é hoje. Nós, os velhos, a conhecemos alegre, barulhenta, jovial e autêntica. E curioso estudar o modo como se modificaram a índole e as inclinações da população de Santiago, nos últimos trinta anos, e como se formaram os hábitos que hoje tem de dissimulação, apatia e reservada tristeza, que chamam a atenção não só dos estrangeiros, como dos habitantes das demais províncias.
Não se disse outra coisa de Quito na época de García Moreno, de Buenos Aires, na de Rosas, de La Paz, na de Melgarejo. E mais se poderia ter dito dos poderes provinciais quando o acaso os fazia incidir em um déspota regionalista.
Quando um sistema republicano funcionava, o congresso permitia que a oposição se expressasse. As assembléias foram então outro pólo da vida política da cidade. Os debates costumavam transformar-se em torneios de oratória e os discursos adquiriam transcendência pelo comentário público e pela divulgação dos jornais. Houve debates memoráveis em todos os congressos, uns pelas doutrinas expostas e pela maneira de expô-las, outros pela importância das questões discutidas, outros pelas tensões dramáticas que pairavam nas sessões. E como os recintos legislativos acolhiam todas as paixões políticas, de vez em quando foram palco de trágicos episódios que comoveram as cidades. O presidente da Sala de Representantes de Buenos Aires foi assassinado em seu gabinete, em 1839, quando se descobriu uma conspiração que o seu filho comandava; e em Caracas, em 24 de janeiro de 1848, as turbas populares tomaram de assalto o congresso, assassinando e ferindo vários legisladores. Em alguns casos, os congressos constituintes reuniram-se em cidades do interior: deputados de todo o país transferiam para o tranqüilo ambiente campestre as paixões da capital e do país inteiro. Em Ambato, por exemplo, foi sancionada a constituição equatoriana de 1835; em Santa Fé, a argentina de 1853; em Valência, a venezuelana de 1858; em Rionegro, a colombiana de 1863. Em seguida a convenção dissolvia-se, e a paz voltava ao seio da cidade escolhida.
Cercos e ocupações estrangeiras perturbaram a paz e conturbaram a vida de muitas cidades. Arequipa, sitiada por Castilla, autodenominou-se “Sebastopol”, e Montevidéu, atacada por Oribe, foi chamada “A Nova Tróia”. Navios estrangeiros bloquearam o rio da Prata ou bombardearam o porto de Valparaíso. Norte-americanos e franceses ocuparam Veracruz; os chilenos, Lima. Exércitos compatriotas tomaram cidades durante as guerras civis e, às vezes, se comportaram com mais fúria do que os estrangeiros. E, de acordo com cada caso, a cidade sacrificava-se e a sociedade urbana colocava à prova a sua coesão.
A cidade intelectual desenvolvia a sua vida junto à cidade política. As velhas universidades coloniais, como a de Santo Domingo, as do México e de Lima, as da Guatemala, Quito, Charcas ou Córdoba, enfraqueciam em meio aos sobressaltos políticos e às novas inquietações intelectuais. Algumas renovaram-se, como as de Santiago do Chile, presidida pelo venezuelano Andrés Bello, e outras novas surgiram, como a de Buenos Aires e a de Arequipa. São Paulo abrigou uma Faculdade de Direito de vida tão intensa que durante muito tempo emprestou a sua marca à cidade, como uma espécie de Coimbra americana. Os estudantes compunham o grupo social mais identificável da cidade, embora procedessem de diversas cidades brasileiras incluindo o Rio de Janeiro, onde havia, por outro lado, uma Faculdade de Medicina. E nos velhos colégios, como o bogotano de Rosário, ou nas velhas academias, como as da Bahia e as do Rio de Janeiro, lutou-se para substituir as velhas idéias pelas novas, de marcada influência francesa.
Para desenvolver os estudos sobre o passado nacional, o imperador do Brasil, Pedro II, criara no Rio de Janeiro, em 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Com análoga intenção, Andrés Lamas fundou em Montevidéu, em 1843, o Instituto Histórico e Geográfico do Uruguai, e em Buenos Aires, Bartolomé Mitre, em 1854, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio da Prata. No México, Lucas Alamán, historiador e político, fundou em 1823 o Musey de Antigüidades e de História Natural e, em Bogotá, José María Vergara y Vergara promoveu a criação da Academia Colombiana. Em muitas outras cidades surgiram sociedades de sábios, revistas históricas, literárias ou filosóficas, jornais para a divulgação das idéias, projetos muitas vezes efêmeros de reunir aqueles que na cidade tinham interesses intelectuais. E proliferaram então as tertúlias nas quais se falava de livros e de idéias, como aquela que o próprio Vergara fundou em Bogotá com o nome de “El Mosaico”.
De qualquer maneira, o jornal foi o principal instrumento da vida intelectual, que raramente se desinteressava da vida política. Os poetas – o argentino Juan Cruz Carela, o equatoriano José Joaquín de Olmedo, o colombiano Julio Arboleda – ou os prosadores, os que se voltaram para a narração ou os que preferiram o ensaio, todos participaram, em maior ou menor escala, das lutas políticas e dedicaram longas horas ao jornalismo, que em quase todas as cidades teve importância como meio de expressão das idéias. O jornal circulava entre as burguesias ativas e pensantes, e para elas escrevia o liberal doutrinário, o conservador convicto, os eventuais defensores de uma causa, de um projeto ou de um caudilho. Para elas escreveram quase diariamente as melhores penas latino-americanas, em jornais militantes e de inequívoca orientação. E as idéias que recebiam, difundiam-nas essas burguesias ativas e pensantes nas tertúlias, nos cafés, nas praças, nos átrios, comentando-as segundo o ponto de vista de cada um, desenvolvendo-as algumas vezes e sintetizando-as outras, até transformá-las em patrimônio de todos e difundi-las por todos os setores da sociedade: assim se formavam e deformavam as correntes de opinião no ambiente urbano, no qual o literato-jornalista era um porta-voz da pequena comunidade, a quem todos conheciam e de quem todos esperavam o argumento ou a glosa, contra ou a favor da questão palpitante de cada dia.
Não faltava na mais freqüentada rua de cada capital uma livraria à qual chegavam os livros estrangeiros mais solicitados pelos curiosos e pelos snobs. Ali se faziam também tertúlias literárias nas quais se encontravam os que liam os mesmos livros e seguiam assiduamente os mesmos autores. Eram os que se encontravam no teatro, nas redações dos jornais, no congresso. Política e literatura eram inseparáveis na cidade patrícia.
Notas
1. Gaucho: diz-se do habitante dos pampas. (N. do T.)
2. Llanero: na Venezuela, habitante da planície. (N. do T.).
3. Lacho guapetón: homem chileno que se caracterizou pela galanteria e coragem. (N. do T.)
4. Chicha: bebida alcoólica feita pela fermentação do milho na água açucarada. No Chile, bebida obtida da fermentação do sumo da uva ou da maçã. (N. do T.)
5. Charro: cavaleiro que usa traje especial composto de paletó bordado, calças ajustadas, camisa branca, chapéu de aba larga e alta copa cônica. (N. do T.)
6. Cachaco: na Colômbia, jovem elegante, solícito; na Venezuela, um dândi; no Peru, a polícia; em Porto Rico, espanhóis acomodados. (N. do T.)
7. Catrines: no México, pessoa elegante e presunçosa; na Guatemala e Nicarágua, ricaço, bem vestido. (N. do T.)
8. Currutaco: muito afetado, pequeno e atarracado. (N. do T.)
9. Pollo: frangote, moço, jovem. Homem astuto e sagaz. (N. do T.)
10. Jarocha: natural da cidade de Veracruz, no México. Diz-se também das pessoas rústicas, às vezes grosseiras e insolentes. (N. do T.)
11. Ruana: espécie de capote de montaria ou poncho de lã. (N. do T.)
12. Levita: casaca. (N. do T.)
13. Siútico: termo próprio do Chile que indica pessoa que se presume fina e elegante, ou que procura imitar os modos e os costumes das classes mais altas da sociedade. (N. do T.)
14. Mistela: bebida feita de mosto de uva misturado ao álcool para impedir sua fermentação. (N. do T.)
15. Dia do Grito: também conhecido como Grito de Dolores, aplicado ao motim que, iniciado pelo padre Miguel Hidalgo y Castilla, da província de Dolores, México, na madrugada de 16 de setembro de 1810, resultou na independência mexicana. (N. do T.)
16. Chicherías: casas ou lojas onde se vende chicha, bebida alcoólica resultante da fermentação do milho, uvas e outros frutos em água açucarada. (N. do T.) 17. Picanterías: lugares onde se vendem sobretudo comidas picantes. (N. do T.)
17. Picanterías: lugares onde se vendem sobretudo comidas picantes. (N. do T.)
6.
AS CIDADES BURGUESAS
A partir de 1880, muitas cidades latino-americanas começaram a sofrer novas mudanças, desta vez não só em sua estrutura social mas também em sua fisionomia. A sua população cresceu e diversificou-se, multiplicou-se a sua atividade, modificou-se a paisagem urbana e foram alterados os tradicionais costumes e as formas de pensar dos diversos grupos das sociedades urbanas. Elas mesmas tiveram a sensação da magnitude da mudança que causavam, embriagadas pela vertigem daquilo que se chamava progresso, e os viajantes europeus surpreendiam-se com essas transformações que tornavam irreconhecível uma cidade em vinte anos. Foi isso precisamente que, ao começar o novo século, emprestou à imagem da América Latina um ar de irreprimível e ilimitada aventura.
Um exame mais atento teria permitido comprovar que esse julgamento não era de todo exato. Havia muita coisa que não se modificava na América Latina, sobretudo nas extensas áreas rurais, mas também em muitos centros urbanos. Foram as cidades que se transformaram, e em particular as grandes cidades. Porque a mudança estava estreitamente vinculada a certa transformação substancial que ocorreu naquele período na estrutura econômica de quase todos os países latino-americanos e que repercutiu particularmente nas capitais, nos portos, nas cidades que concentraram e orientaram a produção de alguns produtos muito solicitados no mercado mundial. A preferência do mercado mundial pelos países produtores de matérias-primas e consumidores virtuais de produtos manufaturados foi por certo o que estimulou a concentração, em diversas cidades, de uma crescente e variada população, o que nelas criou novas fontes de trabalho e suscitou novas formas de vida, o que desencadeou uma atividade até então em desuso e acelerou as tendências que procurariam apagar o passado colonial para instaurar as formas da vida moderna.
Naquela ocasião, os países industrializados – os da Europa, os Estados Unidos e a seguir o Japão – alcançavam o seu apogeu. Haviam acumulado sólidos capitais, possuíam indústrias em plena expansão e promoviam outras de imensas perspectivas, e necessitavam tanto de matérias-primas abundantes quanto de mercados para os produtos que fabricavam. Nestes países também cresciam desmesuradamente as cidades, cujas populações requeriam uma quota de produtos alimentícios superior à que produziam. E tanto as exigências das grandes capitais e das pujantes indústrias quanto as exigências das novas concentrações urbanas provocavam uma ação indireta sobre os países que não haviam começado a desenvolver-se industrialmente. Algumas vezes, essa ação foi direta: os Estados Unidos impuseram progressivamente o seu domínio a partir de 1898 sobre os países do Caribe e da América Central, ocuparam territórios e obtiveram pleno direito sobre a faixa na qual abriram o canal do Panamá, no pequeno país que conseguiram que se formasse separando-o da Colômbia. Foi a época do “destino manifesto” e da política do big stick, expressão norte-americana de uma tendência imperialista que também se manifestava na Europa. Detentores de boa parte da economia venezuelana, os alemães não hesitaram em cobrar o pagamento de suas contas atacando Puerto Cabello a tiros de canhão em 1902.
Uma força de ocupação ou um embaixador insolente eram expressões da ação direta. Porém, a ação indireta não foi menos eficaz para ajustar os vínculos da economia latino-americana com a dos países industrializados. Por certo, em todos os países houve o consentimento das classes dirigentes, que viram neles os símbolos do progresso. Porém, a rede era tecida nos grandes centros econômicos do exterior, e ali era definido o papel de cada um dos setores dessa periferia que o mundo industrializado organizava. Tal ação indireta foi notada na promoção de certos tipos de produtos: nas áreas rurais da América Latina estimulou-se o trabalho com um critério empresarial, para que um país produzisse mais café, outro, mais cana de açúcar, outro, mais metais, outro, mais cereais, lã, carne para consumo, outro mais borracha ou outro mais salitre. As empresas eram quase sempre de capital estrangeiro, e estrangeiros foram os seus gerentes, os seus engenheiros, os seus administradores e, às vezes, até os seus capatazes; a mão-de-obra, em compensação, era nacional; e nacional foi também todo o pequeno universo de intermediários que a produção e sua comercialização geraram.
Esse pequeno mundo cresceu nas cidades, as quais se encheram de bancos – mais estrangeiros do que nacionais – e de escritórios nos quais agentes comerciais e financeiros de toda categoria despachavam os seus negócios, uns para comprar ou vender, outros para investir capitais, outros, afinal, para especular em qualquer um dos segmentos que abrangia a inexplorada economia de cada país. Também encheram-se de casas de comércio por atacado e de lojas para vendas a varejo. E as suas ruas, os seus cafés e os seus bairros humildes encheram-se de pessoas que com suas diversas atividades prosperavam com o que sobrava de tanta riqueza concentrada no que era o velho núcleo urbano colonial.
As antigas famílias que se identificavam com as tradições da cidade uniram-se grupos heterogêneos que aquelas consideraram arrivistas; e o contato trouxe, no fim das contas, uma renovação dos costumes cotidianos, nos quais se notou uma crescente tendência a imitar as formas de vida que prevaleciam nas grandes cidades da Europa. Ficou relegado à vida provinciana o passado colonial e patrício, do qual só de vez em quando voltava o perfume às grandes capitais, para alimentar a nostalgia da paz perdida. Porém, as capitais e as cidades que enriqueciam não queriam a paz, mas, sim, o torvelinho da atividade que gerava riqueza e que se podia transformar em ostensivo luxo.
A adequada moldura do luxo parecia a todos os snobs o parisiense faubourg Saint-Germain e talvez a rue de la Paix e os bulevares. O velho núcleo urbano colonial das cidades latino-americanas pouco se parecia com esse cenário. O exemplo do barão de Haussmann e de seu impulso demolidor alimentou a decisão das novas burguesias que queriam apagar o passado, e algumas cidades começaram a transformar a sua fisionomia: uma suntuosa avenida, um parque, um passeio de coches, um luxuoso teatro, uma arquitetura moderna revelaram essa resolução mesmo quando não conseguiram com freqüência extinguir o fantasma da velha cidade. Porém, as burguesias podiam alimentar as suas ilusões encerrando-se nos ambientes sofisticados de um clube fechado ou em um restaurante de luxo. Ali antecipavam-se os passos que transformariam “a grande aldeia” em uma moderna metrópole.
1. Transformação ou estagnação
O impacto que produziu na economia latino-americana o estreitamento dos laços que a vinculavam aos grandes países industrializados não se manifestou em todas as cidades ao mesmo tempo nem com a mesma intensidade. Houve regiões que não puderam atender ao chamado, e as suas cidades ficaram fora dos novos circuitos econômicos que se formavam. Essas cidades estagnaram e pareceram ainda mais estagnadas em comparação com aquelas que começaram a prosperar aceleradamente. Foram estas que chamaram a atenção. Os negócios de importação e exportação, as operações financeiras e todas as atividades subsidiárias que essa transação trazia consigo multiplicaram o movimento das cidades onde se centralizavam o comércio e os investimentos. Nelas o dinheiro fluía, as especulações preocupavam não só os grandes investidores como também os pequenos poupadores, e as esperanças de um rápido enriquecimento alimentavam indiretamente as da ascensão social. Essas cidades que prosperavam tumultuosamente, em meio a um agitado clima de aventura, adquiriram um perfil peculiar.
A surpresa dos viajantes foi profunda, e as apreciações que as cidades mereceram soaram algumas vezes como exaltados elogios e outras, como repetições das velhas injúrias contra a Babilônia. Era uma sensação compartilhada pelos grupos tradicionais das cidades que se transformavam. Rubén Darío falava da “magnífica Buenos Aires”, porém o mexicano Federico Gamboa via na prostituta protagonista de seu romance Santa o símbolo da “cidade corrompida”. Todos observaram que estava sendo cultivado um novo estilo de vida latino-americano, marcado, sem dúvida, pelas influências estrangeiras, porém sombriamente original, como era original o processo social e cultural que se desenvolvia nestas cidades. Metrópoles de imitação à primeira vista, cada uma delas escondia um matiz singular que se manifestaria pouco a pouco.
Entre todas aquelas cidades, onde mais claramente se pôde observar a prosperidade e a transformação, tanto da sociedade e de seus costumes quanto da fisionomia edilícia, foi nas capitais que eram, ao mesmo tempo, portos: Rio de Janeiro, Montevidéu, Buenos Aires, Panamá, Havana, San Juan de Puerto Rico, todos portos marítimos em contato direto com o exterior, cuja intensa atividade econômica se desenvolvia junto àquelas que eram próprias de uma capital política e administrativa, centro, por isso mesmo, de decisões econômicas. E mesmo Caracas ou Lima que, apesar de serem cidades do interior, formavam par com os seus portos vizinhos, La Guayra ou El Callao. Uma economia pujante, despertada pelo estímulo do comércio exterior, acompanhava agora a tradicional atividade promovida pelo poder político, pelo jogo da influente burocracia, pelo exercício de sábias pressões para obter este ou aquele benefício. A cidade do México, uma capital interiorana, brilhava por sua atividade e por sua riqueza depois de contidas as lutas internas, sob a égide de Porfírio Díaz, vigilante do alto do castelo de Chapultepec.
Por certo, nem todas as capitais alcançaram o mesmo desenvolvimento nem tiveram o mesmo brilho. Rio de Janeiro, que havia começado a sua transformação durante a época imperial, acentuou-a durante a república à medida que a sua população crescia. De 550.000 habitantes, no início do século XX, passou para mais de um milhão em 1920, e os seus bairros periféricos cresceram de tal forma que Olavo Bilac pôde dizer em 1908 que o Rio já era “uma aglomeração de várias cidades que pouco a pouco vão-se distinguindo ao adquirir cada uma especial aspecto e determinada autonomia de vida material e espiritual”. O México cresceu de outro modo. Foram as classes médias e altas que se deslocaram em direção aos novos bairros – as “colônias” – que surgiram nos arredores de Chapultepec, ao passo que o velho núcleo urbano alojava cada vez mais as classes populares que transformavam em cortiços os velhos casarões e os palácios. Em 1900, contava com 390.000 habitantes e conseguiu ultrapassar o milhão em 1930, quando começava a estabilizar-se a grave crise desencadeada pela revolução de 1910. Buenos Aires, a mais povoada de todas, já tinha 677.000 habitantes em 1895 e alcançou os dois milhões em 1930. Foi, sem dúvida, a cidade cujo crescimento mais chamou a atenção dos europeus – de cujo tronco se nutria a imigração que a transformava – até converter-se em um pequeno mito. Um francês, H. D. Sisson, escrevia em 1909 que Buenos Aires era “uma cidade nova que cresceu com a rapidez de um fungo sobre o pampa deserto”; e, equivocando-se nos dados, resumia assim o seu interesse pela capital argentina:
Esta cidade de Buenos Aires é um fenômeno do qual é necessário falar. O fato do desenvolvimento do que era em 1875 uma cidade de sessenta mil almas e que em 1906 ocupa uma extensão maior do que Paris, edificada em seus dois terços e povoada por um milhão e duzentos e cinqüenta mil habitantes, é mais maravilhoso do que o surgimento da maior cidade dos Estados Unidos.
Praticamente, embora partindo de cifras mais modestas, quase todas as capitais latino-americanas duplicaram ou triplicaram a população nos cinqüenta anos posteriores a 1880 e multiplicaram sua atividade em uma determinada proporção. As capitais aproveitavam as riquezas de todo o país através dos impostos e da despesa pública, além do que significava possuir o mercado interno mais importante. De uma ou de outra maneira e qualquer que fosse o regime institucional, a conjunção entre o poder econômico e o poder político que sempre havia existido acentuou-se à medida que o volume das operações comerciais e financeiras aumentava. Os grandes intermediários, banqueiros, exportadores, financiadores, magnatas da bolsa centralizaram-se nas capitais. E as burguesias dominantes envidaram esforços para que a fisionomia edilícia refletisse a imagem de um país próspero e moderno.
Porém, na realidade, a riqueza entrava e saía pelos portos, que já haviam crescido nas últimas décadas. Alguns, como Buenaventura ou Esmeraldas, não conseguiram ultrapassar a sua mediocridade. Contudo, outros transformaram-se em empórios comerciais de vida intensa e congregaram uma burguesia mercantil de sólidos recursos, embora nem sempre tivessem a ostentosa preocupação das capitais que copiavam as velhas cortes. Valparaíso havia vencido a batalha contra os seus rivais do Pacífico e brilhou como o mais ativo e rico dos portos. De 100.000 habitantes que tinha em 1880 alcançou o dobro em 1930; enquanto modernizava suas instalações, multiplicava o número de navios que chegavam aos seus cais e aumentava acentuadamente as arrecadações de sua alfândega. Em posição inferior, achavam-se os principais portos do Peru e do Equador. El Callao, que sofreu as conseqüências da guerra com o Chile e permaneceu ocupado até 1883, restabeleceu-se lentamente, ao compasso da recuperação da economia do país. Dos 35.000 habitantes que o povoavam antes da guerra, passou a mais de 50.000 por volta de 1930, quando já levava uma década de intensa atividade. Porém, era apenas o subúrbio portuário de Lima, comprimido pelo seu forte colonial. A cidade velha, de ruas estreitas e traçado irregular, viu desenvolver-se a seu lado outra nova, desenhada em forma de tabuleiro de xadrez, que se estendia até La Punta. Guayaquil, em compensação, era o principal centro comercial do Equador. Ali se formara a burguesia mercantil que volta e meia disputava o poder com capital, apoiada na força que lhe proporcionava a circunstância de ser a chave da economia de importação e exportação. No estuário do rio Guayas, protegida do calor equatorial pelos portais de suas ruas, Guayaquil abrigava uma população de 40.000 habitantes por volta de 1880, que quase triplicou em cinqüenta anos.
Prosperaram também os portos colombianos de Santa Marta e Cartagena; mas o seu desenvolvimento não foi comparável ao de Barranquilla, surgida em 1872 na entrada do Magdalena e a 27 quilômetros do mar. Em cinqüenta anos, ultrapassou em movimento portuário e em população as suas cidades vizinhas e chegou a reunir quase 150.000 habitantes em 1930, enquanto Cartagena chegava apenas a 100.000 e Santa Marta a 30.000. Barranquilla monopolizava cada vez mais o comércio internacional e servia de abertura para a navegação do Magdalena. E tanto o seu crescimento irregular quanto o ar de improvisação que possuía sua arquitetura moderaram-se pela ação dessa nova burguesia de origem cosmopolita e arrivista que promoveu o seu desenvolvimento. Nada nela fazia recordar o passado colonial, como o lembravam as muralhas de Cartagena.
Porém, Cartagena começava a reanimar-se assim como outros velhos portos coloniais que sofreram o abalo das novas circunstâncias econômicas. Cresceram também de alguma maneira Belém, com o auge da borracha, e Recife e Salvador, ao reativar-se a produção açucareira durante a Primeira Guerra Mundial. Puerto Cabello e Maracaibo ganharam vida nova, sendo que esta última à medida que aumentava o desenvolvimento da indústria petroleira, graças à qual a sua população chegou a 100.000 habitantes em 1930. A velha Veracruz alcançou os 70.000 habitantes nessa época, a partir dos 24.000 que tinha no início do século XX. Tradicional porto de intercâmbio com a Europa, teve de compartilhar sua atividade com a mais moderna Tampico, equivalente em população, e sobretudo com Matamoros, que ultrapassou as duas alcançando, por volta de 1930, os 100.000 habitantes graças ao seu papel de intermediária no comércio com os Estados Unidos. Iquique e Antofagasta, portos mineiros do Chile; Matanzas e Cienfuegos, centros da exportação açucareira cubana; Rosário e Bahía Blanca, portas de saída dos cereais argentinos; Santos, empório da exportação do café brasileiro; e até os pequenos portos dos países da América Central pelos quais saíam o café e as frutas viram-se fortalecidos pela intensificação da atividade comercial e modificaram de certa forma o seu perfil graças ao predomínio dessas burguesias portuárias e às atividades subsidiárias que a vida do porto estimulava. A imigração estrangeira, geralmente de origem européia bem como de origem norte-americana ou asiática, sobretudo no Pacifico, combinada com a concentração de densos contingentes de população indígena, mestiça ou negra, dava às sociedades portuárias um estranho aspecto heterogêneo, e às suas formas de vida, um enquadramento inusual que ressaltava suas diferenças com relação às que eram tradicionais nas cidades patrícias. Os portos foram os centros de ativação comercial, mas os grupos tradicionais viram neles apenas agentes da dissociação do caráter nacional, e certos grupos acentuaram o seu conservadorismo pensando que o preço que teriam de pagar pela prosperidade era alto demais.
Não só as capitais e os portos prosperaram. Também assim o fizeram certas cidades interioranas que se constituíram em focos de uma zona produtora em processo de expansão. Algumas vezes foi um desenvolvimento pujante como aquele que a partir de 1870 impulsionou o crescimento de Ribeirão Preto, no coração da zona cafeeira, e, em outras, uma explosão efêmera, como no caso de Manaus. Surgida no coração da Amazônia, Manaus transformou-se na capital da borracha brasileira. Depois de visitá-la em 1865, William Scully escrevera: “A população é de cerca de 5.000 habitantes e a cidade tem aproximadamente 350 casas (…)”. De repente, a exploração da borracha ali concentrou pessoas de diversas origem e condição. Aventureiros de dez países e trabalhadores da Venezuela, Colômbia, Equador e Peru reuniram-se para a grande aventura que culminou por volta de 1910 graças aos altíssimos preços internacionais da borracha, quando a cidade chegou a ter 50.000 habitantes. Uma classe de ricos potentados, a cuja frente estava o alemão Waldemar Scholz, fez da pequena aldeia uma suntuosa cidade, com luxuosas residências particulares, belas avenidas, lojas incrivelmente sortidas de produtos europeus, refinados restaurantes e, sobretudo, um teatro que causava assombro em todos os seus visitantes. Um porto moderno sobre o rio Negro recebia centenas de navios que embarcavam a borracha a fim de transportá-la para os portos marítimos. Era uma sociedade cosmopolita e aventureira, na qual as fortunas aumentavam e diminuíam vertiginosamente e cujos vínculos só tinham a força que os interesses comuns criavam. Porém, de repente, os preços da borracha no mercado internacional começaram a baixar em conseqüência do desenvolvimento da produção asiática, e a cidade encantada que havia surgido em meio à selva estremeceu e começou a declinar, mais rapidamente ainda do que havia crescido. As trepadeiras apareceram nas gretas dos suntuosos edifícios e os cobriram, enquanto se apagava o traçado das ruas e das praças pelo mato que se espalhou implacavelmente tão logo deixou de ser cuidado. As pessoas começaram a desaparecer, cada uma delas buscando a sua sorte, até que a cidade em ascensão voltou a ser uma aprazível cidade provinciana.
Mais consistente foi o crescimento de São Paulo, cujo salto de cidade provinciana para moderna metrópole começou por volta de 1872. Desde então foi a “Metrópole do café”, onde se radicaram os ricos fazendeiros dispostos a transformá-la em uma urbe digna de sua riqueza. Uma vigorosa imigração estrangeira contribuiu para a mudança. Dos 70.000 habitantes existentes em 1890, conseguiu aproximar-se de um milhão em 1930. Italianos, espanhóis, portugueses, alemães, mas também brasileiros de outros estados chegavam para participar do esplendor econômico de que gozava a cidade. Cresceram novos bairros, modificou-se a planta e apareceram todos os serviços próprios de uma cidade moderna. Foi um crescimento sólido e constante que deu à burguesia paulistana uma grande força nacional. E em poucas gerações, uma nova aristocracia deu à cidade essa complexidade que dela faria pouco mais tarde tanto um importante centro cultural quanto um vigoroso pólo de desenvolvimento industrial.
Em menor escala, teve um desenvolvimento semelhante a cidade argentina de Rosário, centro de atração da imigração, de preferência, italiana. Com uma população de 100.000 habitantes ao iniciar o século XX, atingia o meio milhão em 1930, devido à febril atividade de seu porto exportador de cereais e ao aparecimento de algumas indústrias, em especial, a de farinha. Um excelente porto e uma privilegiada posição no sistema de comunicação ferroviária propiciou-lhe um papel econômico importante dentro da economia nacional. E uma sociedade aluvial que logo adquiriu uma forte coesão pôde trabalhar com afinco para aproveitar aquelas vantagens e oferecer-lhe um ambiente urbano de certas pretensões.
Na Colômbia cresceu uma velha cidade, Medellín, fundada em 1675. Um promotor industrial, Pedro Nel Ospina, iniciou ali a indústria têxtil, a que se agregaram logo outras – cerveja, vidro, chocolate, louça – que trouxeram grande atividade para a cidade. De 37.000 habitantes em 1880 chegou a alcançar os 100.000 por volta de 1930, em uma expansão que continuaria acentuando-se depois. Igualmente significativo foi o crescimento de Manizales, uma nova cidade, fundada em 1848. Originalmente sustentada pela produção de cacau e queijos, a nova sociedade estruturada em Manizales, sobretudo mediante migrações internas, descobriu com rapidez a possibilidade de destinar as terras circundantes ao cultivo do café, muito solicitado no mercado mundial. Vastas extensões voltaram-se a esse cultivo, mas a cidade exerceu um vigoroso controle sobre a produção, dado que se tratava de um produto de exportação cuja comercialização representava um processo tão importante quanto a própria produção. Em 1905, já era um empório cafeeiro, condição que manteve até 1930, quando os preços internacionais do produto sofreram uma acentuada queda. Porém, Manizales já era uma sólida praça comercial, com uma vigorosa e empreendedora burguesia. Se as primeiras fortunas foram acumuladas com o cacau e com os queijos, as novas foram de preferência cafeeiras; e depois da crise – em 1930, quando a cidade alcançava cerca de 30.000 habitantes – o capital acumulado permitiu, como em São Paulo, enfrentar uma nova etapa de seu desenvolvimento econômico através do estabelecimento de novas indústrias.
Muitas cidades novas – a princípio, pequenos povoados – surgiram durante este período. Algumas conseguiram um rápido desenvolvimento, como a cidade argentina de La Plata, fundada em 1882 para ser a capital da província de Buenos Aires, em conseqüência de um processo institucional, mas que alcançou um importante desenvolvimento comercial e portuário graças ao esforço de uma sociedade urbana de origem predominantemente imigratória. Do mesmo modo cresceu Belo Horizonte no Brasil, fundada em 1897 como nova capital do estado de Minas Gerais e que alcançou 100.000 habitantes por volta de 1930. Em ritmo diferente, cresceram também inúmeros povoados e cidades criados pela progressiva expansão agropecuária argentina: Resistência e Sáenz Pena, Santa Rosa ou Venado Tuerto, entre outros. Nascidas de um processo de expansão econômica, suas sociedades ajustaram a este suas formas de vida, livres de qualquer tradição.
Nova era a cidade chilena de Antofagasta, cujo desenvolvimento começou por volta de 1870, ligado à exportação do salitre, e nova foi também, de fato, a de Punta Arenas, insignificante lugarejo até 1875 e que tinha mil habitantes em princípios do século XX, mas que cresceu intensamente a partir de então. Se alcançou 30.000 almas por volta de 1930 foi porque se converteu em um importante centro da economia patagônica devido à ação tenaz de José Menéndez, um comerciante espanhol que revelou surpreendentes condições de comando. Com a intensificação da exploração regional – em especial do gado lanar –, a nascente atividade mercantil da cidade fortaleceu-se e dela se fez, em pouco tempo, um singular oásis em terras austrais: assim como em Manaus, surgiram ruas e avenidas, boas e até luxuosas residências, o indispensável teatro das cidades que queriam expressar o seu anseio de bem-estar e prosperidade e todos os serviços próprios de uma cidade moderna. Uma sociedade ativa e a mão-de-obra barata – a um nível dramático – oferecidas pela região consolidaram a função da cidade em uma área que delas carecia.
Um desenvolvimento industrial acelerado fez prosperar de algumas cidades mexicanas. Monterrey chegou a ser a mais importante delas no início do século XX, quando a sua população ultrapassou os 60.000 habitantes, número que aumentaria nas décadas subseqüentes, à medida que a siderurgia se desenvolvia. Porém, também cresceram Guadalajara, Puebla e Orizaba, esta última batizada com o título de “Manchester do México” por causa de suas indústrias têxteis, às quais se juntaram as da cerveja e do papel: dois romances de Rafael Delgado – Los parientes ricos e Historia vulgar – descreveram o interessante ambiente provinciano alterado pela transformação econômica.
As cidades que ficaram à margem da modernização, no entanto, conservaram o seu ambiente provinciano. Não mudaram enquanto outras se transformavam e essa circunstância emprestou-lhes um ar de cidades estagnadas. Várias delas conseguiram, no entanto, manter o ritmo de sua atividade mercantil pelo menos dentro de sua área de influência, mas mantiveram também o seu estilo de vida tradicional sem que se acelerasse o seu ritmo. As ruas e as praças conservaram a sua paz, a arquitetura, a sua modalidade tradicional, a convivência, as suas normas e as suas regras de costume. Por certo o horizonte que ofereciam não se expandiu, enquanto em outras cidades parecia crescer a possibilidade da aventura, da fortuna fácil e da ascensão social. As cidades alheias às explosivas formas da modernização, por comparação, puderam parecer mais estagnadas do que na realidade o eram. Uma curiosa hierarquia oriunda da estagnação constituiu-se ao longo dos anos: houve cidades estagnadas no século XVIII, como Villa de Leyva ou Antigua Guatemala, que contemplaram como alcançavam seu próprio caráter outras que as haviam superado.
Foi intenso, e muitos o expressaram como testemunho de uma situação contraditória, o sentimento que provocou esse contraste. O venezuelano Rafael Pocaterra descreveu o ambiente de Valência em El doctor Bebé e o de Maracaibo, em Tierra del sol amada. Entre irônico e nostálgico, evocava o cassino provinciano, as noites silenciosas, nas quais não se viam “nem cachorros, nem um último coche envergonhado. Tão-somente entre os canteiros de palmeiras da praça Bolívar dois gatos perseguiam-se uivando, obsessivos”. E o protagonista nostálgico de Paris ou, apenas, de Caracas, se perguntava: “aonde ir?”. A paz da sonolenta capital equatoriana motivava Jorge Reyes a falar de Quito, arrabal del cielo. E o argentino Manuel Gálvez evocava a calma da adormecida Catamarca em La maestra normal e o peso da tradição colonial de Córdoba em La sombra del convento. “Arequipa era uma democracia de fidalgos”, dizia melancolicamente o peruano Victor Andrés Belaúnde, falando da cidade de sua infância; e com a mesma nostalgia lembrava-se da aprazível Mérida o venezuelano Mariano Picón Salas.
Não faltou quem surpreendesse a sutil persistência da calma provinciana por debaixo da força da modernização da cidade: o argentino Benito Lynch revelava La Plata, quase cinqüentenária, em Las mal calladas, e o mexicano Rafael Delgado nos seus romances evocava Orizaba e Córdoba. Eram, porém, fracos contrastes que desapareceriam pouco a pouco, como sumiriam também, de alguma maneira, mesmo nas cidades que languesciam em sua estagnação.
Por certo, o efeito de demonstração começou a funcionar intensamente e cada vez mais, á medida que as comunicações se tornavam mais fáceis. Nas cidades provincianas evocava-se o brilho das luzes, o luxo ostensivo que as cidades modernizadas copiavam de Paris. Almejava-se também o gênero de vida mundano que os romances e os jornais difundiam, e um certo tipo de anonimato que caracterizava a existência da grande cidade, graças ao qual a vida parecia mais livre e a possibilidade da aventura mais fácil. E diante desse modelo, a placidez provinciana parecia mais insuportável para quem sentia a tentação da aventura metropolitana. Podia ser a jovem de boa família que se entediava em meio ao que considerava o seu estreito círculo, mas em geral foi o homem ambicioso que se cansava com a rotina de uma atividade que não parecia permitir-lhe o salto para a riqueza ou para uma posição social mais elevada. A rigor, as metrópoles – grandes ou pequenas – que estavam no horizonte de quem suportava o provincianismo ofereciam, sobretudo, o incentivo para a ascensão social. As metrópoles já eram típicas sociedades burguesas, com os caracteres que haviam adquirido de seus modelos do mundo industrializado, ou talvez com as características que engendrava a imitação, mais acentuadas, por certo, do que no original. As sociedades provincianas sentiam falta dessas aberturas que as sociedades burguesas ofereciam. E esse sentimento multiplicou a diferenciação real entre as cidades estagnadas e as que se transformavam.
2. A mobilidade das sociedades urbanas
O tipico das cidades estagnadas ou adormecidas não foi tanto a intacta permanência de seu traçado urbano e da sua arquitetura quanto a permanência de suas sociedades. De fato, nelas conservavam-se as velhas linhagens e os grupos populares tal como se haviam constituído nos distantes tempos coloniais ou na época patrícia. Pouco ou nada mudara e, por certo, nada estimulava a transformação da estrutura das classes dominantes, a formação de novas classes médias, nem a diversificação das classes populares.
Nas cidades que, direta ou indiretamente, permaneceram incluídas no plano do novo sistema ocorreu o inverso. As velhas sociedades começaram a transformar-se. De início, invadiram-nas os novos contingentes humanos que se incorporavam à vida urbana, algumas vezes resultantes do êxodo rural e outras, do surgimento de imigrantes estrangeiros. Porém, logo, o maior número de habitantes – acentuado por um sólido crescimento vegetativo – alterou também qualitativamente a velha estrutura demográfica, ao calor das inusuais possibilidades de mobilidade social que as novas perspectivas ocupacionais ofereciam. Não demorou para perceber-se o resultado, e o sistema tradicional das relações sociais começou a modificar-se. Onde havia um local preestabelecido para cada um, começou a aparecer uma onda de aspirantes a cada lugar; e não eram apenas os recém-chegados com vocação para a aventura que destruíam a harmônica e estável sociedade tradicional, eram também aqueles que já faziam parte dela sem participar, marginalizados, muitos dos quais começavam a incorporar-se porque tinham habilidades e surgia a ocasião para demonstrá-las. O “novo-rico”, o pequeno comerciante próspero, o empregado empreendedor, o artesão habilidoso, o operário eficaz, e todos os que descobriam na intrincada trama das atividades terciárias um filão a ser explorado abriram caminho por entre os meandros da estrutura social e acabaram por modificá-lo.
Por certo, não era esse o seu objetivo. Cada um dos que ascendiam aspirava a situar-se na sociedade tradicional, a ser mais um, a desfrutar dos benefícios e prazeres que implicava ser um de seus membros, como os que a integravam desde tempo imemorável. Porém, o resultado foi que a estrutura não pôde resistir a tantas inclusões novas e começou a modificar-se. De repente, o velho patriciado percebeu, antes do que todos, que sua cidade, “a grande aldeia”, começava a transformar-se em um conglomerado heterogêneo e confuso, em que se perdiam pouco a pouco as possibilidades do controle da sociedade sobre cada um de seus membros, à medida que desaparecia a antiga relação direta de uns com os outros.
Nas áreas rurais e nas cidades pequenas ou intermediárias, o velho patriciado havia-se enraizado mais profundamente e formava uma vigorosa e homogênea aristocracia. Dessa “democracia de fidalgos” falava-se em Arequipa, Tunja, Trujillo, Salta, como se podia falar em Popayán. Não havia em seu seio grupos que insinuassem tendências diversificadoras nem os grupos humildes e medianos negavam consentimento à sua autoridade. Por isso, foi ali onde se resistiu melhor aos embates dos novos tempos. Nas capitais e nos portos, em compensação, nas cidades que se transformavam, as circunstâncias começaram a minar a estrutura e a força do patriciado, mesmo quando estivesse bem organizado e exercesse seu inequívoco poder. Junto aos oriundos da mesma cidade havia, mais cosmopolitas e menos preconceituosos, os inúmeros outros vindos de diversas partes do país, algumas vezes com poder e outras em busca dele, algumas vezes com fortuna e outras vezes para procurá-la. E era nestas cidades onde os grupos estrangeiros, influentes e prestigiados, adquiriam mais importância. O jogo de tantos e tão diferentes grupos ameaçava a posição do patriciado e facilitava a abertura de alguns de seus grupos para novas atitudes que comprometeriam a situação da velha classe.
Houve, efetivamente, no patriciado aqueles que, diante das novas perspectivas econômicas propostas nas últimas décadas do século XIX, se mostraram aptos para modificar os seus princípios e as suas tendências pensando em aceitar e aproveitar as oportunidades que eram apresentadas. Outros, em compensação, não quiseram ou não foram capazes de fazê-lo, acostumados demais a outros modos de vida para aderir a atividades que exigiam condições para as quais não haviam sido preparados. Foram eles que começaram a dar um passo atrás, que os relegaria à condição de grupo aristocrático e desdenhoso e, na mesma medida, submisso e passivo.
Nas últimas décadas do século, o patriciado republicano constituído após a independência era uma classe social já assentada ao longo de várias gerações. Tanto os membros de rançosas linhagens coloniais, quanto aqueles que haviam ascendido depois da emancipação ou das guerras civis configuravam uma classe caracterizada pela “antiga riqueza”. Eram, por certo, os aristocratas daquela sociedade. No Brasil – onde a época do império corresponde ao período aristocrata do restante da América Latina – não faltou um racista declarado como Oliveira Viana que considerasse a aristocracia do império uma estirpe superior: era branca e possuía essa “ancestralidade germânica” capaz de empurrá-la “para os sertões à caça de ouro e de índios”. Porém, ele mesmo – em seu livro Evolução do povo brasileiro – explicava, à sua maneira, o que aconteceu depois:
Com o triunfo da revolução republicana, rompem-se os velhos quadros políticos e partidários que os cinqüenta anos do antigo regime haviam formado lentamente: a nação, tomada de surpresa, vê a sua instabilidade agravada pelos novos ideais vitoriosos. Há uma subversão das camadas sociais, que se transformam e se misturam: a nação assiste, atônita, ao surgimento, ao lado das grandes figuras do republicanismo, de uma multidão de personalidades aventureiras, sem títulos que creditassem a sua ascensão, mas que lutam com audácia e veemência pela posse do poder e da direção do país. Os elementos sociais, nesse povo sacudido por um terremoto, movem-se desordenadamente, como moléculas acionadas por forças opostas. Nesse jogo de ações e reações indescritíveis, a estrutura social adquire uma plasticidade enorme, sob a pressão de influências contrárias.
Talvez o ar senhorial fosse o aspecto mais significativo que essa classe – rica e politicamente hegemônica – havia começado a adotar. E não apenas no Brasil, onde o império havia repartido com prodigalidade os títulos de nobreza, como também nas repúblicas mais modestas e mais austeras. Naquela época, diversas gerações haviam se sucedido desde o início da ascensão familiar. E ao contrário das primeiras que se haviam caracterizado por sua tenacidade na conquista da fortuna e do poder, as subseqüentes deixaram de ser tão exigentes consigo mesmas e muitos de seus membros adquiriram o perfil do cavalheiro ancestral que se afunda no ócio, incumbindo os seus servidores do cuidado de seus interesses e abandonando a sua preocupação de imprimir ao país a direção que julgava ser a melhor.
O ócio dessas novas gerações das velhas classes teve diversas formas nessa sociedade que se constituía e cuja lei era a atividade produtiva. As vezes, houve certa tendência a fugir da cidade mercantilizada e burguesa, cheia de exigências e de forasteiros dispostos a satisfazê-las, para buscar uma trégua na fazenda distante. Foi um dos temas prediletos do romance naturalista, através do qual o autor intercalava – Gamboa, Pocaterra, Cambaceres – a análise do estado de ânimo desses pseudofidalgos urbanos diante das mudanças sociais. O campo parecia o ambiente próprio dos senhores e a afirmação de tal qualidade representava uma despeitada resposta, e quase uma vingança, para uma sociedade que começava a privilegiar outros valores. Outras vezes o ócio tomou a forma de uma indolência elegante e cética que se manifestava com franco desdém pelo exercício viril da vontade nas lutas cotidianas da sociedade. Podia ser uma indolência estetizante que realçasse o valor das experiências pessoais por meio do estudo, da leitura ou do simples exercício de um modo cotidiano de vida, um pouco à maneira de Oscar Wilde, na qual ganhava sentido de concretização o usufruto da beleza de um quadro, de uma porcelana ou de um móvel. Ou podia ser um certo afã dispendioso de afirmar a autoridade através da manutenção de uma clientela de parasitas. E em outros casos, era a decadência da dignidade senhorial em uma ociosidade vulgar que costumava terminar no vício e na depravação.
Uma imagem nostálgica do passado costumava sustentar a melancólica marginalidade destes patrícios do império, da “pátria velha”, da “grande aldeia”, que se sentiam pouco à vontade na nova pátria e nas cidades que se transformavam. Por inércia, conservavam, além de sua riqueza, alguma forma de poder: o posto de senador que ninguém se atrevia a disputar com o herdeiro de uma velha família, o alto cargo judiciário e, às vezes, a presidência da república oferecida pelos amigos, algumas vezes, ou por amigos e inimigos, outras, caso a gravidade da situação obrigasse a pensar em um “patrício” que estivesse acima das paixões e dos partidos. Contudo, cada vez mais, a partir das últimas décadas do século, notava-se que os homens de mentalidade patrícia não eram os que mais convinham às novas circunstâncias. Conservaram o seu prestígio e inclusive a sua autoridade ali onde tinham propriedades e constituíram nessas zonas as oligarquias denominadas impropriamente “feudais”. E os conservaram nas cidades provincianas, com esses mesmos traços e sem que se notasse muito a sua crescente marginalidade na vida do país, particularmente se a região e a cidade caíam também na marginalidade à medida que se afirmava o novo sistema econômico. Porém, no âmbito da diretriz nacional, orientada para o aproveitamento total das novas possibilidades que o mercado mundial oferecia, começaram a predominar figuras com outra mentalidade e outro temperamento que emergiam formando um novo grupo social, como resposta ao novo desafio: era dessas “personalidades aventureiras”, que o brasileiro Oliveira Viana falava, ao expressar o ressentimento do velho patriciado magoado por seu deslocamento.
Para substituir o velho patriciado, novas burguesias vinham-se preparando ao compasso da mudança das circunstâncias. De repente, os negócios multiplicaram-se porque se multiplicaram as demandas do mercado internacional; as exigências de certos requisitos foram formuladas por aqueles que o controlavam e tomou-se necessário satisfazê-las não só adequando os sistemas de produção como também criando a infra-estrutura necessária. Em todos os lugares comprava-se e vendia-se, mas além disso apostava-se na obtenção de grandes lucros com pequenos investimentos ou com o dinheiro alheio e, sobretudo, especulava-se com audácia e com uma fé cega acerca de um indefinido crescimento do volume da riqueza e dos negócios, sem o tradicional sistema de arrecadações financeiras em que as explorações e os empreendimentos se haviam baseado até então e sem as preocupações de caráter moral que diziam respeito tanto à honra fidalga quanto à honra burguesa. Um novo estilo prevalecia: o da grande burguesia do mundo industrial, despersonalizada e anônima quando se tratava de negócios, um estilo ousado e envolvente que suplantava o tradicional, mais cauteloso, e no qual, qualquer que fosse o volume dos negócios e a margem da aventura, emergiam, misturados, os prejuízos do fidalgo e os do pequeno-burguês.
As novas burguesias constituíram-se daqueles que se mostraram possuidores das aptidões requeridas para enfrentar as novas circunstâncias, deixando decididamente de lado as limitações impostas pelos hábitos tradicionais e optando por outras formas de comportamento. Porém, quem eram e de onde surgiam?
Sem dúvida, aqueles membros do velho patriciado, herdeiros de uma fortuna e de um nome, que se separaram de seu grupo social – ou melhor, das atitudes de seu grupo social – para incorporar-se ao “progresso”, ao processo de modernização das estruturas, desempenharam um papel muito importante. Aproveitaram as vantagens de suas vinculações mundanas, de sua posição e de sua experiência para beneficiar-se com os primeiros e mais seguros lucros da mudança. Aos olhos de muitos, foram os modelos do novo comportamento: via-se neles os que abandonaram a vida fácil, a rotina, a indolência, talvez a depravação de muitos de sua classe, para incorporar-se à nova onda do trabalho e do progresso. E respaldados por esse prestígio lideraram processos concretos de modernização na área de suas atividades particulares. Mineiros ou latifundiários, a maioria de longa data, abandonaram e renovaram suas explorações utilizando novos métodos e introduzindo maquinário industrial moderno, com o qual multiplicaram as suas receitas. Associaram-se com freqüência a empresas estrangeiras e muitos deram um passo decisivo incorporando-se ao grande comércio ou, ainda melhor, ao mundo dos negócios financeiros e do mercado de ações. A ferrovia valorizou suas terras, e quando as cidades cresceram, dedicaram-se ao negócio da terra urbana, fundando novos bairros e povoados sobre as vias.
Porém, o grupo verdadeiramente ativo das novas burguesias compôs-se de gente menos comprometida com o passado. Eram os que buscavam a ascensão social e econômica com pressa, quase com desespero, em geral de classe média e sem muito dinheiro, mas com uma singular capacidade para descobrir a cada dia onde estava escondida a grande oportunidade. O grupo formou-se como resultado de uma seleção espontânea dos mais aptos para a nova situação, e os mais aptos foram aqueles que descobriram não só os negócios básicos — os da produção e sua comercialização – como os inumeráveis negócios derivados que apareciam em cada conjuntura no vasto sistema da intermediação, até chegar às altas finanças e à especulação. Os homens de negócios foram os senhores da nova sociedade, com sua imaginação exacerbada pela ilusão do enriquecimento repentino: em uma jogada na bolsa, em uma especulação de terras, em uma aventura colonizadora, em um empreendimento industrial; mas também em ocupações mais insignificantes, como a monopolização de um produto, a obtenção de uma concessão privilegiada, a solução de um problema de transporte, de embalagem, de armazenamento, ou apenas o cumprimento de gestões que deixavam uma considerável comissão. As comissões ligavam os produtores aos exportadores, atacadistas, funcionários, advogados e às empresas estrangeiras: foram um reino misterioso ao qual se podia chegar pobre e sair rico, porque se estendia por sobre todas as engrenagens da intermediação. Era necessário um escritório e nenhum capital para obtê-las, e às vezes nem sequer escritório, porque eram negociadas no clube, nas festas de sociedade, nas ante-salas de um ministro ou nos corredores do congresso. Os membros dessas novas burguesias costumavam ser oriundos do país ou, às vezes, estrangeiros de diferentes origens e com um passado duvidoso. Estes últimos desempenharam um papel importante porque, geralmente, levavam para cada lugar uma vasta experiência do funcionamento do intrincado novelo dos negócios internacionais. Talvez com uma falência mais ou menos honesta em seus ombros, o recém-chegado aproximava-se do novo cenário explorando as possibilidades do país e os negócios reais ou potenciais que pareciam ser oferecidos. Aproximava-se dos grupos mais influentes, onde em geral era bem recebido por sua condição de estrangeiro se fosse comunicativo e tivesse a capacidade para despertar simpatias nas festas aristocráticas ou nos clubes onde os cavalheiros se reuniam. E em seguida começava a sondar os gabinetes ministeriais, talvez buscando concessões e privilégios, negociando investimentos e cobrando as comissões correspondentes, ou apenas informações para introduzir-se no sagrado recinto da especulação. O acaso podia fazer dele um vitorioso; porém, se perdesse, comprometendo os seus novos amigos, podia desaparecer deixando para trás dramas como o que o argentino Julián Martel relatou em La bolsa, um romance que descrevia o mundo dos negócios de Buenos Aires por volta de 1890. No momento do cataclisma, Martel colocava na boca do aventureiro francês chamado Fouchez um explícito – e ingênuo – solilóquio:
Meu dever, não o nego, manda-me pagar aos meus credores; mas eu não vim para a América para cumprir com o meu dever, mas sim para fazer fortuna. Quem me conhece aqui? Quem sabe que sou o marquês de Charompfeux? Estou, é certo, ligado a esta terra pelos laços do agradecimento, pois nela encontrei trabalho e fortuna […]. Eu disse agradecimento? Que tolo sou eu! Como agradecer a um país que, depois de me enriquecer, quer deixar-me mais pobre do que vim? Que modo de enriquecer! Além disso, se ele me deu o dinheiro, eu lhe dei o trabalho, predisposto a engrandecê-lo […]. Não, estou decidido, fujo para Paris sem pagar ninguém […]. E que me importa abandonar esta obscura republiqueta americana, se com o que possuo posso brilhar em Paris como o mais refinado elegante do faubourg Saint-Germain? […]. A Argentina não é o meu meio […]. Tenho saudade de Paris, única cidade no mundo em que a vida é suportável, e para lá eu volto.
Houve muitos Fouchez na América Latina nessas décadas, talvez mais cínicos que o personagem de Martel. Porém, houve muitos estrangeiros, alguns deles notáveis personalidades, que apenas canalizaram o seu talento e a sua capacidade empresarial para dentro do processo geral da economia do país que escolhiam. Muito ligados aos grupos capitalistas de seu país de origem, William Russel Grace e John Thomas North atuaram nos países do Pacífico. O primeiro, norte-americano, trabalhou no Peru sobretudo com os transportes marítimos; o segundo, inglês, atuou no Chile e acabou sendo proprietário de inúmeras empresas e o “árbitro do porvir”, como ele mesmo dizia, na indústria salitreira e nas ferrovias. Em Manaus, o alemão Waldemar Scholz dominou a extração e a comercialização da borracha. O espanhol José Menéndez conseguiu criar um pólo econômico no sul da Patagônia tanto chilena quanto argentina, com sede em Punta Arenas. No México, o inglês Weetman Pearson desenvolveu a indústria têxtil e as ferrovias, enquanto os franceses Henri Tron, Honoré Reynaud e, sobretudo, Ernest Pugibet dominavam um amplo setor da produção têxtil e do tabaco. Um catalão, Emilio Reus, apareceu em Montevidéu como promotor do desenvolvimento econômico e deixou uma marca importante de seu trabalho. Todos eles, e muitos mais com diversificada capacidade, fundaram companhias, reuniram capitais e pessoas, deram às cidades o ritmo dinâmico de um posto de comando a partir do qual o destino imediato e mediato do país era projetado. Homens experientes, não só ofereciam às burguesias locais caminhos insuspeitados para elas como também experiência do mundo internacional e o conhecimento concreto em relação à gerência dos negócios. Esta relação estreitou-se em cada cidade, da qual sairia robustecido o vínculo de dependência entre as economias nacionais e os grandes centros do mundo industrializado. Porém, além disso, a relação dava ao conjunto das burguesias urbanas um ar cosmopolita que deixava para trás o sentimento provinciano a atormentar os ricos que haviam visitado Londres ou Paris e voltavam, deslumbrados, para a sua cidade natal da América Latina. Era, agora, um grupo moderno que sabia viver ao ritmo dos tempos.
Para esses grupos aspiravam a entrar também muitos dos que pertenciam às classes médias urbanas e que, em suas diversas atividades, chegavam a receber os últimos eflúvios da acelerada circulação do dinheiro. Comerciantes atacadistas ou varejistas, profissionais ou médios poupadores, que dispunham de certa quantia de dinheiro, procuraram participar da grande aventura. E aqueles que conseguiram, instalaram-se de modo rápido no cume da pirâmide, deixando a lembrança de seu talento mercantil ou de sua sorte aos que fracassavam em aventuras semelhantes. Por isso, precisamente, as novas burguesias tiveram o ar de classes aventureiras. A rigor, nem todos os seus membros tinham, pessoalmente, estas características. Muitos – inúmeros, talvez – eram homens de empresa e de trabalho que, uma vez vislumbrada a promissora perspectiva de certa atividade ou a necessidade de uma obra, empreendiam para a sua execução um constante esforço com extrema eficácia. Porém, a aventura estava na base do sistema que mudava, de fato, porque despertava novas possibilidades que requeriam imaginação para identificá-las e, às vezes, certa falta de preconceitos para empreendê-las mediante os apoios que se fizessem necessários. Estas habilidades combinadas configuraram em conjunto as características desse segmento social que, com conhecimento de causa ou não, modificava o perfil de sua cidade e de seu país.
O valor atribuído à eficácia, maior do que qualquer outro, foi aquele que, apesar de seu inocultável sentimento exclusivista, obrigou estas novas burguesias das cidades que se transformavam a se manterem abertas, permeáveis a todas as aspirações de ascensão social que pulsavam nos estamentos médios e populares. A sociedade urbana em conjunto tomou-se mais fluida e os canais, para passar de um estamento a outro, mais variados e transitáveis. Exigia-se apenas eficácia – e, sem dúvida, sorte – para vencer os obstáculos e alcançar o pequeno Olimpo do tout México, do tout Rio de Janeiro ou do tout Buenos Aires. Uma vez nele desfrutavam-se as delícias que a fácil multiplicação dos bens e o exercício de um poder difuso podiam proporcionar.
Sem dúvida, os membros das novas burguesias, em especial nas capitais, conseguiram controlar ao mesmo tempo o mundo dos negócios e o mundo da política, e agiram a partir dos dois para desencadear e aproveitar o processo de mudança. Dominaram os centros de decisão econômica fundando bancos ou tomando sua direção mediante operações às vezes tortuosas, dominando a bolsa até onde puderam, associando-se aos capitais estrangeiros que operavam no país através de agentes perspicazes. Dispunham, além disso, dos mecanismos da importação e da exportação regulando cotações, fixando preços, tramando manobras para surpreender e derrotar o concorrente adversário; e a partir das administrações, colocavam em funcionamento os dispositivos sabiamente armados que repercutiam sobre os segmentos intermediários e ecoavam por fim nos centros de produção. Todos conheciam os limites de seu jogo, impostos por aqueles que controlavam o mercado mundial. Porém, restava uma margem de ação que lhes permitia sentir-se poderosos. Um mundo de agentes, advogados, administradores e comissionados lubrificava oportunamente as engrenagens, cujas vigas-mestras eram reguladas de alguma maneira pelo poder político.
Porém, o poder político era exercido pelas mesmas pessoas ou por seus procuradores. Membros das novas burguesias dominaram progressivamente os centros de decisão política, e podiam ser vistos – eles ou os seus procuradores – nos gabinetes ministeriais, à frente dos grandes órgãos públicos, nos assentos legislativos ou nas salas dos tribunais. A lei, o decreto, a regulamentação que determinada política exigia eram estudadas e redigidas pelos mesmos grupos que as utilizavam para as suas atividades particulares. E as idéias que os inspiravam eram defendidas pelos partidos políticos das rodas oficiais governamentais – tradicionais ou circunstanciais – em cuja direção era visível a ação ou a influência dos mesmos grupos. Essa unidade de ação, essa coerência, testemunhavam a coesão interior que as novas burguesias iam alcançando, integradas por homens e grupos de diferentes origens, embora todos unidos pela unanimidade das respostas que davam ao desafio lançado dos grandes centros econômicos e financeiros da Europa e dos Estados Unidos.
Essa coesão era, portanto, o resultado de um projeto proposto pela conjuntura econômica internacional, ao qual aderiam indivíduos e grupos que formavam, nas cidades latino-americanas onde se tomavam as decisões locais, a classe dirigente. Mas a maioria deles – indivíduos ou grupos – estava muito ligada ao projeto em função de seus interesses particulares. Havia algo em sua concepção de liberalismo econômico que debilitava o seu sentido público e, no fundo, o conjunto estava formado não tanto pelos que compartilhavam um risco, mas pelos que coincidiam na promissora aventura. Por isso, as novas burguesias – de forma diferente do velho patriciado – constituíam uma classe com escassa solidariedade interior, sem os vínculos que proporcionavam ao patriciado a relação de família e o estreito conhecimento mútuo. As novas burguesias, pelo contrário, constituíram-se como grupos de sócios comerciais, cada um deles arriscando tudo dentro de um quadro de relações competitivas intransigentes no qual a vitória ou a derrota – que era como dizer a fortuna ou a miséria – representavam o fim do drama.
Esses traços deixaram a descoberto as sucessivas crises financeiras nas quais desembocou a euforia das aventuras econômicas, dos projetos delirantes e exagerados e, sobretudo, dos investimentos insensatos e dos empréstimos mal geridos. A especulação minou os andaimes e, ao precipitarem-se, arrastaram em cada uma das suas quedas todos os que se haviam excedido em suas possibilidades. Falências fraudulentas, suicídios, quedas dos mais altos níveis da riqueza ao último estágio da miséria foram temas prediletos do romance naturalista da época – entre outros, La bolsa, de Julián Martel, e Quilito, de Carlos María Ocantos, ambos argentinos –, precisamente porque era o espetáculo revelador dessa sociedade cuja lei parecia ser a ascensão social baseada na rápida conquista da fortuna. Esta esperança sempre foi uma característica das sociedades de grande mobilidade. E a fortuna foi sempre volúvel. Os favorecidos pelo êxito podiam ser no dia seguinte os menosprezados pelo fracasso. E este esquema revelava a estrutura interna das novas burguesias, estabelecidas na mais alta camada de uma sociedade que acreditava sobretudo na ascensão social.
Foi, justamente, a possibilidade e a esperança da ascensão social o que promoveu a imigração: do estrangeiro para os diversos países latino-americanos, e, dentro deles, das regiões pobres para as ricas, ou dos campos para as cidades. A intensa mobilidade geográfica correspondia às expectativas de mobilidade social que cresciam e chegavam a um grau obsessivo. E se alguns milhares de recém-chegados se incorporavam diretamente às classes médias ou altas, a grande maioria engrossava as filas das classes populares. Um sentimento de surpresa diante de uma sociedade que se tornava cada vez mais cosmopolita propagou-se entre os velhos setores criollos; chamavam a atenção os grupos estrangeiros dos segmentos médios, que em algumas cidades quase monopolizavam o comércio – como os alemães em Maracaibo ou os espanhóis em Veracruz – e pareciam sentir-se donos da cidade; porém, chamava mais a atenção ainda a hibridação das classes populares, em especial nas grandes cidades. A respeito de mais de uma cidade se disse que parecia uma Babel moderna. Isto porque a imigração se direcionou de modo preferencial para as grandes cidades, precisamente porque era nelas que se esperava encontrar a mais ampla gama de possibilidades para tentar-se fortuna.
Transformadas pela presença de fortes contingentes imigratórios ou com sua fisionomia habitual apenas modificada, as classes populares adquiriram uma nova significação nas cidades que se modificavam. Novas fontes de trabalho apareciam, algumas vezes espontaneamente, e outras instadas pelo talento dos espertos versáteis nos segredos da vida urbana. Para aqueles que tinham apenas a força de seus braços, o trabalho nos portos, na construção ou nas obras públicas podia assegurar-lhes o salário diário. Como caixeiros ou peões em lojas e oficinas também podiam ter trabalho regular. Mas a cidade que crescia oferecia novas possibilidades. Podia-se ser porteiro em repartição pública, garçom de bar ou de restaurante, lanteminha em teatros ou cinemas, cocheiro ou chofer, mensageiro ou engraxate, vendedor de bilhetes de loteria, ou inúmeras coisas mais. O serviço doméstico absorveu um considerável número de pessoas, assim como os serviços de ordem pública ou os transportes urbanos. Essa abertura das possibilidades do trabalho modesto não só serviu para canalizar as expectativas das novas classes populares como também para sacudir a apatia dos grupos tradicionais, cujos membros, antes contentes com a sua sorte, viam agora prosperar o criativo vizinho. Os imigrantes deram o exemplo da pequena economia. Com firmes sacrifícios, o vendedor da loja ou o vendedor ambulante acabava juntando um pequeno capital que lhe permitia estabilizar-se; e a partir desse momento a ascensão à classe média costumava estar garantida. Uma geração depois, havia na família do honesto comerciante um filho bacharel ou doutor.
A passagem dos serviços subsidiários da vida urbana para o pequeno comércio foi um dos esquemas típicos da ascensão social nas classes populares das cidades que cresciam. O aparecimento de novos bairros criava uma mentalidade de fronteira, porque neles todos começa vam uma espécie de vida nova e ali não valiam os preconceitos nem tinham sentido as perguntas a respeito do passado de cada um. O armarinho ou a loja de comestíveis que o empreendedor imigrante abria transformava-se no centro do novo distrito, no qual poucas casas eram erguidas. Em pouco tempo, o comerciante havia aproveitado o crescimento do núcleo e talvez amealhado uma pequena fortuna. Agora começava uma outra etapa dentro do sonho irreprimível das aspirações.
Para outros, o trabalho cotidiano apareceu nas novas manufaturas e indústrias que começaram a fixar-se. Houve trabalho nas oficinas ferroviárias, nas fábricas de tecidos, de cigarros, de vidro, de alpargatas, enfim, de diversos artigos que o fabricante acreditava que poderiam competir com os importados. Assim apareceu pouco a pouco um novo setor das classes populares: o proletariado industrial, não muito numeroso, mas de fisionomia social bem definida.
Em alguns países, recrutaram-se de preferência trabalhadores entre as camadas de imigrantes estrangeiros, mas em outros, ingressaram no nascente proletariado industrial trabalhadores nacionais, geralmente mestiços, negros e mulatos, que se adaptaram de modo rápido às características do sistema. Algumas vezes, tratava-se de pessoas da cidade que, apenas, mudavam de profissão, mas predominaram as que vinham do campo ou de aldeias rurais atraídas pelos altos salários que esperavam encontrar. Na atividade industrial, todos deveriam adaptar-se a uma disciplina nada habitual: a que a empresa impunha impessoalmente através de seus quadros de funcionários. E neste exercício esse setor popular começou a organizar-se e a regulamentar as suas ações e as suas reações na defesa de seus interesses.
Não era permitida aos membros do nascente proletariado industrial essa viva despreocupação do vendedor de rua ou do condutor do bonde que sempre encontravam uma pausa para a conversa amável e desocupada. Em compensação, adquiriam aos poucos os modos de uma classe combativa, inconformada e capaz de expressar a sua rebeldia. Pouco a pouco ia surgindo nas cidades um setor popular que abandonava o velho sistema patriarcal e que não tinha com os seus empregadores a relação ambígua do senhor com o seu criado ou com aquele que servia a mesa em um restaurante. Tal como as fábricas, as grandes cidades despersonalizavam as relações sociais e provocavam tensões antes desconhecidas.
A despersonalização das relações sociais contribuiu para modificar o perfil dos setores marginalizados. Aumentaram em número, mas, sobretudo, trocaram de modalidade. Cresceu o número de mendigos, mas foi muito difícil que uma dama caridosa continuasse tendo os “seus” pobres: diminuiu o número dos conformados e talvez filosóficos e aumentou o dos agressivos. Também mudou o caráter da delinqüência, tornando-se mais sutil e organizada, até chegar, em seus níveis mais altos, a alcançar conivências internacionais. O jogo e a seguir o tráfico de drogas também alcançaram estas conivências; mas isto ocorreu sobretudo com o tráfico de mulheres brancas, o que proporcionou aos prostíbulos das ricas cidades que se transformavam não só a hábil direção das encarregadas européias como também as louras pupilas que seduziam os endinheirados fregueses. No crescente anonimato das grandes cidades, a vida desregrada adquiria um ar mais áspero e cruel, da mesma forma que se ia tornando áspera e cruel a nova miséria urbana.
Aqueles que se apinhavam nas cidades esperando o salário diário ou a esmola que lhes permitisse viver sem ele, os que só ganhavam salários insuficientes para sobreviver constituíam, na verdade, um setor não menos marginal que o da vida desregrada. Até que conseguissem ultrapassar certos níveis que os pusessem no caminho da possível ascensão, seus membros não participavam realmente da vida de uma sociedade que amava o luxo e media em dinheiro o valor de grupos e pessoas. Abaixo desses níveis, havia em Buenos Aires o “vagabundo”, que fazia sua morada nos canos que se empilhavam nas ruas, esperando a instalação das obras sanitárias, ou em Santiago do Chile o “roto”, expressão típica da pobreza urbana. O romancista Joaquín Edwards Bello descreveu-o em seu próprio ambiente: os bairros miseráveis, como o que se formava nos arredores da estação Alameda. Ali, se amontoavam em casas de cômodos que, como as de Tepito no México, como os becos limenhos, os cortiços cariocas ou os de Buenos Aires, afundavam em condições inumanas de vida aqueles que nelas se refugiavam. Grave risco, ali conviviam os que lutavam por ascender com os que haviam aceito a marginalidade e se haviam desviado para a prostituição ou para o crime. E esse contato impedia as possibilidades de escalar-se uma posição mínima a partir da qual se poderia almejar esse sonhado paraíso da classe média.
O fenômeno social mais surpreendente e significativo das cidades que se transformavam ao calor das mudanças econômicas foi o crescimento e certa transformação das classes médias. Por certo, não faltavam antes. Os que as formavam eram aqueles que exerciam o comércio ou uma profissão liberal, os burocratas, os militares, os clérigos, os servidores públicos. Porém, em todos esses segmentos houve uma expansão que criou novas possibilidades e expectativas. A cidade era, basicamente, um centro intermediário, e as necessidades dessa função multiplicavam as da própria produção. Mais burocracia, mais serviços, mais funcionários, mais militares, mais policiais tornavam-se cada vez mais necessários. Os que pertenciam à velha classe média e eram originários da cidade tinham maiores possibilidades de alcançar tais posições, mas aqueles que chegaram a ela e faziam a sua carreira desde os primeiros degraus, costumavam subi-los lentamente à força de tenacidade e de humilhações, demonstrando eficiência e constituindo uma poupança que lhes permitisse mostrar essa modesta dignidade que a classe média exigia. E, de hábito, só depois podiam fazer fortuna, ou incorporar-se à clientela política de uma pessoa influente, ou talvez somar-se à corrente de um grupo de poder.
A passagem das classes populares para as classes médias foi freqüente e, às vezes, rápida. O comércio, as profissões que exerciam os filhos daqueles que haviam dado o primeiro passo, a efetivação em empresas que premiavam a lealdade e a eficiência de seus servidores e muitas vezes a política foram caminhos que permitiram esse acesso. No outro extremo, as possibilidades de percorrer as diferentes camadas da classe média até chegar às mais altas aumentaram com o desenvolvimento dos negócios e com a ampliação do panorama que se abria para as sociedades em crescimento. Talvez se necessitasse alguma fortuna, longamente acumulada e investida depois na minuciosa operação que conduzia à ascensão social; mas também podia ser eficaz a proteção de um poderoso ou uma aliança matrimonial vantajosa. A mobilidade foi a regra dourada destas novas classes médias cuja magnitude e perfil singular caracterizaram a transformação das cidades. E não só porque refletiram a peculiaridade do processo social que nelas se operava como também porque seus membros permitiram a renovação de suas formas de vida: eram os que compravam os jornais, os que discutiam suas opiniões no café, os que compravam nas novas lojas que ofereciam a moda de Paris, os que enchiam as calçadas da bolsa e dos bancos, os que atendiam nos comércios e nos escritórios. E foram os que começaram a pensar que também tinham direito a participar do poder e formaram as fileiras de novos partidos políticos que desafiavam o poder das velhas oligarquias em busca de uma ampla democracia.
Em poucos anos, vinte ou trinta cidades latino-americanas, em diferentes graus, viram as suas sociedades se transformarem e serem relegadas as formas de vida e de mentalidade das classes tradicionais. Em seu lugar, as novas sociedades elaboraram lentamente os rudimentos de outra cultura urbana, que começaria a desenvolver-se em cidades que logo modificaram a sua fisionomia.
3. O exemplo de Haussmann
Uma sociedade que se renovava parecia exigir uma transformação de seu hábitat. E, por certo, numerosas cidades latino-americanas começaram a renovar a sua aparência a partir das últimas décadas do século XIX. O crescimento da população levou à ocupação de novas áreas para o estabelecimento de moradias e o desenvolvimento mercantil e industrial reclamava amplos espaços fora do centro urbano. Ao longo dos caminhos de acesso, ao lado de núcleos já existentes ou nas proximidades de certos pontos de atração – uma estação de trens, uma área fabril – iam surgindo novos bairros. Era um crescimento natural, consolidado em pouco tempo com a prestação de determinados serviços que melhoravam a condição dos que avançavam na expansão urbana: a água e os transportes, as obras de drenagem, a iluminação pública.
Mas junto a essa mudança espontânea criada pelo crescimento, algumas cidades latino-americanas conheceram uma transformação deliberada que teria longa influência. Enquanto as cidades se estendiam povoando áreas periféricas, o velho núcleo urbano conservava o seu aspecto tradicional, muitas vezes deteriorado pelo tempo e pela presença de grupos sociais modestos que ocupavam os velhos casarões. As novas burguesias envergonhavam-se da humildade do ar colonial que o centro da cidade conservava e, onde puderam, trataram de transformá-lo, sem hesitar, em alguns casos, em demolir algumas áreas de pura tradição. A demolição do velho para dar lugar a um novo traçado urbano e a uma nova arquitetura foi um extremo ao qual não se recorreu naquela época a não ser em poucas cidades, porém transformou-se em uma aspiração que parecia resumir o supremo triunfo do progresso. Onde não se pôde ou não se quis chegar a tanto, procurou-se organizar o desenvolvimento das áreas adjacentes ao centro tradicional e os novos bairros de acordo com os modernos princípios urbanísticos. O modelo da transformação de Paris, concebida por Napoleão III e levada a cabo pelo barão de Haussmann, exercia uma decisiva influência sobre as novas burguesias.
O ousado princípio da modernização das cidades foi a ruptura do centro urbano antigo, tanto para alargar as suas ruas quanto para estabelecer fáceis comunicações com as novas áreas edificadas. Porém, dentro desse esquema se introduzia uma vocação barroca – um barroco burguês – que se manifestava na preferência pelos edifícios públicos monumentais com uma ampla perspectiva, pelos monumentos erguidos em lugares destacados e também por uma edificação privada suntuosa e com ar senhorial. Extensos parques, grandes avenidas, serviços públicos modernos e eficazes deviam “impressionar o viajante”, segundo uma reiterada frase do começo do século XX.
Os viajantes impressionaram-se, mas todos reconheceram a visível influência que tinha a concepção de Haussmann na remodelação das cidades. O barão do Rio Branco chamaria ao que foi prefeito do Rio de Janeiro a partir de 1902, Francisco Pereira Passos, “o Haussmann brasileiro”; e quando em Montevidéu o Conselho Geral de Obras Públicas sugeriu que se adotasse o plano de remodelação urbana apresentado pelo arquiteto Norberto Maillart em 1887, baseou sua opinião na concepção de Haussmann. A partir de 1880, tiveram essa mesma fonte de inspiração: o primeiro intendente de Buenos Aires, Marcelo Torcuato de Alvear, e seus sucessores, assim como os prefeitos de São Paulo, Antônio Prado e Raimundo Duprat, que trabalharam na urbanização da cidade a partir de 1898. Outros trabalharam em outras cidades, mas o alcance de sua obra foi mais reduzido porque não teve como objetivo modificar o centro urbano antigo, e sim organizar o espaço que começava a ser ocupado.
Buenos Aires optou pelas demolições. Federalizada em 1880, Torcuato de Alvear foi designado prefeito pouco depois e pegou na picareta. Foram abaixo a Recova Vieja que cortava em dois a atual Plaza de Mayo e também boa parte do antigo Cabildo colonial para abrir uma avenida que comunicaria aquela praça, onde havia estado o Forte e agora se levantava a Casa Rosada, com a outra praça onde posteriormente foi erguido o monumental Palacio del Congreso. A avenida de Mayo foi aberta, efetivamente, em pouco tempo e logo ficou totalmente cercada de edifícios modernos, de estilos variados entre os quais não faltavam ousados exemplos de art nouveau. A partir desse momento transformou-se no coração de Buenos Aires. Poucos anos depois, sob a avenida de Mayo e a rua Rivadavia, começou a circular o primeiro trem subterrâneo da América Latina. Não muito depois seriam projetadas duas grandes diagonais que deviam sair da Plaza de Mayo e uma extensa avenida de norte a sul, hoje chamada 9 de Julio. Centenas de casas foram derrubadas para a execução desses projetos.
No Rio de Janeiro, foi necessário demolir setecentas casas para abrir a avenida Central, depois chamada de Rio Branco, da praça Mauá até o Obelisco. Todo o centro urbano velho mudou. Dois morros também foram derrubados para deixar espaço para amplas esplanadas. A partir de então, o largo da Carioca transformou-se no ponto nevrálgico da cidade, enquanto se cobria de novas construções a avenida recém-aberta com vistas para o Pão de Açúcar. Porém, outras obras mais contribuíram para a mudança: a expansão da avenida Treze de Maio, a abertura das avenidas Beira-Mar e Rodrigues Alves, Francisco Bicalho, Mem de Sá, Salvador de Sá. O traçado da cidade, que a rua do Ouvidor ainda relembra, mudou substancialmente no centro, como já mudava nas novas urbanizações periféricas.
Roberto Capri, em 1912, escrevia, referindo-se à capital do estado de São Paulo: “essa cidade é quase européia, toda coberta de construções magníficas de formoso estilo italiano, toda cortada por ruas e avenidas, com fábricas por todos os lados, com edifícios públicos suntuosos, com uma vida ampla e intensa”. O centro antigo, conhecido como “o triângulo”, continuava intacto, mas através dele ia-se para os bairros pelas avenidas São João, Rangel Pestana ou Tiradentes. E tanto a avenida Higienópolis como a Paulista começavam a ver-se cercadas de luxuosa edificação ao mesmo tempo em que se transformavam em novos eixos urbanos. Mais moderado, o desenvolvimento de Montevidéu manifestou-se na normalização das vias de saída da cidade, no traçado dos primeiros segmentos da Rambla, do porto até Pocitos, e sobretudo no traçado, disposto finalmente da avenida Agraciada a partir da avenida 18 de Julio até o Palacio Legislativo, que dominaria uma ampla perspectiva.
De estilo clássico ou de estilo francês, os inúmeros edifícios de que, ao cabo de pouco tempo, pôde orgulhar-se qualquer uma das cidades onde se abriam novas avenidas, evidenciavam certa ostentação ou certo gosto pela monumentalidade. Os edifícios legislativos de Montevidéu e de Buenos Aires, o Palacio de Bellas Artes do México, o Teatro Colón de Buenos Aires ou o Municipal do Rio de Janeiro revelaram a riqueza e o gosto peculiar das burguesias das cidades que se transformaram. Amaram os jardins de traçado francês e as amplas avenidas. Mesmo em cidades de pouca mudança, apareceram passeios e avenidas: o passeio de Colón e, a seguir, a avenida Arequipa em Lima, a avenida Bolívar em Caracas, a avenida Colón em Bogotá. O passeio de coches era quase uma cerimônia social. Bem antes era realizado nos jardins bonaerenses de Palermo, nas alamedas de Lima e de Santiago, no passeio da Reforma no México, e foi sendo praticado pouco a pouco em outros lugares: no Prado de Montevidéu, no bosque de Chapultepec no México, no passeio de Colón em Lima. Cresceu o número de praças e pracinhas, cuidadas com esmero as dos bairros ricos, e nas mais importantes se erigiam grandiosos monumentos aos heróis, como as estátuas eqüestres de San Martin e Bolívar em várias cidades, tais como a de Alvear que Buenos Aires encomendou a Bourdelle, a de Artigas em Montevidéu, ou os que adotaram outra fisionomia, como o de Tiradentes no Rio, o de Sarmiento em Buenos Aires, o de Juárez no México ou o de Santander em Bogotá.
O destino do centro urbano antigo foi outro. Continuou sendo o centro administrativo e comercial em quase todas as cidades, mas só em algumas – Rio de Janeiro e Buenos Aires, em especial – modernizou-se sua arquitetura e manteve-se o seu prestígio. Na maioria dos casos, não resistiu por causa dos deslocamentos ecológicos. As famílias de classe alta – as que costumavam ser chamadas “as da praça” – começaram a emigrar de maneira inversa aos segmentos populares que ocupavam as grandes residências transformando-as em cortiços ou becos. Novos bairros afastados do centro acolheram os que abandonavam as vizinhanças da praça principal. A alameda e depois os bairros que surgiram na avenida Providencia atraíram em Santiago do Chile as classes poderosas, como ocorreu no Prado, em Montevidéu, e em seguida em Ramírez e Pocitos. Assim foi definida a categoria social e arquitetônica do bairro Norte de Buenos Aires, do Catete e de Laranjeiras no Rio de Janeiro e dos que surgiram sobre as avenidas marítimas, as colônias Roma e Juárez no México e posteriormente as Lomas de Chapultepec, Chapinero em Bogotá, Sabana Grande em Caracas – com tendência a estender-se para o Country Club e para Paraiso Miraflores em Lima, Higienópolis em São Paulo. Em alguns casos, eram velhas aldeias ou cidades vizinhas que foram incorporadas desse modo à cidade. A ferrovia ou as avenidas e as estradas encurtaram as distâncias, porém mantiveram a sua característica de núcleo, comumente com os seus próprios comércios e serviços. Uma arquitetura de qualidade, e muitas vezes de bom gosto, proporcionou um ar elegante a esses recantos residenciais, em cujos arredores podia estar localizado um hipódromo ou um elegante clube de tênis ou de golfe.
As vezes esses bairros surgiram do loteamento de alguma fazenda, talvez povoada de velhos arvoredos que se procurava conservar. Porém, por um movimento análogo começaram também a ser divididos lotes para compradores de condição econômica média ou humilde e surgiram em muitas cidades inúmeros bairros, habitados por pessoas que haviam comprado o seu lote à prestação e construíam depois com esforço um quarto e uma cozinha para começar a vive no que já era a sua “casa própria”. As divisões ou loteamentos adquiriram às vezes caracteres de festa popular, organizada por criativos leiloeiros que eram ao mesmo tempo comissionados, empresários e urbanistas. Exploravam sabiamente o anseio das classes populares de abandonar seus tugúrios no centro da cidade e de possuir a sua própria casa, ainda que modesta. E o leiloeiro – alguns, como Piria em Montevidéu, se tornaram famosos – convocava os interessados que haviam conseguido economizar algum dinheiro, transportava-os ao local do leilão acompanhados por uma charanga que tocava estrondosamente e, enquanto as crianças brincavam no campo, ele transformava o plano do loteamento em realidade graças à sua incontida lábia, mostrando onde estava a escola, a igreja e a delegacia e apontando as vantagens do lugar e de cada lote em particular. Foi uma aventura singular a expansão das cidades, que transformavam em terra urbana o que até então havia sido terra rural contígua à cidade. Os preços não tinham padrão fixo, e a especulação tomou vítimas os aspirantes a proprietários de lotes, porque os que não haviam comprado quando não havia ninguém se entusiasmavam quando viam erguerem-se as primeiras casas ou surgir a primeira mercearia. Era o momento em que aquele que havia comprado com o propósito especulativo fazia negócios da China. E nesse jogo, a terra encarecia nos novos loteamentos, assim como, de resto, nas áreas cêntricas e nos novos bairros residenciais.
Nas zonas populares a arquitetura foi primária. A compra do terreno e a construção pressupunham um custo que sempre ultrapassava as possibilidades imediatas daquele que se aventurava, sem dúvida confiando no futuro e em sua capacidade de trabalho e de economia. Dependia do futuro, e o importante era abandonar a casinha pobre para deixar de pagar aluguel, de modo que a sua preocupação urgente foi levantar as primeiras quatro paredes e fazer o teto. Surgiram bairros sem estilo, exceto aquele que se valia do tradicional ofício do pedreiro ou mestre-de-obras: uma proporção, a disposição de portas e janelas, talvez uma cornija podiam revelar a mão artesanal e a cultura que estava por detrás daquela mão. Mas era uma questão acidental. Diante da urgência, o futuro proprietário podia recorrer às suas próprias mãos, e talvez à tradição do rancho rural ou da suburbana moradia nativa. E então o conjunto mostrava a sua hibridez e a sua simplicidade.
A mão de um mestre-de-obras e talvez certas pretensões de seus proprietários podiam ser notadas de vez em quando em algumas residências de classe média, nas quais a fachada costumava revelar uma preocupação estética, corroborada depois pela cuidadosa escolha do papel de parede, dos bibelôs ou dos cortinados. A medida que subia o nível econômico e social, tudo era um pouco melhor, ou talvez, um pouco mais convencional e adaptado ao que ofereciam os negócios de reconhecida categoria.
Da rua não havia dúvida possível quanto ao diagnóstico social, e evidentemente o observador podia fazê-lo utilizando a sua própria experiência. Em compensação, a preocupação estilística era fundamental nos bairros de classe média alta ou de classe alta. Apenas residências de categoria podiam ser erguidas neles, e a categoria presumia consultar um arquiteto – estrangeiro, se fosse possível –, discutir o projeto e, antes dele, o estilo, mas sabendo que se acabaria preferindo o estilo francês, a menos que o proprietário tivesse sucumbido à influência esteticista de um revival: o gótico, o mourisco ou talvez outro mais exótico ainda. O chamado estilo francês, mais ou menos puro e sempre de rigorosa imitação, serviu para as boas casas da alta burguesia e, sobretudo, para as luxuosas residências – o petit-hotel ou o “palácio” – daqueles que haviam chegado aos mais altos níveis econômicos e aspiravam à posição quase sublime que a ostentação parece oferecer. Ortodoxo e tradicional, o estilo francês parecia consagrar a importância social de quem, cuidadoso com as formas, decidia adotá-lo. E tais burguesias enriquecidas muito rapidamente estavam ansiosas por essa consagração como que para sentir-se firmes no mais alto estrato de uma sociedade.
Houve, contudo, aqueles que preferiram outros estilos, talvez por falta de adequada assessoria acerca do que lhes convinha. E houve alguns que aderiram ao entusiasmo que o art nouveau despertava, cujos modelos, franceses ou catalães, pareceram expressar não apenas a novidade do momento, como também certa vocação por um luxo rebuscado que se manifestava nas classes ricas. Pináculos de formas sinuosas e estátuas imponentes combinavam-se nas fachadas com as ousadas cornijas, em um alarde de irrealidade e como um desafio às regras clássicas da arquitetura e do gosto tradicional. Bem trabalhados, algumas cabeças pequenas ou alguns florões provocavam o êxtase dos entendidos em arquitetura, mas era a ostentação da decoração supérflua o que provocava o interesse e a admiração dos demais. E, em contraste, os Palácios das Exposições ou as estações ferroviárias, que imitavam o modelo da Victoria Station londrina, exibiam as suas estruturas de ferro como se fossem monumentos ao progresso e à indústria.
Nesse ínterim, muitas cidades melhoraram substancialmente a sua infra-estrutura. Remodelaram-se muitos portos, construindo-se ou ampliando-se as obras de contenção, os cais, os armazéns, os guindastes e as vias férreas. E em relação às epidemias que eram transmitidas por via marítima, criaram-se os serviços sanitários: foi Osvaldo Cruz quem empreendeu a mais extraordinária batalha contra a febre amarela no Rio de Janeiro. Para completar a obra de saneamento das grandes cidades, não era preciso apenas cuidado médico-preventivo. Foram feitas obras de esgoto e de abastecimento de água corrente. Rios e riachos começaram a ser canalizados, e sobre alguns deles correriam importantes avenidas, como a Jiménez de Quesada, em Bogotá, ou a Juan B. Justo, em Buenos Aires.
A iluminação pública a gás deslumbrou àqueles que estavam acostumados com o óleo, e a elétrica extasiou os espectadores no dia em que foram acesos os primeiros refletores. Os bondes puxados a cavalo foram substituídos pelos elétricos e mais tarde teve início a circulação de ônibus. Em alguma cidade apareceu um aeródromo. E quando o uso do telégrafo e do telefone já havia sido difundido, começaram a ser instaladas as antenas transmissoras e receptoras de radiotelefonia. Mais cedo ou mais tarde, do mesmo modo que na Europa, porque a expansão das inovações técnicas foi quase instantânea na América Latina. A sociedade que se renovava acolhia de modo rápido todas as conquistas do progresso e apressava-se em modernizar as suas cidades, provendo-as de todos os avanços que, desde a época de Haussmann, imaginavam os urbanistas para resolver os problemas que a crescente concentração urbana criava.
Mas, quantas cidades seguiram o exemplo de Haussmann? O desenvolvimento espetacular ocorreu apenas em algumas poucas capitais. Em outras, e em algumas cidades importantes, foram executadas partes de um teórico plano de conjunto que, pelo visto, não parecia ter urgência. E, em grande parte, a estrutura urbana colonial manteve-se quase sem mudanças. O fato é de decisiva importância, porque o quadro do desenvolvimento urbano evidencia as características do desenvolvimento socioeconômico geral. E os excelentes testemunhos que essas poucas cidades de grande esplendor oferecem contrastam com os sinais de um desenvolvimento escasso e lento em todas as outras, um pouco à margem da rede econômica que alimentava o brilho das primeiras.
Sobre este tema, um escritor francês que viveu longos anos na Argentina, H. D. Sisson, fez curiosas reflexões e publicou, em 1910, um livro sobre esse país. Depois de descrever longamente a cidade de Buenos Aires e de destacar a sua rápida modernização, Sisson trata no capítulo seguinte das “províncias”, iniciando sua análise com estas palavras: “Falar das províncias depois da capital é quase regredir da nação à colônia”. E sem dúvida podia ser feita uma afirmação semelhante para os demais países latino-americanos cujas capitais haviam dado um salto espetacular. Sisson desenvolvia o seu pensamento, nascido sem dúvida de uma observação profunda:
Porém, eis que desde 1880 Buenos Aires avança a passos de gigante nos progressos materiais e nesta cultura social aparente que traz, com a riqueza, a necessidade de imitar os países mais refinados e mais civilizados. A capital cosmopolita, arrastada pelo fluxo das comodidades e dos prazeres, e sob a influência dessa sugestão que o exibicionismo social cria, abandonou muito rapidamente os antigos costumes de austeridade, de autoridade, de solidez serena, que resistem às seduções por meio das tradições. As fortunas imensas formadas em alguns anos permitiram aos portenhos as viagens e as temporadas no estrangeiro, e os fizeram perder a ligação com sua terra e os saudáveis costumes das antigas famílias.
As províncias, cujas capitais estão afastadas de Buenos Aires entre mil e dois mil quilômetros, continuaram sendo o que eram, pelo menos até que as facilidades das comunicações as tenham aproximado da capital, o que só ocorre aos poucos, levando-se em conta as distâncias quilométricas que as separam e que até impedem a exploração da riqueza que contêm. Eis aqui o que explica satisfatoriamente ter aumentado com rapidez o distanciamento entre a capital e as províncias, ainda que só venha a desaparecer muito lentamente.
As observações de Sisson valem para toda a América Latina. A expansão econômica provocada a partir do exterior refletiu-se nos centros que mantinham contato com ele e acentuou a diferença que já existia entre eles e o restante das cidades. Existiram dois mundos, um moderno e outro colonial, como se estivessem separados, mas que coexistiam. E ao mundo ainda colonial foram chegando os últimos ecos do exemplo de Haussmann, melancolicamente traduzido em uma imensa praça desproporcional ou em um bulevar com pracinhas que ligava o centro da cidade até a nova estação de trens. A alguns lugares chegaram os últimos ecos do exemplo de Haussmann quando a expansão econômica já havia passado ou ainda não havia chegado. Porém, ficou pairando no ambiente como uma vaga aspiração que proporcionaria a cada cidade provinciana algo que lhe permitisse considerar-se metrópole. E quando outros recursos urbanísticos e outros modelos de planejamento apareceram, o exemplo de Haussmann ainda continuou dominando todas as concepções porque era, afinal de contas, o exemplo insubstituível de Paris.
4. A cotidiana imitação da Europa
Quando Pierre de D’Espagnat esteve na Colômbia em 1897, Bogotá ainda era uma cidade muito colonial, e o viajante francês julgou corresponder à amável acolhida que as boas famílias bogotanas lhe haviam oferecido dando-lhes este conselho que registrou em seus Souvenirs de la Nouvelle Grenade.
O único temor que eu exporia seria o de ver as bogotanas cedendo a um modernismo incongruente de vestidos, em um quadro como o de Bogotá, tão particular, com uma seriedade sentimental e católica tão especial. Sejam quais forem os decretos da tirania universal da moda de Paris, o vestido que cai melhor na sul-americana, o que harmoniza melhor com esse meio de paixão e de fé, é e será sempre a mantilha, que lhe imprime uma marca própria e feliz.
Quase todos os que observaram com atenção essa conjuntura latino-americana repararam no risco e na gravidade do passo que se dava de uma forma de vida enraizada e tradicional para outra que consistia, afinal de contas, em um conjunto de receitas e fórmulas exteriores para modificar a aparência dos usos e dos costumes. Isso, porém, não ocorreu em todos os lugares. Muitas cidades mantiveram o seu ar colonial, apenas modificado pela adoção gradual de novas técnicas. Colonial, a rigor, queria dizer provinciano, e definia, sobretudo, um estilo de vida que resistia a adotar daquelas receitas e fórmulas exteriores que tinham a ver, principalmente, com as formas de vida e de convivência, não pela virtude de determinada sociedade urbana, mas, sim, por não ter sofrido os estímulos da modernização nem haver experimentado os fenômenos que transformaram as cidades, como o acelerado crescimento demográfico ou a formação de novas burguesias. Alfredo Pareja Diez-Canseco fixava o início do ciclo romântico que intitulou Los nuevos años no momento em que observa aquelas mudanças no Equador.
São, na verdade, várias histórias, uma diferente em cada livro. Começam em 1925, quando outras formas da convivência humana encontram apoio em nosso país. Começou então a agonia do patriarca; portanto, não há dúvida, um novo país quer substituir o velho, se organiza com pressa para alcançar o que já estava feito em outros lugares, e seu alento aprende a respirar na grande atmosfera do mundo. E a marca dos nossos novos anos.
As velhas classes patrícias continuavam predominando nas cidades alheias à transformação e, com elas, formas patrícias de convivência, cujas normas amparavam também as outras classes. Até que alguma coisa acontecesse – algo cujo centro dinâmico costumava estar longe –, a cidade provinciana ou colonial persistia em sua placidez, vista assim apenas pelo snob da capital, que a condenava como inimiga do progresso.
O mais significativo da transformação das cidades foi, como sempre, a transformação de sua sociedade. Os velhos estamentos sociais adquiriram um novo perfil e, além disso, apareceram novas classes sociais. Tão característico como o aparecimento de amplas classes médias foi o de novas burguesias que se instalaram com rapidez na crista da sociedade. E foram elas a introduzirem um novo estilo de vida que quis ser cosmopolita por oposição às formas provincianas predominantes até então.
Dois modelos europeus tiveram particular ressonância na América Latina: o da Inglaterra vitoriana e o da França de Napoleão III. E a exemplo deles – e sob a sua despótica influência as novas burguesias latino-americanas cresceram e, traduzindo-os, elaboraram as suas formas de vida, com algo próprio e algo estranho, como sempre. Foi nas capitais e nos portos que as novas burguesias encontraram o seu próprio cenário, ali onde se recebia primeiro o correio de Paris ou de Londres, onde viviam os estrangeiros que levavam consigo o prestígio europeu, onde estavam instaladas as sucursais dos bancos e as casas de comércio estrangeiras. E ali apareceu a obsessão – e a ilusão – de criar um estilo de vida cosmopolita, ou, mais exatamente, europeu.
A preocupação fundamental das novas burguesias latino-americanas – aliás, como as de grande parte do mundo – foi testar e consagrar finalmente um estilo de vida que expressasse de modo inequívoco sua condição de classe superior na pirâmide social através de claros sinais reveladores de sua riqueza. Não só mediante a atitude primária de exibir a posse de bens, mas, sobretudo, através de um comportamento sofisticadamente ostensivo. Por essa via buscava-se dignificar as pessoas e as famílias e obter o reconhecimento de uma superioridade que, até então, era exclusiva do antigo patriciado. Não eram, portanto, só os objetos que preocupavam as novas burguesias, mas, sim, sobretudo, o uso que podia ser feito deles dentro deste indefinido cenário barroco burguês.
Foi este gênero de vida – barroco, burguês e rastaqüera, ou talvez apenas rastaqüera, que talvez defina o barroco burguês – que alimentou a extensa criação do romance naturalista latino-americano, o do chileno Luis Orrego Luco, o do mexicano Federico Gamboa, o da peruana Mercedes Cabello de Carbonera, o do venezuelano José Rafael Pocaterra, o do argentino Julián Martel, o do brasileiro Júlio Ribeiro, entre outros tantos. E foi este gênero de vida que, idealizado, serviu de marco para a poesia do modernismo.1 Os romancistas, escolheram o traço que consideravam mais significativo para surpreender o mecanismo desta nova burguesia que, com o correr dos meses, nesses anos loucos de especulação que vão de 1880 à Primeira Guerra Mundial, adquiriu ares aristocráticos e chegou a convencer-se de que possuía “linhagem”.
Certo dia, apareceram em algumas cidades latino-americanas os clubes de estilo inglês. Clubes com salões de estar, mobiliados com cômodas poltronas, salas de leitura com poucos livros mas, em compensação, muitos jornais e revistas – a Revue des Deux Mondes, em especial –, luxuosos salões de festas, restaurante aberto até altas horas da noite e, sobretudo, uma equipe de garçons experientes e de criados fiéis que conheciam cada clubman pelo seu nome, por suas fraquezas e suas preferências. Assim constituíram-se esses redutos das novas burguesias, aos quais, de resto, os membros do velho patriciado não costumavam estar ausentes.
O clube cumpria diversas funções. Ali se reuniam os freqüentadores da tertúlia para refugiar-se em “seu círculo”, onde todos se conheciam; ali comentavam-se as novidades econômicas e políticas do dia, além das intrigas sociais; ali estabeleciam-se contatos e iniciavam-se conversações informais que não seriam adequadas nos gabinetes oficiais ou nas empresas financeiras; ali comia-se e bebia-se entre amigos confiáveis e encontrava acolhida o libertino que tresnoitava e o jogador que se entediava; ali celebravam-se de vez em quando as festas de mais alto nível nas quais se reunia a alta sociedade da cidade.
Centro de um grupo relativamente seleto, o clube refletia o interesse de mantê-lo o mais fechado possível. Só a fortuna rompia o cerco. Era, neste sentido, um expoente claro da tendência das novas burguesias para constituir-se o quanto antes em estreitas oligarquias. O importante não era, claro está, conseguir que o número de sócios do clube não crescesse: o importante era que não crescesse muito o número dos que manipulavam a nova riqueza. E o exclusivismo segregacionista do grupo dominante procurava uma expressão pública, um lugar onde se pudesse manifestar que seus membros, e não outras pessoas, eram os que estavam ali instalados, no lugar a partir de onde a vida social era dirigida e, de certo modo, a vida econômica e política.
A idéia de formar um “círculo”, um grupo fechado no mais alto nível de uma sociedade aberta, caracterizou as novas burguesias, talvez em grau mais obsessivo porque não eram, originária e tradicionalmente, uma classe constituída. Sem dúvida, os seus membros recorreram ao exemplo do patriciado como um modelo de imitação, porém acentuaram o exclusivismo não só por certa secreta sordidez que brotava de seus projetos econômicos, mas também pela insegurança pessoal de muitos deles, recém-incorporados, com afinco, aos altos segmentos da sociedade. Eram as novas burguesias, de fato, grupos constituídos abertamente, mas, assim como antes o patriciado havia feito, procuraram fechar-se, e por tratar-se de um grupo basicamente financeiro e mercantil, souberam que convinha fazê-lo o quanto antes.
A mesma função dos clubes – o Jockey, o Clube do Progresso, o Nacional, o da União – era desempenhada por outros centros convencionais de reunião. Um determinado restaurante era, em cada momento, o lugar convencionado onde todos os membros do “círculo” sabiam que podiam encontrar-se. Ali imitavam-se os modelos parisienses, tanto na decoração do ambiente quanto na cuidada cozinha e na etiqueta em voga. Bebia-se champanhe, falava-se de negócios, de política, de teatro ou de mulheres, mas; sobretudo, estava-se no mentideiro de onde se podia ver e ser visto.
Para ver e ser visto, o teatro era um lugar indispensável, em especial onde havia ópera. Os ilustres não podiam faltar. Os “assinantes” dos camarotes ou da platéia encontravam-se nos intervalos, marcavam sua presença e conferiam a dos demais, e exercitavam ali também esse contato fluido graças ao qual estavam permanentemente a par das menores vibrações do jogo da política ou dos negócios. Ali se exibia uma peça de roupa fina trazida da Europa ou uma jóia exótica, e ninguém deixava de observar isso, para aquilatar a estima que a pessoa merecia se aquilo que exibia assim o justificava. Via-se com mais freqüência a boa sociedade nos passeios de coches. Cruzavam-se os veículos, e em um instante descobria-se quem ia neles e que toilette usavam as mulheres. Alguns cavaleiros participavam do passeio montando belos cavalos e costumavam colocar-se ao lado do veículo de suas amizades para ter com cada uma delas um instante de conversa. O mesmo ocorria em casamentos e batizados, nas saídas das missas elegantes, ou nos balneários – que começavam a entrar na moda, todos imitação mais ou menos suntuosa de Troúville –, ou nas reuniões do hipódromo.
Neste constante confronto, uma festa oferecida por uma família de prestígio representava um momento culminante. Eram festas luxuosas, cuidadosamente organizadas, com verdadeiros alardes de bom gosto algumas vezes, mas sempre de riqueza ostensiva. O argentino Julián Martel, em La Bolsa, e o venezuelano José Rafael Pocaterra, em La casa de los Abila, ofereceram duas versões homólogas dessa espécie de cerimônia ritual que reunia a nata da sociedade de Buenos Aires e Caracas: a mesma ilustre sociedade que não conseguia esconder seu arrivismo, a mesma inocultável preocupação pela riqueza imediata ou pelo êxito fácil, a mesma inconsistência das personalidades, devoradas pela trivialidade. Um banqueiro, o núncio apostólico, o ministro e talvez o presidente da república davam à reunião tal destaque que quem oferecia a festa parecia nesse dia um vitorioso. E, no entanto, todos haviam ido para fazer o seu próprio negócio: para ver e ser visto, para ratificar o seu papel de membro importante do grupo dirigente, a fim de contribuir para que toda a sociedade se visse obrigada a reconhecer que eram eles, e somente eles, os que formavam a nova classe dirigente.
Era evidente que, na sua maneira de viver, as novas burguesias revelavam uma vigorosa devoção pelos modelos europeus, e era inevitável que desempenhassem socialmente o mesmo papel intermediário que lhes correspondia na vida econômica. Isso podia ser observado na preocupação por substituir o velho casarão patrício, praticamente colonial, por uma residência moderna, de estilo francês, de preferência, decorada e mobiliada de acordo com o estilo e a categoria, sem que faltasse o alarde esteticista que se manifestava pela presença de quadros, esculturas e bibelôs conforme o gosto dos snobs do momento. Um respeito quase litúrgico pela moda européia em matéria de vestimenta acompanhava a penetração dos costumes estrangeiros, sempre em colisão com os tradicionais que cada vez pareciam mais provincianos e decadentes. E quando começou a difundir-se a prática dos esportes, a esgrima, o tênis e o hóquei atraíram os jovens ilustres, para os quais não parecia suficiente a emoção do carro de briosa parelha. Pouco depois tiveram o automóvel e os esportes de equipe praticados em clubes quase privados.
Voltadas para o exterior e preocupadas em constituir-se e serem reconhecidas como classes dirigentes, as novas burguesias foram, formalmente, grupos de normas severas. Estimularam, portanto, nos mais jovens ou nos mais céticos de seus membros uma tendência à evasão, que não se considerou menos elegante já que também tinha tradição parisiense. O café-concerto, o cabaré ou, apenas, o prostíbulo deram liberdade aos jovens desregrados. Ali entraram em contato com prostitutas, jogadores trapaceiros, tratadores de cavalos de corrida, às vezes com traficantes de escravas brancas ou com delinqüentes. O pequeno universo da tourada, do turfe e do jogo colaborava para o estabelecimento dessas relações perigosas, cuja freqüência concedia ao burguês libertino o título de estróina, o que nunca chegou a ter um significado de todo pejorativo, ao contrário, entranhava uma margem de elogio. O estróina violava as normas das novas burguesias, mas não as negava, e sempre havia a esperança – quase a certeza – de que abandonasse a dependência do vício, colocasse a cabeça no lugar e talvez se convertesse no mais cioso defensor não só das normas morais estabelecidas como também de suas formas exteriores mais convencionais.
Sem dúvida, o estilo de vida das novas burguesias começou a mudar depois da Primeira Guerra Mundial. A belle époque foi terminando também na América Latina e entre as muitas coisas que ficaram esquecidas estava a retórica dos novos-ricos. De repente, surgiu uma concepção desportiva da vida, à qual se renderam primeiro os jovens e depois todos os demais, pouco a pouco. A influência dos costumes norte-americanos, acentuada pelo cinema, contribuiu para destruir alguns esquemas tradicionais, e imediatamente o shimmy e o charleston substituíram a valsa.
Para alguns grupos das novas burguesias, o desenvolvimento de certo gosto estético, a preocupação pela pintura ou pela literatura pareceu o complemento necessário de uma modernização acabada que devia culminar em certas formas de refinamento pessoal. Houve, por certo, aqueles que possuíam espontaneamente esse gosto e procuraram satisfazê-lo de modo autêntico, mas predominava uma atitude snob que convidava a estar a par das “últimas novidades de Paris”, a começar pela obra do escritor mais em voga, a elogiar o que devia ser elogiado a fim de que se observasse que se estava integrado no renovado mundo da época do progresso. Foi mais um alarde de superioridade social.
Sem dúvida, formaram-se no seio destas novas burguesias grupos autênticos de intelectuais, de escritores, de artistas que refletiram a intensidade da sacudida que haviam sofrido as sociedades latino-americanas. Para alguns, o tema fundamental foi a política, mas houve aqueles que começaram a ampliar as suas inquietações, sob a inspiração da sociologia que predominava então na Inglaterra e na França. Muitos se preocuparam com os temas sociológicos, porque começaram a perceber os profundos conflitos que se escondiam debaixo dos avatares da política, manifestados não só nos enfrentamentos de classe ou de grupos, mas na contraposição de atitudes entre os diferentes segmentos de uma sociedade que sofria a ação opressora tanto do velho patriciado quanto das novas burguesias. Os sociólogos – o peruano Francisco García Calderón, o venezuelano César Zumeta, o colombiano Carlos A. Torres, o argentino José Ingenieros, entre muitos outros – foram as testemunhas e os analistas da mudança. Junto a eles, houve aqueles que trataram de filosofia, e às vezes os mesmos trataram do tema. Sentiram-se atraídos pela filosofia positivista, tanto em sua versão francesa desenvolvida em tomo do pensamento de Augusto Comte, quanto na anglo-saxônica, na qual tiveram especial significação John Stuart Mill, William James e Herbert Spencer. Foram, entre outros, o peruano Alejandro Deustúa, o cubano Enrique Varona, o mexicano Gabino Barreda, o argentino José Ingenieros. Era uma filosofia que continha, sem dúvida, profundos problemas teóricos e que tinha também importantes projeções práticas, sobretudo no campo da educação. Mas era, em especial, a justificativa doutrinária de uma sociedade “progressista”, voltada para o progresso material, orientada por uma filosofia do êxito: a sociedade que as novas burguesias presidiam.
Os grupos de poetas, escritores e artistas foram, às vezes, um pouco marginalizados, mas, a rigor, só na aparência. A boemia dos cafés, ateneus, redações e tertúlias desdenhava os valores consagrados e as idéias geralmente admitidas, mas os seus membros estavam dentro de algum dos vários rumos que despontavam no seio das novas burguesias. O naturalismo novelístico tratava de penetrar nos segredos desta nova sociedade devorada pela tentação da fortuna fácil e da ascensão social acelerada e, apesar de condenar o que acreditava ser nela desumano e cruel, compartilhava o que pudesse ser chamado de seus princípios sãos. O modernismo dos poetas – o mexicano Gutiérrez Nájera, o cubano Julián del Casal, o uruguaio Julio Herrera y Reissig, o argentino Leopoldo Lugones e, sobretudo, o nicaragüense Rubén Darío – reunia e expressava a sensibilidade dos refinados, mais precisamente dos poderosos refinados, seduzidos pelo mundo elegante do luxo e, às vezes, pelo elegante luxo do poder. Mais do que inconformismo, havia nele uma rejeição à vulgaridade, que se confundia facilmente com o precipitado aristocratismo das novas burguesias. Finalmente, o refinamento sensível podia ajudar a justificar a ascensão da nova aristocracia do dinheiro.
Audazes e obstinadas, as novas burguesias necessitaram e quiseram batalhar pelo poder. Não foi fácil para elas. O poder tinha donos e, diante deles, as novas burguesias foram, a princípio, apenas um fator a mais de poder, e por certo não o único entre os novos que se dispunham a enfrentar os velhos. Estranhas combinações de interesses, nas quais não se percebia bem quem servia a quem, modificaram aos poucos as formas e os conteúdos da política. As novas burguesias nem sempre conseguiram – ou não quiseram – exercer o poder por si próprias, talvez porque nem sempre contaram com o homem de mando que urgia em sociedades tão inquietas. Mas foram o poder atrás do trono, ou melhor, o poder atrás do “senhor presidente”.
O processo econômico-social do surgimento das novas burguesias – e, bem depois, das novas classes médias e populares – tinha uma raiz diferente do processo político e, em conseqüência, nesse não interferiu radicalmente, como se tivesse ocorrido uma batalha e, com ela, vencedores e vencidos. Ou melhor, o processo social começou a impregnar o processo político e a distorcê-lo com lentidão. Nas capitais, não só os representantes dos antigos agentes de poder, como também dos novos, exerceram funções políticas, diretas ou indiretas. E em diferente escala, em todas as cidades que se transformavam surgiram os novos agentes de poder para competir com os antigos. Estes eram, sobretudo, as velhas linhagens patrícias, os grupos militares e eclesiásticos e, junto a eles, a sua clientela política, mantida durante longo tempo e mantenedora, em conseqüência, daqueles que a mantinham, e em um grau de menor influência, os antigos grupos econômicos compostos de ricos comerciantes e proprietários e os círculos ilustrados que mereciam consideração especial. Os novos, em compensação, foram exclusivamente os que expressaram o novo poder econômico. Sua força consistiu em que o poder político descobriu que deles necessitava. Assim começou uma estreita aliança de velhos caudilhos e generais afortunados com os vacilantes grupos de indefinida nacionalidade nos quais se misturavam os investidores e comerciantes estrangeiros com os representantes e agentes nacionais. Era inevitável. Diante do desafio da economia internacional e das necessidades do desenvolvimento interno, o poder político lançou-se à tarefa de modernizar o país e em uma exploração mais intensiva e organizada das riquezas naturais. Quando descobriu que necessitava de capitais, buscou-os, ou apenas aceitou-os quando eram oferecidos. O investidor e o comerciante procuraram vantagens e garantias e as solicitaram do poder político que procurava atraí-los. No jogo do toma lá, dá cá, cresceram os intermediários, os agentes, os comissionados e também aqueles que, de fato, trabalhavam em algum dos segmentos recém-abertos. Muitos enriqueceram com facilidade, e todos aqueles que representavam de alguma maneira o capital estrangeiro adquiriram um inusitado prestígio que lhes proporcionava preferência nos cenários oficiais. Estabeleceram-se privilégios e garantias em leis que gestores sugeriam, ministros e servidores públicos estudavam, deputados e senadores votavam, burocratas colocavam em funcionamento. O vínculo ficou estabelecido, e pouco a pouco o poder político encontrou-se aprisionado em uma rede, da qual, talvez, quem o exercesse não tinha interesse em libertá-lo.
Contudo, os principais agentes de poder foram, aparentemente pelo menos, os partidos políticos. Alguns eram tradicionais e o seu pensamento costumava corresponder a uma problemática de outras épocas cuja atualidade se perdera. Mas em seu próprio seio formaram-se grupos que se adequaram às novas circunstâncias, e a teoria do progresso serviu às vezes de escudo para esconder suas aspirações. Salvo alguns segmentos que perpetuaram uma imagem tradicional da atividade produtiva, tanto liberais quanto conservadores procuraram canalizar em seu proveito as novas circunstâncias.
Entretanto, algo novo aconteceu depois de desencadear-se o processo de transformação econômica. As novas classes médias e certos segmentos das classes populares começaram a organizar-se politicamente e a exigir o seu direito de intervir na vida política do país. Ou no seio dos velhos partidos ou através de partidos que tratavam de constituir-se, estas novas massas urbanas passaram a exigir que a democracia se tornasse efetiva. As cidades passaram a agitar-se. De repente começaram a formar-se nelas novos agrupamentos políticos – liberais avançados, radicais, socialistas – cuja composição e cujas formas de atuar rompiam a paz dos acordos entre cavalheiros. Agora a luta pelo poder ganhava outros aspectos. Os comícios de milhares de pessoas reunidas em praça pública, o orador exaltado, as inflamadas palavras de ordem reformistas ou revolucionárias comoveram as cidades e retiraram a política das tertúlias e dos cenáculos onde tradicionalmente se urdia com uma prudente discrição. Houve manifestações operárias que pareceram ameaçadoras para as classes moderadas porque anunciavam a revolução social, proclamavam a greve e cantavam as inflamadas estrofes da Internacional. Houve revoluções populares, assim chamadas, mas que, na realidade, estavam incitadas pelas classes médias – embora contassem às vezes com o apoio de segmentos mais humildes. E novos jornais políticos, avançados e revolucionários, aumentavam a sua tiragem, circulavam pública ou clandestinamente e orientavam a opinião dos novos grupos que se incorporavam às lutas pelo poder.
A vida política tomou-se muito mais agitada nas cidades que se transformavam e o exercício do poder político teve de aceitar outras regras. Até então havia sido coisa de algumas dezenas ou centenas de famílias, ao redor das quais girava uma clientela política de fácil controle. Mas o aparecimento de novas forças modificou o cenário, e para que o poder seguisse em mãos de quem o detinha foi necessário exercê-lo com mais dureza e chegar à ditadura metódica e severa. E não só para que continuasse em mãos de umas poucas famílias, mas sim para que não escapasse dos novos grupos de poder que se estavam fixando. Oligarquias e ditaduras foram as típicas formas de governo que – puras ou combinadas – eram exercidas a partir das capitais.
Nelas reinou “o senhor presidente”, segundo a feliz expressão cunhada por Miguel Ángel Asturias, que pensava nos dias do governo guatemalteco de Manuel Estrada Cabrera. Com características semelhantes exerceram o poder, entre muitos outros, Rafael Núñez e Rafael Reyes em Bogotá, Porfirio Díaz no México, Gerardo Machado em Havana, Eloy Alfaro em Quito, Cipriano Castro e Juan Vicente Gómez em Caracas, Augusto Leguía em Lima, Hernando Siles em La Paz. Sua atitude foi autocrática e derivou para um personalismo que algum exegeta definiu como “cesarismo democrático”, mas que era só uma deformação viciosa do tipo de poder que as oligarquias queriam que exercesse aquele em quem confiavam, expressa ou tacitamente, a custódia de seus interesses. Em outras circunstâncias, as oligarquias se mantiveram mais unidas como classe e mais ativas como grupo político, e então o “senhor presidente” exerceu o poder dentro de um sistema limitado: assim ocorreu no Rio de Janeiro, Buenos Aires, Santiago do Chile, Assunção, La Paz, Bogotá e Lima.
O “senhor presidente” possuía vastos poderes e a capital era a sua corte, para onde era costume dirigir-se a fim de resolver qualquer problema, independentemente de que os seus delegados tivessem também as suas cortes nas cidades provinciais. Mas, na verdade, a corte era “o palácio”, tão suntuoso quanto possível, onde funcionava um protocolo às vezes grotesco e no qual não faltavam os peitos cobertos generosamente de condecorações nem os criados de libré e calção curto. O que ali predominava era o espírito das novas burguesias, alucinadas pelo luxo dos salões, pelos belos jardins, pelo prestígio do champanhe e das aristocracias européias da belle époque, burguesas, aliás, como elas mesmas. As vezes o “senhor presidente” tinha o seu próprio estilo e até podia ser austero como Porfirio Díaz, recluso no castelo de Chapultepec. O importante era que não perdesse em nenhum instante o controle do poder, e nisso os seus mandantes confiavam. O “senhor presidente” tinha a sua pequena nobreza de seguidores que o cercavam, todo um círculo palaciano que se interpunha entre ele e os demais. Tinha os seus ministros, que estavam em contato com o que a rua dizia, os seus servidores públicos, os seus amigos prediletos, aos quais convidava “a palácio” e que se permitiam introduzir nele, de vez em quando, algum aspirante a cortesão. E tinha seus generais, e seu chefe de polícia, e seus esbirros e seus delatores, todos acorrentados aos favores do “senhor presidente”, cada vez mais rico, cada vez mais poderoso e cada vez mais prisioneiro de sua corte, em sua capital, que se transformava com amplas avenidas e passeios, com vistosos edifícios públicos, com iluminação a gás ou elétrica, e cada vez mais prisioneiro dos grupos de poder, aos quais dava imperiosamente aquelas ordens que eles esperavam e queriam cumprir.
O “senhor presidente” costumava chegar ao poder mediante eleições, geralmente manipuladas, depois de longas deliberações entre os notáveis, das quais costumava participar algum banqueiro a quem estava reservada uma palavra sugestiva. Sempre havia um clube onde se tomavam as decisões, ou algum hotel cujos salões freqüentavam os iniciados, ou a redação de algum jornal em cujos gabinetes as aspirações se estreitavam. Depois, o ato eletivo consagrava o candidato, e mais adiante o aparelho do Estado bastava. Contudo, as classes médias cresceram em número, em poder, em clareza de idéias, e amplos segmentos das classes populares coincidiram com elas, apesar de alguns grupos proporem seus próprios objetivos. A política começou a complicar-se e não bastou prender os opositores mais destacados, mas também foi necessário estruturar cada vez mais cruamente a fraude eleitoral e, ocasionalmente, recorrer à polícia ou ao exército para reprimir os manifestantes que invadiam as ruas e mostravam sempre uma acentuada vocação para concentrar-se sob as sacadas do “senhor presidente”.
Estas novas multidões urbanas que aspiravam a participar da vida pública refletiam, em sua composição, a mudança que havia ocorrido em muitas cidades. Agora, ao lado das famílias tradicionais, não havia tão-somente uma massa indiscriminada de gente indiferente: havia novas classes populares em cujo seio se formavam grupos avançados, talvez socialistas ou anarquistas capazes de ler Marx ou Bakunin, nas quais, de qualquer modo, crescia diariamente o número dos que queriam participar da vida cívica, e havia, sobretudo, novas classes médias com definidas pretensões políticas, que, por sua educação e pelas funções que desempenhavam na vida da cidade, adquiriam uma importância inocultável. Eram essas classes médias que movimentavam o comércio e ocupavam importantes cargos, eram as que liam os jornais, andavam de bonde, conversavam nos cafés ou nos clubes políticos, começavam a ir ao cinema. Nesse ínterim, tinha havido uma revolução vitoriosa no México e outra na Rússia. Nem o “senhor presidente” nem os círculos que representava podiam ser enganados acerca das tendências que impulsionavam estes grupos a adquirir características coletivas nunca vistas antes quando se reuniam para exigir “democracia” ou, talvez, “justiça social”. Heterogêneos, sem dúvida, tais grupos eram liderados pelos mais esclarecidos representantes das novas classes médias.
Caracterizava essas classes seu decidido interesse em melhorar a formação educacional e cultural. Muitos de seus membros começaram a ler livros, mas não para distrair-se, como faziam freqüentemente os das classes altas, mas, sim, para aprender, para adquirir “conhecimentos úteis” e para compenetrar-se das “idéias modernas”, relacionadas com a ciência, a sociedade e a política. O fenômeno era geral na Europa e, em conseqüência, não faltaram livros, como os que a editora Sempere publicava na Espanha, oferecidos a preços baixos, que inundaram as bibliotecas públicas organizadas pelos municípios, sociedades de fomento e sindicatos operários, mas que foram também a base de inúmeras bibliotecas particulares de gente humilde que se sentia orgulhosa de sua coleção, embora não pudesse ostentar encadernações de couro da Rússia. Muitas outras coleções de livros baratos apareceram na época e não faltaram as que surgiram em cidades latino-americanas. Além disso, para alimentar essa curiosidade inesgotável dos que começavam a senti-la, houve revistas e jornais doutrinários dos grupos políticos, socialistas e anarquistas, e revistas para o público em geral, com artigos de divulgação científica e relatos literários. Assim as classes médias e os segmentos mais preparados das classes populares alcançaram uma nutrida bagagem de informação e conhecimento que lhes permitiu opinar e discutir, até chegar a definir uma atitude diante dos problemas do mundo: uma opinião, por certo bem intelectual, bem ideológica, e que, por isso mesmo, entorpeceria suas relações tanto com as classes altas quanto com as populares, ambas com uma visão mais espontânea e imediata do mundo.
Do seio das classes médias saíram os novos profissionais – médicos, engenheiros, advogados –, apesar de muitos deles haverem ingressado nas classes médias provenientes de camadas mais modestas. Também se instalou nesses níveis intermediários um novo tipo de homem de letras que não era o cavalheiro ilustre e refinado que passava as horas de lazer com a literatura; era um escritor menos preocupado com a estética, mais comprometido e, geralmente, mais utópico. Era visto junto com os pintores e escultores, nos cafés boêmios – como esse de Buenos Aires que descreve Manuel Gálvez em El mal metafísico –, nas tertúlias literárias e artísticas, nas estréias dos dramas ou sainetes de seus companheiros, nas exposições, ou nos escritórios onde trabalhavam os seus amigos. Assim se concretizou um tipo de atividade cultural diferente nas cidades que se transformavam: mais militante, menos acadêmica. A cultura tradicional subsistia e tinha os seus próprios lares, onde se fortalecia contra os embates dessa outra que considerava mesocrática e um pouco tosca: eram as academias, as sociedades cultas, as universidades; mas também as tertúlias literárias de alta categoria, muito refinadas e um pouco puristas, que se desenvolviam nos salões ou nas bibliotecas dos próceres, nas quais a elegante boiserie2 emoldurava os volumes de fina encadernação. O contraste evidenciou-se e, como as novas disputas políticas e sociais, agitou a vida cotidiana das cidades que se transformavam. Houve polêmicas, enfrentamentos de grupos, disputas entre revistas que expressavam diferentes credos estéticos ou ideológicos. Com freqüência, os problemas e os grupos se entrecruzavam, de modo que não era fácil distinguir os subentendidos de cada atitude. Porém, o tempo e as circunstâncias dissipavam de modo rápido os equívocos.
Tertúlias significativas – talvez semelhantes à que descreveu José Asunción Silva em De sobremesa – realizavam-se em Lima a partir de 1885, no Ateneu de Lima primeiro, no Círculo Literário depois e, finalmente, em tomo de Clorinda Matto de Turner a partir de 1887, nas quais a política radical, o indigenismo e outros problemas candentes se misturaram com as preocupações estritamente literárias. Significativas foram as de Buenos Aires – no café La Brasileira, primeiro, e no Los Inmortales depois –, no início do século. Como o foi também a do Ateneu da Juventude, por volta de 1910, no México. Mais à frente outras foram organizadas: houve uma em Lima que encontrou o seu foco na figura de Victor Andrés Belaúnde e a sua expressão no Mercúrio Peruano; e todas as que nasceram ao calor da revolução estética subseqüente à Primeira Guerra: a que impulsionou o movimento modernista em São Paulo, a do grupo Martín Fierro em Buenos Aires, a da revista Contemporánea no México, a da Revista de Avance em Havana. Todas se compunham de pessoas que, em sua maioria, procediam das classes médias e ganhavam a vida de diversas maneiras, sem prejuízo de que houvesse entre eles o filho de um rico cafeicultor ou de um fazendeiro poderoso. Todas alentavam certo sentimento de minoria, como de quem houvesse alcançado um alto refinamento. Mas todas mostravam, também, em maior ou menor medida, certa receptividade para os novos problemas sociais que surgiam em todos os cantos.
Muitos que se sentiam minoria começaram a se empenhar em servir às maiorias, que já começavam a ser chamadas “massas”. Escreveram em jornais e revistas, cujo número de exemplares aumentava nas cidades que se transformavam porque cada vez os lia maior quantidade de pessoas. Não só havia cada dia mais gente, como também cada vez havia mais gente que sabia ler e principalmente que queria ler para se instruir e para não ficar alheia aos problemas do mundo em que vivia. Para aprender e para se divertir as pessoas iam ao cinema, programa que nas primeiras décadas do século começou a ser a atração de um imenso público de todas as classes sociais. E enquanto subsistia a aristocrática devoção pela esgrima e pelo tênis, esportes populares como o futebol começavam a reunir multidões nos estádios esportivos, cada vez maiores, nos quais se percebia cada vez mais claramente o surgimento de atitudes inusitadas nas aglomerações que os povoavam nos dias de grandes espetáculos. Como alguns movimentos políticos, eram expressões de um movimento coletivo que se organizava pouco a pouco.
O cinema e os esportes foram os símbolos mais típicos da transformação das cidades, pois revelavam a presença de certas classes populares de aspecto diferente da tradicional. Agora, não só a procissão do Senhor dos Milagres ou a peregrinação ao santuário de Guadalupe congregavam multidões, também uma luta de boxe ou a partida final de um campeonato de futebol reuniam milhares de pessoas que, evidentemente, queriam escapar da rotina do trabalho e usufruir da vida, expressar os seus sentimentos e as suas opiniões e casualmente dar liberdade, num domingo, a certa quota oculta de rebeldia. Era como as touradas, cada vez mais gente nas praças e mais apaixonada. E posteriormente nas tavernas suburbanas e nas esquinas dos bairros, cada um defendia as suas opiniões coletivas como se fossem as suas opiniões particulares. Uma crescente tendência das classes populares no sentido de sua integração e um marcado propósito de cada um de seus membros de afirmar a sua personalidade estavam latentes nas mudanças que desencadearam a transformação das cidades.
Aliás, na maioria das cidades, os costumes cotidianos dos segmentos populares mudaram aos poucos. Começaram a usufruir de algumas novas comodidades – a água corrente, o sistema de iluminação, as obras sanitárias –, mas nem sempre, já que o crescimento das cidades e o alto custo da terra urbana deslocava sempre os segmentos de baixa renda para áreas que não se beneficiavam desses serviços. A educação das crianças se tomou mais fácil porque aumentou o número de escolas, assim como a atenção aos doentes, porque aumentou o número de hospitais e melhorou o atendimento prestado. O problema mais grave foi o da moradia. Os cortiços e os becos proliferaram e a promiscuidade se tomou tão deprimente que muitos resolveram se aventurar a levantar um quarto em um lote comprado à prestação. Esse quarto revelou os meandros da cultura popular: mostrou a figura da Virgem, a fotografia de um boxeador e casualmente flores, nas quais eram depositadas todas as esperanças sentimentais das classes populares. Em algumas cidades – Montevidéu e Buenos Aires – encontraram um jeito novo para expressá-las: o tango, entre imigratório e rural, e o conflito entre as duas influências ganhou voz no sainete, um gênero teatral que se encarregou de novos assuntos nas cidades rio-platenses.
Outra foi a mudança que sofreu a forma de viver das classes médias. Se algo as caracterizou, foi um veemente desejo de ascender socialmente e, sobretudo, de conservar o seu decoro e melhorar a sua aparência. Foi isso o que induziu os seus membros a aceitar todos os estímulos da publicidade, cada vez mais eficaz, já que cresciam os meios de difusão, e a se preocupar mais por adquirir objetos. Junto com os objetos aceitaram os costumes e as convenções que implicavam a sua posse e o seu uso, cada um na medida de suas possibilidades, ou melhor, um grau acima delas.
A rigor, a vida do lar não foi a que mais mudou. Foi a vida dos homens fora de sua casa que revelou transformações mais profundas porque, mais ainda do que nas classes populares, cresceu o esforço de participação nas classes médias. Para satisfazer esse desejo era necessário estar em tudo, e a rua se tomou mais importante do que a casa. Todos notavam que a vida se tornava aos poucos mais vertiginosa e desejavam participar desta vertigem porque suspeitavam que, do contrário, retrocederiam em lugar de avançar. A rua eram os cafés e os restaurantes, os teatros e os cinemas, mas também eram os escritórios e as bancas de advogados, os clubes e os centros políticos. Se a família queria progredir, era imprescindível que o seu chefe cultivasse relações e procurasse estendê-las. E “progredir” era a lei dessas novas classes médias que aumentavam nas cidades que se transformavam.
Isto não ocorreu tanto com as pequenas classes médias, geralmente sufocadas pelo peso de suas obrigações. Nem o empregado de loja nem o pequeno burocrata tinham muitas esperanças, porque o mundo era dos que tinham iniciativa para buscar aventuras e a pressão cotidiana costumava não deixar pausa para quebrar a rotina. Contudo, provavelmente porque não viam muitas possibilidades de ascensão individual, confiaram todas as suas esperanças nos movimentos políticos que lhes ofereciam melhoras imediatas e, principalmente, uma nova carreira. Quem não tinha oportunidade de abrir um pequeno comércio ou uma empresa, talvez tivesse capacidade para trabalhar no clube político de seu bairro e terminar sendo o seu caudilho ou o seu cacique eleitoral. Foi nas pequenas classes médias urbanas que se apoiaram os movimentos renovadores que impulsionaram González Prada e Piérola no Peru, Alem e Yrigoyen na Argentina, Alfaro no Equador, Batlle e Ordóñez no Uruguai, Alessandri no Chile. Atrás delas se mobilizaram as classes populares que não sentiam a atração da política de classe. Esta crescente politização de grandes segmentos urbanos produziu uma grande mudança em seu estilo de vida, e as classes altas compreenderam que as cidades haviam deixado de ser suas.
5. Tensões e enfrentamentos
A crescente politização das cidades fez acentuar cada vez mais a sua influência sobre as regiões e sobre o país em que estavam inseridas. Nas cidades decidia-se o tipo e o grau de exploração econômica que devia ser realizada em cada área, eram criadas indiretamente as condições de vida das diversas classes, abria-se ou fechava-se o horizonte segundo os interesses dos grupos – cada vez mais impessoais – que tomavam as decisões. E quando tomadas, chegavam em etapas sucessivas a cada comarca, onde as suas conseqüências eram sentidas como um raio, sem que se pudesse saber com exatidão quem o havia lançado. A cidade, o centro das decisões anônimas, convertia-se em um monstro cada vez mais odiado e cada vez mais inacessível: quem se rebelava contra ela estava destinado a lutar com uma sombra.
Submetidos a novos e excessivos impostos, os indígenas de Huaraz se sublevaram em 1886 quando o governo peruano aprisionou e açoitou o prefeito Pedro Paulo Atusparia, que havia solicitado a sua derrogação. Para reprimir os insurretos, foi enviado um navio de guerra, vários regimentos e, principalmente, a Guarda Municipal, na qual “a juventude seleta ocupa os primeiros lugares”. A cidade concentrou os seus esforços para assegurar o funcionamento do mundo rural nas condições mais vantajosas para o sistema econômico que a partir dela se administrava. Do mesmo modo, havia sido organizada a repressão e a expulsão dos indígenas, na Argentina, mediante a “campanha do deserto” que o general Roca conduziu em 1879, e no México, na época de Porfirio Díaz, a dos indígenas de Sonora em 1901 e de Yucatán em 1905. Um desejo ardente de resistir à força do sistema que se tornava forte na cidade intermediária mostraram os brasileiros sertanejos que, a partir de 1893, começaram a reunir-se em tomo de Antônio Conselheiro na escondida região de Canudos. Uma enorme massa negra e mestiça, à qual se incorporavam velhos bandidos e antigos proprietários, todos misturados no mesmo afã de construir um mundo particular, alheio à civilização das cidades, aglutinados por cultos e crenças de vigoroso primitivismo, e hostis à república leiga e liberal recém-instalada no Brasil, preparava-se para viver à sua maneira e, se fosse necessário, para morrer defendendo-se dos ataques do poder urbano e civilizador. Euclides da Cunha explicou em um livro profundo e inquietante – Os sertões – a peculiaridade desse universo social que circundava à distância o mundo das cidades e que se reuniu em volta de um povoado e de um chefe, nos quais se fundiam desordenadamente os sentimentos ancestrais e os ódios contra a civilização. E relatou a inexorável ação repressiva que em 1897 pôs fim a essa irrupção do mundo rural contra as cidades. Quinze anos depois reapareceria um movimento similar – o de João Maria, “o Monge” – nos estados de Santa Catarina e Paraná, que foi reprimido em 1916.
De outro caráter foram as eclosões rurais que, por volta da mesma época, ocorreram na Venezuela e no Uruguai. Um forte fazendeiro do departamento de Cerro Largo, Aparício Saravia, levantou-se em 1897 contra o governo com algumas centenas de camponeses mal armados para defender a sua autonomia, sabiamente cerceada em Montevidéu por um sistema que obrigava o rico proprietário a submeter-se às regras do mercado. Cronista da revolução – e depois sucessor de Saravia na chefia do Partido Nacional –, Luis Alberto de Herrera descrevia em uma crônica as particularidades do enfrentamento:
De resto, de onde saía aquele rebelde de chapéu mole e poncho rústico, general improvisado de um movimento extravagante? Talvez não o soubessem as classes burguesas da capital, aquelas pessoas que se agitam nesta imensa colmeia sem conhecer outro caminho senão o de suas tarefas, nem horizonte mais alto a não ser o tapete de seu escritório; mas para aqueles que recebem alguma vez os ecos da rica campanha e que acompanharam as fases trágicas da revolução riograndense, possuía porte peculiar o infatigável guerrilheiro que já atraía para si invejas e nascentes admirações.
Vencido em 1897, Aparício Saravia voltou à luta em 1904 e encontrou a morte na batalha de Masoller, na qual sucumbiu também o seu ideal nostálgico: José Batlle y Ordóñez organizaria o Uruguai moderno. Um país que quase se confundia com Montevidéu, sua capital. Mais êxito havia tido em 1899 o chefe dos “andinos” da Venezuela, Cipriano Castro, que das montanhas ameaçava o presidente que mandava em Caracas: “Aprenderá a saber como rugem os tigres que descem dos Andes!”. Desceram, mas, ao entrar em Caracas, aprenderam o sutil jogo no qual a economia e a política se combinavam, sem que ficasse de sua determinação camponesa outro vestígio que a má educação que o tempo demoraria em corrigir.
No México também ressoou a voz do mundo rural contra as cidades, contra a civilização, contra o sistema econômico, quando eclodiu em 1910 a revolução contra Porfirio Díaz. Foram rugidos retumbantes, mas terminaram em impotentes soluços, afogados pelo esforço metódico daqueles que defendiam o sistema urbano. A revolução começou como um movimento político contra a reeleição de Díaz, liderado por um político liberal, Francisco I. Madero; porém, desde o primeiro momento, e mais ainda depois das primeiras trágicas peripécias, começaram a se manifestar os movimentos populares rurais. Em Chihuahua, grupos armados levantaram-se sob o comando de Abraham González, Pascual Orozco, José de la Luz Blanco, Francisco Villa; em Morelos, juntaram-se à luta Torres Burgos e os irmãos Zapata. E quando a luta ganhou maior ímpeto, após o assassinato de Madero e sob a direção de Venustiano Carranza, o movimento agrário cresceu até adquirir certa autonomia, separando-se do movimento político. Houve distribuição de terras com e sem doutrina social que as fundamentasse, e houve banditismo. Por fim, enfrentaram-se, no meio da revolução, os dois movimentos. Emiliano Zapata e Francisco Villa combateram a linha institucional de Venustiano Carranza e acabaram derrotados e mortos, enquanto se iniciava a estabilização do processo revolucionário com a sanção de uma constituição. Pouco a pouco, os segmentos mais politizados organizaram-se com Venustiano Carranza e Álvaro Obregón para reconstruir o sistema econômico, processo que encaminharia definitivamente o presidente Plutarco Elías Calles. Com menos ressonância, a decisão do nicaragüense Augusto César Sandino não foi menos reveladora. Após longos anos de luta, conservadores e liberais haviam chegado a um acordo político, sob a pressão e a garantia das forças dos Estados Unidos. Sandino, porém, à frente de um pequeno exército camponês, decidiu desconhecer o pacto e lançou-se à guerrilha, forte em seu baluarte de San Rafael del Norte. Fustigado pelas forças de ocupação, o movimento rural foi, afinal, aplacado pelo sistema que controlava a riqueza agrária do país.
Movimentos espontâneos e populares, sua característica foi que não puderam atuar contra as causas remotas das situações exasperadoras. Foram interpostos todos os obstáculos e mecanismos de um sistema sensato e bem montado que, operando a partir das cidades, despersonalizava as relações e ocultava os centros de decisão. Coisa semelhante aconteceu com as grandes greves, sobretudo as das regiões mineiras do México e do Chile, ou nas zonas têxteis do estado de Veracruz, na Patagônia argentina, na zona frutífera da Colômbia. Nas cidades, entretanto, diversos movimentos revelaram a existência de graves tensões e enfrentamentos entre os grupos urbanos de poder. Mas ali o jogo desenvolveu-se dentro de normas acordadas entre aqueles que conheciam os mecanismos e tinham a possibilidade de negociá-los.
As capitais, em particular, foram cenário das disputas pelo poder entre os diversos grupos das classes dirigentes. De acordo com o que era fundamental, cada grupo e cada pessoa pugnava por impor-se no exercício da autoridade. Algumas vezes era uma luta às claras, com alegação de argumentos, e outras vezes um combate surdo e dissimulado. O palácio presidencial, o congresso, além dos clubes, restaurantes e tertúlias particulares, acolhiam os que preparavam a conspiração e teciam a trama. Rio de Janeiro, Santiago do Chile, Buenos Aires, Bogotá eram grandes mentideiros nos quais os grupos influentes disputavam candidaturas e designações em silêncio. Situações fluidas impunham exagerar a cautela para que não se rompessem as regras do jogo, e era obrigação do perdedor saber perder.
O jogo era diferente onde existia um poder forte, uma vigorosa ditadura pessoal constituída em fonte de poder. A capital era então o centro de uma gigantesca manobra para estreitar as influências capazes de mover a vontade do ditador. Houve conservadores como o mexicano Porfirio Díaz, o guatemalteco Manuel Estrada Cabrera, o venezuelano Juan Vicente Gómez, o colombiano Rafael Núñez; e houve liberais, como o nicaragüense José Santos Zelaya, o guatemalteco José María Reina Barrios, o equatoriano Eloy Alfaro. Mas todos tinham uma maneira pessoal de exercer o poder, que até os mais íntimos respeitavam, e da qual só podiam tirar partido obedecendo certas regras. Em geral sensíveis à adulação, os ditadores possuíam a sua corte à qual urgia ter acesso para poder chegar em seguida à benesse presidencial: as ante-salas foram os cenários das disputas pelo poder delegado, que era também a disputa pelos favores, pelas honras e pelos privilégios.
De qualquer maneira, o ditador não era um produto isolado da política. Quaisquer que fossem os seus dotes de comando e a sua autoridade pessoal, chegava ao poder como chefe ou como expoente de um grupo. Em geral assumia um poder que o grupo dirigente não estava em condição de exercer em conjunto. O ditador emprestava então a sua autoridade, a sua capacidade para impor ordem na situação geral e ao mesmo tempo ordem no seio do grupo que o apoiava.
O exercício do poder ia depositando em suas mãos cada vez mais possibilidades, mas o ditador sabia que era homem de uma classe ou de um grupo, que era o seu, e servia a seus interesses de maneira conseqüente. Podia ferir as pessoas com o seu desdém ou rejeição, mas não os interesses do grupo que o apoiava. E se o grupo começava a desintegrar-se, a ditadura estava condenada a cair.
Enquanto se lutava nas ante-salas pelas migalhas do poder, em outros ambientes se conspirava. Se determinado grupo econômico e político representava o respaldo fundamental da ditadura, sua manutenção efetiva repousava em uma força militar. O exército conhecia sua força e recebia as recompensas devidas à sua lealdade. Porém, havia generais e coronéis. O surgimento de uma brecha na estrutura da política do ditador despertava as ambições de quem podia movimentar a força em um sentido ou em outro, e a partir desse dia o quartel convertia-se em outra ante-sala do poder. As vezes, não se precisava da conspiração: o general Cipriano Castro abandonou Caracas para que o curassem de suas doenças, e na sua ausência o seu homem de confiança, o general Juan Vicente Gómez, proclamou-se presidente.
Mas nem sempre foi tão fácil depor um ditador. A rede de interesses que ele havia sabido tecer e o sistema defensivo que havia montado o defendiam. Só que o passar do tempo alterava as estruturas sociais e, com elas, as relações políticas. Nas cidades, novas idéias circulavam e influenciavam as correntes partidárias já constituídas, sobretudo no seio dos partidos liberais, em cujas fileiras começaram a produzir-se fissuras pela influência daqueles que queriam arrastálos para posições mais populares. Uma espécie de radicalismo brotou nos ambientes urbanos agitados por novas situações sociais e novas idéias, que se caracterizou por originar novas e sucessivas ondas de radicalização, cada vez mais extremadas, embora fossem cada vez mais verbais. Já se havia manifestado no Chile em 1854, na Argentina e no Peru por volta de 1890, no Equador em 1895, no Uruguai em 1903; e participavam dessas tendências os movimentos que tiveram à frente Madero no México, em 1910, e Alessandri no Chile, em 1920.
A política variou a partir de então. Deixou de ser patrimônio de umas camarilhas que resolviam os seus problemas nos salões e nas ante-salas e transformou-se em algo tumultuado que tinha como cenários as ruas e as praças. Multidões, ou pelo menos grupos numerosos e apaixonados, expressavam aos gritos e com cantos as suas opiniões, centradas algumas vezes em tomo de um problema candente e outras, personificadas em um candidato cujo nome se aclamava em comícios e manifestações.
Os amigos podiam exaltar-se, os adversários brigar e a polícia intervir para dissolver a reunião ou talvez para castigar os inimigos do governo. Mas a política já havia adquirido uma nova magnitude e dentro dessa escala o governo e a oposição disputavam.
As revoluções começaram a ter também outro caráter. Um grupo de cidadãos, armados com o apoio de alguns militares, podia ocupar na cidade de Buenos Aires o Depósito de Artilharia e proclamar a partir dali a revolução, em 28 de julho de 1890. Era a União Cívica, um movimento popular que desafiava a oligarquia e que, por ora, seria vencido; mas vinte e seis anos depois triunfaria nas eleições, e a mesma cidade que contemplou a luta urbana veria a apoteose do caudilho popular, Hipólito Yrigoyen, conduzido até a Casa Rosada em uma carruagem arrastada pela multidão que havia soltado os cavalos.
Com forte apoio popular, laboriosamente organizado, entrou Nicolás de Piérola em Lima, em 17 de março de 1895. Combateu-se nas ruas, e o último grande caudilho militar, o general Cáceres, caiu derrotado pelo novo caudilho civil. Era um homem de mentalidade moderna que dotou a cidade de Lima não apenas de importantes serviços, mas também, e em especial, de novas fontes de trabalho para a população urbana. Duas revoluções desencadeadas pelos liberais abalaram a calma de Assunção: a de 1891, fracassada, e a de 1904, vitoriosa. Uma revolução também liberal, apoiada pelas populações indígenas, assegurou a La Paz, em 1898, sua condição de capital, quando a exploração da prata no sul declinava e aumentava, em troca, a do estanho no norte; e conservou a sua condição depois do triunfo da revolução antiliberal de 1920. Santiago do Chile agitou-se em outubro de 1905 quando uma enorme massa protestou inutilmente diante do presidente Germán Riesco pela carestia da vida. Trinta mil pessoas haviam se reunido na Alameda e caminharam em direção ao Palacio de la Moneda com ar ameaçador. Foi necessário o deslocamento de numerosas forças para conter esse desmando popular, que com características semelhantes havia ocorrido três anos antes em Valparaíso e se repetiria nos anos seguintes em Antofagasta e Iquique. A entrada de Eloy Alfaro em Guayaquil, em 4 de junho de 1895, acabou com a era conservadora e inaugurou, após seu estabelecimento em Quito, três meses depois, o regime liberal, um de cujos traços seria o estímulo da vida urbana e das atividades mercantis. Pacífica fora a revolução militar que dera fim ao império brasileiro: a população do Rio de Janeiro não se inteirou do que havia se passado, e a própria família imperial esteve alheia à tarefa pedagógica que o marechal Deodoro da Fonseca havia realizado nos quartéis. O México, por sua vez, congregou em suas ruas cem mil pessoas para receber, em 7 de junho de 1911, Francisco I. Madero, chefe da revolução vitoriosa contra Porfírio Díaz. Mas não reinou a mesma alegria em outros episódios subseqüentes: em fevereiro de 1913, três generais sublevaram-se contra Madero e fizeram a capital soçobrar durante dez dias, até que ele foi aprisionado e morto; ou quando, em dezembro de 1914, nela entraram as divisões do norte e do sul que Villa e Zapata comandavam. Sempre temerosas de se verem convertidas em troféu de guerra, as cidades conheciam o magnetismo que possuíam para os novos senhores que começavam a saborear o poder.
Na realidade, as cidades comportavam-se como complexos conjuntos sociais. A vitória de determinado grupo estimulava o entusiasmo e as exteriorizações de um grupo afim. E quando a própria cidade definia a vitória política a favor de novos segmentos majoritários, o perfil social e cultural da cidade mudava com a retração de uns segmentos e a ostensiva presença de outros.
A aglutinação da classe trabalhadora da cidade por ocasião de greves ou comícios sacudia as classes média e alta. Nesses dias, vivenciavam-se jornadas tensas, nas quais os enfrentamentos ocorriam na prática e independentemente de qualquer teoria revolucionária. Assim ocorreu em Santiago do Chile em 1905 e em Buenos Aires, na época do centenária, e mais ainda durante a “Semana Trágica” de 1919 – que Arturo Cancela evocou com dramático humor em Una semana de holgorio – ou em Guayaquil em 1922. Refugiadas em suas casas e trancadas as portas e janelas, as classes acomodadas aguardavam com impaciência que o Estado fosse remediar a situação com a força pública, cuja ação deixava normalmente várias dezenas de mortos e feridos entre aqueles que, por um momento, haviam adquirido a ameaçadora aparência de uma potencial força política capaz de dominar a situação.
Menos inquietantes eram os conflitos estudantis. A partir de 1918, muitas cidades que possuíam centros universitários tiveram transtornos ocasionados pela mobilização estudantil. A da cidade argentina de Córdoba foi o modelo. Donos das áreas universitárias e de certo modo das ruas e praças adjacentes, os estudantes exerciam atos de força relacionados com o seu âmbito: impediam a entrada de determinadas autoridades ou dos professores a quem rejeitavam, derrubavam estátuas, tiravam quadros das paredes, arremessavam móveis pelas janelas ou erguiam trincheiras nas ruas próximas. Mas todos descobriam no episódio uma dose de humor e suficiente autocontrole para recear que o arrebatamento fosse longe demais. Apenas ocasionalmente as badernas estudantis coincidiam com os movimentos operários ou políticos, e quando isso ocorria, uma secreta advertência prevenia acerca das diferentes implicações que tinham um e outro movimento. Os grupos sociais e políticos, que um dia entrariam em disputa para formar as grandes correntes de opinião suficientemente poderosas para desafiar as estruturas de poder, faziam dessas experiências as suas armas. Lima viu a paz dos claustros de San Marcos abalada; e em seu romance Fiebre, o venezuelano Miguel Otero Silva recordava as disputas estudantis na Caracas de 1928, onde se formaria a vanguarda da luta contra Juan Vicente Gómez.
6. O apogeu da mentalidade burguesa
Se o período que transcorre entre 1880 e 1930 teve um definido e inconfundível aspecto foi, sobretudo, porque as classes dominantes das cidades que impuseram os seus pontos de vista sobre o desenvolvimento de regiões e países possuíram uma mentalidade muito organizada e estruturada sobre uns poucos e inquebrantáveis princípios que gozaram de amplo consenso. Eram idéias muito elaboradas e discutidas no mundo, muito adequadas à realidade socioeconômica e política, e com elas a burguesia européia, em sua época de maior esplendor, havia elaborado uma forma de mentalidade que compreendia uma interpretação do passado, um projeto para o futuro e todo um quadro de normas e valores: vitoriosa, a grande burguesia industrial oferecia o espetáculo do apogeu de sua mentalidade triunfante. Era inevitável que, entre tantas coisas, as burguesias latino-americanas também aceitassem esse modelo de pensamento de eficácia comprovada. Nele, muitos matizes foram introduzidos, mas o seu núcleo foi recebido intacto e conservado fielmente até que as circunstâncias demonstraram que começava a ser coisa do passado.
Talvez o mais singular dessa forma de mentalidade fosse, tanto na Europa quanto na América Latina, estar arraigada na certeza de que o mundo passava por uma etapa muito definida de seu desenvolvimento e que era necessário consumá-la conduzindo-a até os seus últimos extremos. Nos países latino-americanos tudo contribuiu para que essa imagem alcançasse os caracteres de uma evidência inegável, porque não só o fenômeno era percebido claramente, como também parecia inscrever-se em uma teoria que era lugar-comum. Nesse ínterim, uma forte pressão dos centros de poder procurava aperfeiçoar a incorporação da América Latina na esfera de sua influência. A necessária conseqüência foi que as novas burguesias latino-americanas, ao aderirem à tese de que era preciso consumar o processo no qual o mundo estava empenhado, aceitaram todo o sistema interpretativo e projetivo da mentalidade burguesa vitoriosa.
O processo – que era o da grande expansão industrial – achava-se baseado na convicção generalizada de que não só era correto como também era necessário fazê-lo: mais do que necessário, obrigatório por razões morais; e era obrigatório para o homem branco, inventor da ciência e da técnica, cujos benefícios deviam chegar a todos a qualquer preço. Consumar esse projeto era “a carga do homem branco”, como diria Rudyard Kipling. Qualquer que fosse a cor de sua pele, “homens brancos” consideraram-se os membros das novas burguesias latino-americanas.
Por certo essa moderna religião da ciência e do progresso evidenciou certa crise nas classes altas. Houve camadas que se mantiveram fiéis ao tradicionalismo de forte sabor hispânico, perpetuando, apesar de empobrecidos, tanto o legado fidalgo quanto o legado patrício. Porém, as novas gerações e, em geral, os grupos das novas burguesias voltaram-se para as novas idéias que circulavam simplificadas, cunhadas como emblemas de combate. Corriam nos jornais e revistas, nos muito difundidos livros de Spencer, nas inúmeras obras de divulgadores de variada importância. Até o teatro, que tanto atraía as burguesias urbanas, transformou-se em instrumento para a formação dessa nova mentalidade da classe dirigente, que se inspirava no liberalismo progressista e que às vezes fortificava as suas convicções na maçonaria. “É assim que faremos teatro, o verdadeiro teatro de idéias […]! Basta de sainetes vazios e ocos. Princípios, princípios!”, era o que dizia, não sem ironia, o personagem criado pelo argentino Gregorio de Laferrere em Locos de verano, estreada em Buenos Aires, em 1905. Era o teatro que os jovens intelectuais preferiam, mas igualmente todos aqueles que se preocupavam com os problemas sociais e políticos e os que acreditavam no progresso.
À medida que o tempo passava, as classes médias em ascensão também se inclinavam mais decididamente pelas idéias liberais, ampliando dessa maneira a sua área de sustentação. As polêmicas entre partidários do laicismo e aqueles que defendiam a influência tradicional da Igreja abalaram a paz de muitas cidades, em cujos foros os homens iminentes discutiam com as réstias de argumentos que, de cada lado, vinham ensaiando em todos os lugares durante longo tempo. Porém, nas cidades que se transformavam podia perceber-se uma crescente indiferença religiosa, e era fácil comprovar-se que diminuía consideravelmente o número de freqüentadores do sexo masculino aos templos. Pouco a pouco, o tradicionalismo foi visto também por crescentes camadas das classes médias com irônico desdém, como um obstáculo para o progresso. Algo semelhante ocorreu nas classes populares. Os estamentos tradicionais de áreas marginalizadas mantiveram-se ligados às suas velhas idéias e crenças, mas os grupos migratórios, e sobretudo os externos, não só se sentiam alheios aos conteúdos do tradicionalismo como também se deixavam arrastar com facilidade pelas idéias que alimentavam a corrente econômica que os havia atraído para as cidades, principalmente na medida em que se valiam de sua justificação da intensa mobilidade que caracterizava a vida urbana.
Porém, foi no seio das novas burguesias que a filosofia do progresso reinou soberana e impregnou a mentalidade predominante. Por certo, eram filhas do progresso e sentiam-se vestais de sua chama. O progresso era uma velha idéia que o século XVIII havia desenvolvido com cuidado como uma teoria da história e uma filosofia de vida. Naquela versão, o progresso era fundamentalmente uma contínua e tenaz conquista da racionalidade. Mas na segunda metade do século XIX, havia se comprometido com as sociedades industrializadas e oferecia uma nova versão ou, pelo menos, uma variante bem definida: o progresso era o contínuo desenvolvimento da conquista da natureza para colocá-la a serviço do homem, da produção de bens, da produção de riquezas, da produção de bem-estar.
Essa imagem do progresso era inseparável do alto grau de avanço que haviam alcançado as ciências e as técnicas aplicadas à indústria, e inseparável também do prestígio alcançado pelo mundo industrial. Era a imagem que predominava na Inglaterra vitoriana, na França do Segundo Império e na Terceira República, na Alemanha Imperial. Porém, na América Latina nada daquilo havia acontecido. Foi um modelo, ou melhor, um espelho. E a partir de então pareceu imprescindível incorporar-se àquela corrente importando os produtos que eram fruto do progresso, primeiro, e organizando, depois, os sistemas para possibilitar essa incorporação de maneira sólida e definitiva.
As novas burguesias, aglutinadas precisamente por essas possibilidades que se abriam diante de seus olhos, fraguaram ao calor dessas idéias, que configuravam uma imagem do processo histórico no qual elas desejavam se inserir. Assim se organizou o núcleo de sua mentalidade, definida fundamentalmente por seu progressismo, por ser contrária à estagnação e à manutenção dos velhos modos de vida. E nela subjazia uma concepção da sociedade latino-americana, não relacionada tanto à sua realidade – carregada de velhos problemas raciais e sociais – quanto às suas possibilidades de transformação.
Grupos heterodoxos inconformados podiam, nesse ínterim, elevar o seu clamor a favor dos indígenas subjugados e explorados. A escritora peruana Clorinda Matto de Turner desencadeava em 1889, com o seu romance Aves sin nido, um movimento indigenista que teria a seguir amplas repercussões: vibraria na revolução mexicana de 1910, ratificaria sua presença nos afrescos de Diego Rivera e teria sucesso na plataforma política da APRA inspirada por Víctor Luis Haya de la Torre. Mas a reação imediata dos estamentos que representavam o progressismo e a mentalidade burguesa foi a que se manifestou nas campanhas militares como a que o general Roca liderou na Argentina, as que Porfirio Díaz promoveu em Sonora e Yucatán, a que terminou com a Guerra de Canudos no Brasil. Tudo que se opunha ao desenvolvimento linear e acelerado do mundo urbano e europeizado era condenável, constituía uma rêmora e merecia ser eliminado. Sociólogos lúcidos concordavam que não se podia obter nada das humilhadas populações aborígenes. Em seu livro Nuestra América, o argentino Carlos Octavio Bunge terminava abençoando o alcoolismo, a varíola e a tuberculose que dizimavam as populações indígenas e africanas; e o boliviano Alcides Arguedas declarava em Pueblo enfermo que o índio “hoje em dia, ignorante, humilhado, miserável, é objeto da exploração geral e da geral antipatia… e ouvindo a sua alma repleta de ódios, desafoga as suas paixões e rouba, mata, assassina com fúria atroz”. Só a sociedade integrada dentro do sistema econômico que controlava o mundo urbano e civilizado formava o âmbito que era necessário promover, aquele onde as mudanças desencadeavam novas mudanças, em um incessante processo que trazia consigo não só o bem-estar da humanidade como também a ascensão dos melhores.
A sociedade latino-americana inscrita no processo de mudança foi antes de mais nada, para as novas burguesias, uma sociedade de oportunidades. Qualquer que fosse a sua estrutura, qualquer que fosse a origem e a peculiaridade de seus grupos e de seus membros, o importante para aquelas foi descobrir que a sociedade se encontrava diante de um desafio exterior cheio de promessas, e que seus membros tinham a ocasião de aceitá-lo e de tentar alguma das oportunidades, na certeza de que, se tinham êxito, escapavam das determinações da velha estrutura e situavam-se em seus níveis mais altos. O processo, manifestado no desenvolvimento da ciência e da técnica e, em conseqüência, da produção, atuava de modo indireto sobre a estrutura social já que provocava a formação de grupos novos; mas, na realidade, o desafio não era proposto como um problema de grupos, mas sim como um problema de indivíduos, capazes ou não de aceitar as novas possibilidades de êxito econômico. E a resposta foi uma concepção profundamente individualista tanto da sociedade quanto do êxito, que não excluía a crença em certa providência profana que operava sobre o conjunto e regulava as ascensões segundo o princípio da seleção natural.
Esta providência profana não podia, portanto, conhecer a caridade. Os segmentos inertes da sociedade – médios e populares, mas também altos das classes tradicionais –, que foram incapazes de aceitar o desafio e de fazer decidida e audaciosamente o jogo do êxito econômico e da ascensão social, resultavam inconsistentes para as novas burguesias, cuja mentalidade se nutria da convicção de que o êxito era um prêmio merecido. Era legítimo para as pessoas capazes e afortunadas instrumentalizar os segmentos inertes porque a estagnação ou o fracasso pareciam também merecidos.
Assim a mentalidade burguesa fez plasmar em uma ideologia do êxito econômico e da ascensão social. Os triunfadores formaram uma aristocracia. Quem sabe, em outras épocas, os seus louros tivessem sido questionados, talvez por hipocrisia, porém a atmosfera moral do século XIX e princípio do século XX não só havia dissipado essa tradicional hipocrisia como também havia ratificado os princípios que justificavam a fortuna, em sua dupla concepção de capital acumulado e de êxito arriscado. Foi, portanto, uma aristocracia legítima, sustentada pelo consenso de vários segmentos, e se surgiram críticas contra ela, não foram as vítimas de suas espoliações que as formularam, foram os representantes do velho pudor – o antigo patriciado, as classes médias tradicionais – que se escandalizavam com o espetáculo oferecido pelos grupos que escalavam a hierarquia do poder e da riqueza, insensíveis às normas da antiga moralidade, vigentes para eles, embora, sem dúvida, já caducas. Essa aristocracia do êxito econômico e da ascensão social varreu os grupos antes dominantes e impôs os seus princípios a uma sociedade que os conservou durante várias décadas e que demoraria bastante em elaborar outras normas, embora só fossem expressão de discordância e inconformismo.
Uma característica desta aristocracia do êxito econômico e da ascensão social foi que, apesar de estar constituída por pessoas que reconheciam a sua singular origem, manifestou rapidamente uma vocação oligárquica, isto é, uma tendência prematura a fechar-se em grupo. Talvez porque os seus membros monopolizassem os negócios e decidissem – como em um período da oligarquia veneziana – garantir a totalidade dos benefícios sem deixar que outros, recém-chegados, tivessem acesso ao mesmo processo de enriquecimento dos quais eles eram beneficiários. Contudo, isto ocorreu também porque quiseram monopolizar o poder político e o poder social, este exercido de maneira difusa graças à força que lhes dava o dinheiro, e de maneira concreta o primeiro, mediante a ocupação de postos-chave ou pela participação nos conselhos áulicos do poder.
Houve teóricos da superioridade das oligarquias. Por volta de 1930, o brasileiro Oliveira Viana pôde esboçar um elogio quase delirante aos grupos brancos de seu país, em seu livro Evolução do povo brasileiro:
Outro fato que parece reforçar também a presunção da presença de dolicocéfalos louros, com celtas e iberos, na massa de nossa primitiva população, é o soberbo eugenismo de muitas famílias de nossa aristocracia rural. Os Cavalcantes no norte, os Prados, os Lemes, os Buenos no sul são exemplos de famílias excepcionais que deram ao Brasil, há trezentos anos, uma estirpe copiosa de autênticos grandes homens, notáveis pelo vigor da inteligência, pela superioridade do caráter, pela audácia e pela energia da vontade.
Era um delírio, que Gilberto Freire chamou “arianismo quase místico”, de um defensor do velho patriciado. Mas o importante já não era esse setor. Por isso, mais significativas eram as palavras com que o chileno Enrique Mac-Iver defendeu a nova oligarquia, essas novas burguesias que se constituíam no processo de mudança socioeconômica e que encabeçavam decididamente a nova sociedade. Em um debate parlamentar em 1880, dizia:
A oligarquia, essa de que tão seriamente as pessoas nos falam, vive em um país representativo parlamentar, que tem sufrágio universal ou quase universal, onde todos os cidadãos têm igual direito a serem admitidos para o desempenho de todos os empregos públicos no qual a instrução, mesmo a superior e profissional, é gratuita. Acrescente-se que não existem privilégios econômicos nem desigualdades civis no direito de propriedade e convirão, meus honrados colegas, comigo, em que um país com tais instituições e com oligarquia é muito extraordinário, tão extraordinário que é verdadeiramente inconcebível. Suponho que os honrados deputados que nos deram a conhecer esta oligarquia tenham sofrido um ofuscamento, que lhes impediu olhar bem, confundindo assim o que é distinção e influências sociais e políticas de muitos, nascidas dos serviços públicos, da virtude, do saber, do talento, do trabalho, da riqueza e mesmo dos antecedentes familiares, com uma oligarquia. Oligarquias como essas são comuns e existem nos países mais livres e popularmente governados. Os honrados representantes encontrarão oligarquias desta categoria na Inglaterra e também nos Estados Unidos da América. Essas oligarquias, alicerces inabaláveis da estrutura social e política, são condenadas apenas pelos anarquistas e pelos despreparados.
Estas oligarquias – ou melhor, estas novas burguesias – sabiam que representavam o processo fundamental da nova sociedade, e desdenhavam os grupos sociais que ficavam marginalizados. Sabiam também que o poder lhes pertencia, mas estavam dispostas a delegá-lo se os enfrentamentos sociais implicassem uma luta violenta. E costumavam apoiar o ditador que lhes oferecia ordem e estabilidade social, mesmo à custa de determinadas limitações no exercício de suas próprias liberdades, talvez porque, tendo aproveitado o impulso de um processo de ascensão social, desejavam que esse impulso se contivesse depois de terem alcançado uma posição superior. Então o ditador consolidava a situação constituída e as novas burguesias concediam-lhe seu apoio baseado no reconhecimento de que representavam a paz social.
Em geral, a relação entre o ditador e as novas burguesias foi fluida, como de quem não ignora recíproca dependência. Mas a mobilidade social começou a introduzir inesperadas e insuspeitáveis variantes nessas relações. Se o ditador descobrisse que um grupo social em ascensão podia oferecer-lhe determinado apoio que aumentasse a sua autoridade pessoal, resistiria com dificuldade à tentação de romper sua dependência do grupo que o havia projetado. O ditador deixava de se considerar procurador de uma classe e da política dessa classe para assumir o papel de representante de uma nova sociedade – de um novo avatar da sociedade em mudança – na qual começavam a ser cada vez mais importantes as massas urbanas, despolitizadas e de tal modo carentes que era possível convocá-las, protegê-las e utilizá-las sem pagar por isso um preço político. Os velhos ditadores transformaram-se em uma nova espécie que se insinuou nas primeiras décadas do século XX e cuja teoria o venezuelano Laureano Vallenilla Lanz expressou em termos inequívocos ao justificar, em 1919, o tipo de poder de Juan Vicente Gómez, em seu livro Cesarismo democrático:
Se em todos os países e em todos os tempos se comprovou que, acima de quantos mecanismos institucionais se encontrem hoje estabelecidos, existe sempre, como uma necessidade fatal, a sentinela eletiva ou hereditária com olho aquilino, de mão dura, que pelas vias de fato inspira o temor e que pelo temor mantém a paz, é evidente que em quase todas estas nações da América Hispânica, condenadas por causas complexas a uma vida turbulenta, o caudilho organizou a única força de conservação social, realizando-se ainda o fenômeno que os homens de ciência assinalam nas primeiras etapas de integração das sociedades: os chefes não se elegem, mas se impõem.
Foi uma nova maneira de entender a sociedade, de tradição romântica e vinculada a incipientes fenômenos sociais. E foi uma maneira de entender o poder político. Mas as novas burguesias tinham muito internalizados os princípios básicos do liberalismo individualista. Elas os preferiam, sem hesitação, aos do autoritarismo. Estavam dispostas a transigir somente se certo autoritarismo deixasse vigorar um sistema liberal para elas, ao passo que fosse exercido plenamente no que tangia às outras classes. A rigor, as novas burguesias acreditavam sobretudo nos princípios do liberalismo econômico, vigentes nesse momento nos centros dominantes do mundo industrial porque convinham aos seus interesses. Acreditavam na competição, sobretudo, na destreza para impor a vontade e os desejos de cada um nessa extraordinária “luta pela vida” que Darwin havia descrito como esquema fundamental do comportamento dos seres biológicos, entendendo que o homem era, antes de mais nada, um ser biológico. O liberalismo econômico transferia a idéia da luta pela vida para a da luta pela riqueza e a ascensão social, e justificava as estudadas estratégias, as sórdidas táticas dos que competiam no mercado utilizando uma transposição do esquema básico de que era necessário escolher entre adaptar-se ou morrer. Com essa filosofia – chamemo-la assim –, as novas burguesias davam um suporte às suas atitudes básicas, expressas na ideologia do êxito econômico e da ascensão social.
Por volta do final do século XIX, alguns grupos que adotaram outras posturas se destacaram de seu meio. Apareceram ao lado das novas burguesias aqueles que pensavam que, mantidas as mesmas concepções básicas, era chegado o momento de abandonar as atitudes restritivas para oferecer ampla participação a quem, em sucessivos movimentos, alcançava o êxito econômico e a ascensão social. Tais “posturas democráticas” pareceram suicidas para alguns, que temiam perder algo na divisão, e prudentes para outros, que preferiam conceder de graça o que temiam perder pela força. Mais do que “democráticas”, essas posturas foram consideradas “radicais”, e talvez com razão, porque não importavam uma modificação de conteúdo, mas, apenas, uma extensão para novos grupos daquilo que antes havia sido considerado adequado para os primeiros que se encaminharam nas novas formas de vida.
Este liberalismo democrático e progressista enraizou-se sobretudo nas classes médias e populares, pelo menos até que aparecessem fórmulas mais avançadas. Em Lima, Manuel González Prada pronunciou em 1888, no Teatro Politeama, um célebre discurso no qual sustentou uma ousada ordem revolucionária: “Os velhos para a sepultura, os jovens para o trabalho.” Seus esforços cristalizaram-se na formação do Partido União Nacional, bastante semelhante à União Cívica Radical que Leandro N. Alem organizou em Buenos Aires. Eram partidos populares que ofereciam participação política às novas maiorias, de preferência urbanas, sem definir claramente os seus objetivos finais.
Em outras cidades, a politização dessas maiorias também foi importante, como em Montevidéu e Santiago do Chile. Mas alguns de seus segmentos preferiram soluções mais concretas: Buenos Aires viu organizar-se um Partido Socialista sob a inspiração de Juan B. Justo; e de suas fileiras saiu Alfredo L. Palacios, que conseguiu, em 1904, no popular bairro portenho da Boca, a primeira cadeira que um socialista latino-americano ocupou no congresso. Emilio Frugoni, em Montevidéu, e Luis Emilio Recabarren, nas zonas mineiras e em Santiago do Chile, lutaram pela formação de partidos socialistas, que chegaram a ter certa força eleitoral e política. Ao lado de todos eles, lutavam os anarquistas e os sindicalistas, enquanto os católicos procuravam opor-lhes uma força não revolucionária através dos primeiros Círculos de Operários Católicos que constituíram de acordo com os ensinamentos da encíclica Rerum Novarum. Houve disputas pelas idéias; mas como o movimento operário socialista e anarquista organizou greves importantes, foi considerado subversivo e sofreu uma impiedosa repressão. As grandes cidades pareceram escapar a todo controle e alguns consideraram imprudente manter a vigência da ordem liberal e das liberdades individuais. A idéia da ditadura começou a aninhar-se em muitas mentes. Em Lima, ao celebrar-se o centenário da batalha de Ayacucho, em 1924, o poeta argentino Leopoldo Lugones proclamou a chegada da “hora da espada”. E viam-se alguns segmentos incorporarem-se à corrente ideológica do fascismo italiano.
A rigor, o crescimento da riqueza, o processo de ascensão social de amplos grupos e o crescimento demográfico – em especial o provocado pelas migrações estrangeiras – haviam modificado o perfil das sociedades no transcurso de meio século, e nos anos subseqüentes à Primeira Guerra Mundial era visível que não existia um novo molde para entender as transformações que haviam ocorrido. As cidades foram, sobretudo, a tela na qual as mudanças sociais foram mais bem observadas e, em conseqüência, onde ficou mais à vista a crise do sistema interpretativo da nova realidade. Percebeu-se que esta não era entendida, e não podendo captar-se o novo e diferenciado conjunto como tal, insistiu-se em cada um de seus grupos. Então descobriu-se que a cidade não era um conjunto integrado, e sim uma justaposição de grupos de diferentes mentalidades. A imagem de Babel voltou – uma vez mais – a simbolizar a confusão própria das cidades em crescimento, com grupos externos incorporados e grupos internos integrados. A sociedade urbana que começava a ser multitudinária provocava a quebra do velho sistema comum de normas e valores sem que nenhum outro o substituísse. Cada grupo retomou ao seu sistema normativo básico, e o conjunto começou a exibir um típico quadro de anomia.
Talvez algumas poucas cidades latino-americanas deram essa impressão às vésperas de 1930. Houve umas quantas em que se apresentou todo o conjunto desse quadro e várias nas quais apareceram, pelo menos, alguns de seus traços. Nos grupos recém-incorporados à carreira da ascensão social houve uma intensificação da agressividade, um desprezo mais irracional pelas regras do jogo, certo impulso um pouco mais primitivo para lutar por aqueles fins que lhes pareciam imediatos. Era como o início de uma degradação da ideologia da ascensão social, que, por certo, continuou degradando-se. Em grandes grupos aparecia vagamente a certeza de que o conjunto social – ou talvez o Estado – estava obrigado a impulsionar e a apoiar o processo de ascensão dos marginalizados e dos recém-chegados, deixando de lado as regras tradicionais da competição. Muitos seguiram confiando em sua ascensão individual, mas outros começaram a pensar que era o grupo, o segmento ou a classe que deveria ascender como um todo, graças ao apoio de um Estado com um novo perfil. Era um verdadeiro questionamento da ideologia da ascensão social.
Nesse ínterim, em segmentos integrados e beneficiários do sistema começaram a ser observadas insólitas doutrinas que conspiravam contra a sua estabilidade. Houve quem questionasse a legitimidade do lucro e a moralidade da livre concorrência. Começou-se a contestar a validade da família, das formas tradicionais da educação, das relações sociais e econômicas. Para muitos, os velhos costumes – os dos últimos trinta anos – começaram a parecer ridículos e sucumbiram, condenados como “preconceitos”. Foi uma palavra definitiva na boca das jovens gerações das novas burguesias, que, de resto, já começavam a ser velhas. A alguns filhos parecia um conjunto de ridículos preconceitos o que chamavam de “a moral vitoriana” de seus pais. Eles preferiam atitudes mais livres e espontâneas diante das situações reais que, na verdade, haviam mudado nas vésperas de 1930 o suficiente para que ficasse patente a necessidade de revisar o sistema de normas. A Inglaterra pós-vitoriana não as havia modificado muito, nem sequer depois da Primeira Guerra; mas, sim, outros países da Europa e os Estados Unidos, exemplos a que começaram a recorrer os que, na década de 1920, iniciaram a transformação da existência convencional das cidades latino-americanas. Lentamente iniciou-se uma sacudidela no vetusto sistema de idéias acerca do papel da mulher na sociedade e, ao compasso dessa mudança, a sociedade inteira deslizou em direção a uma mudança de normas.
Ninguém teria podido encontrar coerência nas novas atitudes políticas, sociais, estéticas ou morais que surgiram nas vésperas da crise de 1930. Porém foram muitos a observar que havia passado o apogeu da mentalidade burguesa. Quase ninguém sabia pelo que se poderia substituí-la; mas poucos dos que percebiam a metamorfose das cidades latino-americanas duvidavam de que outras formas de interpretação da realidade e dos projetos de vida estavam sendo elaboradas surdamente nessas sociedades urbanas que se inflamavam.
Notas
1. Modernismo: na América Hispânica, corresponde aos movimentos simbolista e parnasiano, do fim do século XIX, de renovação da linguagem, sobretudo por influência da França, enquanto no Brasil corresponde à vanguarda surgida após a Primeira Guerra Mundial. (N. do T.)
2. Boiserie (fr.): parede forrada de madeira. (N. do T.)
7.
AS CIDADES MASSIFICADAS
A crise de 1930 unificou visivelmente o destino latino-americano. Cada país teve de ajustar as relações que mantinha com aqueles que, no exterior, compravam dele e lhe vendiam, e ater-se às condições que o mercado internacional lhe impunha: um mercado enfraquecido, no qual os mais poderosos lutavam como feras para salvar ao máximo possível o que era seu, mesmo à custa de difamar os seus aliados de outrora. Iniciava-se um período de escassez que seria observado tanto nas cidades quanto nas zonas rurais. A escassez podia levar à fome e à morte. Porém foi, além disso, o motor desencadeador de intensas e variadas mudanças. De repente, pareceu que havia maior quantidade de gente que se movimentava mais, que gritava mais, que tinha mais iniciativa; mais gente que largava a passividade e demonstrava estar disposta a participar da maneira que fosse da vida coletiva. E de fato houve mais gente e, em pouco tempo, viu-se que representava uma força nova a crescer como uma torrente cujas vozes soavam como um clamor. Houve uma espécie de eclosão de pessoas, cujo número não se podia calcular com exatidão, nem saber a opinião, para que se pudesse contar com eles e ouvi-los. Uma vez mais, como nas vésperas da emancipação, começou a brotar por entre as brechas da sociedade organizada pessoas de origem indefinida que procuravam instalar-se nela; e à medida que o conseguiam, transformavam-na em uma nova sociedade, surgida pela primeira vez com características inéditas em algumas cidades. Eram as cidades que começavam a massificar-se.
Tudo foi gerado a partir da época da Primeira Guerra Mundial e ao longo dos dez anos subseqüentes. Os países europeus e os Estados Unidos controlavam com afinco suas economias, por um lado para estancar suas feridas, e por outro para colocar-se em posição mais vantajosa dali em diante. Mas a tarefa era difícil, e em 1929 o complexo sistema financeiro e monetário dos vencedores estremeceu-se com inusitada violência. O crack da bolsa de Nova York desarticulou todo o sistema e varreu quase instantaneamente as peças menores. Pouco depois, tornaram-se visíveis as conseqüências secundárias da catástrofe, que afetavam a própria economia, e os protagonistas do drama resolveram atuar de modo drástico para salvar-se.
Entre os passos que deram, um muito importante foi o de cada um ajustar as suas relações com os países de sua periferia, aos quais vendiam produtos manufaturados e dos quais compravam matérias-primas. As vendas retraíram-se e os preços despencaram. O pânico multiplicou os efeitos do novo plano e somaram-se os efeitos sociais e políticos às conseqüências econômicas da crise.
Era inevitável que os possuidores latino-americanos de riqueza repetissem a manobra da qual haviam sido vítimas. Sujeitos a aceitar as condições do mercado internacional, procuraram adaptar-se à vida interna de cada um dos seus países para que não tivessem de pagar sozinhos os prejuízos e, se possível, para que fossem pagos exclusivamente pelos demais. Houve revoluções, mudanças na política econômica, modificações substanciais nos mecanismos financeiros e monetários, e ajustes nas relações entre o capital e o trabalho, muitas vezes aperfeiçoados, quando necessário, com uma enérgica política repressiva das classes populares. Para elas não houve misericórdia nem sequer julgamento. Amplos setores acabaram na miséria, mas procuraram em seu horizonte como sair dela. Pareceu a muitos que uma das saídas era a emigração para as cidades.
Em algumas cidades, começavam precisamente a desenvolver-se determinadas indústrias para substituir as importações, quer porque os capitais estrangeiros haviam começado a estabelecê-las, quer porque o calor desses primeiros incentivos despertasse nos capitalistas locais a tentação de fazer investidas na indústria. Desta forma, uma demanda de trabalho urbano com bons salários começara a surgir e liberou a imaginação de muitos desempregados rurais. Surgiu uma bola de neve, cujas conseqüências foram amargas. Havia desenvolvimento urbano e, ao mesmo tempo, desemprego e miséria urbana, porque a oferta de trabalho superava sempre a demanda. A situação melhorou um pouco a partir de 1940, quando a Segunda Guerra Mundial provocou uma ativação do abastecimento dos beligerantes. Em pouco tempo surgiram inusitadas fontes de trabalho, apesar de ser sempre a demanda por empregos superior ao número de vagas disponíveis.
Nos anos subseqüentes à Segunda Guerra Mundial, não foi difícil observar que, em quase todos os países latino-americanos, a velha estrutura socioeconômica abalada em 1930 não havia conseguido recuperar-se e que uma mudança espontânea e imprevisível começava a insinuar-se. Fatos isolados revelavam que novos caminhos se abriam, mas era imperceptível o sistema no qual se inseririam. E, ao cabo de muito pouco tempo, verificou-se que se tomava consciência desse fenômeno e que se começava a trabalhar em projetos de organização do desenvolvimento econômico para corrigir com um novo sentido e com novas possibilidades as velhas estruturas. Na década de 1940, múltiplas possibilidades começavam a oferecer-se aos países latino-americanos.
A situação piorou um pouco depois. Contudo, algumas perspectivas ficaram abertas para muitos países latino-americanos: apenas os velhos esquemas não podiam ser repetidos, e urgia correr o risco de escolher um esquema novo e explorar suas possibilidades na prática. Foi uma era de sondagens, ainda não esgotadas, para canalizar os novos problemas de uma sociedade transtornada. No entanto, assim como no caso da explosão social do final do século XVIII, a que ocorreu depois da crise de 1930 consistiu sobretudo em uma ofensiva do campo sobre a cidade, de modo que se manifestou sob a forma de uma explosão urbana que transformaria as perspectivas da América Latina. Por certo, houve muitas cidades que não alteraram o seu ritmo de crescimento e muitas que permaneceram estagnadas. Porém, a América Latina assistiu à decolagem de um determinado número de cidades, algumas das quais alcançaram com rapidez a categoria de metrópole; outras, em compensação, iniciaram o seu desenvolvimento, mas em circunstâncias tão favoráveis que assumiram precocemente a condição de grandes cidades em potência e demonstraram que chegariam a esse ponto em um prazo não muito longo. De qualquer maneira, várias cidades transformaram-se em pólos com tamanha importância em sua região e em seu país que influenciaram de modo decisivo o conjunto. As regiões e os países giraram, ainda mais do que antes, ao redor das grandes cidades, reais ou potenciais. E cada uma delas representou um foco sociocultural original em que a vida adquiriu traços inéditos.
O fenômeno latino-americano acompanhava de perto o que havia acontecido nos países europeus e nos Estados Unidos, mas adquiriu caracteres socio-culturais diferentes. Em algumas cidades, esses imprecisos grupos sociais, alheios à estrutura tradicional, começaram a organizar-se, e receberam o nome de massas.
E ali onde apareceram, o conjunto da sociedade urbana começou a massificar-se. O perfil do hábitat mudou e as formas de vida e as mentalidades massificaram-se. A medida que se massificavam, algumas cidades de intenso e rápido crescimento começaram a insinuar uma transformação em sua fisionomia urbana: deixaram de ser estritamente cidades para transformar-se em uma justaposição de guetos isolados e anômicos. A anomia começou a ser também uma característica do conjunto.
Foi um processo que se iniciou surdamente com a crise de 1930 e que prossegue, talvez mais intensamente hoje, até chegar a caracterizar e definir a situação contemporânea da América Latina. E talvez não seja menos significativo que, por um efeito de demonstração, começaram a massificar-se também muitas cidades em cujas sociedades as massas ainda não se haviam formado.
1. A explosão urbana
Nas primeiras décadas do século XX, ocorreu em quase todos os países latino-americanos, com diferente intensidade, uma explosão demográfica e social cujos efeitos não demoraram a ser observados. Tardou-se mais a identificar o fenômeno e ainda mais a distinguir o estritamente demográfico do social. Houve, notoriamente, um crescimento da população com clara tendência a manter-se e a aumentar. Porém, logo em seguida começou a produzir-se um intenso êxodo rural que transferia para as cidades um grande contingente da população, de modo que a explosão sociodemográfica transformou-se em uma explosão urbana. Com este rosto apresentou-se o problema nas décadas subseqüentes à crise de 1930.
No México, a revolução de 1910 redundou em um processo de desenraizamento rural que se canalizou, a partir de 1920, em uma contundente marcha para as cidades: documenta o fenômeno a vasta literatura romanesca da revolução, a partir de Los de abajo, de Mariano Azuela, publicado em 1916, e de La sombra del caudillo, que Martin Luis Guzmán publicou em 1929. No Peru, na década de 1920, os serranos começaram a descer para Lima pelo caminho que havia sido aberto a partir de Puquio. “Ao mesmo tempo” – relata José María Arguedas em Yawar Fiesta – “os serranos do norte, do sul e do centro desceram para a capital por todos os caminhos novos”. A crise das salitreiras levou milhares de desabrigados para as cidades chilenas; a da agricultura pampeana, para as cidades argentinas; a do café e da seca, dos sertões para as cidades brasileiras. Em quase todos os lugares se deram os mesmos fatos. Explosão demográfica e êxodo rural combinaram-se para configurar um fenômeno complexo e incisivo, no qual o quantitativo e o qualitativo se misturavam diabolicamente e cujo cenário seriam as cidades escolhidas para a concentração desses imigrantes desesperados e esperançosos ao mesmo tempo.
Prolíficos em seus lugares de origem, os imigrantes continuaram a sê-lo nas cidades em que se fixaram e onde formaram um conjunto agregado, perdido na complexidade da sociedade tradicional. Uma vez instalados, continuaram aumentando em número. Famílias numerosas se apinhavam nos antigos bairros pobres ou nas áreas marginais das cidades, e iam se agrupando às vezes por virem dos mesmos povoados e outras pela região de onde se originavam. E à medida que o grupo crescia, sua presença tornava-se mais visível e alertava acerca do fenômeno demográfico que estava ocorrendo. Se algum dos imigrantes saía do seu gueto e aparecia em outro bairro, chamava a atenção da sociedade tradicional e merecia um qualificativo especial: era o “peladito” da Cidade do México ou o “cabecita negra” de Buenos Aires. Via-se que a cidade se inundava, e o número dos recém-chegados, dos de fora da cidade, continuou crescendo a uma velocidade maior do que a que esses tiveram para alcançar os primeiros graus da integração.
Os imigrantes internos traziam viva a lembrança do seu lugar de origem: as áreas rurais debilitadas ou as aldeias e pequenas cidades empobrecidas. O brasileiro Jorge Amado mostrou em Gabriela, cravo e canela uma imagem brilhante desses imigrantes fugitivos da seca do sertão. Camponeses queriam continuar sendo camponeses, e tentar a sorte com os cultivos em alta. Mas outros, camponeses também, tentavam se acertar nas oportunidades da cidade, e aqueles que conheciam alguma profissão, ou tomaram a decisão de aprendê-la, permaneciam nas cidades. Assim cresceram Ilhéus, Salvador, Recife e sobretudo São Paulo, com as pessoas que começavam a sentir a crise do café somada com aquelas que emigraram do Nordeste.
Mas nem todos os imigrantes vinham do campo. Muitos saíam de pequenas ou médias cidades cuja decadência se acentuava: de Ayacucho ou Cajamarca, no Peru, dos povoados da savana, na Colômbia, de San Carlos de Salta ou Moisesville, na Argentina. Assim criou-se a imagem da cidade abandonada, como aquela das planícies venezuelanas chamada Ortiz por Miguel Otero Silva em seu romance Casas muertas, ou a de Comala onde Juan Rulfo situa Pedro Páramo, ou, enfim, a ilusória Macondo que Gabriel García Márquez evoca em Cem anos de solidão. A miséria sem esperanças expulsava da cidade os jovens, os que não se conformavam em enterrar-se vivos na cidade que morria, os que ainda tinham força moral para tentar reconstruir a sua vida em outro lugar. E a velha cidade acelerava o seu declínio, abandonada e em ruínas a maioria de suas casas, e povoada apenas por velhos que arrastavam os seus trabalhos e os seus dias.
Houve, portanto, povoados e cidades de diferente grandeza aos que a explosão urbana não contagiou com seu dinamismo nem beneficiou com a mobilização sociodemográfica que produziu. Ao contrário, foram suas vítimas. A custa de sua despovoação cresceram outros povoados que começavam do nada em regiões onde aparecia uma nova fonte de riqueza que dava asas à imaginação. “Tenho ouvido dizer dos caminhoneiros” – explicava o personagem de Casas muertas – “que, enquanto Ortiz se acaba, enquanto Parapara se acaba, em outros lugares se estão fundando povoados”. Estes entravam na explosão urbana, mas ao preço do declínio de outros, que se acabavam diante da impotência de seus antigos povoadores, que não entendiam quem controlava as tramas de seu destino.
Mas às vezes não se acabavam por completo. Aqueles que não emigravam costumavam encontrar algumas frágeis maneiras de vida que sustentavam, em parte pelo menos, a estrutura do povoado. Uma economia mínima alimentava-os. Mas os novos tempos ofereceram outras opções para muitos deles, quando, por exemplo, uma estrada os colocava na rota do desenvolvimento. E, sobretudo, quando alguém descobria que uma sonolenta paragem escondia algum encanto capaz de atrair o fluxo do turismo. Sinal dos tempos, a vocação turística crescia nas grandes cidades e expandia-se sobre os pequenos recantos nos quais se conservava algum vestígio desse passado que se perdia irremediavelmente nas grandes cidades. E a prodigiosa organização dessa nova indústria do turismo guiava a curiosidade, inventava o indescritível encanto de um lugar e de repente insuflava nova vida à velha cidade que parecia moribunda. Um cuidadoso folheto com umas sugestivas fotografias redescobria um lugar: sua silenciosa praça, sua velha igreja, seus antigos casarões, alguns dos quais guardavam uma desvanecida lembrança da história da pátria. As caravanas de turistas, estrangeiros e nacionais, começaram a alimentar a vida artificial de algumas cidades, e entre elas estavam aquelas que com justiça podiam ser chamadas de “cidades-museu”, como Taxco ou Guanajuato no México, como Antigua Guatemala, como Villa de Leyva na Colômbia, ou a própria cidade de Cuzco no Peru. E, ao contrário das “cidades-dormitório”, estas, desabitadas à noite, exibiam um barulhento movimento durante o dia, entre o ir e vir dos ônibus de turismo, dos automóveis, dos grupos que se deslocavam tirando fotografias ou comprando souvenirs. Este disfarce da estagnação não alcançou somente as cidades que a emigração esvaziara, mas também muitas que, talvez, já arrastavam a sua imobilidade há muito tempo.
De várias outras cidades, por certo, não se pode dizer que se estivesse disfarçando a estagnação. Nascidas durante a colônia ou surgidas depois – em um momento favorável para a região –, nada estimulou o seu crescimento. Seria impossível enumerá-las porque a sua quantidade supera de longe à das cidades em processo de crescimento e seria ocioso porque seus nomes não ressoam fora do país a que pertencem. Mas pode-se recordar o nome de algumas, escolhidas ao acaso, ou talvez entre as mais significativas nas vésperas da erupção urbana: Popayán, San Cristóbal, Ouro Preto, Maldonado, Concepción del Uruguay, Loja, Sucre, León. Nem por elas, nem por outras tantas iguais a elas, a explosão urbana passou, porque os movimentos migratórios e os fenômenos que os acompanharam não podiam ocorrer senão onde existia um pólo de atração e uma possibilidade, efêmera ou duradoura, de desenvolvimento.
Como ocorreu anteriormente com o ouro e depois com a borracha, o petróleo despertou neste período uma viva esperança. Com a ilusão do petróleo os imigrantes venezuelanos de Casas muertas iam em busca desse “Oriente” onde estava a Ciudad Bolívar, uma cidade que na década de 1930 não chegava a 20.000 habitantes e que quadruplicaria sua população em 1970. Mais espetacular era o crescimento do centro de produção petroleira da Venezuela, Maracaibo: quase 100.000 habitantes na década de 1930, e depois 235.000, em 1950, 420.000, em 1960, e 660.000, em 1970. E foi de alguma significação o crescimento da cidade de Comodoro Rivadavia, erguida no deserto petroleiro da Patagônia argentina, e que passou de 5.000 habitantes na década de 1930 a quase 90.000, em 1970.
No entanto, o que mais poderosamente atraiu a atenção dos que queriam abandonar as zonas rurais ou as cidades estagnadas foi a metrópole, a grande cidade cuja aura crescia no indefinido comentário de quem sabia algo a seu respeito, e ainda mais através dos meios de comunicação de massa: os jornais e as revistas, o rádio e, em especial, o cinema e a televisão, ao mostrarem ao vivo uma paisagem urbana que suscitava admiração e surpresa. A grande cidade abrigava uma intensa atividade terciária, com muita luz, vários serviços de índole diversa, inúmeros comércios grandes e pequenos, muita gente de boa posição que podia precisar de criados ou dos variados serviços próprios da vida urbana; a atração era ainda maior se a cidade havia começado a dar o salto para a industrialização. Era um bom sinal; aqueles que começavam a projetar a instalação de fábricas buscavam uma infra-estrutura favorável, bom abastecimento de água e energia elétrica, bons transportes e comunicações. Esperavam encontrar uma estrutura eficaz para a comercialização e às vezes desejavam participar dos privilégios concedidos em certas áreas para a localização de indústrias e para aproveitar a proximidade dos grandes centros financeiros, administrativos e políticos. Essa grande cidade era a preferida. Ali o imigrante poderia encontrar “trabalho urbano”: nos serviços, no comércio ou na indústria, e talvez com altos salários se alcançasse o nível de formação suficiente para ser um trabalhador qualificado.
Porém, o grande centro urbano oferecia mais. O trabalho urbano era feito em companhia de outros trabalhadores com quem se compartilhava, primeiro a tarefa, e depois o comentário, as reações, talvez a luta contra o patrão através de sindicatos que ofereciam a possibilidade de uma intensa participação na vida social. O trabalhador vivia em um ambiente urbano, compacto, tentador. De dia, as ruas estavam cheias de gente, e vê-las, apenas, já era um espetáculo; à noite, as ruas iluminavam-se, e os estabelecimentos comerciais, os cinemas, os teatros, os cafés também acendiam seus letreiros; havia aonde ir. E nos domingos eram oferecidas diversões populares que reuniam muitas pessoas e nas quais até se podia deixar de lado as repressões cotidianas. Talvez o mais difícil fosse ter um teto, mas no fim das contas acabavam conseguindo-o, bom ou ruim. E a partir da moradia, rudimentar talvez, mas urbana, afinal, parecia que se tinha o direito de reclamar todos os benefícios da vida urbana, aqueles de que usufruía quem já estava estabelecido e integrado. Até o consumo começava a parecer possível: um rádio, uma geladeira e, talvez, no fim das contas, um televisor. Tudo isso a grande cidade parecia oferecer ao imigrante que se aproximava dela com essa incerta esperança.
O problema era chegar e, logo depois, introduzir-se no misterioso contexto social da cidade. Era difícil conseguir um teto, um trabalho, um amigo familiarizado com a cidade que iniciasse o recém-chegado em seus segredos. Mas pouco a pouco se conseguia, algumas vezes nos núcleos degradados da cidade e outras vezes nas zonas marginalizadas. E quando se conseguia, a massa imigrante se agregava ao conjunto das classes populares tradicionais e multiplicava o seu número, isto é, aumentava enormemente a proporção numérica das classes populares em relação às demais. Muitos tiveram a sensação de que a cidade podia explodir a qualquer momento, porque, além disso, a taxa de crescimento vegetativo era alta nas classes populares. E algumas explodiram. As tensões sociais intensificaram-se porque o crescimento desmedido da população urbana criou um círculo vicioso: quanto mais a cidade crescia, mais expectativas criava e, em conseqüência, atraía mais gente, porque parecia poder absorvê-la; mas, a rigor, o número dos que se incorporavam à estrutura urbana era sempre superior ao que a estrutura podia suportar. Era inevitável que a explosão urbana, nascida de uma explosão sociodemográfica, desencadeasse, por sua vez, graves explosões sociais no seio das cidades.
As migrações e o alto índice de aumento vegetativo contribuíram para provocar o crescimento quantitativo das cidades. Outras circunstâncias concorreram para que houvesse, na nova estrutura social das cidades que cresciam, uma transformação qualitativa que influiria sobre as características da explosão urbana. Mas, de qualquer maneira, foi mais evidente o aumento numérico da população.
Apenas cerca de dez cidades superavam, no ano de 1900, os 100.000 habitantes. No entanto, em 1940, quatro cidades – Buenos Aires, México, Rio de Janeiro e São Paulo – ultrapassavam um milhão de habitantes, chegando a primeira a alcançar os dois milhões e meio; estava, portanto, entre as maiores cidades do mundo. Nesse mesmo ano, cinco cidades ultrapassavam o meio milhão: Lima, Rosário, Havana, Montevidéu e Santiago do Chile, sendo que esta última já atingia um milhão. E onze cidades ultrapassavam os 200.000 habitantes: três no Brasil – Recife, Salvador e Porto Alegre –, três na Argentina – Avellaneda, Córdoba e La Plata –, uma no México – Guadalajara –, uma na Bolívia – La Paz –, uma na Colômbia – Bogotá –, uma na Venezuela – Caracas – e outra no Chile – Valparaíso.
No decorrer dos trinta anos seguintes a situação intensificou-se. Oito capitais não só ultrapassaram um milhão de habitantes como também, espalhando-se sobre extensas áreas metropolitanas, alcançaram cifras comparáveis às das cidades mais povoadas do mundo: duas delas, México e Buenos Aires, ultrapassaram os oito milhões e meio de habitantes. Quatro capitais – Santiago, Lima, Bogotá e Caracas – tiveram um crescimento vertiginoso. Santiago estava perto de um milhão em 1940 e chegou a 2.600.000 trinta anos depois; porém, no mesmo prazo, Lima passou de 600.000 para 2.900.000, Bogotá de 360.000 para 2.540.000 e Caracas de 250.000 para 2.118.000. O crescimento foi tão vertiginoso, que se poderia dizer de todas elas o que Antonio Gómez Restrepo escrevia sobre Bogotá bem no início deste processo:
Nós, os bogotanos, continuamos a ser uma colônia cada dia menor em nossa terra natal, mas esta mesma superabundância de pessoas, se por um lado contribuiu para a formação dos novos bairros residenciais e de outros, muito bem acomodados, para empregados e humildes funcionários, por outro lançou sobre os subúrbios uma massa confusa que buscou refugio em um conglomerado de moradias miseráveis, carentes de qualquer higiene.
As migrações encantoavam a sociedade tradicional da capital, infiltravam-se nela ou às vezes a cercavam. Notou-se menos isso nas capitais que não chegaram na época a alcançar dois milhões de habitantes: Montevidéu e Havana.
Entretanto, outras cidades que não tinham categoria de capitais também haviam alcançado um notável crescimento. Rio de Janeiro, que deixou de ser a capital brasileira em 1960, havia passado de 1.800.000 habitantes, em 1940, para 6.700.000, em 1970, na área metropolitana; mas o seu crescimento foi menos intenso do que o de São Paulo, cujo prodigioso desenvolvimento evidenciou todos os elementos que contribuem para o processo latino-americano de urbanização. Com uma população de 1.326.000 em 1940, a cidade industrial, espalhada sobre uma imensa área suburbana e ultrapassando esses limites de modo incontido, alcançou, em 1970, no conjunto da zona metropolitana, 7.750.000. Outras cidades brasileiras cresceram consideravelmente: de 1940 a 1970, Recife passou de 250.000 para 1.200.000 habitantes, Porto Alegre, de 350.000 para pouco mais de um milhão, e Salvador, na Bahia, de 350.000 para um milhão.
A mais de um milhão de habitantes chegou também, por volta de 1970, a população de duas cidades colombianas do vale de Cauca, Cali e Medellín, ambas estabelecidas em centros comerciais e industriais de áreas muito ricas, mas cuja população rural optou pela emigração: mais de 400.000 camponeses chegaram a Medellín, entre 1938 e 1968, para estabelecer-se nos “bairros piratas” da cidade. E por volta de 1970, duas cidades mexicanas chegaram bem perto dos dois milhões: Guadalajara, antiga capital do estado de Jalisco e tradicionalmente a segunda cidade do país, que passou de 229.000, em 1940, para um milhão e meio, em 1970, ou ainda mais, se for considerada a sua área metropolitana; e Monterrey, a nova metrópole industrial surgida ao pé do morro de la Silla, que, contando com quase 50.000 habitantes, em 1940, chegou a 1.200.000, em 1970.
Não menos transcendental – no âmbito nacional e regional – foi o crescimento de outras cidades que estavam próximas do meio milhão de habitantes, como Guayaquil, no Equador, ou Barranquilla, na Colômbia, e ainda outras que oscilavam entre um pouco mais ou um pouco menos de meio milhão, como Maracaibo, na Venezuela, Puebla, no México, ou Rosário e Córdoba, na Argentina. Em todos estes casos, o pólo urbano funcionou como uma opção diante da crise das áreas rurais e, em cada caso, no seu âmbito provocou migrações, concentrações de população e eclosão urbana. Porém, o mais significativo foi que as inumeráveis pequenas eclosões urbanas tiveram a mesma influência. Dezenas e dezenas de cidades que tinham entre vinte e quarenta mil habitantes por volta de 1930 viram sua população triplicar ou quadriplicar em quarenta anos, provocando em pequena escala os mesmos fenômenos sociais que ocorriam nas grandes cidades. Cidades com 200.000 habitantes sentiram-se massificadas e viram a sua infra-estrutura superada pelo crescimento da população. E quase se poderia acrescentar que mesmo em cidades menores ainda, mas de crescimento acelerado, efeitos semelhantes eram observados.
A explosão urbana modificou o perfil das cidades. Queixaram-se disso aqueles que desfrutaram delas antes, aprazíveis e tranqüilas, mas, sobretudo, com uma infra-estrutura suficiente para o número de habitantes que possuíam. Os invasores as desfiguraram e fizeram delas uns monstros sociais que, além disso, apresentaram, nesta mesma época, as características inumanas que lhes conferiu o desenvolvimento técnico. Alguém chegou a dizer que as cidades já eram “invisíveis”. O peruano Sebastián Salazar Bondy reuniu suas observações sobre a sua cidade em um livro que intitulou Lima, la horrible. E referindo-se à explosão urbana e à massificação da cidade, escrevia, em 1962:
Faz bastante tempo que Lima deixou de ser […] a tranqüila cidade regida pelo horário de matinas e ângelus, cujo acatamento emocionava o francês Radiguet. Tomou-se uma urbe onde dois milhões de pessoas vivem aos tapas, em meio a buzinas, rádios selvagens, congestões humanas e outras loucuras contemporâneas, para sobreviver. Dois milhões de seres que se movimentam abrindo passagem […] entre as feras que o subdesenvolvimento aglomerador faz dos homens. O caos civil, produzido pela famélica afluência urbana de cancerosa rapidez, constituiu-se, graças à voragem produzida pela capital, em um ideal: o país inteiro deseja deslumbrado lançar-se nele, atiçar com a sua presença o holocausto do espírito. O engarrafamento de veículos no centro e nas avenidas, a brutal competição de vendedores ambulantes e mendigos, as cansativas filas diante dos precários meios de transporte, a crise da moradia, as inundações devido às tubulações que arrebentam, o incipiente sistema telefônico que provoca a neurose, tudo isso é obra da improvisação e da malícia.
Ambas seduzem fulgurantes, como os olhos da serpente, a candura provinciana para depois poder liquidá-la com os seus sujos e confusos absurdos. A paz conventual de Lima, que os viajantes do século XIX e também os do início do XX consideraram como propícia para a meditação, acabou varrida pela explosão demográfica, mas a mutação foi apenas quantitativa e superficial: o tumulto urbano dissimulou, mas não suprimiu, a vocação melancólica dos limenhos, porque a Arcádia colonial torna-se cada vez mais arquetípica e desejável.
Tais foram os efeitos da eclosão sociodemográfica, mas ninguém queria deixar a cidade. Viver nela transformou-se em um direito, como assinalava Henri Lefebvre: o direito de usufruir dos benefícios da civilização, de desfrutar do bemestar e do consumo, talvez o direito de mergulhar em determinado estilo excitante de alienação. As cidades cresciam, os serviços públicos tornavam-se cada vez mais deficientes, as distâncias mais longas, o ar mais impuro, os ruídos mais ensurdecedores. Mas ninguém – ou quase ninguém – quis nem quer renunciar à cidade. Núcleos de concentração de forças, as cidades exerceram cada vez mais influência sobre a região e o país. E nas cidades, adquiriram cada vez mais influência as massas, essas formações sociais que as tipificam desde a explosão urbana. Por certo, a explosão urbana desencadeou uma revolução, latente e perceptível. Ou talvez seja a forma em que se manifesta uma revolução cega, nascida do processo social. No entanto, a cidade, fiel a sua vocação, começou a submeter a revolução cega a um severo tratamento e foi abrindo os seus olhos. Aos poucos, começou a tentá-la com o fruto agridoce da ideologia.
2. UMA SOCIEDADE DIVIDIDA
Naquelas cidades onde ocorreu a concentração de grupos imigrantes houve uma profunda comoção. Logo se observou que a presença de mais pessoas não representava apenas um fenômeno quantitativo, mas uma mudança qualitativa. Significou substituir uma sociedade unida e compacta por outra dividida, na qual dois mundos se confrontavam. No futuro, a cidade encerraria – por um lapso de imprevisível duração – duas sociedades coexistentes e justapostas, mas defrontadas no início e depois submetidas a permanente confrontação e a uma interpenetração lenta, trabalhosa, conflitante e, com certeza, ainda não consumada.
Uma delas foi a sociedade tradicional, composta por classes e grupos articulados, cujas tensões e formas de vida transcorriam dentro de um sistema estabelecido de normas: era, portanto, uma sociedade normalizada. A outra foi o grupo imigrante, constituído por pessoas isoladas que convergiam para a cidade, que só criavam nela um primeiro vínculo por essa única coincidência e que, como um grupo, carecia de qualquer vínculo e, em conseqüência, de qualquer sistema de normas: era uma sociedade anômica instalada de modo precário ao lado da outra como um grupo marginal.
Antes que sofresse o complexo processo social que o transformaria no núcleo fundamental da massa urbana, tal como apareceu nas cidades da América Latina a partir da Primeira Guerra Mundial, o grupo imigrante apresentou o aspecto de um conjunto humano heterogêneo: famílias, mulheres e homens solitários, todos entregues a uma espécie de acaso do qual dependia a nova etapa de suas vidas. Vinham de áreas rurais – geralmente próximas, distantes algumas vezes – ou de pequenas cidades que abandonavam convencidos de que não havia horizontes nelas e chegavam às proximidades das cidades que eram a sua meta. Em Lima – conta José María Arguedas aqueles que chegaram primeiro conseguiram trabalho doméstico na casa dos ricos de seu povoado que também se haviam deslocado para a capital. E já familiarizados com a cidade, estes últimos acolheram os que chegavam em ondas sucessivas. Em Yawar Fiesta, Arguedas escreve:
E sem que ninguém a organizasse, a entrada dos puquios,1 assim como a de todos os serranos, foi feita em ordem: os cholos2 ajudaram os cholos (…), os mistis,3 os mistis (…) introduzindo-os na sociedade (…). Os estudantes também se ajudaram da mesma forma, de acordo com o dinheiro de seus pais; os pobres procuraram pequenos quartos, próximos à Universidade ou à Escola de Engenharia, acomodaram-se nos quartos de empregados, nos terraços, sob as escadas ou nas casas senhoriais, antigas, que agora a ponto de desmoronarem-se são casas de cômodos para operários e para gente pobre.
Em algumas cidades, havia lugares fixos para a concentração dos imigrantes, como relata o brasileiro Jorge Amado em Gabriela, cravo e canela, referindo-se à cidade de Ilhéus. Para chegar ali, era necessário sair do centro, deixar para trás a feira onde as barracas estavam sendo desmontadas e as mercadorias recolhidas, e atravessar os edifícios da estrada de ferro. Antes de começar o morro da Conquista – continua dizendo Jorge Amado – estava o mercado dos escravos. Alguém, fazia muito tempo, havia chamado assim o lugar onde os retirantes costumavam acampar, à espera de trabalho. O nome pegara e ninguém o chamava de outra maneira. Ali amontoavam-se os sertanejos fugitivos da seca, os mais pobres de todos quantos abandonavam suas casas e suas terras ante o chamado do cacau. Em outras cidades, a chegada era ainda mais formal. Nas argentinas, por exemplo, a emigração era por trem e na chegada às estações ferroviárias desciam de cada comboio dezenas de famílias de aspecto estranho e bagagem excêntrica que procuravam quem esperavam que fosse recebê-las: um imigrante anterior que tinha conseguido alguma acomodação. Em outros lugares, os ônibus rurais despejavam a mesma carga. E a partir do momento da descida começava a peregrinação, algumas vezes para os bairros velhos e pobres da cidade, como o de Tepito, no México, e outras, para os extremos despovoados da cidade, terra de ninguém na qual era possível instalar-se com a condição de renunciar a todos os serviços: os morros que cercam Caracas ou Lima, as zonas baixas próximas a Buenos Aires, os depósitos de lixo de Monterrey, ou as salitradas terras do ressecado lago de Texcoco, no México. Um barraco precário, talvez erguido em uma noite, consolidava a situação do imigrante que, a partir do dia seguinte, começava a árdua tarefa de aproximar-se da estrutura onde reinava a sociedade normalizada, uma aproximação que terminaria em sua integração após um prazo imprevisível que poderia atingir talvez mais de uma geração.
A rigor, o grupo imigrante não era ainda uma sociedade e não podia contrapor um sistema ao outro. O que fazia oposição ao sistema da sociedade normalizada, procurando uma brecha para entrar, era o peito aberto de um conjunto humano indefeso, sem vínculos que o prendesse, sem normas que lhe emprestassem homogeneidade, sem razões válidas para frear, em última instância, o extravasamento dos instintos ou, apenas, da desesperada premência das necessidades. Era um conjunto de seres humanos que lutavam pela subsistência, por um teto, isto é, para sobreviver, mas que lutavam também porque queriam tratar de viver, ainda que o preço desse usufruir fosse alto. E ambas as lutas implicavam a necessidade de aferrar-se a algum lugar da estrutura desta sociedade normalizada, por certo sem autorização, talvez contra determinada norma, talvez violando os direitos de alguém pertencente àquela sociedade e que olhava assombrado para o intruso.
A outra sociedade podia oferecer teto e trabalho ao intruso, podia prestar-lhe apoio caridoso para atender a saúde e a educação dos filhos, mas passaria muito tempo – ninguém poderia dizer quanto – até que os imigrantes descobrissem e aceitassem que tudo aquilo que constituía a estrutura da sociedade normalizada também lhes pertencia. Nesse ínterim, suas atitudes estavam guiadas pela certeza de que tudo era dos outros: a torneira d’água, o banco da praça, a cama do hospital, tudo era alheio e para tudo havia outrem que tinha mais direito.
A sociedade normalizada visualizou o conjunto imigrante que se infiltrava por suas brechas como um grupo uniforme. Era, segundo o seu ponto de vista, a “outra sociedade”, cuja existência se conhecia de ouvido, mas cuja presença se evitava. Quando algum de seus membros aparecia fora do seu gueto, a sociedade normalizada observava-o com curiosidade, reconhecia-o como diferente da classe popular estabelecida e deixava-o passar. Foi diferente quando a “outra sociedade” apareceu formando um grupo. Naquele momento, os imigrantes com certeza já tinham conseguido fortalecer certos vínculos que começavam a congregálos e perceberam que podiam contrapor à estrutura algo mais do que a expectativa individual: a força de um grupo, uma força multiplicada porque era exercida sem sujeição a normas e de maneira irracional. Era a força daquele que se sente alheio àquilo que ataca e que carece de freios para a ação. Foram vistos nas ruas do México, Bogotá e Buenos Aires em grupos compactos, alheios às regras da urbanidade, atropelando o sistema que para os demais era pactuado e apoderando-se ou destruindo o que era “dos outros”, da sociedade normalizada.
Naturalmente, o efeito que o surgimento dessa sociedade anômica produziu sobre a sociedade foi intenso, precisamente porque o centro do ataque do novo grupo era o sistema de normas vigentes, ignorado em um primeiro momento e desafiado depois. A sociedade normalizada viu os recém-chegados não apenas como forasteiros, mas também como inimigos; e ao aumentar sua resistência, impediu não só os caminhos da aproximação e da integração dos grupos imigrantes como também a sua própria capacidade para compreender o insólito fenômeno social que tinha diante dos seus olhos. Talvez tenha contribuído para que chegasse a tomar essa atitude o crescente número desta sociedade anômica e a impressão avassaladora que oferecia não só pelo número como também por sua agressividade. Também foi intenso e decisivo o efeito que a confrontação com a sociedade normalizada teve sobre a sociedade anômica. Esta última a havia escolhido como presa, mas ao mesmo tempo como modelo. O confronto foi resolvido em uma lenta e duradoura coerção da sociedade normalizada para obrigar a outra a acatar certas regras básicas, e depois para oferecer-lhe os mecanismos para uma incorporação que, ao final de certo tempo, tornava-se obrigatória. E, a partir dessa situação, as duas sociedades trabalharam surdamente, e contra a sua vontade, em um processo de integração recíproca, cujas alternativas manifestaram-se e continuam manifestando-se nas formas da vida cotidiana e na vida social e política daquelas cidades latino-americanas onde, em diferente escala, ocorreu a eclosão imigratória.
A integração recíproca começou a partir do momento em que os grupos imigrantes conseguiram um teto e, sobretudo, um trabalho. Daí, derivaram necessidades e obrigações que forçaram o contato e a familiarização. Foi necessário aprender a pegar um ônibus, a conhecer as ruas, a chegar até o estádio de futebol. Talvez tenha sido necessário providenciar um documento de identidade e chegar um dia até um posto policial. Mas o que deu partida à integração foi a sua progressiva inserção no tecido social da sociedade normalizada. Foi, sem dúvida, uma etapa importante aquela em que os grupos imigrantes se contactaram, asseguraram os vínculos que os uniam aos do mesmo povoado ou da mesma região, adquiriram um princípio de solidariedade que lhes daria confiança e força na difícil operação de assediar a estrutura. No entanto, a etapa decisiva foi a seguinte, a do contato com aqueles que pertenciam à sociedade tradicional e estavam em condições de iniciá-los nos segredos. Foram, naturalmente, os segmentos populares da sociedade normalizada os que cederam primeiro diante da pressão dos recém-chegados e abriram-se à comunicação, mas não faltaram grupos da pequena classe média – tão ou mais empobrecidos que os segmentos populares e, de certa forma, marginalizados também – que se mostraram benevolentes e, por fim, solidários com os grupos imigrantes.
Nem todos, sem dúvida. Houve receio, temor à concorrência e, sobretudo, esse mal expresso sentimento de superioridade que os urbanos sempre alegam diante dos camponeses. Contudo, apareceram brechas pelas quais o novo grupo pôde introduzir-se, lançar raízes e começar o seu relacionamento ou a sua solidariedade com pessoas já arraigadas. De resto, a situação de crise favoreceu a aproximação. Se os imigrantes eram desempregados, também havia desempregados nas classes populares tradicionais da cidade e em alguns segmentos da pequena classe média. Se a miséria ia ao extremo e urgia abandonar o quarto para buscar refúgio em um barraco da periferia urbana, o arraigado encontrava-se com o recém-chegado; e encontravam-se também nas filas dos que procuravam trabalho, nos eventuais serviços que um ou outro conseguiam, e acaso na refeição popular que um governo ou uma instituição de caridade oferecia aos mais miseráveis. E depois, estavam as mulheres, menos desconfiadas, cujo contato solidário fortalecia os laços aos quais os homens logo se acomodavam.
Foi a fusão entre os grupos imigrantes e os setores populares e da pequena classe média da sociedade tradicional que constituiu a massa das cidades latino-americanas a partir dos anos da Primeira Guerra Mundial. O nome, mais freqüente que o de multidão, com o qual foi denominada, adquiriu certo sentido restrito e preciso. Amassa foi esse conjunto heterogêneo, marginalmente situado ao lado de uma sociedade normalizada, diante da qual se apresentava como um conjunto anômico. Era um conjunto urbano, embora urbanizado em diferente medida, já que estava constituído por um grupo urbano de longa data e por outro de origem rural que começava a urbanizar-se. Mas, logo, sua fisionomia tomou-se decididamente urbana e o foi seu comportamento: constituiu uma sociedade unida e compacta que, em cada cidade, se opôs à outra sociedade unida e compacta já existente. Desta forma, o conjunto da sociedade urbana apresentou-se como uma sociedade dividida, uma nova e revigorada sociedade barroca.
A massa urbana foi não apenas anômica, mas também basicamente instável. Constituíam-na, a princípio, setores imigrantes e setores já arraigados que, de certo modo, se desligavam da sociedade tradicional cujas normas haviam acatado até pouco antes. Isto acentuava a anomia. Mas talvez o que a acentuava ainda mais fosse o surgimento sucessivo de novas ascensões em cada um dos segmentos integrantes da massa. Cada nova ascensão trazia um novo índice de integração, novas expectativas a respeito da estrutura da sociedade tradicional, novas estratégias para enfrentar-se com o monstro que elas temiam menos que a geração de seus pais. O jogo foi-se tornando diabólico, porque à medida que crescia a integração, crescia a anomia. E, mesmo assim, a massa foi adquirindo certa homogeneidade radical e, aos poucos, certa clareza acerca de seus objetivos. Ficou evidente que a massa não queria destruir a estrutura na qual se havia lançado; pelo contrário, tinha por ela um respeito absoluto, assim como pelos princípios em que se sustentava; que o seu plano não era modificá-la em sua essência – como pensavam certos grupos arraigados e inconformados da sociedade tradicional – mas, apenas, aceitá-la como estava e corrigi-la só no que fosse necessário para que se abrisse; que o seu objetivo final era que cada um de seus membros fosse incorporando-se a ela para usufruir de seus benefícios e depois ascender de categoria dentro de sua escala. Esses objetivos eram inequívocos, mas como não podiam ser satisfeitos logo, e como os que os alcançavam se separavam de modo rápido da massa, cresceu nesse grupo a agressividade contra a estrutura e contra a sociedade normalizada que nela predominava, arrefecendo-se pouco a pouco o sentimento originário de adesão. Ao acentuar-se a hostilidade da massa, renovava-se a da sociedade tradicional, colocada na defensiva. O jogo continuava sendo diabólico e muitas políticas foram imaginadas para romper esse círculo vicioso.
A formação da massa urbana – contemporânea nas cidades latino-americanas do processo de industrialização – adquiriu certa peculiaridade no tocante à nova situação ocupacional. Para muitos, em especial as mulheres, a esperança de inserir-se ou de prosperar na estrutura associou-se à possibilidade de introduzir-se no serviço pessoal de alguém que pertencesse à estrutura. Era a esperança de Gabriela no romance de Jorge Amado. “Vou ficar na cidade, não quero mais viver no campo. Vou me empregar como cozinheira, como lavadeira ou pra arrumar casa dos outros…” Acrescentou, numa lembrança alegre: “Já fui empregada em casa de gente rica, aprendi a cozinhar”. Por esse caminho, obtinha-se casa e comida, um salário, mas, sobretudo, um tutor, alguém com quem pudesse aprender como funcionava a estrutura, alguém cujo apoio pudesse expandir essa primeira relação que acabava de ser estabelecida. A partir dessa relação, todos os parentes e uma fila interminável de amigos e conterrâneos podiam beneficiar-se com essa brecha aberta na estrutura.
Mas essa perspectiva não atraía os homens, e menos ainda os mais ambiciosos. Foram os altos salários industriais que seduziram muitos deles, que não levaram em conta se possuíam as condições necessárias para alcançá-los. Requeria-se capacidade e vontade para o aprendizado. E aqueles que puderam satisfazer essas condições incorporaram-se à nova aristocracia dos setores populares, que foi o proletariado industrial. Junto a eles, houve aqueles que não tinham uma idéia clara do que queriam ou talvez os que não tinham capacidade suficiente para definir os seus objetivos. Muitos se conformaram em encontrar um trabalho não qualificado, talvez nas obras públicas e na construção civil – obsessão dos governos assediados por estas renovadas e crescentes massas urbanas que demandavam trabalho – ou talvez nos serviços municipais que se ampliavam à medida que a população urbana crescia. Não faltaram aqueles que tentaram com diferente sucesso o pequeno comércio ambulante que podia iniciar-se quase sem capital, ou os que aprenderam alguns ofícios ou artesanatos para conseguir um salário diário. E houve os que aceitaram o seu destino de marginalizados e caíram em formas abjetas de abandono, talvez próximas do crime: o comércio ilegal, a prostituição, o roubo ou o jogo fortaleceram suas posições nas cidades nas quais o crescimento da população aumentava as possibilidades de anonimato.
Uma gama tão ampla de possibilidades não oferecia, no entanto, muita segurança aos membros desta nova sociedade que se organizava nas cidades: nem aos imigrantes nem aos segmentos populares enraizados que se juntaram a eles nesta desesperada aventura da ascensão social. O jogo continuava sendo diabólico, e enquanto cresciam as possibilidades que a cidade oferecia, crescia ainda mais a demanda de oportunidades que exigiam os já arraigados, os imigrantes da primeira hora e os que sucessivamente se juntavam a eles em ininterruptas levas. A cidade continuava crescendo e a competição tornava-se mais inumana: de resto, tanto quanto no seio da sociedade organizada, porém mais explícita, já que não existia para eles um quadro de normas nem um sistema convencional de formas. E esse sentido competitivo – um verdadeiro “salve-se quem puder” daqueles que progrediam “abrindo passagem” – conspirou contra a homogeneidade da massa, da qual se desligavam dia após dia os “triunfadores”, isto é, aqueles que conseguiam inserir-se firmemente na estrutura.
Assim evidenciou-se que a massa não era uma classe, mas sim um viveiro do qual sairiam aqueles que conseguiam a ascensão social e no qual ficariam aqueles que, por não consegui-la, consolidariam a sua permanência nas classes populares talvez descendo algum degrau na escala.
Por isso a massa foi instável. Seus membros não se sentiram nunca membros dela, nem ela existiu, a rigor, a não ser para os seus adversários. Os seus membros nunca quiseram formar “outra” sociedade, mas, sim, incorporar-se a essa na qual se haviam introduzido e inserido com muito trabalho, essa que admiravam e invejavam, essa que, no entanto, os recusava e à que, por desdém, agrediam. Drama de amor e ódio que o indivíduo conhece bem, mas que as sociedades só raramente levam ao plano da consciência.
Se o projeto pessoal de cada um de seus membros não podia unir a massa, mas, pelo contrário, desuni-la, o sentimento de fracasso daqueles que nela permaneciam proporcionou-lhe uma eventual homogeneidade. Por isso, a sociedade normalizada – pacata, temerosa e inibida para entender a grandeza do fenômeno social que tinha diante de seus olhos – viu-a como uma sociedade inimiga. Observou-a em certas ruas centrais nos dias de festa, talvez de uma varanda ou de um automóvel, e viu-a como uma hidra de mil cabeças. Viu-a em um estádio, entusiasmada até os limites da irracionalidade, e, às vezes, também a viu em seu próprio ambiente — nos barracos miseráveis e nas favelas —, em menor número, abstrata e coletiva, um angustiado conjunto de seres humanos individualizados e reais, oprimidos pela miséria e desesperança, impotentes diante do monstro que os mantinha subjugados e cujos desígnios não conseguiam entender.
Se alguma vez expressaram os seus sentimentos, foi quando agiram como massa, muitos unidos, os recém-chegados e aqueles já integrados que se juntaram para expressar o seu protesto. Assim aconteceu algumas vezes em algumas cidades, provocando fenômenos inusitados que revelaram a intensidade das transformações que o surgimento de uma massa, de uma sociedade anômica, podia provocar no seio de uma cidade até bem pouco antes controlada por uma sociedade normalizada. Direcionada para a violência, a massa colocava em evidência a capacidade da sua força quando conseguia galvanizar-se e mostrava as debilidades e as brechas que apresentava a estrutura da sociedade tradicional. Assim aconteceu em Buenos Aires, em 17 de outubro de 1945, e em Bogotá, em 9 de abril de 1948. Ambas as cidades haviam crescido rapidamente em número por causa das migrações internas; ambas haviam visto um cinturão de bairros populares formar-se em tomo da sociedade tradicional, e ambas veriam polarizar-se contra a sociedade tradicional a nova massa na qual se fundiam os grupos imigrantes com os setores da classe popular e da pequena classe média que mais haviam sofrido a crise e a recessão econômica.
A massa que se concentrou na Plaza de Mayo em Buenos Aires, em 17 de outubro, pedindo a liberdade do coronel Juan Perón, provinha em grande parte dos distritos operários do sul da capital: Avellaneda, importante centro industrial, Berisso, sede da indústria da carne, Lanús, Llavallol e outros menos significativos, todos habitados por classes bastante humildes e por trabalhadores de indústrias. Contudo, provinha também da própria cidade, dos bairros populares e da pequena classe média. O conjunto talvez apresentasse uma cor de pele um pouco mais escura do que se estava acostumado a ver até então no centro de Buenos Aires, mais escura sem dúvida do que aquela que predominava na sociedade tradicional. E se esta sociedade identificou a massa pela cor da pele, chamando os seus membros de “cabecitas negras”, o caudilho popular identificou-a com o nome de “descamisados”, que aludia à sua condição marginal. A estrutura, em mãos dos partidários de Perón, naquele momento, deu o seu apoio à concentração da massa através do exército e da policia; mas também a Confederação Geral do Trabalho, na qual já conviviam operários arraigados e recém-chegados, tomou partido declarando a greve. O conjunto ameaçou com a violência e a sociedade tradicional teve medo do saque, porém a massa se absteve de toda violência exceto o ato – simbólico para a sociedade tradicional – de lavar os seus cansados pés nos chafarizes da Plaza de Mayo. Por certo, a massa não sabia bem o que queria, mas uma ruptura produzida na estrutura da sociedade tradicional permitiu que alguns de seus membros lhe oferecessem alguma coisa que parecia um programa, resumido na delegação de todo o poder às mãos daquele em quem depositavam sua esperança.
Em Bogotá, a massa que sitiou a cidade em resposta desesperada ao assassinato de seu caudilho, Jorge Eliécer Gaitán, surpreendeu a sociedade tradicional não só por seu número, mas também por sua atitude. Ao contrário daquela massa portenha do 17 de outubro, não tinha muito o que esperar, já que aquele em quem confiava estava morto. Não saiu para defendê-lo, mas para vingá-lo, e a cota de violência foi muito maior. Na sociedade normalizada bogotana os ingredientes sociais que tradicionalmente a formavam eram bem conhecidos: eram, como se dizia no século XIX, os homens de levita e os de ruana. Tinham se enfrentado muitas vezes e o confronto chegara a alimentar a guerra civil, nos termos clássicos das sociedades patrícias ou burguesas. Agora, em 1948, a sociedade tradicional descobriu que a massa que enchia a cidade no dia do bogotazo4 não se constituía apenas dos homens de poncho, arraigados e participantes, embora marginalmente, da sociedade normalizada. Era uma multidão diferente, na qual abundavam os recém-chegados, imigrantes originários das áreas rurais e para quem a cidade era ainda algo que não lhes pertencia. O seu peso multiplicou a força dos grupos arraigados e marginalizados, dando à nova massa um diferente comportamento social caracterizado pela indiscriminada agressividade contra a cidade, que todos os seus membros – arraigados ou recém-chegados – coincidiam agora em considerar coisa alheia, como algo próprio da “outra sociedade”.
Quando J. A. Osorio Lizarazo quis, em seu livro Gaitán, descrever as forças que formavam a multidão do bogotazo, não insistiu na presença do grupo imigratório, embora por certo estivesse incluída em vários dos fatores que enumerou; porém, descreveu o conjunto dos grupos, minoritários e sutis, que se agregaram a esse grupo dos que ainda não eram nada para incutir-lhes algumas atitudes radicais através de simples consignas. “De todos os extremos chegavam pessoas apressadas movidas pela angústia”, escrevia. E acrescentava mais adiante:
As moléculas anônimas que compõem o povo eram arrebatadas por um redemoinho. E procediam de todos os lugares. Era o homem de classe média, condenado a viver na mais indecifrável angústia, em um embate atormentado entre a ficção de sua vida, a fome silenciosa, a necessidade de aparentar categoria social com um jogo miserável, e que sente minada a vontade e corrompida a alma diante da crueldade da luta. Era o operário talentoso e loquaz, que busca inúteis compensações para a sua miséria. Era o sombrio trabalhador de paixões tenebrosas, embrutecido pelo álcool que lhe dava o estado para perverter o ambiente moral com o instrumento das recompensas burocráticas. Era o delinqüente envolvido na criminalidade, porque não desfrutou de uma instrução para guiar os seus instintos, que desde a infância sofreu uma enfurecida perseguição, não encontrando jamais um defensor, que só conheceu o aspecto triste e espantoso da vida. Era o povo, multiforme, heterogêneo, monstruoso e crestado por todas as paixões da vingança, do ódio e da destruição.
Fluida e numerosa, a nova massa urbana foi perdendo agressividade no transcorrer das décadas seguintes. O processo de industrialização acentuou-se e com ele multiplicaram-se as possibilidades ocupacionais. E se não todos, por certo muitos dos membros daquela massa instável e desorientada foram encontrando os caminhos para alcançar ou fortalecer a sua inserção no contexto social. Três décadas é muito pouco tempo para que esse processo seja consumado, de modo que o processo começou, mas continua, e manifesta-se a cada momento com aspectos diferentes. Com características menos dramáticas, embora não menos inquietantes. As massas são formações sociais virtuais e qualquer circunstância pode funcionar como fator desencadeador de sua aglutinação. E é evidente que tanto as pequenas classes médias quanto os segmentos populares conservaram a capacidade de massificar-se, sobretudo naquelas sociedades urbanas que, pelo volume de sua população, perderam a aptidão de exercer o controle social sobre os indivíduos. Cidades multitudinárias, as massas existem virtualmente nelas. Mas independentemente de que possam surgir em algumas ocasiões comportamentos de massa, seus membros parecem tender cada vez mais a integrar-se como indivíduos no contexto social.
Evidentemente, tanto as pequenas classes médias quanto as classes populares ficaram deslocadas após as primeiras experiências de sua massificação. Ficou a dúvida se o indivíduo economicamente enfraquecido podia melhorar sua condição por seu próprio esforço, como garantia a ideologia da ascensão social, ou se tinha de apelar para a pressão coletiva, e essa dúvida influenciou as ideologias e os comportamentos. Porém, toda a estrutura social evidenciou o golpe dessa experiência de massificação. Para alguns setores, talvez os majoritários, serviu paradoxalmente para acentuar sua preocupação pela conquista individual do sucesso econômico e da ascensão social, e na medida em que a industrialização e a reativação econômica os estimulavam, os limites entre as classes populares e as pequenas classes médias tornaram-se mais fluidos e indefiníveis. Uma decidida propaganda a favor de um maior consumo contribuiu para dissipá-los, pois os objetos que representavam símbolos de status ficaram, por um ou por outro motivo, ao alcance de muitos.
As migrações de população rural para as cidades não se detiveram por completo e essa circunstância manteve a instabilidade das classes populares urbanas. Mais que isso, foi ocorrendo a renovação das gerações dessa massa fraguada na agitada interpenetração dos grupos imigrantes e dos grupos arraigados. Nasceram novas ascensões e desenvolveram-se no protesto, no progressivo esclarecimento da condição de classe. E como eram muitos os que nasciam, naturalmente foram muitos os jovens que, chegados a uma determinada idade, começavam a pedir trabalho em uma estrutura econômica que crescia, mas nunca o suficiente para satisfazer totalmente a demanda. Houve desemprego de jovens e muito teve a ver com isso a formação de bandos que tenderam à delinqüência, como os gamines bogotanos, capazes de atuar sem escrúpulos nem temores na rua Séptima. Mas também houve desemprego de adultos e, o que é mais grave e significativo, houve um crescente subemprego que colocava milhares de famílias na incerteza quanto ao pão de cada dia.
Sem rendimentos fixos nem suficientes, alojados em moradias precárias e geralmente sem os serviços imprescindíveis e sem possibilidade de conservar a coesão familiar, amplos segmentos sociais – os últimos estratos da massa – constituíram um mundo duas vezes marginalizado: porque viviam na periferia urbana e porque não participavam da sociedade normalizada nem de suas formas de vida. Esse mundo marginal – o mundo das favelas e talvez de alguns outros bairros – manifestou de modo ostensivo sua condição anômica. Não era exatamente uma classe operária, embora houvesse alguns operários em seu meio. O conjunto, em que pese o trabalho das mulheres e das crianças, era um complexo social abaixo do nível da subsistência. Representava, para a sociedade normalizada, “outra sociedade”, irredutível e irrecuperável. Fixou-se fisicamente a sociedade dividida, uma sociedade barroca, e poder-se-ia dizer que, em algumas cidades, o espetáculo de luxo ostentoso – como o das cortes barrocas – que oferecia a sociedade normalizada era visto das favelas nos morros por milhares de seres que compunham a sociedade anômica. A agressividade do primeiro momento seguiu-se certa domesticidade resignada; porém, nesse ínterim, como na parisiense “corte dos milagres”, ninguém poderia entrar nas favelas a não ser protegido por um dispositivo de segurança.
Talvez pertencessem também à “outra sociedade”, à anômica, alguns segmentos de trabalhadores de condição média: diaristas ou peões de trabalho esporádico, mal incorporados à estrutura e propensos à decadência social. Mas, os que certamente não pertenciam a ela, e sim à sociedade normalizada, foram os que se incorporaram às novas e privilegiadas atividades da indústria. Em muitas cidades estabeleceu-se em poucas décadas um proletariado industrial mais ou menos numeroso que se transformou na elite das classes populares, com tendência a escapar desses quadros. Com altos níveis de rendimento, considerável capacidade aquisitiva e certa organização sindical, o proletariado industrial pôde alcançar uma situação que estava vedada para outros segmentos populares. Em pouco tempo havia se transformado em um importante fator de poder capaz de obter consideráveis benefícios. Planos de moradias longamente financiados pelo Estado ou pelos sindicatos garantiam a muitos modestos apartamentos em bons condomínios construídos em áreas urbanizadas que contrastavam com as favelas surgidas nos morros, nas terras alagadiças ou nos lixões. Serviços de proteção à saúde, clínicas com excelentes instalações, serviços de seguros e férias em bons hotéis da costa ou da serra a preços acessíveis ofereciam ao proletariado industrial sindicalizado uma situação que o distanciava do restante da classe trabalhadora. Insinuara-se um desvio para as categorias da pequena classe média que se acentuou com a possibilidade de oferecer aos filhos uma educação de nível médio e, talvez, universitário. Desse modo, consolidou-se a posição do proletariado industrial dentro da sociedade normalizada e sua progressiva separação do restante das classes populares.
Um atalho para transpor os limites entre as classes populares e as classes médias foi o acesso ao setor terciário. Era este, tradicionalmente, o reino da média classe média; mas o crescente desenvolvimento da educação de nível médio permitiu a muitos jovens de classe popular ficar em condições de buscar uma saída para as atividades mercantis ou administrativas. A relação operário-empregado foi a expressão da fluidez dos limites entre as classes populares e a média classe média. Sem dúvida, a capacidade era importante; no entanto, o trânsito não foi fácil. A maneira de vestir-se, a linguagem ou as formas de tratamento social denunciavam a origem e assinalavam uma diferença que servia para decidir situações semelhantes. Aqueles que provinham da classe média contavam com essa deletérea superioridade dada por uma educação familiar e por algumas gerações com firme estabilidade na sociedade normalizada.
De resto, o desenvolvimento industrial e a ativação econômica multiplicaram as possibilidades da média classe média: cresceu o número de seus membros, bem como o volume das atividades terciárias em quase todas as cidades. Quem contava com um apoio familiar ou com vinculações importantes podia confiar que teria seu emprego ou que começaria sua carreira profissional sem sobressaltos. Porém, pouco a pouco, a competição tomou-se mais árdua. O número de membros da média classe média continuou crescendo e foi ultrapassando as possibilidades da estrutura, porque não só almejavam as tradicionais posições de classe média os que por sua origem pertenciam a ela, como todos aqueles que, de cima ou de baixo, tinham expectativas de classe média: o filho do operário industrial ou o jovem de classe alta rebaixado em suas aspirações e possibilidades. Assim, a média classe média massificava-se, à medida que perdia comodidade e liberdade de movimento.
Diferentemente do que acontecia em duas gerações anteriores, não foi fácil conseguir de favor um emprego para um filho de família sem outro título. O Estado e as empresas sabiam que podiam escolher melhor e começaram a exigir certos estudos para qualquer trabalho: primários a princípio, a seguir médios, talvez universitários em muitos casos. As profissões começaram a se restringir também. Além de as universidades lançarem milhares de graduados, o exercício profissional tomou-se mais difícil. Os planos de saúde restringiram o campo de ação de médicos e dentistas; a industrialização dos produtos medicinais, o dos farmacêuticos; os grandes escritórios, o dos advogados; e as grandes empresas construtoras, o dos arquitetos. Não demorou muito a ouvir-se falar de um proletariado profissional. Até se massificou a atividade mercantil, oscilando entre o supermercado e a butique. Só crescia para os mais criativos e para os mais ousados esse amplo campo dos serviços intermediários – as comissões, os seguros, a venda de imóveis e em especial o daquelas novas atividades que cresciam nos ambientes urbanos: a das modelos, dos promotores de publicidade, dos produtores de espetáculos no rádio, na televisão ou no cinema. Cresciam também as possibilidades para os que se inscreviam nos quadros da crescente tecnocracia. As organizações empresariais, públicas ou privadas, aperfeiçoavam cada vez mais o seu funcionamento de acordo com novos métodos, e requeriam um maior número de técnicos, desde os que operavam os computadores eletrônicos – viga-mestra da nova tecnocracia – até os grandes especialistas no estudo de custos, de viabilidade ou de organização empresarial. Engenheiros, físicos, economistas, estatísticos, sociólogos e psicólogos eram requisitados pelas grandes corporações para fazer parte das equipes dedicadas ao planejamento e à realização das complicadas obras que o desenvolvimento industrial requeria. E cresciam também os quadros voltados para as atividades que mereciam cada vez mais atenção: a saúde, a assistência social e a educação, campos onde se multiplicou o número de profissionais de especialidades cada vez mais circunscritas aparentemente, mas que, desligadas de outras mais amplas, apontavam para novos problemas criados por uma sociedade cada vez mais complexa cujas engrenagens, novas e diversificadas, exigiam permanente atenção. A sociedade inteira massificava-se, bem como se massificavam as funções que a sociedade exigia: a assistência social, uma nova preocupação que surgia no mundo massificado; o atendimento médico, e não apenas para as classes populares como também, de modo progressivo, em relação às demais classes; e mais ainda a educação, cujo desenvolvimento quantitativo parecia condená-la a certo declínio de nível, perceptível em todos os graus e em especial na universidade, outrora de elite e com o tempo massificada, sobretudo nas grandes cidades.
Era explicável, portanto, que aqueles que se dedicavam a todas essas tarefas não tivessem – ou nem se preocupassem em ter – a convencional distinção do antigo vendedor de uma loja de luxo, ou do antigo tabelião de família, ou do sereno médico de cabeceira, ou do prestigioso advogado. Na média classe média dos profissionais e dos empregados ninguém tinha tempo a perder, já que quase todo o mundo teve de desempenhar duas funções para poder sobreviver. O marido e a mulher trabalhavam, e ainda assim era difícil manter certo padrão de vida. Mas a massificação obrigava a modificar os esquemas tradicionais e a média classe média chegou a desdenhar aquela pacífica preocupação pelas aparências que havia sido seu traço predominante duas gerações passadas. Ao massifícar-se, libertou-se de muitos preconceitos e, como a de Londres, decidiu abandonar o colarinho branco.
Do que não se libertou foi de seu desejo de ascender econômica e socialmente. Porque em uma instituição hierárquica, tinha de alcançar o grau superior. E do esforço desesperado pôde sair a ansiada promoção para a alta classe média, uma classe que era quase alta. Pertenciam a ela todos os que haviam triunfado nas profissões, no comércio ou nas atividades empresariais e, por conseguinte, haviam acumulado fortunas que lhes permitiam livrar-se do trabalho cotidiano e começar timidamente a inclinar-se para uma vida ociosa: poder jogar golfe em um dia útil ou poder dispor de três semanas para fazer uma viagem às Bahamas fora da época estipulada de férias eram triunfos sobre a rotina que só podia conseguir quem estivesse já no mais alto nível da estrutura. Outros, no entanto, tendo chegado a esse mesmo nível, estavam ainda na etapa de consolidação das posições e não podiam insinuar sua vocação para o lazer. Os executivos de alto nível, um setor que cresceu consideravelmente nessas décadas, caracterizaram-se por sua ciosa dedicação a um trabalho que costumava dominá-los até fazer deles as vítimas prediletas do infarto. Era um trabalho diabólico, porque somava às tarefas intelectuais de direção as preocupações inerentes à adoção de decisões importantes e comprometedoras; mas reunia também toda a parafernália das relações públicas, que incluía as diversões forçadas: os almoços e jantares de certa etiqueta, as reuniões de night-club, os coquetéis, os teatros, todo o necessário para instalar a vida dos grandes negócios em um âmbito que se assemelhava ao do lazer e mesmo às formas de vida da classe alta, mas que acontecia fora das horas de trabalho e depois de se haver exaurido as forças na discussão de um contrato ou no planejamento de uma operação importante. Uma quase delirante perseguição dos símbolos de status – premonitórios da situação à qual se aspirava – agregava aos compromissos e às preocupações da vida societária os que correspondiam à vida particular: era necessário morar nos bairros nobres, pertencer a clubes privados, freqüentar certos ambientes e possuir tudo o que se considerava indispensável. Porque, a rigor, o executivo de alto nível que queria consolidar sua posição, almejava, ele também, a ascensão social e a sua incorporação à classe alta.
Era um projeto um pouco difícil, mas não impossível. As classes altas também haviam sofrido o impacto da massificação e estavam em plena crise. Seu primeiro sinal foi a perda do papel de elite de toda a sociedade que haviam desempenhado até poucas décadas antes. Sua unidade havia sido rompida e podia-se alcançá-la com mais facilidade do que antes, se se cumprissem certos requisitos. Subsistia, por certo, em muitas cidades uma classe alta tradicional que defendia desesperadamente sua posição de privilégio: mas era apenas um privilégio social que consistia em abrir suas fileiras o menos possível, em acentuar sua retração e em conservar o culto das linhagens e dos sobrenomes. De seu próprio cerne, deslocavam-se muitos de seus membros até as novas classes altas, engrossando as fileiras dos empresários e dos industriais para sobreporem-se à crise das velhas fortunas. Ficava aberto, portanto, o caminho que ligava as antigas e as novas classes altas, todas elas desorientadas ante uma sociedade massificada da qual queriam ser a elite e cujo jogo as surpreendia e as assustava. Pragmáticas, as classes altas optaram por dirigir aqueles processos que podiam entender — os econômicos e os políticos, principalmente – e se mantiveram na expectativa dos problemas sociais que, de tempo a tempo, irrompiam na superfície da vida cotidiana e alteravam seus planos. Não conseguiram, portanto, ser a elite do conjunto da sociedade dividida, mas, apenas, da sociedade normalizada, adotando em relação à outra uma atitude defensiva, corrigida com tentativas de hegemonia quando as circunstâncias indicavam a necessidade de medidas coercitivas ou a possibilidade de aplacar o inimigo com sábias e oportunas concessões.
Na sociedade industrializada e de consumo maciço, as oportunidades de enriquecimento aumentaram. Grandes fortunas formaram-se, e seus donos instalaram-se na classe alta sem hesitação, qualquer que fosse a sua origem. Em pouco tempo, familiarizaram-se com os símbolos de status e até a resistência das classes altas tradicionais – que os jornais conservadores continuavam chamando aristocracia – sucumbiu diante do seu poder econômico. As linhagens foram-se extingüindo para dar lugar precisamente aos clãs econômicos nos quais se misturavam fortunas de origem diversa, como assim o comprovavam as listas de clientes dos bancos e das grandes empresas: um sobrenome de prestígio social valia a presidência e depois dele se entremesclavam outros que representavam diferentes linhas de ascensão social. Mas até as classes altas se massificavam. A fortuna não podia impedir que empurrassem seu detentor nas ruas, nem que tivesse que fazer fila nos elevadores. Viajar na primeira classe de um avião implicava tantos desconfortos como se viajasse na classe turística. E se surgiam inconvenientes no dispositivo próprio de privilégio, ninguém podia estar seguro de encontrar um táxi ou uma mesa no mais privativo dos restaurantes ou de obter uma ligação telefônica.
Era inevitável que o surgimento de uma massa, submetida a sucessivas mudanças e atuando de diversas maneiras, repercutisse sobre o resto da sociedade urbana. A massa originária desviou-se e constituiu uma sociedade marginal e anômica que se instalou ao lado – e na frente – da sociedade normalizada. Sofreu o impacto da industrialização, assim como a sociedade normalizada. Mas esta acusou também as repercussões da presença da massa, em termos quantitativos e qualitativos. A sociedade normalizada não adquiriu características de massa, mas massificou-se qualitativamente, talvez em um processo preparatório da integração, em um prazo imprevisível.
3. Metrópole e favelas
Em pouco tempo, aquelas cidades onde se havia constituído uma sociedade dividida começaram a revelar em suas estruturas físicas a peculiaridade de sua estrutura social. Construída originariamente em certa escala, a cidade havia sido ampliada depois para dar espaço à sociedade burguesa, e havia sido dotada de uma moderna infra-estrutura de serviços suficiente para a sua população. Mas a eclosão urbana alterou o número de habitantes e a cidade física ameaçou eclodir também.
No início – no choque original –, foi o número de habitantes que alterou o perfil da cidade, e que chamou a atenção para algo que estava mudando. Mais pessoas foram vistas nas ruas; começou a ser difícil encontrar-se casa ou apartamento; começaram a surgir moradias precárias em terrenos baldios, que de modo rápido formaram bairros; tornou-se difícil pegar um bonde ou um ônibus. Porém, não demorou muito para observar-se que o comportamento das pessoas começava a mudar nas ruas, nos veículos públicos, nas lojas. Antes era possível dar passagem com cortesia a uma pessoa. Agora era necessário empurrar e defender o lugar, com o conseqüente abandono das formas que antes caracterizavam a “urbanidade”, isto é, o conjunto de regras convencionais próprio da pessoa educada que habitava tradicionalmente a cidade. De repente, descobriu-se que para entrar em um cinema tinha-se de fazer fila.
O número de habitantes mudou a maneira de locomover-se dentro da cidade. As estreitas ruas do velho centro urbano tornaram-se insuficientes para a crescente concentração de pessoas. Como parar para conversar com um amigo no centro financeiro da cidade? Até as ruas tradicionais de passeio – da ma Florida de Buenos Aires até a ma do Conde de Santo Domingo – começaram, mais cedo ou mais tarde, a ficar agitadas. Aos poucos descobria-se que ninguém conhecia ninguém. O número de habitantes ultrapassou as possibilidades do transporte urbano. Aumentou o número de automóveis, os bondes desapareceram para serem substituídos por ônibus mais rápidos. Porém, praticamente o dia todo, e em especial nas horas de rush, era preciso esperar um longo tempo para sair do centro com o próprio automóvel e, talvez, outro mais longo na fila da parada do ônibus. O metrô transformou-se em uma necessidade urgente, e o México colocou-o em funcionamento. Até então, só Buenos Aires o possuía, desde 1914; mas nas últimas décadas, as autoridades de diversas capitais começaram a projetar o seu traçado. Redes viárias de alto custo de transporte rápido – como as rodovias de Caracas ou o Periférico mexicano – foram construídas para resolver os problemas do trânsito, sem que se pudessem evitar graves interferências junto ao sistema tradicional de comunicações que correspondia às velhas formas de convivência. Alargamentos, novas pavimentações e severos controles de trânsito procuraram aliviar a gravidade dos problemas criados, sobretudo, pelo número incontrolavelmente crescente de automóveis, que resultaram em infernais engarrafamentos que chegaram a fazer parte da paisagem urbana das metrópoles latino-americanas. Onde estacionar um automóvel passou a ser uma questão mais importante do que aquilo que se queria fazer quando resolveu usá-lo.
O número de habitantes alterou a densidade de população por hectare nas cidades. A fisionomia tradicional das cidades, um tanto achatada, foi substituída pela crescente quantidade de edifícios de apartamentos: primeiro, no centro, e pouco a pouco nos bairros. Um dia apareceu em Caracas a massa arquitetônica de El Silencio, e em outro, a Torre Latinoamericana no México, como desafios à cidade colonial que ficou a seus pés. Eram monumentos erguidos em homenagem ao poder do Estado, dos bancos, das companhias de seguros, das grandes empresas estrangeiras. Depois, surgiram os edifícios de apartamentos propriamente ditos, novas formas de habitação familiar. A rigor, representavam uma nova forma de vizinhança. O edifício de apartamentos de alto nível atraiu aqueles que queriam deixar os velhos casarões, com seus pátios e seus numerosos quartos, que exigiam um considerável serviço doméstico. E para cada duas ou três casas demolidas surgia um edifício de oito ou dez andares com vinte ou trinta apartamentos para outras tantas famílias. Porém, o edifício de apartamentos não era só um tipo de vizinhança, mas também um tipo de arquitetura. O seu tamanho diminuía a cota de sol que as ruas recebiam e condenava as árvores das calçadas. As ruas pareceram mais estreitas e assim de fato se tornaram quando aumentou o número de habitantes que desejavam estacionar os seus automóveis. A cidade começou a adquirir um ar monumental, que começou a ser chamado de ar moderno, com os altos prismas de cimento.
Paralelamente, o número de habitantes modificou o valor da terra urbana. Ante a perspectiva de que a demanda crescesse, as áreas grandes foram subdivididas e, nos arredores, começaram a ser loteados os terrenos das velhas quintas que, com o crescimento da cidade, haviam ficado encravadas em zonas de população crescente. Os preços subiram de modo acentuado, especialmente cada vez que a ameaça da inflação sugeria o investimento em bens imóveis. Assim, os preços tornaram-se especulativos. Supôs-se que a tendência era povoar este ou aquele bairro, esta ou aquela ma e, às vezes, este ou aquele quarteirão de uma rua, famoso pelo esnobismo dos “catadores de prestígio”; assim, o valor da terra subia de modo desmesurado, em parte porque a demanda aumentava e em parte porque nesses pontos a especulação se centrava. Sobre o valor da terra urbana e suburbana – loteada e oferecida publicitariamente como a terra prometida – recaíam as despesas do loteamento, da publicidade, da promoção das vendas, mas sobretudo, da soma aproximada que deviam dividir aqueles que especulavam com o negócio de bens imóveis: os vendedores que promoviam a primeira venda e pretendiam que o primeiro comprador pagasse um dividendo pelos lucros que obteriam com a revenda. E os setores de médios e baixos salários que só desejavam adquirir uma moradia para viver eram obrigados a dirigir-se para os sucessivos anéis periféricos que iam aparecendo, onde os preços ainda não tivessem entrado de modo definitivo na espiral especulativa.
Afinal, o número de habitantes reformulou o problema dos serviços públicos. Previstos e instalados para servir a certa área com uma determinada e estável densidade de população – em geral em uma época em que os custos eram relativamente baixos a expansão da área edificada e, principalmente, o aumento da densidade demográfica por hectare começaram a criar um desafio cotidiano para os serviços públicos. Exigidos ao máximo em virtude do surgimento e do crescimento dos centros industriais de intenso consumo, os serviços de água, esgoto e energia começaram a ser insuficientes e foi necessário encarar a renovação e a ampliação das redes, praticamente sem interrupção e sem limites, visto que cada metrópole tinha como prenunciada a sua volta uma área metropolitana. O mesmo aconteceu com os serviços de coleta de lixo, pesadelo metropolitano cujo descuido permitia que fossem acumulados nos dias de greve ou feriados montanhas de detritos mal acondicionados nos lugares mais centrais e cuidados da cidade. O correio padeceu de atrasos crônicos, os telefones sofreram saturação de chamadas apesar do aperfeiçoamento técnico de seus equipamentos, os bombeiros tornaram-se impotentes para o cumprimento de suas tarefas específicas e das novas que tiveram de enfrentar nas complexas metrópoles, e a polícia se viu ultrapassada não só pelo aumento dos delitos comuns como também pelo incremento de novos perigos dos quais a sociedade queria precaver-se: o tráfico de drogas, os ataques de gangues juvenis, a guerrilha urbana. Nem as escolas nem os hospitais deram conta. Até os cemitérios se viram abarrotados de mortos e sem local disponível para os que morriam a cada dia.
Tantas e tão profundas mudanças não influenciaram da mesma maneira todos os segmentos da metrópole, especialmente numa cidade já extensa e complexa antes que as mudanças se desencadeassem. Influíram particularmente sobre o antigo núcleo urbano, mas nem sempre da mesma forma. Algumas vezes, o centro administrativo, comercial e financeiro deslocou-se de modo rápido e o velho centro urbano começou a deteriorar-se e a diminuir de categoria. Quem sabe chegaria algum dia a recuperar certa dignidade, protegido por aqueles que descobriram que valia a pena recuperá-lo, talvez pensando na atração do turismo; entretanto, os negócios caíram de nível, as velhas casas ficaram semi-abandonadas ou transformaram-se em cortiços e as ruas outrora aristocráticas e tranqüilas transformaram-se em ruidoso acampamento dos bandos juvenis que jogavam futebol ou que desenvolviam suas perigosas atividades pelas cercanias. Costumavam ficar em funcionamento os edifícios dos bancos, alguns comércios atacadistas, talvez algumas repartições governamentais e talvez a própria Casa de Governo, próxima da Catedral e do Cabildo, subsistissem como melancólica lembrança da cidade colonial. Porém, ao término das horas de atividade, o bairro ficava deserto e adquiria as características de um logradouro suburbano. Houve algumas metrópoles onde o velho centro urbano nunca perdeu nem sua função nem sua dignidade e melhorou ao ritmo do progresso dos bairros mais avançados. Foi o caso, por exemplo, de Santiago do Chile, do setor norte do centro de Buenos Aires e, de certa forma, do Rio de Janeiro. Ali subsistiram bons hotéis – se não os melhores –, e os centros de atração para turistas e viajantes, aos que se agregaram novos edifícios residenciais e públicos. Nestas cidades, manteve-se certa continuidade entre o velho centro modernizado e as novas áreas.
As zonas vizinhas ao velho centro progrediram sem exagero, integradas desde tempos antigos e habitadas em geral por famílias de pequena classe média e de classe popular em que se alternavam as casas de vilas de média ou baixa renda com as tradicionais pensões e os modestos comércios. Foram as zonas de passagem, em algum momento subúrbios, que se beneficiaram com o passo radial do desenvolvimento urbano sobretudo a favor das boas comunicações. Porém, o mais significativo de seu desenvolvimento foi a influência exercida por sua arraigada integração. Se urbanisticamente essas áreas garantiram a continuidade de uma cidade que tendia a estender-se perifericamente, socialmente foram o foco de certos investimentos dos grupos imigrantes que fizeram ali – nas áreas mais pobres – os primeiros ensaios de sua integração. Em um bairro deste tipo na Cidade do México, próximo de Tepito, encontrava-se “La Casa Grande”, uma imensa vila popular que descreve Oscar Lewis em sua Antropologia de la pobreza.
Os inquilinos da Casa Grande provêm de vinte e quatro das trinta e duas jurisdições políticas da nação mexicana. Alguns, do distante sul, de Oaxaca e de Yucatán; outros, dos estados do norte, de Chihuahua e de Sinaloa. A maior parte das famílias viveu nos arredores durante períodos de quinze a vinte anos, e outras, em torno de trinta anos. Mais de um terço está ligado por parentesco dê consangüinidade, e quase um quarto acha-se aparentado por casamento ou compadrio. Estes laços, assim como os aluguéis congelados e a escassez de moradias de que a cidade sofre, favorecem a estabilidade da população. Algumas famílias de rendas elevadas, cujas casas estão abarrotadas de bons móveis e eletrodomésticos, esperam uma oportunidade para mudar-se para melhores bairros, mas a maioria está contente e até orgulhosa de viver na Casa Grande. O sentido de comunidade é muito forte, sobretudo entre os jovens que pertencem aos mesmos grupos de amigos antigos e que freqüentam as mesmas escolas, as mesmas festas nos pátios, e que com freqüência se casam entre si. Os adultos têm amigos a quem visitam, com quem saem, e a quem pedem dinheiro emprestado. Grupos de vizinhos organizam rifas, participam de torneios e juntos comemoram as festividades dos patronos locais, as festas folclóricas e outras.
Precisamente porque nestes bairros foram realizadas essas experiências de integração, ficaram incluídos no âmbito da “outra sociedade”. Eram bairros de massa, redutos da sociedade anômica. A sociedade normalizada fugia deles, evitando o contato com grupos que lhes pareciam estranhos, e em sua fuga estimulava a formação de novos distritos residenciais de classe alta nos quais funcionariam regras tácitas para se preservarem da intromissão de pessoas de condição social inferior, aspecto que durante muito tempo significou não só um certo nível de renda como também certa fixação e certo processo anterior de ascensão.
A dispersão por classes caracterizou o desenvolvimento das cidades de sociedade dividida: não era um novo fenômeno, sem dúvida, mas nunca havia tido características tão claras e evidentes. Foi uma dispersão em direção à periferia. No Rio de Janeiro, por exemplo, provocou, sucessivamente, o desenvolvimento de Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea e Tijuca; em Santiago do Chile, de Providencia e Tobalaba; em Caracas, de Sabana Grande, Chacaito e dos bairros que surgiram para além do Country Club; em Bogotá, de Chapinero e Chicó; em Montevidéu, de Pocitos e Carrasco; em Buenos Aires, do bairro Norte e San Isidro; em Lima, de Miraflores e Monte Rico; no México, de San Ángel e Pedregal. Coexistiam neles o subúrbio residencial e, pouco a pouco, o refinado centro comercial de moda. Seus habitantes demonstravam um desejo de tranqüilidade e sossego, mas era evidente que caminhavam em busca de “exclusividade”, imaginando que o preço da terra e a distância evitassem invasões indesejáveis: era preciso possuir automóvel para poder viver tão distante dos locais de trabalho, e pouco depois houve necessidade de não apenas um, mas sim, de dois ou três automóveis por família. Surgiram as atividades comerciais de alto nível, as butiques de luxo, os bares e restaurantes mais sofisticados, os clubes noturnos exclusivos, os clubes de golfe ou tênis mais fechados, todo o necessário, enfim, para que o subúrbio residencial se transformasse em um gueto de classe alta com as suas próprias convenções e normas – o que era preciso ter, o que era preciso dizer, o que era preciso pensar – e sempre preocupado com o aparecimento de um intruso, de pessoas, segundo uma expressão reveladora, que não são “como a gente”. Eram os bairros da elite da sociedade normalizada.
Sem dúvida, os bairros de classe média também pertenciam à sociedade normalizada. Existiam os antigos e os tradicionais, alguns dentro da cidade, como a Colonia Roma, no México, o Cordón, em Montevidéu, Belgrano e Flores, em Buenos Aires, ou outros bairros suburbanos. Com o aumento do valor da terra, tais bairros consolidaram a posição de seus habitantes e logo neles surgiram edifícios de apartamentos com certas pretensões que tornavam pública a condição ascendente de quem comprava sua moradia em propriedade horizontal. Mas o desenvolvimento das classes médias suscitou o problema da moradia dos novos grupos, em especial daqueles de rendimentos médios. Um empregado ou um profissional comum, mesmo próspero, não conseguia suprir as despesas de uma moradia de certo nível. Por certo, pertenciam à sociedade normalizada, mas tiveram de aceitar soluções mais modestas e olhar para os bairros suburbanos. Algumas vezes, foi o próprio Estado que desenvolveu uma política, mais ou menos eficaz, de construção de moradias, qualificadas em geral como “para empregados”, indicando assim com exatidão que não eram bairros operários e populares. Sistemas de empréstimos e longos créditos permitiam a um determinado número – ou melhor, a um pequeno número – de beneficiários conseguir uma casa adequada às suas aspirações. Em outras circunstâncias, foram empresas inovadoras que programaram loteamentos ou construções para a classe média – em geral para a média classe média –, com o mínimo de comodidade e de isolamento que pretendiam. Costumavam ser casas unifamiliares ou grandes edifícios de apartamentos multifamiliares, monótonos talvez, mas dotados de conforto e instalados em áreas ajardinadas que permitiam falar, com maior ou menor propriedade, de uma “cidade-jardim”. E quando a empresa investia em grande escala, em geral com um forte investimento estatal, surgiam verdadeiras cidades completas e fechadas em seu âmbito, como a Cidade Satélite do México ou como a Cidade Kennedy, em Bogotá.
Quanto ao proletariado industrial, nem todos os seus membros se fixaram nos subúrbios especificamente industriais. Os bairros construídos pelos sindicatos eram criados de acordo com outros critérios. Porém, muitos preferiram a proximidade das fábricas e, de qualquer modo, os permanentes e os renovados problemas habitacionais provocaram o aparecimento de conglomerados em suas proximidades. As indústrias, que necessitavam da infra-estrutura urbana, surgiram em determinados bairros da cidade ou talvez em algum subúrbio: evitando o centro, mas sem afastar-se muito dele. Só quando o crescimento da cidade tomou difícil a permanência ou a expansão da fábrica, decidiram transferir-se para áreas mais abertas. Desta forma, em algumas cidades desenvolveram-se áreas especificamente industriais. Em alguns casos, formaram um cinturão que cercava a cidade, como em Buenos Aires; outras prolongaram-se em alguma direção, como em São Paulo, onde se alinharam no caminho para Santos. No entanto, outras cidades que nasceram com a própria indústria cresceram consubstanciadas com ela e criaram estreitos complexos de fábricas e moradias que repetiam o quadro dos antigos bairros industriais das grandes cidades. Apenas onde se definiram as localizações preestabelecidas para o “parque industrial” manteve-se um princípio de sofisticação. De qualquer maneira, tomou-se inevitável a formação de núcleos habitacionais nas zonas industriais, tanto dentro da cidade quanto em sua área periférica. Mas foram muito diferentes aqueles que se formaram espontaneamente dos que foram erguidos mais tarde pelo Estado ou pelos sindicatos. Os primeiros eram casas miseráveis onde as pessoas se aglomeravam em profunda promiscuidade, mas também em solidária camaradagem: eram os cortiços, como os que descrevia o chileno Nicomedes Guzmán em Los hombres oscuros e em La sangre y la esperanza. Neles, mais até do que no resto da cidade, havia o ambiente insalubre, as ruas sujas, a existência confusa. Os segundos, em compensação, instalaram-se em locais ajardinados e tinham já as características das moradias modernas e higiênicas. Eram, praticamente, bairros de pequena classe média, nos quais não costumava faltar o espaço de diversão para crianças ou a artística fonte. Mas o seu número, mesmo nas cidades ricas, foi sempre escasso em relação à quantidade dos que se candidatavam, e muitos operários industriais tiveram de continuar vivendo em áreas pobres, pois mesmo com altos salários não podiam enfrentar o desafio do valor especulativo da terra.
De qualquer maneira, boa parte dos operários industriais, com alta capacidade profissional, trabalho estável, bons salários e poderosas organizações sindicais que os amparavam e proporcionavam-lhes serviços sociais, foram introduzindo-se na sociedade normalizada, da qual recebiam benefícios e esperavam recebê-los ainda mais. Só a questão da moradia continuava sendo um obstáculo intransponível, como se a cidade física resistisse a consagrar a sua posição privilegiada. E para outros trabalhadores com altos rendimentos a situação foi semelhante, como acontecia também com os que escapavam da condição de assalariados para trabalhar por conta própria: transportadores que chegavam a ter o seu próprio caminhão, mecânicos que montavam uma pequena oficina, pintores ou pedreiros que conseguiam trabalho independente e acabavam formando pequenas empresas construtoras. Todos entraram nesta cidade normalizada – na zona intermediária e difusa que separava a classe operária da pequena burguesia –, esperando resolver um dia o problema de conseguir uma moradia apropriada para a sua nova condição.
Aqueles que, ostensivamente, não pertenciam à sociedade normalizada foram os moradores das favelas, essas formações suburbanas que, apesar de não serem totalmente novas, cresceram intensamente após a crise de 1930. O seu crescimento se acelerou, sobretudo depois de 1940, e por fim chegaram a ser um pólo na estrutura física de muitas cidades, reflexo de sua estrutura social. Foram conhecidas por diversos nomes em cada país: callampas no Chile, villas miseria, e depois apenas villas, na Argentina, barriadas no Peru, favelas no Brasil, cantegriles no Uruguai, ciudades perdidas no México, pueblos piratas na Colômbia, e em geral, em quase todos os lugares, invasões, construções clandestinas e, sobretudo, favelas. O nome tinha quase sempre curiosas e significativas implicações: costumava encerrar uma atitude irônica ou uma afirmação polêmica do que, até então, só parecia merecer um sentimento de vergonha. A população dos bairros pobres incluídos na cidade, que evitava o uso das palavras beco, curral ou cortiço, possuía este último sentimento. Mas a formação dos novos bairros suburbanos revelou uma mudança de atitude dos invasores.
As favelas não foram patrimônio exclusivo das metrópoles. Ali elas foram mais numerosas, mais populosas e sua significação social foi maior. Mas apareceram em outras tantas cidades e de tipos diversos. No México, proliferaram em um balneário de luxo como Acapulco, de cujos morros pareciam vigiar a extravagância da riqueza, enquanto seus habitantes introduziam-se por entre as brechas da sociedade ociosa tentando obter dela algum proveito. Cresceram também em Culiacán, a capital do estado de Sinaloa, uma cidade encravada em uma rica região agrícola e sem desenvolvimento industrial. Um cinturão de miséria que cresceu de modo rápido reuniu mais de doze bairros de imigrantes, compostos de barracos insalubres e desprovidos de serviços públicos, nos quais se especulava com a água potável e roubava-se a luz dos cabos públicos. E multiplicaram-se, naturalmente, em Monterrey, uma cidade de 1.300.000 habitantes na qual se foram instalando mais de nove mil indústrias. Uma densa rede de bairros miseráveis espremeu-se em volta da própria cidade e ao largo de sua área metropolitana, calculando-se que aumentava a cada ano cerca de 40.000 habitantes. Casebres feitos de pedaços de papelão ou com bolsas velhas de plástico abrigavam uma população crescente que carecia de todos os serviços, sobretudo os cinco bairros formados nos lixões. Calcula-se que 40% da população vive nessas condições, e que 70% carece parcialmente desses serviços.
Com semelhantes características poderiam ser descritas as favelas de muitas outras cidades. Como em Monterrey, o desenvolvimento explosivo das indústrias provocou o surgimento de favelas nas cidades argentinas de Rosário e Córdoba, assim como em outras que atingiam quase 50.000 habitantes, como Zárate e San Nicolás; na cidade mexicana de Puebla, nos bairros periféricos existem 100.000 pessoas que carecem de água e se vêem sitiadas pelos depósitos de lixos; nas venezuelanas Maracaibo e Santo Tomé de Guayana, nascente empório onde se calcula que chegam mil pessoas por mês e que já ultrapassou os 150.000 habitantes; nas colombianas Medellín, que recebeu por volta de meio milhão de habitantes desde 1938, Manizales, que abrigava uma sexta parte de sua população – umas 40.000 pessoas – em sórdidos bairros localizados em morros constantemente ameaçados por deslizamentos de terra, Barranquilla e Cartagena; nas brasileiras Porto Alegre e Belo Horizonte, invadidas, como São Paulo, não só por migrantes da própria região como também do sofrido nordeste do país; na peruana Chimbote, onde a indústria metalúrgica se desenvolveu desde 1958 e na qual 20% da população estava alojada em lugares miseráveis. Mas o surgimento das favelas tampouco foi exclusivo das cidades que se industrializaram. Como no caso de Acapulco ou de Culiacán, diferentes razões determinaram o seu surgimento em outros lugares. As migrações dirigiram-se também para cidades intermediárias e importantes cuja atividade era fundamentalmente administrativa e comercial, só pelo fato de serem centros ativos onde parecia possível encontrar trabalho e melhores condições de vida, e o resultado foi a formação de cinturões de miséria. Apareceram nas cidades peruanas de Piura, Chiclayo, Huacho, Ica e Tacna, e em especial em Arequipa, onde, de uma população de mais ou menos 120.000 habitantes, 10% moram nestas terríveis condições; na mexicana Guadalajara, ainda eminentemente comercial apesar do impulso do subúrbio de Tlaquepaque; na equatoriana Esmeraldas, porto exportador que de 15.000 habitantes em 1951 passou para mais de 50.000 em 1972, e cujos bairros pobres – El Malecón, Vida Suave, Pampón – abrigam quase mil famílias em condições subumanas; a brasileira Recife, em cujos mocambos – choças de barro, palha e folhas de zinco situadas nos mangues do rio – sobrevive um sem-número de famílias – mais de 100.000 pessoas – graças aos caranguejos da lama repugnante do rio impregnado de detritos, segundo relata Josué de Castro.
Porém, as mais numerosas, as mais habitadas e as mais representativas foram e continuam sendo as favelas que se formaram nas grandes cidades. Em Buenos Aires, o censo de 1966 estimava a população das villas miseria da área metropolitana em 700.000 pessoas. Em cada uma delas, repetiam-se os mesmos aspectos: as moradias precárias, a promiscuidade familiar, a aglomeração subumana de grandes grupos em um espaço limitado, a falta de serviços elementares. Trinta e cinco por cento dos imigrantes concentraram-se nessas villas miseria, habitadas por pessoas provenientes não só do interior do país como também dos países vizinhos, em especial Bolívia e Paraguai. Instaladas nas zonas periféricas – exceto alguma localizada próxima ao porto –, são pouco visíveis para o portenho normal, que pode passar vários anos sem vê-las e até sem se lembrar delas. O turista as vê menos ainda; e quando apareceram próximas à auto-estrada que leva ao aeroporto internacional de Ezeiza, foi levantado pudorosamente um muro para escondê-las.
Nem o cidadão comum nem o turista divisam com facilidade as ciudades perdidas do México. Alguém deve avisar ao despreocupado turista que vai contemplar as belezas de Puebla que, enquanto percorre a avenida Zaragoza, deixa à sua esquerda os bairros de Netzahualcóyotl. Concluída a secagem do lago Texcoco, ficaram disponíveis 6.500 hectares de terras salitrosas que começaram a ser ocupadas por migrantes vindos do interior do país e por pessoas que tiveram de abandonar as suas moradias nos bairros centrais da cidade. Os bairros de Netzahualcóyotl chegaram a abrigar talvez um milhão de pessoas, para as quais ter água potável, luz, esgoto ou serviços de comunicações era uma grande obsessão, constantemente frustrada. Oscar Lewis ali observou a família de Jesús Sánchez, um migrante de Veracruz que havia comprado um lote no bairro para construir a casa que “se erguia ao ar livre na planície sem árvores, a certa distância da poeirenta estrada, em um conjunto de cinco ou seis casas”. Com o tempo, a construção foi-se tornando mais apertada e foram-se formando bairros compactos, alguns dos quais começaram a ter uns poucos serviços públicos.
Mas Netzahualcóyotl não é, por certo, a única favela da Cidade do México: fala-se de 452, que abrigariam cerca de dois milhões de pessoas em condições semelhantes. No entanto, estão crescendo, pois o número de habitantes aumenta, tanto daqueles que continuam vindo do interior quanto dos que abandonam o centro para radicar-se nas áreas periféricas, ultrapassando os limites administrativos da cidade e estendendo-se por uma crescente área metropolitana. Talvez a mais surpreendente projeção desse processo seja a formação dos 39 bairros em Ecatepec, espalhados em dois mil hectares e com uma população de 180.000 habitantes. Nenhuma das calamidades próprias das favelas lhes faltam; contudo, agregam mais uma: na época das chuvas, as águas inundam as casas chegando até o nível de cinqüenta centímetros.
Em outras cidades, as favelas não são vistas com facilidade: em Santiago do Chile, em São Paulo e em Guayaquil. E necessário procurá-las com alguma atenção ou é preciso ir expressamente ao lugar onde se acham instaladas. Porém, em certas metrópoles o quadro adquire uma intensidade particular porque as favelas surgiram nos morros que cercam a cidade, e a cidade anômica forma uma espécie de anfiteatro que cerca a cidade normalizada. E agradável tomar coquetéis no hotel Tamanaco em Caracas, mas é inevitável que aquele que se considera observador seja observado por milhares de olhos dos morros. E ao anoitecer, talvez pareçam pitorescas as luzes acesas nas ladeiras: não se pode esquecer, no entanto, os barracos que iluminam e o quadro urbano em que se descortinam.
Lima, dominada pelo morro San Cristóbal, oferece uma imagem semelhante. Pela encosta deste e de outros morros vizinhos começaram a subir as favelas, que se estenderam também pelos areais do vale do Rimac. Era a obra dos migrantes rurais que chegavam à capital, algumas vezes lenta e mansamente, e outras, de maneira agressiva e em massa. A partir de 1945, mas sobretudo depois de 1950, o movimento foi se tornando cada vez mais intenso. Precisamente em 1945, um grupo decidido fundou a favela de San Cosme, em um morro ocupado sem autorização. O presidente José Luis Bustamante y Rivero mostrou então a surpresa de todos ao julgar o fato em sua Mensaje al Perú.
Este fenômeno social, que não pôde ser contido pelas autoridades, obedece basicamente (…) ao aumento anormal da população da capital pela afluência de forasteiros provincianos (…) e o último surto desta enfermidade demográfica foi a ocupação por mais de quinze mil pessoas de um sítio de Atacongo para fundar a chamada Ciudad de Dios.
Pronunciadas estas palavras nos últimos anos da década de 1940, a “enfermidade” continuou desenvolvendo-se cada vez mais. Talvez mais de 10% da população da capital peruana viva em barriadas.
As favelas de Lima são talvez as que mais rapidamente se organizaram e aquelas cuja população mais demonstra uma decidida vontade de integrar-se. José Matos Mar escreve:
Ao realizar a invasão de uma área determinada, a primeira coisa que fazem é dividir o terreno em lotes de diversos tamanhos e, após prévia inscrição de famílias, os distribuem. Cada família constrói de imediato a sua moradia nestes lotes para o que utilizam todo tipo de material de construção, a fim de garantirem com a sua presença um direito. Com esta forma organizada, que se repete em todos os casos, iniciam a vida da favela e paralelamente fundam uma associação de moradores, que em um primeiro momento é formada pelos responsáveis pela invasão, que em geral são mestiços urbanos. Mais tarde, já instalados, escolherão os seus próprios representantes.
Essa capacidade de organização deveu-se ao fato de que, para fazer a invasão, comunidades inteiras saíram dos seus povoados da serra para a capital, depois conservaram não apenas a sua organização como também os seus costumes. Seus habitantes descem até o centro da cidade para ganhar a vida, mas sua atitude é gregária. Todos juntos constituem a “outra sociedade”, cujo espetáculo entristece e deprime os limenhos das classes abastadas.
Houve, principalmente após 1945, uma ampla expansão da cidade de Bogotá para o sul, depois da rua 1A, de leste a oeste. As favelas ocuparam tanto as encostas dos morros quanto a parte plana, e cresceram como em todos os lugares: com moradias precárias e sem serviços públicos. Calcula-se que a metade da população bogotana vive em barracos, e boa parte dela, nessas favelas periféricas cujo conjunto forma um panorama desolador. Mas o bogotano normal não tem por que passar da rua 1A para o sul. Sua vida desenvolve-se em outros lugares e, se é de classe abastada, desloca-se progressivamente para o norte; em direção à rua 57, se vive em Chapinero; em direção à 92, se vive em Chicó; são muitas as ruas que o separam da expansão rumo ao sul.
As favelas de São Paulo também não são excessivamente visíveis. Cidade industrial, atraiu uma numerosa imigração tanto da região circunvizinha quanto do Nordeste, em especial do estado do Ceará. Mas nem todos os migrantes conseguiram trabalho nas fábricas, nem os salários industriais lhes permitiram enfrentar o preço especulativo da terra. A cidade cresceu em todas as direções: para Santo Amaro, para Santo André, bem mais além da avenida Água Branca, rua Guaicurus e, sobretudo, além do Tietê, chegando a subir a serra da Cantareira, nos bairros de Tremembé e Guarulhos. Uma precária construção abriga centenas de pessoas.
Em compensação, os morros no Rio de Janeiro são, há muito tempo, as zonas preferidas para as invasões, e voltaram a sê-lo quando os veteranos da Guerra de Canudos procuraram onde estabelecer-se: ficaram no morro da Providência, e ali surgiu a palavra favela, que depois se generalizaria.
O crescimento das favelas, no entanto, começou depois de 1930 e foi se acelerando de modo rápido. Talvez abriguem 20% da população da cidade. Povoaram as encostas dos morros, mas também algumas áreas planas dentro e fora do perímetro urbano, e introduziram o tipo de casa rural. Dado significativo, não foi apenas a casa o que denotou a sobrevivência rural: foram também os costumes e as crenças, tão vigorosos como o culto a São Jorge ou o espiritismo e, sem dúvida, antigos resquícios das culturas africanas. Talvez tudo isto dê à sociedade dos “favelados” uma homogeneidade ainda maior que a dos invasores de Lima, cujo vínculo é predominantemente social. E em ambos os casos a homogeneidade se traduz na contraposição à sociedade normalizada.
As duas sociedades opuseram-se em quase todas as metrópoles e cidades onde se formou uma massa de origem dupla, externa e interna, cuja oposição materializou-se no âmbito físico. A metrópole propriamente dita é da sociedade normalizada e as favelas, da sociedade anômica, apesar de, no fundo, os dois âmbitos estarem integrados e não poderem viver um sem o outro. São dois irmãos inimigos que se vêem forçados a integrar-se, como as sociedades que os habitam. Mas do enfrentamento até a integração há um longo caminho que só pode ser percorrido em um longo tempo.
4. Massificação e estilo de vida
Se o espetáculo do aspecto físico de muitas cidades latino-americanas sugeria a idéia de que abrigavam uma sociedade dividida, revelava também imediatamente uma diversidade de estilos de vida. Sensação muito diferente tiveram, por certo, os viajantes do século XIX que descreveram cidades de perfil homogêneo habitadas por sociedades compactas, quaisquer que fossem os graus de diferenciação social que as caracterizassem. Contudo, o observador que se defrontava com as cidades que sofreram mais intensamente os efeitos da crise posterior a 1930 não só percebeu graus de diferenciação como verdadeiros abismos sociais.
Por certo, as migrações e as polarizações sociais que ocorreram em seguida transformaram as cidades em uma justaposição de guetos, zonas urbanas com pouca comunicação entre si ou com contatos muito superficiais e convencionais. Não era necessário muito tempo para descobrir-se que em cada uma delas se vivia de maneira diferente. E não só era evidente a diferença entre o modo de vida das pessoas que moravam nos subúrbios aristocráticos e aquele que levavam os habitantes das favelas: ainda dentro de cada um desses segmentos percebia uma diversidade que parecia mais profunda precisamente porque estava, às vezes, velada por certas enganosas coincidências anteriores. Quem olhava de perto as favelas limenhas aprendia de modo rápido a distinguir as que se compunham de pessoas vindas de Ayacucho ou de Cajamarca; no México, distinguiria as que reuniam pessoas de Tepoztlán das que se constituíram de pessoas vindas de Oaxaca ou de Veracruz; e em Buenos Aires, as que se compunham de bolivianos ou paraguaios das que se achavam integradas por pessoas de Santiago ou de Corrientes. E não só perceberia a diferença nascida da origem geográfica diversa, como também a que derivava da variada condição social originária, da habilidade para incorporar-se à vida urbana e ao mundo tecnológico, do grau de alfabetização ou da tendência a deixar-se levar para a vida delituosa. Do mesmo modo, o observador dos diferentes grupos da sociedade normalizada observaria a existência de bairros “exclusivos”, diferentes uns dos outros não só pelo padrão de vida como também por seu estilo. Grupos altos, médios ou populares, semelhantes em alguns traços exteriores, acentuaram sua diferenciação no seio da sociedade dividida segundo o seu grau de cosmopolitismo, de aceitação da mudança, de tradicionalismo, ou segundo o tipo de suas expectativas. Muitos viviam como queriam, mas muitos mais viviam como podiam, contrastando a cada momento as suas tradições com as circunstâncias criadas pela mudança.
De qualquer maneira, era evidente o contraste fundamental entre a sociedade normalizada e a sociedade anômica: ambas acusavam diferenças tão profundas que o espetáculo de sua contigüidade pareceu explosivo. Cada grupo tinha, em conjunto, atitudes tão diferentes que se podia supor que eram mais dois mundos em contato do que dois setores de uma sociedade que, em última instância, vivia em comum. Por trás dessas atitudes, havia concepções diferentes do mundo e da vida, tão extremas que pareciam insuperáveis. A situação era, por certo, muito complexa. A sociedade normalizada tinha um estilo de vida de marcada coerência. Era herdado e tradicional, e estava sustentado na experiência cotidiana por algumas normas permanentes e certas mudanças, lentas e bem assimiladas, que lhe outorgavam flexibilidade e firmeza ao mesmo tempo. Legado da velha burguesia, um pouco aristocratizada com o tempo, mantinha a consistência necessária para enfrentar as novas mudanças – agora muito aceleradas – com a esperança de não perder a sua coerência. Porém, as mudanças foram muito aceleradas e profundas. Em que pese a rígida estrutura do legado recebido, as circunstâncias questionaram certas atitudes e puseram em evidência que eram insustentáveis diante das novas situações reais. Uma espécie de dúvida influenciava essa sociedade normalizada, que teria querido defender até o fim o seu estilo de vida, mas que compreendia a necessidade de adequar-se à nova situação.
Foi essa mesma crise que obrigou a sociedade normalizada, abalada e hesitante, a receber na sociedade que até então era coerente os novos grupos que viviam de outro modo. Por certo, não era um único modo, mas, sim, muitos. E esta inserção de grupos de tão diversificadas atitudes acabou por abalar a sociedade normalizada, que viu na massa que se formava a expressão de um mundo alheio. Não exageraria quem dissesse que a primeira sensação foi uma estranha mistura de nojo e desprezo. Quem tinha o hábito de dar passagem ficou assustado diante do outro que atropelava para conquistar um lugar, e quem tomava banho todos os dias teve um gesto de repugnância diante daquele que ostentava, indiferente, sua falta de asseio. A sociedade normalizada demorou algum tempo a acostumar-se com a idéia de que se havia incorporado à estrutura, em que antes se movia sozinha, um grupo diverso que, de momento, parecia irredutivelmente diferente quanto às suas atitudes básicas e quanto às normas às quais se atinha.
A rigor, essa massa não possuía um sistema coerente de atitudes nem um conjunto harmonioso de normas. Cada grupo tinha as suas e era a sociedade normalizada que lhes proporcionavam a unidade de que careciam. Justamente por isso constituíam uma sociedade anômica. Esta não possuía um estilo de vida, mas muitos modos de vida sem estilo. E talvez tenha sido essa anomia o que mais comprometeu o jogo das influências recíprocas. Nos quarenta anos posteriores à crise de 1930, o processo de integração profunda das duas subsociedades que formavam a sociedade dividida não avançou muito.
Porém, sem dúvida, avançou um pouco ainda que por estranhos caminhos. Pode-se dizer que, embora pareça paradoxal, avançou na medida em que, a cada dia, um número maior de membros da massa sentiu-se chamado para participar e enfrentou a sociedade normalizada. O diálogo começou algumas vezes com insultos e desafios, mas começou e não se deteve. Os interesses comuns foram deslindados e, sobretudo, identificaram-se aqueles pontos da estrutura que a massa podia romper. Aqueles que, no conjunto, constituíam uma sociedade anômica, possuíam, particularmente, uma cultura originária que, em alguns casos, lhes permitiu reduzir as suas próprias normas às da sociedade normalizada. De resto, a necessidade obrigava. Muitos começaram a imitar os modos de comportamento da sociedade normalizada: as fórmulas de cortesia que, sem dúvida, lhe eram familiares, os princípios de obediência às hierarquias, as regras do jogo para certo tipo de relações. Mas, talvez, tenham imitado mais: a maneira de pegar um copo ou um garfo, ou de pôr uma toalha na mesa, ou de vestir uma criança. E talvez mais ainda, como atuar em relação ao Estado e a seus agentes, como exigir. E ainda mais: como julgar certos atos, como decidir-se diante de certas opções, como pensar sobre certos temas que entranhavam um compromisso. Essa imitação não implicava internalizar os pressupostos da estrutura: era, em geral, uma repetição superficial de atitudes que haviam sido observadas, e consideradas convenientes e benfazejas. A imitação era uma defesa típica de quem passava timidamente ao ataque. Por esse caminho a integração começava, com dificuldade, através de uma adaptação cautelosa às exigências primárias da estrutura própria da sociedade normalizada.
Entretanto, alguma coisa identi